Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
10/18.1JAPTM.E1
Relator: MARIA DE FÁTIMA BERNARDES
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PRINCÍPIO ACTIVO
CATINA
CATINONA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
Data do Acordão: 01/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - As substâncias catinona e catina podem ser encontradas naturalmente na planta Khat (Catha Edulis).

II - A catinona assemelha-se às anfetaminas, tanto na sua estrutura química como nos efeitos bioquímicos e comportamentais, embora tenha apenas cerca de metade da sua potência. Habitualmente são mascados 100 a 300 g de folhas de khat durante três a seis horas. O teor de catinona pode variar entre 30 a 200 mg por 100 gramas de folhas frescas, sendo até 90% desta substância extraída por mastigação. Isto corresponde a uma dose baixa ou média de anfetaminas, mas o modo laborioso de ingestão restringe a dose cumulativa e os níveis máximos no plasma. Como a catinona é muito instável e se decompõe num prazo de 72 horas, após a colheita, as folhas de khat são preferidas enquanto frescas.

III - Quando a planta do khat é cortada e seca, na presença de oxigénio, a catinona decompõem-se, originando a catina, substância esta com efeitos psicoativos mais reduzidos do que os produzidos pela catinona.

IV - Não estando apurado qual o grau concentração de uma e de outra daquelas substâncias, é de considerar, à semelhança do que se verifica em relação às folhas da planta Canabis, que têm um nível de toxicidade relativamente inferior e menos perigoso para a saúde pública em geral, em confronto com outros produtos de natureza sintética, com a mesma qualificação legal, tais como o MMDA, as Anfetaminas e outras substâncias incluídas nas Tabelas II-A e II-B.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Nestes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 10/18.1JAPTM, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Criminal de Portimão, Juiz 2, foi submetido a julgamento o arguido RR, melhor identificado nos autos, estando pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência às Tabela II-A e II-B anexas mesmo diploma legal.

1.2. Realizado o julgamento, foi proferido acórdão, em 22/04/2019, depositado nessa mesma data, com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal Colectivo em julgar procedente a pronúncia, e, em consequência, decidem;

a) condenar o arguido RR pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º nº1 do DL 15/93 de 22/01, com referência às tabelas anexas II-A e II-B, na pena de 5 (cinco) anos de prisão, efectiva;

b) declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido e ordenar a sua destruição, após trânsito.

c) condenar o arguido nas custas do processo, com 4 UC de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário se for caso disso.
(…).»

1.3. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação do recurso apresentada as conclusões as seguintes conclusões:

«A. A decisão condenatória proferida pelo Meritíssimo Juiz de Direito do tribunal “a quo” condenou o arguido na pena cinco anos de prisão efetiva,

B. Discorda o arguido da pena aplicada, por ser desproporcional, desadequada e injusta, e não ter sido devidamente levada em conta a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.

C. O recorrente discorda com os factos dados como provados em 1.1. da sentença, pois não ficou demonstrado nos autos, que se tratava de 15.843,30 gramas de peso liquido de Catinona e Catina.

D. Contudo, sempre se dirá que a pena aplicada foi manifestamente excessiva e desproporcional, sendo a decisão violadora do disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal e ainda do principio de proporcionalidade consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da CRP.

E. O arguido considera que a douta sentença não apreciou devidamente a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não se verificando na decisão que foram atendidos os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação, até por desacertada apreciação da prova tida como assente.

F. Discorda o recorrente da pena fixada por ser francamente desproporcionada à gravidade dos factos e ao seu grau de culpa, não tendo o recorrente quaisquer antecedentes criminais.

G. Não configuram nos autos elementos suficientes que permitam formar a convicção de que a pena aplicada ao arguido preenche adequadamente as finalidades da punição, particularmente se nos referirmos a critérios de prevenção especial positiva.

H. Atendendo ao disposto nos artigos 40.º e 71.º do CP, concatenado com o acima vertido quanto aos factos, em tudo o que dispõe quanto às finalidades e a determinação das penas e das medidas de segurança é de concluir que a aplicação ao recorrente de uma pena de multa de valor inferior ao estabelecido, realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição explanadas nos normativos mencionados.

I. Até porque, ao atender-se à natureza do crime perpetrado, que, pese embora seja grave e merecedor de relevância penal, há sempre que ter em atenção as finalidades das penas previstas no artigo 40.º do Código Penal, na medida em que com a aplicação de uma pena de prisão se visa não só a protecção da sociedade em si, como a reintegração do agente na sociedade, sendo que, a medida da pena concretamente aplicada, não pode deixar de ter em vista esta finalidade.

J. Importa relembrar que a tipicidade do crime se encontra, salvo o devido respeito, mal-enquadrada devendo a mesma recair sob o artigo 25.º do DL 15/93 e não sob o artigo 21.º do mesmo decreto lei.

K. Pelo que, deve a decisão condenatória ser substituída por outra que reduzida por francamente desproporcionada e excessiva, devendo ainda a mesma ser suspensa na sua execução, pela prática do crime supramencionado e não pelo qual vem o mesmo condenado.

Pelo que, nestes termos e nos mais de direito que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado precedente, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra, inferior a 5 anos e suspensa na sua execução, assim fazendo a já acostumada JUSTIÇA!!!»

1.4. O recurso foi regularmente admitido.

1.5. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso, nos termos constantes de fls. 314 a 324, pronunciando-se no sentido de ser concedido parcial provimento ao recurso, mantendo-se o acórdão recorrido, com eventual suspensão da execução da pena de prisão, formulando as seguintes conclusões:

1- O âmbito do recurso retira-se das respectivas conclusões as quais por seu turno são extraídas da motivação da referida peça legal, veja-se por favor a título de exemplo o sumário do douto Acórdão do STJ de 15-4-2010, in www.dgsi.pt, Proc.18/05.7IDSTR.E1.S1.

2- “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.

3- São as conclusões, que fixam o objecto do recurso, artigo 417º, nº3, do Código de Processo Penal.

4- O arguido não tem antecedentes criminais.

5- É adequada e com total sustentação na Lei Penal e no regime do tráfico de estupefacientes a qualificação jurídica que consta do Douto Acórdão, não devendo proceder o intento do arguido em ser condenado pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. no artigo 25º, do DL nº15/93, de 22/1, com as posteriores alterações, ao invés de ser condenado pelo artigo 21º, nº1, do mesmo diploma legal.

6- Necessário era que se tivesse dado como provado “que a ilicitude do facto se encontre consideravelmente diminuída”, circunstância que não se provou, nem se poderia ter provado nos presentes autos, devendo manter-se a qualificação jurídica que consta do Douto Acórdão.

7- O arguido impugna a medida da pena e diz a propósito da medida da pena: o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade(...). Mas, para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente”.

8- Ou ainda como se diz no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: “II - Culpa e prevenção constituem o binómio que preside à determinação da medida da pena, art. 71.º, n.º 1, do CP. A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – art. 40.º, n.º 2, do CP.

III - Dentro deste limite, a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, in www.dgsi.pt, Proc. nº 315/11.2JELSB.E1.S1, 1-7-2015.

9- O Tribunal “a quo” ponderou para a escolha e medida da pena aplicada aos arguidos todos os critérios previstos nos artigos 40º, 50º, 70 e 71º, do Código Penal e artigo 21º, do DL nº15/93, de 22/1, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento.

10- Quer o recorrente que se suspenda na execução a pena de prisão que lhe venha a ser aplicada, nos termos do nº1, do artigo 50º, do Código Penal: “pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos”.

11- O recorrente RR: não tem antecedentes criminais, colaborou com o Tribunal, sem confessar os factos, foram-lhe apreendidas plantas de “Khat”, que contêm catinona e pretender ir viver para o seu país de origem, pelo que, talvez se possa fazer um juízo de prognose favorável, suspendendo-se na sua execução a pena de prisão e tal sem questionar de modo irremediável os desígnios que a política criminal visa.

12- Não padece o Douto Acórdão de nenhum vício ou nulidade, tendo sido respeitados os preceitos legais aplicáveis do Direito Europeu Constitucional e Criminal.

13- Deve manter-se o Douto Acórdão com a eventual suspensão da execução da pena de prisão.

Concedendo provimento parcial ao recurso

ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA

1.6. Neste Tribunal, o Exm.º Procurador da República emitiu parecer, que se mostra inserto a fls. 329, no sentido de o recurso dever ser julgado parcialmente procedente, mantendo-se o acórdão condenatório proferido, embora se admita com prognose favorável a suspensão da execução da pena de 5 anos de prisão aplicada ao arguido/recorrente, aderindo à fundamentação expendida pelo Ministério Público, na 1ª instância, na resposta ao recurso.

1.7. Foi cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não tendo o recorrente oferecido resposta.

1.8. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:

O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artº. 428º do C.P.P.).

As conclusões da motivação recursiva balizam ou delimitam o respetivo objeto do recurso (cf. artigos 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.), delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Tal não impede o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cf. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.

No caso vertente, tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso que apresentou, são suscitadas as seguintes questões:

- Erro de subsunção da conduta do arguido/recorrente ao crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro;

- Medida da pena;

- Suspensão da execução da pena.

2.2. Acórdão recorrido
Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter presente o teor do acórdão recorrido, que se transcreve:

«(…)
II – Fundamentação
1. Factos Provados
Discutida a causa, mostram-se provados os seguintes factos:
1.1 No dia 5 de Janeiro de 2018, pelas 15h30, na Rua …, Mexilhoeira Grande, em Portimão, o arguido RR tinha em sua posse, no interior da sua viatura automóvel da marca e modelo «Ford Escort» de matrícula R--- VOH, dois sacos de viagem contendo no seu interior Catinona e Catina, com o peso líquido de 15.843,30 gramas.

1.2 O arguido RR conhecia a natureza estupefaciente das substâncias que tinha na sua posse.

1.3 Agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que a detenção, guarda, compra, recebimento, venda, cedência, transporte e trânsito das aludidas substâncias estupefacientes é proibida e punida por lei.

1.4 O arguido não tem antecedentes criminais.

1.5 O arguido encontra-se em prisão preventiva à ordem do NUIPC ---/18.4JELSB, que corre termos no juízo central criminal de Lisboa J1.

1.6 O arguido tem 71 anos, e é o único filho de um casal de mediana condição socioeconómica, pai engenheiro e mãe secretária, … tendo o processo de desenvolvimento decorrido no agregado dos pais, numa primeira fase na Escócia, e mais tarde em Bedford, onde a família viria a fixar residência…sem registo de problemática relevante, numa dinâmica familiar … coesa e afectivamente gratificante, tendo sempre contado com o apoio das figuras parentais. Diz ter integrado o agregado de origem até aos vinte e um anos de idade, data em que por sua iniciativa se deslocou para os Estados Unidos, onde descreve a sua primeira experiência laboral como técnico de engenharia, a exercer funções de manutenção de equipamento electrónico no departamento de geologia numa universidade da Califórnia. RR diz ter frequentado o sistema de ensino do seu país até aos dezasseis anos de idade, concluindo o equivalente ao nosso 9º ano de escolaridade. Nos cinco anos seguintes refere ter investido em formação profissional no sector da engenharia eléctrica, sendo que em paralelo terá trabalhado em regime de “part-time”, em actividade ligada a essa formação profissional. A sua estadia na Califórnia terá sido de cerca de dois anos tendo regressado a Inglaterra, onde diz ter iniciado a actividade de técnico supervisor de equipamento eléctrico na empresa britânica de navegação P&O, ligada a transportes marítimos e passeios de cruzeiros. Em termos do seu percurso laboral, o arguido menciona ter trabalhado ao longo dos anos com a empresa de navegação P&O, embora nem sempre de forma contínua, trabalho para o qual seria solicitado maioritariamente para realização de trabalhos de engenharia/mecânica eléctrica, alguns trabalhos de curta duração embora na sua maioria por períodos prolongados de tempo, de semanas sucessivas, alegadamente por serem trajectos de viagem intercontinental. Nesse contexto refere um percurso vivencial decorrido em vários países onde, exceptuando o país de origem, destaca permanências mais prolongadas na Austrália e África. Ainda no plano laboral o arguido refere as mesmas funções em outras companhias de navegação estrangeiras, nomeadamente no Kuwait e na Nigéria, esta última onde trabalhou para a empresa de navegação denominada Nigerian Green, descrevendo o seu trabalho com períodos de actividade de cerca de seis meses, a que se seguiria uma fase de pausa obrigatória de cerca de tês meses, percurso laboral que não temos como aferir. No plano afectivo, o primeiro matrimónio do arguido ocorreu em 1979, com uma cidadã italiana, união que viria a terminar em 1985 da qual tem uma filha já autonomizada que reside na Austrália. Apesar de ter contraído matrimónio em Gibraltar, o arguido refere uma vivência conjugal na Austrália, sendo que nessa estadia diz ter trabalhado como engenheiro numa das universidades, igualmente na supervisão de equipamento electrónico. Posteriormente, e no exercício das mesmas funções, diz ter trabalhado na Nova Guiné, numa empresa ligada à exploração de cobre. Em 2016, a que justifica com uma visita de negócios/turismo ao Quénia, o arguido viria a contrair nova casamento com uma cidadã desse país, união que refere manter-se como estável apesar da separação física que tem caracterizado essa relação, que refere como motivo, o seu trabalho marcado por sucessivas deslocações a outros países, alegadamente por razões profissionais. RR refere a sua primeira deslocação a Portugal em 1979, alegadamente visita de turismo e para descansar, tendo ao longo dos anos seguintes eleito e efectuado inúmeras deslocações a Portugal pelos mesmos motivos, estadia maioritariamente assente na zona do Algarve, onde permaneceria em habitações que arrendaria.Com um percurso laboral que o próprio justifica como de forte mobilidade geográfica na sequência de sucessivas deslocações a outros países, o arguido refere a sua última permanência em Portugal como a de maior duração, tendo residido em moradia arrendada na zona do Algarve, na morada acima mencionada, desde há aproximadamente ano e meio, sendo que o cônjuge terá continuado a viver no país de origem, no Quénia. RR refere a sua deslocação a Nairobi em 17 de Janeiro de 2018 com o objectivo de visita à mulher e para presença no funeral da sogra, tendo todavia prolongado a sua estadia durante alguns meses, sendo que nesse período refere duas deslocações a Portugal, a última, onde veio a ser preso. O arguido teve audiência de julgamento em 12.02.2019, à ordem do processo ---/18.4JELSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juiz Central Criminal de Lisboa – Juiz 1 acusado de um crime de tráfico de estupefacientes, desconhecendo-se o seu desfecho. Em termos de perspectivas futuras e aparentando consciência da presente situação jurídica, RR verbaliza a intenção de vir a reorganizar a sua vida em Portugal, ambicionando a oportunidade de reunir-se com a mulher, que presentemente continua a viver no Quénia. Como segunda alternativa tenciona regressar ao país de origem. No plano económico, RR refere contar com a sua reforma, não descurando a hipótese de regressar ao trabalho nos moldes anteriormente vivenciados, em funções ligadas à engenharia mecânica em companhias de navegação. No actual contexto prisional o arguido tem mantido um comportamento institucional correcto, nada havendo a assinalar em termos de situação anómala, sendo que à data presente não beneficia de visitas por parte de familiares e não se encontra laboralmente activo. A presente situação jurídico-legal não parece surgir como de impacto significativo na vida profissional, dado que à data da actual prisão, o arguido estaria a subsistir da sua reforma, embora nos tenha mencionado encontrar-se apto para num futuro próximo dar continuidade à sua vida profissional. Do ponto de vista afectivo, o arguido refere a sua união conjugal…, o que todavia não é possível aferir, dado que esta reside em outro país. Em termos de saúde, o arguido já em contexto prisional veio a registar alguns problemas do foro cardíaco, que refere ter ultrapassado.

2. Factos Não Provados
Dos relevantes para a decisão da causa não resultaram não provados nenhuns factos.

3. Motivação da decisão de facto
Quanto à questão da culpabilidade,
Interpretadas à luz das regras da experiência comum e, da livre convicção, como é o critério vertido no art. 129º do CPP,

- as declarações do arguido -
prestadas em audiência,
- os depoimentos das testemunhas -
SM,dona/senhoria da residência do arguido na povoação da Mexilhoeira Grande, deste concelho de Portimão,
JV, PP e JF, inspectores da P.J., do D.I.C. de Portimão, que procederam à investigação e à apreensão do estupefaciente,

- a prova documental
- informação do Gabinete Nacional da Interpol de fls. 3, 4 e 33 a 35,
- auto de notícia de fls. 37 a 41,
- auto de diligência de fls. 52 a 54,
- auto de diligência de fls. 55,
- auto de busca e apreensão de fls. 57,
- reportagem fotográfica de fls. 86 a 92,
- informação da UNCTE de fls. 105, e
- acusação deduzida no processo 224/18.4JELSB,
- a prova pericial -
- relatório do exame de toxicologia de fls. 100, donde resultam a natureza e quantidade das substâncias apreendidas,
foram determinantes para a formação da convicção,
a apreensão das plantas que se encontravam no veículo do arguido, que estava estacionado junto à sua residência, e os depoimentos das testemunhas inspectores da PJ, que procederam à apreensão,
não merecendo nenhuma credibilidade a versão do arguido,
segundo a qual o estupefaciente apreendido seria pertença de terceiras pessoas a quem ele teria cedido ocasionalmente a sua residência, e cujos haveres o próprio arguido teria transportado/colocado no próprio veículo, para desocupar a casa numa das vezes em que foi viajar, sem conhecimento do que se tratava, pessoas cujas moradas profissionais e números de telefone já vem indicando desde o inquérito (vd. escrito de fls. 158 subscrito pelo arguido),
versão que se revelou inverosímil,
quer porque resultaram infrutíferas as tentativas de contacto dessas pessoas pela PJ em fase de inquérito, conforme relataram em audiência as testemunhas que procederam à investigação,
quer por ser desconhecida a presença dessas pessoas na habitação do arguido, designadamente, pela senhoria, que foi ouvida em audiência, e nunca ouviu falar da presença dessas pessoas na casa que arrendou ao arguido,
sendo certo que a habitação em questão se localiza num pequeno povoado, da Mexilhoeira Grande, onde, pela pequena dimensão do lugar, não passariam desapercebidas aos habitantes as idas e vindas de cidadãos não residentes,
e, por último,
não sendo possível o alheamento dos factos processualmente adquiridos de outras detenções do arguido na posse de idênticas substâncias,
uma, anterior, em Dublin na Irlanda, conforme informação da Interpol à PJ, informação que, aliás, despoletou os presentes autos,
outra, posterior, no aeroporto de Lisboa, no âmbito do processo ---/18.4JELSB, à ordem do qual o arguido se encontra, actualmente, em prisão preventiva,
e, sendo que o arguido nem sequer invocou, por nenhum modo, ser consumidor do referido estupefaciente,
prova em conformidade com a qual foram os factos julgados provados na totalidade.

quanto à situação pessoal
a convicção resultou do CRC e do relatório social juntos aos autos, e da acusação deduzida no processo ---/18.4JELSB.

4. Enquadramento Jurídico-Penal
O arguido vem acusado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21º/1 do DL 15/93 de 22/1 com referência às tabelas Anexas II-A e II-B.

Tratando-se do tráfico de estupefacientes - com relevância para a apreciação do caso dos autos - o crime-tipo vem previsto no art. 21º/1 do DL 15/93 de 22/1, sob a epígrafe “tráfico e outras actividades ilícitas”, nos termos do qual
quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a III é punido com prisão de 4 a 12 anos

(sendo que as substâncias que ao caso concreto importam, constam das tabelas II-A e II-B anexas ao diploma, e o art. 40º respeita ao consumo de estupefacientes),
- e os tipos privilegiados, vem previstos no art. 25º/a) e 26º do mesmo diploma, nos termos dos quais,

no art. 25º, sob a epígrafe “Tráfico de menor gravidade”, se prevê -
se, nos casos do art. 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I, III, V e VI”,

e, no art. 26º, sob a epígrafe “traficante-consumidor”, se prevê –
“1 – Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até três anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.
…”
A propósito desta construção e estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefaciente, como é jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça,
sobre o tipo privilegiado do art. 25º,
cita-se, por clarividente, o Ac. do STJ de 22/3/2006, de que foi relator o Sr. Consº Henriques Gaspar, publicado na CJ STJ 2006, I, 216 e também acessível em www.dgsi.pt, proc. 06P664:

“Trata-se como é entendido na jurisprudência e na doutrina … de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de art. 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre ‘consideravelmente diminuída’, em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos. A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado, reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída) mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas, que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência de considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde.

A diversificação dos tipos apenas conforme o grau de ilicitude, com imediato e necessário reflexo na moldura penal, não traduz, afinal, senão a resposta a realidades diferenciadas que supõem respostas também diferenciadas: o grande tráfico e o pequeno e médio tráfico”.

E, sobre o tipo privilegiado do art. 26º,
cita-se o Acórdão do STJ de 4/1/2006 de que foi relator o Sr. Consº Oliveira Mendes, acessível em www.dgsi.pt, proc. 04P1253:

“Da hermenêutica do preceito resulta ser elemento ou requisito essencial do crime de traficante-consumidor que o agente, ao praticar qualquer dos factos referidos no artigo 21º, tenha por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal.”

Dito isto, no caso vertente, vindo o arguido acusado pelo crime-tipo, considerada a factualidade apurada, verificando-se que o arguido tinha na sua posse mais de 15 kg de Catinona e Catina, substâncias estupefacientes das Tabelas II-A e II-B do DL 15/93, tal factualidade dá uma imagem global da sua actividade cuja ilicitude se entende corresponder à proporcionalidade da pena prevista no crime-tipo do art. 21º, não se descortinando na sua conduta qualquer circunstância ou facto, que demonstre, ou, pelo menos, sugira uma diminuição de ilicitude da conduta, susceptível do enquadramento no tráfico de menor gravidade do art. 25º, deste modo, se concluindo que a actuação do arguido que ficou apurada corresponde ao quadro típico da actividade prevista no art. 21º, pelo qual, será, a final, condenado, em conformidade com a qualificação da acusação/pronúncia.

5. Determinação da pena
Enquadrada desta forma a conduta do arguido cumpre determinar a pena concreta a aplicar dentro da moldura abstracta prevista na lei - de 4 a 12 anos de prisão - o que se fará, tendo em vista as finalidades que presidem à aplicação das penas, da protecção dos bens jurídicos e da reintegração do agente na sociedade - nos termos do art. 40º/1 do CP - em função das exigências de prevenção de futuros crimes - nos termos do art. 71º do CP - e, tendo a culpa do arguido por limite inultrapassável, como preceitua o art. 40º/2 do CP.

Assim,
tratando-se de crimes de tráfico de estupefacientes há que ponderar
- as exigências de prevenção geral, que são prementes, dada a danosidade social que lhes está associada,
- a ilicitude da conduta – que, apesar da conduta apurada se resumir a um único episódio, é elevada, atenta a quantidade detida,
- a intensidade do dolo - na forma directa e, por isso, intenso;
- a gravidade das consequências – sempre nefastas para os consumidores, sendo certo que se trata de um crime de perigo abstracto,
- a conduta anterior e posterior – não assumindo o arguido os factos que praticou e fornecendo indicações falsas às autoridades, visando entorpecer a investigação,
tudo evidenciando culpa grave.

Assim, face a todo o circunstancialismo descrito, considerada a moldura penal abstracta, as exigências de prevenção geral e especial assinaladas e a culpa do arguido, mostra-se adequada a pena de 5 anos de prisão.

6. Da (não) suspensão da pena
Nos termos do disposto no art. 50.º do C.P., o Tribunal suspende a execução da pena aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.

Ora, como vem sendo sustentado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça,

o pressuposto material da suspensão da execução da pena é limitado por duas coordenadas: a salvaguarda das exigências mínimas essenciais de defesa do ordenamento jurídico (prevenção geral) e o afastamento do agente da criminalidade (prevenção especial), sendo indispensável que o Tribunal possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, assente numa expectativa fundada de que a simples ameaça de prisão seja suficiente para realizar as finalidades da punição. Além disso, não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição.”- vd.. o Acórdão do STJ de 10.11.1999, proferido no âmbito do proc. n.º 823/99-3.ª, SASTJ, n.º 35, 74.

e, sem esquecer que
o STJ vem firmando jurisprudência no sentido de que nos crimes de tráfico de estupefacientes, a suspensão da execução da pena deve ser aplicada apenas em casos excepcionais, ou seja, em “situações em que a ilicitude do facto se mostre diminuída e o sentimento de reprovação social se mostre esbatido” – Ac. STJ de 14/9/2011 (rel. Oliveira Mendes); no mesmo sentido, cfr. Acs. STJ de 18/12/2008 (rel. Soares Ramos), de 9/6/2010 (rel. Henriques Gaspar) e da RE de 14/7/2010 (rel. Edgar Valente), todos in www.dgsi.pt”- vd. Ac do TRE de 01-10-2013, relator Sr. Des. Sénio Alves, proc. 21/12.0GBPTM.E1 em www. dgsi.pt,

Tendo presentes a medida da pena aplicada, que se situa no limite dos cinco anos,
E os factos apurados pessoais do arguido,

A quem, apesar de não serem conhecidos antecedentes criminais, também não são conhecidos em Portugal nem rendimentos, nem suporte familiar,nem reconhecendo o arguido a gravidade dos factos que praticou, que, aliás, desvaloriza, é convicção do Colectivo que a mera ameaça do cumprimento da pena não é suficiente para que o arguido passe a adoptar condutas lícitas, pelo que, não sendo possível formular o necessário juízo de prognose favorável, deverá o mesmo cumprir pena de prisão efectiva.
(…).»

3.Conhecimento do recurso
3.1. Do erro de subsunção
Sustenta o recorrente que, contrariamente ao que se faz constar dos factos provados, a quantidade de catina e catinona apreendidas ao arguido, não correspondem ao peso líquido de 15.843,30 gramas, sendo esse o peso das plantas apreendidas e a catina e a catinona as substâncias ativas que nelas foram detetadas, no exame laboratorial realizado pelo LPC e que se reporta o relatório junto a fls. 100 dos autos, não sendo possível, com base no mesmo, ponderar com exatidão a quantidade de catina e catinona presentes naquelas plantas, pelo que, defende o recorrente, a decisão deveria ter sido a de absolver o arguido da prática de qualquer crime, ou, assim não se entendendo, deveria a sua conduta ser enquadrada no crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e não no crime de tráfico comum do artigo 21º, n.º 1, do mesmo diploma legal, como decidiu o Tribunal a quo.

O Ministério Público entende que se mostra correto o enquadramento jurídico da conduta do recorrente no crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Vejamos:
No acórdão recorrido, foi dado como provado no ponto 1.1., que:
«No dia 5 de Janeiro de 2018, pelas 15h30, na Rua …, Mexilhoeira Grande, em Portimão, o arguido RR tinha em sua posse, no interior da sua viatura automóvel da marca e modelo Ford Escort de matrícula R--- VOH, dois sacos de viagem contendo no seu interior Catinona e Catina, com o peso líquido de 15.843,30gramas
Para dar como provadas a natureza e a quantidade das substâncias apreendidas ao arguido, ora recorrente, o Tribunal a quo, tal como fez constar da motivação da decisão de facto, atendeu à prova pericial produzida, concretamente, ao teor do relatório do exame de toxicologia junto a fls. 100 dos autos.

Ora, confrontando o teor daquele relatório, do mesmo resulta que o material recebido e submetido a exame foram dois sacos de viagem, contendo cada um deles quatro sacos de plástico com produto vegetal, com o peso líquido (g) de 15843,30, tendo sido recolhidas amostras de tal produto e submetidas a analise do Laboratório de Toxicologia do LPC conclui-se a presença das substâncias ativas catinona e catina, previstas na Tabela II, respetivamente, A e B, anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.

Assiste, pois, razão ao recorrente, ao defender que a catinona e a catina são as substâncias ativas que foram detetadas no produto vegetal que lhe foi apreendido, respeitando o peso de 15843,30 gramas a este produto e não àquelas substâncias.

Entendemos que esta situação integra o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do CPP[1].

Com efeito, o Tribunal a quo ao dar como provado que, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no ponto 1.1., o arguido, ora recorrente, tinha na sua posse catinona e catina, com o peso líquido de 15.843,30 gramas, decidiu contra a conclusão da prova pericial [2]em cujo relatório se baseou para dar como assente esse facto, posto que do mesmo decorre que o indicado peso diz respeito ao produto vegetal, de onde foram retiradas as amostras, que foram submetidas a exame laboratorial, no LPC e do qual resultou a presença das substâncias ativas catinona e catina.

Assim e porque o assinalado vicio decisório é de conhecimento oficioso e, no caso concreto, pode ser suprido por este Tribunal da Relação, sem necessidade de reenvio dos autos, para novo julgamento (cf. artigo 426º, n.º 1, do CPP), com base no teor do relatório de exame pericial junto a fls. 100 dos autos, procede-se à modificação à matéria de facto vertida no ponto 1.1., nos seguintes termos:

«No dia 5 de Janeiro de 2018, pelas 15h30, na Rua Francisco Bivar, Mexilhoeira Grande, em Portimão, o arguido RR tinha em sua posse, no interior da sua viatura automóvel da marca e modelo Ford Escort de matrícula R--- VOH, dois sacos de viagem tendo no seu interior um produto vegetal, com o peso líquido de 15.843,30gramas, contendo esse produto as substâncias ativas Catinona e Catina

A modificação da matéria de facto a que se acaba de proceder, não afasta o preenchimento do crime de tráfico de estupefacientes, posto que, a detenção por parte do arguido, ora recorrente, de um produto vegetal, contendo as substâncias ativas catinona e catina, substâncias estas, incluídas nas Tabelas II-A e II-B anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, cuja detenção, não autorizada, não ausência de prova de que esse produto se destine exclusivamente ao consumo do agente, integra o crime de tráfico.

Como bem se refere no Acórdão da RL de 26/09/2108, proferido no proc. n.º 28/17.1GEMFR-3, acessível no endereço www.dgsi.pt, «A consumação do crime de tráfico de estupefacientes ocorre com a mera detenção das substâncias ilícitas que não se destinem na totalidade ao consumo pessoal do agente e ainda que não se demonstre a intenção de venda.»

Terá, pois, de julgar-se improcedente a pretensão do recorrente no sentido da sua absolvição do crime de tráfico de estupefacientes.

Importa, agora, apreciar se a conduta do ora recorrente integra o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, porque foi condenado na 1ª instância ou, se antes, como defende o recorrente, integra o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. no artigo 25º, al. a), do enunciado Decreto-Lei.

Vejamos:
Decorre do disposto no artigo 21º n.º 1 do Decreto-Lei nº. 15/93, de 22 de Janeiro, que comete o crime de tráfico de estupefacientes, punível com pena de prisão de 4 a 12 anos: Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver - fora dos casos previstos no artigo 40º do citado Decreto-Lei nº 15/93 -, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III - anexas ao Decreto-Lei em referência.

E dispõe o artigo 25º al. a) do enunciado Decreto-Lei: “Se, nos casos previstos nos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou quantidade daquelas plantas, substâncias ou preparações”, a pena é de prisão de um a cinco anos se se tratar de preparações compreendidas nas tabelas I a III.

É entendimento pacífico que o normativo do artigo 21º define o tipo fundamental do crime de tráfico de estupefaciente, pelo qual se punem diversas atividades ilícitas, cada uma delas dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objetivo do crime; e no artigo 25º é definido um tipo privilegiado em relação ao tipo fundamental do artigo 21º.

O acento tónico do privilegiamento é explicitamente colocado na sensível diminuição do grau de ilicitude do facto, ou seja, no menor desvalor da ação, na sua menor gravidade, portanto, revelada pela valoração em conjunto dos diversos fatores, alguns deles enumerados na norma, a título exemplificativo (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da ação, qualidade e quantidade das plantas, substâncias e preparados).

Como vem sendo salientado pela jurisprudência o artigo 25º, al. a) constitui uma «válvula de segurança do sistema», destinada a evitar que tenham idêntico tratamento os casos de tráfico menor e os de tráfico importante e significativo e que sejam aplicadas penas desproporcionadas em situações de menor gravidade objetiva (cf., entre outros, Ac. do STJ de 06/04/2016, proferido no proc. 73/13.6PEVIS.S1 e acessível em www.dgsi.pt).

Para se aquilatar do preenchimento do tipo legal do artigo 25º, haverá que proceder a uma “valorização global do facto”, não devendo o intérprete deixar de sopesar todas e cada uma das circunstâncias a que alude aquele artigo (quais sejam: os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, e a qualidade ou a quantidade do produto em causa), podendo juntar-lhes outras, «permitindo, desse modo, ao julgador que, sem prejuízo do natural rigor na concretização da intervenção penal relativamente a crimes desta natureza, encontre a medida justa da punição, em casos que, embora porventura de gravidade ainda significativa, fica aquém da gravidade do ilícito justificativo da tipificação do artº. 21º e têm resposta adequada dentro da moldura penal prevista na norma do artº. 25º» (cf. Ac. do STJ de 02/03/2011, proferido no processo n.º 58/09.7GBBGC.S1, acessível no endereço www.dgsi.pt).

O Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo que, no domínio do tráfico de menor gravidade, não releva apenas, e nem sequer preponderantemente, a quantidade de droga transacionada, tudo dependendo da apreciação e consideração conjuntas das circunstâncias, fatores ou parâmetros mencionados no artigo 25º. Têm interesse, designadamente, o período de tempo da atividade, o número de pessoas adquirentes da droga, a repetição de vendas ou cedências, as quantidades vendidas ou cedidas, os montantes envolvidos no negócio de tráfico de estupefacientes e a natureza dos produtos.

A aferição sobre a considerável diminuição da ilicitude do facto exigida pela norma em causa deve, pois, resultar de um juízo sobre uma avaliação global da situação, na qual assumem especial relevo, entre outros aspetos, a forma como o arguido atua, isoladamente ou em grupo, a qualidade da droga vendida, o período temporal em que exerce essa atividade, a repetição das vendas, os eventuais lucros apurados, as quantidades presumivelmente transacionadas e o número de consumidores abrangidos.

A este propósito por que esclarecedor cita-se o sumário do Acórdão do STJ de 13/03/2019, proferido no proc. n.º 227/17.6PALGS.S1, acessível em www.dgsi.pt:

«I - Prevê o art. 25.º do DL n.º 15/93, epigrafado de “tráfico de menor gravidade”, um crime de tráfico de estupefacientes privilegiado relativamente ao tipo fundamental (previsto no art. 21.º), punível com pena de prisão de 1 a 5 anos, quando se tratar das substâncias previstas nas tabelas I a III, V e VI anexas ao diploma. Esse privilegiamento assenta numa considerável diminuição da ilicitude do facto, “tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações”.

II - O privilegiamento deste tipo legal de crime não resulta pois de um concreto elemento típico que acresça à descrição do tipo fundamental (art. 21.º do mesmo diploma), mas sim da constatação de uma diminuição considerável da ilicitude, a partir de uma avaliação da situação de facto, para a qual o legislador não indica todas as circunstâncias a atender, limitando-se a referir “os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade e a quantidade das substâncias”, abrindo a porta à densificação doutrinal ou jurisprudencial do conceito de “menor gravidade”.

III - Na senda dessa densificação, dir-se-á que assumem particular relevo na identificação de uma situação de menor gravidade:

- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consumo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da atividade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.

É a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude consideravelmente diminuída, de menor gravidade, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no art. 21º do DL nº 15/93.
(…).»

No acórdão recorrido, decidiu o Tribunal a quo que a conduta do arguido, ora recorrente, que resultou apurada integra o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, afastando, por conseguinte, o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º do mesmo diploma legal, o que fundamentou do seguinte modo:

«(…) no caso vertente, vindo o arguido acusado pelo crime-tipo, considerada a factualidade apurada, verificando-se que o arguido tinha na sua posse mais de 15 kg de Catinona e Catina, substâncias estupefacientes das Tabelas II-A e II-B do DL 15/93, tal factualidade dá uma imagem global da sua actividade cuja ilicitude se entende corresponder à proporcionalidade da pena prevista no crime-tipo do art. 21º, não se descortinando na sua conduta qualquer circunstância ou facto, que demonstre, ou, pelo menos, sugira uma diminuição de ilicitude da conduta, susceptível do enquadramento no tráfico de menor gravidade do art. 25º, deste modo, se concluindo que a actuação do arguido que ficou apurada corresponde ao quadro típico da actividade prevista no art. 21º, pelo qual, será, a final, condenado, em conformidade com a qualificação da acusação/pronúncia.»

Para decidir pela subsunção da conduta do arguido, ora recorrente, ao crime de tráfico comum p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, ponderou, com especial relevância, o Tribunal a quo, a quantidade das substâncias estupefacientes, catinona e catina detidas pelo arguido, em quantidade superior a 15 quilogramas.

Em face da modificação da matéria de facto a que se procedeu, nos termos sobreditos, resulta assente que o produto vegetal que estava na detenção do arguido e que lhe foi apreendido é que tinha o peso de 15.843,30 gramas e que esse produto continha as substâncias ativas catinona e catina.

Não resultou apurado o grau de concentração do princípio ativo das ditas substâncias estupefacientes, sendo certo que as mesmas não estão previstas na Portaria n.º 94/96, de 26 de março e no Mapa anexo a tal diploma legal, que define os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações de consumo mais frequente.

As substâncias catinona e catina podem ser encontradas naturalmente na planta Khat (Catha Edulis).

Ainda que relativamente rara a apreensão da planta khat[3], em território nacional, surgindo no relatório anual de 2018, do Combate ao Tráfico de Estupefacientes em Portugal[4], registadas duas apreensões, na quantidade 65,300 quilos e registando-se a maior apreensão desta planta (255 quilos) em março de 2019, no aeroporto Francisco Sá Carneiro, Porto[5], o consumo desta substância na Europa e de acordo com os dados disponíveis tem vindo a crescer, sobretudo no norte da Europa, não existindo, ainda, em alguns países um controlo deste produto (cf. Drogas em Destaque, Nota do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, n.º 21, 1º número de 2011[6]).

«A catinona assemelha-se às anfetaminas, tanto na sua estrutura química como nos efeitos bioquímicos e comportamentais, embora tenha apenas cerca de metade da sua potência. Habitualmente são mascados 100 a 300 g de folhas de khat durante três a seis horas. O teor de catinona pode variar entre 30 a 200 mg por 100 gramas de folhas frescas, sendo até 90% desta substância extraída por mastigação.

Isto corresponde a uma dose baixa ou média de anfetaminas, mas o modo laborioso de ingestão restringe a dose cumulativa e os níveis máximos no plasma. Como a catinona é muito instável e se decompõe num prazo de 72 horas, após a colheita, as folhas de khat são preferidas enquanto frescas.»[7]-[8]

Quando a planta do khat é cortada e seca, na presença de oxigénio, a catinona decompõem-se, originando a catina, substância esta com efeitos psicoativos mais reduzidos do que os produzidos pela catinona.

Atentas as caraterísticas do produto que o arguido detinha e que lhe foi apreendido, tratando-se de um produto vegetal, contendo as substâncias ativas catinona e catina, não estando apurado qual o grau de concentração de uma e de outra dessas substâncias, afigura-se-nos que, à semelhança, do que se verifica em relação às folhas da planta Canabis, que tem um nível de toxicidade relativamente inferior e menos perigoso para a saúde pública em geral, em confronto com outros produtos de natureza sintética, com a mesma qualificação legal, tais como o MMDA, as Anfetaminas e outras substâncias incluídas nas Tabelas II-A e II-B.

No referente à modalidade da ação empreendida pelo arguido, ora recorrente, consubstanciou-se na mera detenção daquele produto vegetal, que foi apreendido no interior do seu veículo automóvel, acondicionada em sacos dois sacos de viagem, sendo o arguido cidadão estrangeiro, nacional do Reino Unido e residindo em Portugal, no Algarve, há mais de um ano, estando casado com uma cidadã nacional do Quénia, que permanece neste país.

Em relação à quantidade do produto vegetal apreendido ao arguido, ora recorrente, se bem que já tenha alguma expressão, ultrapassando os 15 quilos, a presença das substâncias ativas catinona e catina e em face do que se deixou explicitado supra, indica que aquele produto apresenta diferentes estádios de maturação, pós colheita, não estando apurado qual o grau concentração de uma e de outra daquelas substâncias.

Ponderando todos estes elementos e nada se tendo provado, no tocante aos meios utilizados pelo arguido, ora recorrente e às circunstâncias da ação, conducentes a uma mais acentuada censura do desvalor desta última, entendemos ser de concluir que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, conforme previsto no artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro e, nessa decorrência, que a conduta do arguido, ora recorrente, integra o crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo mesmo artigo, com referência ao n.º 1 do artigo 21º e às Tabelas II-A e II-B Anexas ao enunciado diploma legal.

Consequentemente, absolve-se o arguido do crime de tráfico p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro e condena-se o mesmo pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º, al. a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e às Tabelas II-A e II-B anexas ao mesmo diploma legal.

Procede, pois, nesta vertente, o recurso.

3.2. Da medida da pena
Ao crime de tráfico de menor gravidade corresponde a pena de prisão de 1 a 5 anos (cf. artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei nº. 15/93).

A medida concreta da pena tem de encontra-se dentro dos parâmetros estabelecidos nos artigos 40º e 71º, ambos do Código Penal.

Assim, a medida concreta da pena é limitada pela culpa do arguido, revelada nos factos (cfr. artigo 40º, n.º 2 do C.P.), e terá de se mostrar adequada a assegurar exigências de prevenção geral e especial, nos termos do disposto nos artigos 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1, ambos do Código Penal.

Culpa e prevenção são, pois, os dois termos do binómio com o auxílio do qual se há-de construir a medida da pena.

A culpa jurídico-penal vem traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime, pág. 215), sendo tal principio expressamente afirmado no n.º 2 do artigo 40º do C.P.

Com recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos.

Com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.

Dando concretização aos mencionados vetores, o n.º 2 do artigo 71º enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente – a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o dever de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

Assim e baixando ao caso concreto, na determinação da medida concreta da pena, há que ponderar:

- O grau de ilicitude dos factos, que é medianamente acentuado, tendo em conta, nomeadamente, a quantidade do produto vegetal que o arguido detinha – com o peso líquido de 15.843,30 gramas – contendo as substâncias ativas catinona e catina, tratando-se de uma situação de detenção desse produto;

- O dolo do arguido/recorrente, que reveste a modalidade de dolo direto;

- As condições pessoais e situação económica do arguido, tendo o mesmo, ao logo da sua vida, contando 71 anos de idade, beneficiado de inserção familiar e familiar, encontra-se atualmente reformado, sendo nacional do reino Unido e residindo, à data dos factos e desde há mais de um ano, em Portugal, no Algarve, em habitação arrendada, estando casado com uma cidadã nacional do Quénia, país onde a mulher continua a residir.

Milita a favor do arguido a circunstância de não registar antecedentes criminais.

As necessidades de prevenção geral positiva, relacionadas com a importância da tutela dos bens jurídicos e de proteção das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma jurídica violada são muito elevadas no crime de tráfico de estupefacientes, numa sociedade em que se assiste a um constante aumento do tráfico e consumo de estupefacientes, com todas as consequências e sequelas incalculavelmente graves daí decorrentes, designadamente ao nível da saúde pública e do aumento da criminalidade, exigências essas, que como se refere no Ac. do STJ de 21/08/2018, proferido no proc. n.º 656/14.7PAMGR.C2.S1[9], «a imporem a reintegração da norma jurídica persistentemente violada pelo arguido e dos interesses jurídicos por ela visados, a reclamarem pela comunidade grande firmeza da parte das instâncias formais de controlo no sentido de se reprimir este tipo de criminalidade que aporta inexoravelmente profunda e devastadora erosão dos valores sociais.»

No referente às exigências de prevenção especial, revelam-se, à partida, medianas, dado que o arguido, ora recorrente, tem 71 anos de idade e não regista antecedentes criminais.

Assim, sopesando em conjunto todas as enunciadas circunstâncias, as exigências de prevenção e a culpa do arguido/recorrente, entendemos que a pena a aplicar-lhe, deve ser fixada em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, o que se decide.

3.3. Da suspensão da execução da pena
Pugna o recorrente pela suspensão da execução da pena de prisão, tendo em conta que não regista antecedentes criminais e que as finalidades de prevenção especial e de ressocialização do recorrente melhor poderão ser alcançadas através da aplicação de tal pena de substituição.

O Ministério Público, em ambas as instâncias, pronunciou-se no sentido de o recurso dever merecer provimento, nesta parte, atendendo a que o recorrente «não tem antecedentes criminais, colaborou com o Tribunal, sem confessar os factos, foram-lhe apreendidas plantas de “Khat”, que contêm catinona e pretende ir viver para o seu país de origem», sendo possível fazer um juízo de prognose favorável, «suspendendo-se, na sua execução, a pena de prisão e tal sem questionar de modo irremediável os desígnios que a política criminal visa.»

Apreciando:
Dispõe o art.º 50°, n.º 1, do C. Penal:
«O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida; à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição

Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 14ª edição, pág. 191 e Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 341).

O juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido pode assentar numa expectativa razoável de que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão será suficiente para realizar as finalidades da punição e consequentemente a ressocialização do arguido, afastando-o da prática de futuros crimes.

Ou dito de outro modo: a suspensão da execução da pena deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança de que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. - Ac. do STJ de 23/11/2011, proferido no proc. nº. 127/09.3PEFUN.S1, acessível no endereço www.dgsi.pt.

«Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.» - Prof. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 343.

Por outro lado, para que possa decidir-se pela aplicação de tal pena de substituição é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a tutela da confiança e das expetativas da comunidade na validade da norma jurídica violada.

Como elucidativamente se escreve no Acórdão do STJ de 18/06/2015, proferido no proc. 270/09.9GBVVD, acessível no endereço www.dgsi.pt:

«A suspensão da pena tem um sentido pedagógico e reeducativo, sentido norteado, por sua vez, pelo desiderato de afastar, tendo em conta as concretas condições do caso, o delinquente da senda do crime.

Também importa acrescentar que esse juízo de prognose não corresponde a uma certeza, antes a uma esperança fundada de que a socialização em liberdade se consiga realizar. Trata-se, pois, de uma convicção subjetiva do julgador que não pode deixar de envolver um risco, derivado, para além do mais, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso (cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 344).

De um lado, cumpre assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não colida com as finalidades da punição. Numa perspetiva de prevenção especial, deverá mesmo favorecer a reinserção social do condenado.

Por outro lado, tendo em conta as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão, como sinal de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal. (…)»

Baixando ao caso concreto:
O Tribunal a quo decidiu pena não suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, ora recorrente, fundamentando essa decisão nos seguintes termos:

«(…)
Tendo presentes a medida da pena aplicada, que se situa no limite dos cinco anos,
E os factos apurados pessoais do arguido,

A quem, apesar de não serem conhecidos antecedentes criminais,

também não são conhecidos em Portugal nem rendimentos, nem suporte familiar,
nem reconhecendo o arguido a gravidade dos factos que praticou, que, aliás, desvaloriza, é convicção do Colectivo que a mera ameaça do cumprimento da pena não é suficiente para que o arguido passe a adoptar condutas lícitas,

pelo que, não sendo possível formular o necessário juízo de prognose favorável, deverá o mesmo cumprir pena de prisão efectiva.»

Que dizer?

O recorrente, que é cidadão nacional do Reino Unido e tem atualmente 71 anos de idade, ao que tudo indica, terá beneficiado ao longo da sua vida de inserção familiar e laboral, esta última associada a uma grande mobilidade geográfica, com deslocação e estada em diversos países e vários continentes, estando atualmente reformado e encontrando-se, à data dos factos, a residir, em Portugal, sendo casado com uma cidadã nacional do Quénia, que reside nesse país e onde o arguido se desloca para estar com a mesma, não registando o recorrente antecedentes criminais.

É facto que, como se refere no acórdão recorrido, o ora recorrente não tem suporte familiar em Portugal, nem lhe são conhecidos rendimentos no nosso país e também não é menos certo, que a grande mobilidade geográfica inerente ao percurso de vida trilhado pelo arguido, com deslocações ao continente africano, encontrando-se a sua mulher a residir no Quénia, enquanto que o arguido mantinha residência na europa, sendo o Quénia um dos países produtores da planta “Khat”, o que constituiu um fator de risco para que o recorrente possa reiterar a atividade criminosa, atendendo a que o arguido não tem antecedentes criminais registados, tem já 71 anos de idade, projeta juntar-se á sua mulher e viver com a mesma, no seu pais de origem, não excluindo também a hipótese de fixar residência em Portugal, não podendo o recorrente deixar de estar ciente que esta pode ser a primeira e derradeira oportunidade que lhe será concedida de continuar em liberdade, caso venha a reiterar a atividade criminosa, sendo que o recorrente já experimentou a privação da liberdade, ao estar em prisão preventiva, no âmbito do processo n.º ---/18.4JELSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa, Juiz 1, entende-se ser possível formular um juízo de prognose favorável em relação ao arguido/recorrente, em termos de poder fundamentar a suspensão da execução de pena, considerando-se que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão serão suficientes para a afastar o arguido/recorrente da prática de futuros crimes e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção, permitindo a escolha de tal pena de substituição garantir limiar mínimo da prevenção geral da defesa do ordenamento jurídico, da tutela da confiança da comunidade na validade da norma violada.

Determina-se, assim, a suspensão da execução da pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao recorrente, por igual período de tempo, nos termos previstos no artigo 50º, n.ºs 1 e 5, do C.P.

O recurso interposto pelo arguido é, pois, procedente.

4. DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido RR e consequentemente:

a) Em alterar a decisão em matéria de facto nos termos acima expostos, em 3.1.

b) Em revogar o acórdão recorrido, na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e, em substituição, absolvendo o arguido da prática desse crime, condena-se o mesmo pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º, al. a), com referência ao artigo 21º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e às Tabelas II-A e II-B anexas ao mesmo diploma legal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

c) Em determinar a suspensão da execução da pena de prisão de três anos e seis meses aplicada ao arguido, por igual período de tempo;

Sem tributação, dada a procedência do recurso.

Notifique.

Évora, 07 de janeiro de 2020

Maria de Fátima Bernardes
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[1] No Acórdão do TRL de 11/04/2018, proferido no processo 211/17.0JELSB.L1-3, acessível no endereço www.dgsi.pt., que é referenciado pelo recorrente no recurso, estando em causa uma situação idêntica à dos presentes autos – tratando-se da detenção de plantas de khat contendo a substância ativa Catina – considerou-se tratar-se de um erro de linguagem.

[2] No sentido de que revela erro notório na apreciação da prova a sentença que apresenta como provados factos da acusação contra resultados da prova pericial, vide, entre outros, Ac. deste TRE de 03/06/2014, proferido no proc. 1861/10.0TAPTM.E1, acessível no endereço www.dgsi.pt.

[3] Planta que é cultivada nas montanhas do Corno de África (Somália, Etiópia, Eritreia), no sul da Arábia (Iémen) e ao longo da costa da África Oriental (Quénia).

[4] Consultável em https://www.policiajudiciaria.pt/wp-content/uploads/2019/05/ RelatorioAnual2018-TCD.pdf
[5] https://www.dn.pt/pais/khat

[6] Acessível em http://www.emcdda.europa.eu/system/files/publications/641/ TDAD11001PTC_WEB_289582.pdf

[7] Ibidem.

[8] O Khat é geralmente mascado, mas também pode ser ingerido em infusão e fumado.

[9] Cujo sumário se encontra publicado no Boletim de Sumários do STJ, Secções Criminais, Ano 2018, págs. 475 e 476