Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
893/19.8ABT-A.E1
Relator: SEQUINHO DOS SANTOS
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
GUARDA DOS MENORES
Data do Acordão: 02/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A progenitora necessita de uma habitação apenas para si; o progenitor necessita de uma habitação para quatro pessoas. Neste cenário, está a progenitora numa situação mais vantajosa que a do progenitor para obter uma habitação, pois poderá comprar ou arrendar uma casa mais pequena, por um preço ou uma renda inferiores àqueles que o segundo teria de pagar por uma casa maior.
Decisão Texto Integral: Processo n.º 893/19.8ABT-A.E1

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(…) interpôs recurso de apelação da sentença proferida no incidente de atribuição provisória da utilização da casa de morada de família por si deduzido contra (…), ao abrigo do disposto no artigo 931.º, n.º 7, do CPC.

Na sentença recorrida, o tribunal a quo julgou improcedente o pedido, formulado pela recorrente, de atribuição provisória da utilização da casa de morada de família até ao divórcio, e procedente pedido idêntico formulado pelo recorrido.

As conclusões do recurso são as seguintes:

A. O artigo 1793.º do Código Civil fixa como critérios para atribuição da casa de morada de família “as necessidades de cada um dos cônjuges” e o “interesse dos filhos do casal”.

B. Ora, resulta da sentença proferida que o tribunal a quo, s.m.o não teve em consideração que a requerente é precisamente, na configuração da sociedade conjugal, o cônjuge que dela mais necessita, uma vez que não possuiu património imobiliário em seu nome próprio, e os seus rendimentos são manifestamente inferiores, por comparação com os do requerido.

C. Atenta a contradição na atribuição provisória da casa de morada de família, o tribunal a quo labora em erro de julgamento, o que determina a nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

D. E mais, tais elementos resultam da prova documentada, e carreada para os autos.

E. Nessa medida, foi violada a norma que na atribuição da casa de morada de família determina que um dos critérios se prende com as necessidades de um dos cônjuges, e mesmo quando o imóvel seja pertença do outro cônjuge, conforme jurisprudência superior.

F. Pelo que, e tendo ficado demonstrada que a maior necessidade pertence à requerente, não poderia o tribunal a quo ter proferido a sentença nos termos em que o fez.

G. Condição sine qua non para a verificação da atribuição provisória da casa de morada de família reside precisamente na necessidade da requerente, com rendimentos manifesta (e comprovadamente!) inferiores, e ainda pela circunstância de não ser titular de qualquer bem próprio, ao contrário do requerido.

O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.


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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Admissibilidade da junção de documento na fase de recurso;

2 – Nulidade da sentença;

3 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

4 – A quem deve ser atribuída a casa de morada de família.


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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

A) Autora e réu contraíram casamento canónico, em 25.05.1995, na freguesia e concelho de Abrantes, sem precedência de convenção antenupcial.

B) Autora e réu têm três filhos em comum, a saber, (…), nascido em (…), na freguesia de (…), concelho de Abrantes, (…), nascido em (…), na freguesia de (…), concelho de Abrantes, e (…), nascido em (…), na freguesia de (…), concelho de Abrantes.

C) Por sentença proferida em 23.06.2020, nos autos apensos de regulação do exercício das responsabilidades parentais, foi homologado o acordo celebrado entre os progenitores, nos seguintes termos:

- Os menores (…) e (…), ambos nascidos em (…), ficarão a residir habitualmente com o pai, o qual será o encarregado de educação e cabendo a este o exercício das responsabilidades parentais quanto às questões do dia-a-dia das crianças;

- As questões de particular importância, como sejam, a título de exemplo, deslocações para fora do espaço Shengen, autorizações para tratamentos médicos não urgentes, escolha do credo religioso, escolha do estabelecimento de ensino, serão decididas em comum, por ambos os progenitores;

- Os menores residirão habitualmente com o pai, convivendo com a mãe nos moldes discriminados a seguir:

- Os menores passarão com a mãe fins-de-semana alternados, de sábado às 10 da manhã, até às 21 horas de domingo;

- Os menores passarão metade de cada período das suas férias escolares com cada um dos progenitores, sendo que nas férias de Verão esses períodos serão quinzenais, a iniciar logo que terminar o ano lectivo;

- Os menores passarão os períodos de Natal, alternadamente, com cada um dos progenitores, iniciando-se o primeiro período às 10:30 horas do dia 24 de Dezembro, indo até às 10:30 horas do dia 25 de Dezembro e o segundo período inicia-se às 10:30 horas do dia 25 de Dezembro e vai até às 10:30 horas do dia 26 de Dezembro;

- No ano em que um dos progenitores passe com os menores o primeiro período referido, não passará com eles o aludido segundo período e vice-versa;

- Os menores passarão os períodos de Ano Novo, alternadamente, com cada um dos progenitores, iniciando-se o primeiro período às 10:30 horas do dia 31 de Dezembro, indo até às 10:30 horas do dia 1 de Janeiro e o segundo período inicia-se às 10:30 horas do dia 1 de Janeiro e vai até às 10:30 horas do dia 2 de Janeiro;

- No ano em que um dos progenitores passe com os menores o primeiro período referido, não passará com eles o aludido segundo período e vice-versa;

- No dia do pai, os menores tomarão uma refeição com o pai;

- No dia da mãe, os menores passarão o dia com a mãe;

- No dia de aniversário dos menores, estes tomarão uma das refeições com cada um dos progenitores;

- A mãe pagará a título de alimentos devidos aos menores, a quantia mensal de € 50,00 (cinquenta euros) para cada um dos menores, no montante global mensal de € 100,00 (cem euros), a pagar até ao primeiro dia útil de cada mês, por transferência bancária para uma conta bancária cujo IBAN o pai se compromete a indicar, quer à mãe, quer ao Tribunal;

- Esta quantia será actualizada anualmente, em Janeiro, de acordo com a taxa de inflação fixada pelo INE;

- As despesas extraordinárias de saúde com os menores na medida em que não cobertas por quaisquer sistema de saúde públicos ou privados, tais como aparelhos, consultas de revisão do aparelho dentário, próteses auditivas, dentárias, óculos, despesas médicas com medicamentos, desde que haja receita médica, bem como as escolares de início de ano lectivo, serão suportadas por ambos os progenitores em partes iguais, devendo, para o efeito, o progenitor que fizer a despesa, no prazo de 10 dias, após efectuá-la, comunicá-la ao outro progenitor por qualquer meio e com cópia dos comprovativos das mesmas, cabendo ao progenitor que receber a comunicação, nos 10 dias após a mesma, depositar na conta do outro progenitor o que lhe corresponde.

D) Desde 1995 que as partes e seus filhos habitavam a casa de morada de família, sita na Praceta (…), Lote 8, n.º 10, 1.º Dto., (…), Abrantes.

E) Ela era o centro de vida, enquanto as partes viviam juntas.

F) Os filhos menores e o filho maior sofrem de asma.

G) A casa de morada de família encontra-se completamente adaptada a esta situação de saúde, com relação ao revestimento, tintas de paredes, têxteis, mobiliário, entre outros.

H) O Diogo, em particular, tem crises recorrentes que, para serem debeladas, implicam tratamento atempado, de modo a evitar o recurso aos serviços de urgência do hospital.

I) O requerido encontra-se a residir na Rua do (…), n.º 22, 4.º, em Abrantes, em fracção constituída por cozinha, dois quartos, sala, casa de banho e varanda/terraço, pagando, pela sua utilização, a quantia de € 600,00/mês.

J) Até irem residir com o pai, na casa aludida em I), as crianças sempre viveram na casa de morada de família, aí tendo os seus quartos, objectos pessoais, recantos e momentos, vizinhos e amigos.

K) Por escritura pública outorgada em 28 de Abril de 1995, foi celebrado o contrato de compra e venda da fracção “C”, correspondente ao 1.º andar direito, arrecadação no sótão, definida pelo número um e garagem na cave, definida pelo número cinco, destinada a habitação sita em (…), Urbanização do (…), designado por lote B – dez, terceira fase, na freguesia de (…), do concelho de Abrantes, descrito da Conservatória do Registo Predial de Abrantes sob o número (…), da mencionada freguesia, afecta ao regime de propriedade horizontal.

L) O comprador foi o ora requerido, tendo declarado pagar o preço de sete milhões de escudos.

M) Tal imóvel corresponde actualmente ao primeiro direito, sito no lote 10-B da Praceta (…), em Abrantes, ou seja, à casa de morada de família.

N) A qual se encontra registada, em termos de propriedade, a favor do requerido, no estado de casado com a requerente, no regime da comunhão de adquiridos.

O) A aquisição deste imóvel foi realizada em simultâneo com a outorga de contrato de mútuo hipotecário na quantia de sete milhões de escudos, junto do Banco Internacional de Crédito.

P) O imóvel tinha como destino ser a casa de morada de família do casal.

Q) Foi isso que se verificou durante os cerca de 18 anos em que a requerente e o requerido viveram em comunhão conjugal.

R) A requerente exerce a profissão liberal de engenharia / consultadoria.

S) Esporadicamente, são-lhe solicitados serviços de consultadoria em gestão e marketing.

T) Daí retira um rendimento irregular mensal de cerca de € 885,92, incidindo sobre ele os descontos em sede de IRS e de Segurança Social.

U) Não é conhecida, à requerente, qualquer casa própria para residir.

V) Os contratos da água e da electricidade da casa de morada de família, encontram-se em nome do requerido.

W) O requerido é sócio da sociedade (…) Imóveis, S.A., a qual tem por objecto a actividade de compra e venda de imóveis e a revenda dos adquiridos, arrendamento e administração dos bens, auferindo, enquanto sócio, rendimentos não concretamente apurados.

X) O requerido auferiu rendimentos, por conta da «(…) y (…) Ambientales, SL.», no ano de 2017, no montante de € 4.800,00.

Y) O requerido exerce a atividade de empresário, sendo, igualmente, sócio da sociedade «(…), Lda.», da área de transportes, auferindo, enquanto sócio, rendimentos não concretamente apurados.

Z) Actualmente, corre termos por apenso o processo de divórcio sem consentimento entre requerente e requerido.

Na sentença recorrida, foi julgado não provado:

A) Que o requerido resida, actualmente, na Rua da (…), em Abrantes.

B) Que a requerente resida na casa de morada de família, diariamente com os seus dois filhos menores e ainda o filho maior, quando se encontra em Abrantes.

C) Que o requerido tenha, à sua disposição, um T2, sito em Rua da (…), em Abrantes, constituído por uma sala, dois quartos e uma casa de banho.

D) Que a diferença de rendimentos entre a requerente e o requerido seja muito relevante, de cerca de 80%.

E) Que a requerente se encontre numa situação financeira muito frágil e precária, o que lhe origina uma enorme insegurança, receio e medo do seu futuro e de seus filhos.

F) Que as prestações mensais para pagamento do capital e juros do empréstimo obtido tivessem tido origem nos montantes recebidos pelo casal, a título de remuneração, depositada na conta comum de ambos.

G) Que, em Setembro de 2004, o casal entendeu amortizar integralmente o valor em dívida, também aqui com recurso a valores numerários disponíveis na conta bancária que compõe o acervo patrimonial ainda comum, tendo sido o valor amortizado foi realizado com recurso a património comum do casal.

H) Que, por decisão de ambos os membros do casal, e na vigência do casamento, em 2003, a requerente fez cessar um contrato de trabalho sem termo com a (…), SA, com sede em (…), para ter maior disponibilidade para tratamento das questões domésticas e acompanhamento do filho, agora maior.

I) Que seja a requerente, sozinha, a suportar, mensalmente, as seguintes despesas médias mensais:

a) Fornecimento de água: € 25,00;

b) Fornecimento de luz: € 110,00;

c) Fornecimento de gás: € 60,00;

d) Fornecimento de serviços de telefone e internet: € 80,00;

e) Consumos de combustível: € 300,00;

f) Via verde: € 30,00;

g) Seguro automóvel: € 12,50;

h) Alimentação: €150,00;

num total aproximado de € 767,50, mensais.

J) Que o requerido seja sócio e gerente da sociedade «(…)», de reciclagem, com sede em Espanha.

K) Que o requerido, actualmente, tenha rendimentos mensais de cerca de € 15.000,00 da sociedade espanhola, a título de distribuição anual de dividendos.

L) Que, se a requerente deixar a casa de morada da família, ficará na rua, pois não tem como garantir sozinha os preços de uma renda mensal de um imóvel em Abrantes.


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1 – Admissibilidade da junção de documento na fase de recurso:

A recorrente junta um documento às suas alegações de recurso. Suscita-se a questão da admissibilidade dessa junção.

O n.º 1 do artigo 651.º do CPC estabelece que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º (impossibilidade de apresentação em momento anterior) ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Ora, a recorrente não invoca qualquer destes fundamentos, nem resulta do processo que algum deles se verifique. Consequentemente, a junção do documento em causa na fase de recurso é inadmissível, não podendo o seu conteúdo ser considerado na decisão deste.

2 – Nulidade da sentença:

A recorrente afirma que a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, porquanto a decisão é contraditória com a matéria de facto julgada provada. Afirma ainda que, estando documentalmente provado que a posição financeira e patrimonial do recorrido é superior à sua e que não tendo ela, recorrente, casa própria, “é manifesta a contradição da decisão no que à prova carreada diz respeito, pelo que tal ambiguidade torna a decisão ininteligível, e logo nula” nos termos da supra referida norma.

A recorrente confunde a nulidade da sentença por oposição entre fundamentos e decisão com erro de julgamento.

O artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, estabelece que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Na sua primeira parte, esta norma tem em vista situações em que se verifique uma contradição lógica entre os fundamentos e o dispositivo da sentença, ou seja, em que o juiz decide em sentido diverso daquele que decorre da argumentação desenvolvida em sede de fundamentação.

É evidente que a sentença recorrida não padece desta nulidade, pois a decisão tomada, além de perfeitamente inteligível, é absolutamente coerente com a argumentação desenvolvida em sede de fundamentação. Na realidade, a recorrente não consegue, nas suas alegações, apontar ou concretizar qualquer contradição lógica entre o dispositivo e a fundamentação. A contradição que ela afirma verificar-se seria entre os factos provados e a decisão. Ora, ainda que a sentença recorrida sofresse de tal patologia, não se verificaria a nulidade invocada, mas sim um erro na aplicação do direito. Bem ou mal (adiante concluiremos que bem), a sentença recorrida decidiu em estrita conformidade com a sua fundamentação, sem qualquer contradição ou ambiguidade.

Não ocorre, portanto, a invocada nulidade da sentença recorrida.

3 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

A recorrente manifesta inconformismo relativamente ao sentido da decisão sobre vários pontos da matéria de facto. Fá-lo, porém, de forma confusa, não distinguindo questões de facto de questões de direito nem cumprindo os ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC.

Comecemos por ter presente o n.º 1 deste artigo. Aí se estabelece que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Analisemos, então, a argumentação da recorrente.

A recorrente afirma que a sentença recorrida “é contraditória” ao dar como provado que “O requerido encontra-se a residir na Rua do (…), n.º 22, 4.º, Abrantes, em fracção constituída por cozinha, dois quartos, sala, casa de banho e varanda / terraço, pagando, pela sua utilização, a quantia de € 600,00/mês” e, não obstante, ter atribuído provisoriamente a casa de morada da família ao recorrido. Argumenta a recorrente que “o requerido se encontra a residir num imóvel, pelo que não carece da casa de morada de família, por contraposição ao facto de que à requerente não é conhecida qualquer casa própria para residir”.

É evidente que a recorrente não aponta uma contradição na matéria de facto. A contradição que a recorrente entende que existe é entre um ponto da matéria de facto e o sentido da decisão. Não estamos, portanto, perante uma verdadeira impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Na realidade, a recorrente insurge-se contra o sentido da decisão, suscitando uma questão de direito.

A recorrente acrescenta que “foi dado conhecimento ao tribunal que a morada efectiva do requerido se situa na Rua da (…), entre os números 76 e 124, em Abrantes, e não na morada que consta do contrato junto ao processo”, e que “sobre esta matéria também o tribunal fez tábua rasa.”

Também é evidente que esta argumentação não cumpre os ónus estabelecidos no n.º 1 do artigo 640.º do CPC. Desde logo, falta a concretização da alegada morada efectiva do recorrido. Entre os números 76 e 124 da rua em causa existem, ao que tudo indica, dezenas de habitações. Que concreta morada pretende a recorrente que seja julgada provada? Por outro lado, falta a indicação do meio de prova do qual a recorrente entende que resulta o “facto” em causa.

A recorrente considera que o tribunal a quo andou mal “ao dar como provado” que os rendimentos do recorrido provenientes da sociedade identificada na al. W) não foram concretamente apurados, pois bastaria que solicitasse ao recorrido a prestação de contas da mesma sociedade para verificar que aqueles rendimentos são concretamente apuráveis.

Mais uma vez, a recorrente não cumpre os ónus estabelecidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, pois não especifica qual é o concreto rendimento que considera que o tribunal a quo devia ter julgado provado, nem o(s) meio(s) de prova de que tal facto resulta. A crítica de que bastaria, ao tribunal a quo, solicitar ao recorrido a prestação de contas da sociedade em questão para apurar o concreto rendimento que esta proporcionou àquele, além de deslocada em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, é reversível, pois a recorrente também não requereu, em devido tempo, a junção aos autos desse meio de prova ou a sua requisição ao recorrido ou à própria sociedade.

Ainda a propósito da al. W) dos factos provados, a recorrente invoca a declaração de rendimentos do recorrido que se encontra junta aos autos, segundo a qual este auferiu, no ano a que a mesma se reporta, um montante global de, pelo menos, € 75.000,00. Porém, a recorrente não fundamenta como, dessa declaração, que se reporta a um rendimento global respeitante a um único ano, é possível concluir que o recorrido aufere determinado rendimento (que não quantifica) da sociedade em questão. Logo, não cumpre os ónus estabelecidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.

Relativamente à matéria da alínea X), a recorrente critica o tribunal a quo por não ter diligenciado no sentido de obter informação posterior ao ano de 2017. Em relação a isto, repetimos aquilo que afirmámos sobre a forma como a recorrente tentou impugnar a decisão do tribunal a quo sobre a matéria da alínea W). Por um lado, a recorrente não requereu, em devido tempo, ao tribunal a quo, que este solicitasse tal informação, fosse ao recorrido, fosse à própria sociedade. Mas, mais importante que isso, a recorrente não cumpre os ónus estabelecidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC. Como resulta deste artigo, não é sugerindo genericamente que o tribunal a quo podia ter feito mais e melhor que se impugna a decisão sobre a matéria de facto. Exige-se muito mais e muito melhor do recorrente do que isso. Exige-se que este indique, com precisão, o ponto de facto que foi mal julgado, como esse ponto de facto devia ter sido julgado e qual ou quais são os meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que demonstram o acerto da sua tese. A recorrente não conseguiu fazê-lo.

Sobre a crítica que a recorrente dirige à forma como o tribunal a quo julgou a matéria da alínea Y), reiteramos aquilo que afirmámos relativamente à tentativa de impugnação das alíneas W) e X). Não basta observar, em sede de recurso, que o tribunal a quo podia ter praticado mais esta ou aquela diligência probatória. A recorrente também não requereu, em devido tempo, as diligências probatórias cuja falta agora invoca. Por outro lado, falta, de novo, o cumprimento dos ónus estabelecidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC. Quanto à declaração de rendimentos do recorrido constante dos autos, damos por reproduzido aquilo que anteriormente afirmámos. Também em relação aos rendimentos a que a alínea Y) se reporta, a recorrente não demonstra como, com base naquela declaração, é possível concluir que a sociedade identificada na alínea Y) proporcionava rendimentos de determinado montante ao recorrido.

A recorrente manifesta a sua concordância em relação ao conteúdo das alíneas R), T) e U), referenciando estas alíneas apenas para concluir que existe uma disparidade entre a sua situação financeira e a do recorrido. Ora, estamos claramente fora do âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Na sede própria, analisaremos se aquela conclusão encontra sustentação na matéria de facto provada.

A recorrente critica o tribunal a quo por este ter considerado a casa de morada de família como um bem próprio do recorrido. Mais uma vez, estamos fora do âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Observe-se ainda que, aqui, a recorrente nem sequer o ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º cumpre. A recorrente transcreve uma passagem da fundamentação jurídica da sentença recorrida e manifesta a sua discordância invocando meios de prova, parte dos quais nem sequer identifica, antes os referenciando como “os documentos xxxx juntos aos autos”. Nada disto faz qualquer sentido, como é óbvio.

A recorrente considera que “o tribunal a quo enveredou por um evidente erro de julgamento em matéria de facto, ao dar como provado que o Requerido é aquele que mais necessita da casa de morada de família”. É manifesto que não estamos, nem perante matéria de facto, nem perante uma questão de prova, mas sim perante uma conclusão jurídica a que o tribunal a quo chegou com base nos factos que julgou provados. Na sede própria analisaremos esta questão.

Em seguida a recorrente critica outra passagem da fundamentação jurídica da sentença recorrida (“E o vencimento mensal da requerente é suficiente, no nosso entender, para a mesma arrendar, em Abrantes, uma casa onde ficar, até ao decretamento do divórcio, ainda que seja mais pequena. Não se afigura que seja um sacrifício insuportável para a requerente ter de deixar a casa de morada de família, até ao divórcio, e arrendar uma casa, para a mesma viver, eventualmente mais pequena, até em face da retração do mercado de arrendamento actual e dos preços das rendas se encontrarem mais baixos, em face da diminuição da procura, devido à pandemia de Covid-19.”). De novo, não estamos perante uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto. A recorrente persiste em confundir matéria de facto com matéria de direito e em reagir processualmente contra argumentos constantes da fundamentação jurídica da sentença recorrida como se de factos se tratasse. Não faz sentido.

Concluindo, a decisão sobre a matéria de facto mantém-se na íntegra.

4 – A quem deve ser atribuída a casa de morada de família:

A recorrente não põe em causa os critérios que o tribunal a quo considerou relevantes para a atribuição provisória da utilização da casa de morada de família nos termos do artigo 931.º, n.º 7, do CPC, que foram a necessidade de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal. Critica, sim, a forma como esses critérios foram aplicados à situação dos autos e, logicamente, a decisão tomada.

A crítica fundamental que a recorrente faz é a de que tendo ficado, no seu entendimento, provado que o seu rendimento é muito inferior ao do recorrido, o tribunal a quo devia ter concluído que ela necessita mais da casa de morada de família que este último. Segundo a recorrente, o recorrido, graças à sua maior capacidade económica, terá menor dificuldade em encontrar outra casa para viver.

A matéria de facto provada não permite concluir que a recorrente aufira um rendimento muito inferior ao do recorrido, como ela alega. O rendimento da recorrente é modesto, sem dúvida. Também se provou que não é conhecida outra casa própria onde ela possa residir. Contudo, não se provou a situação de desafogo económico do recorrido que a recorrente alegou verificar-se. Mais, pagando a recorrente uma pensão de alimentos de apenas € 50,00 mensais para cada um dos dois filhos menores (suportando ainda metade das despesas escolares de início de ano lectivo e das despesas extraordinárias de saúde na parte em que não sejam comparticipadas por qualquer sistema de saúde público ou privado) e tendo em consideração o custo de vida, é forçoso concluir que a maior parte das despesas com os filhos do casal acabam por ser suportadas pelo recorrido. O principal argumento da recorrente carece, pois, de sustentação factual. Individualmente, esta e o recorrido parecem necessitar da casa de morada de família em igual medida.

Verifica-se, contudo, uma circunstância que faz pender a balança para o lado do recorrido: é com este que os filhos do casal residem. A recorrente necessita de uma habitação apenas para si. Já o recorrido necessita de uma habitação para quatro pessoas. Neste cenário, afigura-se que a recorrente se encontra numa situação mais vantajosa que a do recorrido para obter uma habitação, pois poderá comprar ou arrendar uma casa mais pequena, por um preço ou uma renda inferiores àqueles que o segundo teria de pagar por uma casa maior.

Por outro lado, a recorrente parece ter esquecido as necessidades especiais dos três filhos do casal, um maior e dois menores. No requerimento inicial, a recorrente enfatizou tais necessidades, alegando que todos os filhos do casal sofrem de asma, que o menor (…), em particular, tem crises recorrentes que, para serem debeladas, implicam tratamento atempado, de modo a evitar o recurso aos serviços de urgência do hospital, e que, desde 2006, a casa de morada de família se encontra completamente adaptada a esta situação de saúde no que respeita ao revestimento, tintas de paredes, têxteis, mobiliário, entre outros. A recorrente alegou ainda que os filhos do casal sempre viveram na casa de morada de família, aí tendo os seus quartos, objectos pessoais, recantos e momentos, vizinhos e amigos.

Quando o requerimento inicial foi apresentado, os filhos do casal viviam com a recorrente e, em tal contexto, esta última invocou as descritas necessidades especiais daqueles como constituindo uma circunstância que deveria determinar que a utilização provisória da casa de morada de família lhe fosse atribuída. Posteriormente, os filhos do casal foram residir com o recorrido e, desde então, parece que aquelas necessidades especiais deixaram de ser relevantes para a recorrente, pois continua a pretender ficar a utilizar provisoriamente a casa de morada de família.

Os problemas de saúde dos filhos do casal alegados no requerimento inicial, bem como a adaptação da casa de morada de família a esses problemas, foram julgados provados, e a argumentação que a recorrente a esse propósito desenvolveu faz todo o sentido, só que, agora, a favor da pretensão do recorrido. A circunstância de a casa de morada de família se encontrar adaptada aos problemas de saúde dos filhos do casal, aliada à de estes residirem com o recorrido, constitui, efectivamente, uma fortíssima razão para que a utilização provisória da casa de morada de família seja atribuída a este último.

Confirma-se, assim, o bem-fundado da sentença recorrida. Considerando as necessidades de habitação da recorrente, por um lado, e do recorrido e dos filhos de ambos, por outro, a utilização provisória da casa de morada de família deve ser atribuída ao recorrido.


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Dispositivo:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela recorrente.

Notifique.


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Évora, 25.02.2021

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata