Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
587/19.4T8OLH.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – No incidente de exoneração do passivo restante, a ponderação do que seja, em cada caso concreto, o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, não pode deixar de ter em consideração a legítima expectativa dos credores de verem os seus direitos satisfeitos, em toda a medida do possível, durante o período da cessão.
2 – O devedor não pode ter a expectativa de, durante o período da cessão, manter o padrão de vida a que ele e o seu agregado familiar estavam habituados antes da declaração de insolvência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 587/19.4T8OLH.E1

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(…) e (…) apresentaram-se à insolvência, nos termos dos artigos 18.º e seguintes do CIRE, tendo ainda requerido a exoneração do passivo restante nos termos dos artigos 235.º e seguintes do mesmo código.

Por sentença proferida em 31.05.2019, foi declarada a insolvência de ambos os requerentes.

Em 24.09.2019, foi proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, no qual se decidiu, na parte relevante para o conhecimento do recurso, que “o rendimento disponível que cada devedor venha a auferir, no período de 5 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência (período da cessão), se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal total correspondente a duas vezes e meia a retribuição mínima mensal garantida, que se destina ao sustento dos insolventes e do seu agregado familiar”.

Os insolventes recorreram deste despacho, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – O tribunal de primeira instância avaliou de forma errada a situação económica dos insolventes e o seu enquadramento familiar;

2 – Na definição do valor a ceder ao fiduciário não foram consideradas todas as despesas fixas dos insolventes (juntas como prova documental na petição inicial e de novo com o presente recurso);

3 – Devem-se considerar como provadas todas as despesas fixas que os insolventes têm de suportar, na quantia total de € 1.300,00;

4 – Deve-se ainda considerar como provado que, de acordo com as regras da experiência comum, os insolventes gastam uma média de € 1.200,00 mensais nas suas próprias despesas;

5 – Posto isto, os insolventes não têm nenhum gasto considerado supérfluo, dispondo apenas de dinheiro para o que é efectivamente necessário;

6 – O insolvente (…), estando em idade activa, sofre de graves problemas de saúde que se vão agravar com o tempo;

Termos em que se requer a fixação de um novo valor para assegurar o sustento dos insolventes nunca inferior a quatro salários mínimos nacionais.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido.


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A única questão a resolver consiste em saber se o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, deverá ser aumentado para quatro salários mínimos nacionais por mês.



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O tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:

1 – Os insolventes são casados entre si e o seu agregado familiar é ainda composto por um filho menor do casal;

2 – Os insolventes auferem mensalmente rendimentos do trabalho num valor total líquido de € 1.700,00;

3 – Os insolventes despendem mensalmente cerca de € 1.400,00 em habitação, ao que acrescem as despesas com alimentação, saúde, vestuário, electricidade, água, comunicações e transportes, necessárias à vida corrente do seu agregado familiar.


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Os recorrentes juntaram nove documentos às suas alegações de recurso. Suscita-se a questão da admissibilidade dessa junção. O n.º 1 do artigo 651.º do CPC estabelece que as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Ora, os recorrentes não invocam a verificação de qualquer destas hipóteses, nem resulta do processo que alguma delas se verifique. Consequentemente, a junção dos documentos em causa na fase de recurso é inadmissível, não podendo o seu conteúdo ser considerado na decisão deste.

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Os recorrentes consideram, em síntese, que o tribunal a quo não avaliou correctamente a sua situação económica e familiar, pois não considerou todas as suas despesas. Assim, segundo os recorrentes, em cada mês, as suas despesas fixas ascendem a € 1.300,00 e as suas despesas pessoais, em média, a € 1.200,00. Daí a sua pretensão de verem o valor excluído do rendimento disponível nos termos do artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE, aumentado para quatro salários mínimos nacionais por mês, ou seja, actualmente, € 2.540,00.

Salvo o devido respeito, ainda que as referidas despesas estivessem provadas, a pretensão dos recorrentes é absurda e apenas demonstra que estes não estão a perceber inteiramente as finalidades da exoneração do passivo restante.

A ponderação do que seja, em cada caso concreto, o montante necessário para assegurar o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” a que alude o artigo 239.º, n.º 3, al. b), ponto i), do CIRE (preceito do qual resulta que aquele montante não deve exceder, em princípio, três vezes o salário mínimo nacional), deve ter em conta, não só as necessidades do insolvente e do seu agregado familiar, mas também a legítima expectativa dos credores de verem os seus direitos satisfeitos, em toda a medida do possível, durante o período da cessão. A exoneração do passivo restante não pode redundar num perdão generalizado das dívidas do insolvente sem esforço para este. O equilíbrio entre os interesses dos credores e do insolvente impõe que, ao sacrifício que o processo de insolvência e a exoneração do passivo restante acarretam para os primeiros, corresponda um efectivo esforço, por parte do segundo, no sentido de reduzir as suas despesas e as do seu agregado familiar em toda a medida do possível, até atingir o limite mínimo imposto pela salvaguarda da dignidade da pessoa humana. Nomeadamente, o insolvente não pode ter a expectativa de, durante o período da cessão, manter o nível de vida a que ele e o seu agregado familiar estavam habituados antes da declaração de insolvência.

Revertendo ao caso dos autos, verificamos que o valor que os recorrentes pretendem ver excluído da cessão (€2.540,00 por mês) excede significativamente o montante global dos seus rendimentos (€ 1.700,00 por mês), o que, só por si, demonstra a irrazoabilidade da sua pretensão. Aquilo que os recorrentes pretendem é, pura e simplesmente, a exoneração do passivo restante sem qualquer esforço da sua parte, o que, como é evidente, não pode acontecer.

Mais, ao argumentarem que não conseguem viver com menos de € 2.500,00 por mês (€ 1.300 para despesas fixas e € 1.200 para despesas pessoais) quando o seu rendimento mensal não ultrapassa os € 1.700,00, os recorrentes parecem admitir que não estão dispostos a deixar de viver com base no permanente recurso ao crédito, ou seja, a abdicar do padrão de vida que os conduziu à insolvência. Não pode ser! A concessão da exoneração do passivo restante visa, além do mais, determinar quem dela beneficia a reajustar o seu modo de vida de forma a que, no futuro, os seus gastos se contenham nos limites dos seus rendimentos, assim evitando cair em nova situação de insolvência.

Tendo em conta a situação económica e familiar dos recorrentes, dois salários mínimos e meio, que actualmente equivalem a € 1.587,50 (quantia esta pouco inferior aos seus rendimentos mensais), são perfeitamente suficientes para assegurar o sustento minimamente digno daqueles, os quais terão de reajustar os seus gastos à sua condição financeira. Tal esforço, indubitavelmente razoável, é-lhes exigível.

Resulta do exposto que o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão recorrida.


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Sumário: (…)

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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da massa insolvente.

Notifique.


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Évora, 16 de Janeiro de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata