Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
8225/18.6T9LSB.E1
Relator: ANA BRITO
Descritores: PORNOGRAFIA DE MENORES
CONCURSO DE INFRACÇÕES
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Sumário:
1 – Estando provado que o arguido detinha ficheiros informáticos com conteúdo de pornografia infantil que enviou a terceiros e, ao mesmo tempo, detinha outros ficheiros com igual conteúdo que não enviou a terceiros, deve considerar-se que não praticou em concurso efectivo um crime p. e p. no artº 176º, nº 1, al. c), do C.P. e um crime p. e p. no artº 176º, nº 5, do mesmo Código, mas tão só um crime da al. c) do nº 1 do artº 176º do C.P..

2 – Com efeito, sendo o crime de pornografia de menores um crime de perigo (perigo abstracto), norteado por uma lógica de perigo, o acto de divulgar ou partilhar os ficheiros em causa (modalidade do artº 176º, nº 1, al. c), do C.P.) representa um estádio mais avançado dessa lógica de perigo.

3 – Daí que a pena prevista para esse comportamento seja superior à prevista para a mera detenção, que representa tão só um estádio menos avançado da agressão ao bem jurídico (modalidade do artº 176º, nº 5, do C.P.).

4 – Tendo-se já configurado juridicamente (e bem) a actuação do arguido como sendo de unidade de crime, tendo o agente percorrido diferentes estádios de agressão ao bem jurídico, dentro da mesma “lógica de perigo” que a norma incriminadora consagra, então ele deve ser punido (e só punido) à luz da alínea que prevê o estádio mais avançado dessa agressão, ou seja, da al. c) do nº 1 do artº 176º do C.P..

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo Comum Colectivo n.º 8225/18.6T9LSB, da Comarca de Faro (…), foi proferido acórdão a “proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos e condenar o Arguido (...) pela prática, como autor material, em concurso efectivo de: - um crime de Pornografia de Menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão; e - um crime de Pornografia de Menores, previsto e punido pelo artigo 176º, nº 5, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão; fazer o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao Arguido (...) e condená-lo na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.”
Inconformado com o decidido, recorreu o arguido, concluindo:
“A) Há contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2, al. b) CPP), ao aplicar (e muito bem – diga-se) a posição doutrinária e jurisprudencial de que o número de materiais pornográficos não poderá servir para a individualização de crimes consumados, decidindo que o arguido praticou um crime único, contraditando-se a decisão de condenar o arguido pela prática de 2 (dois) crimes únicos, o p. e p. pelos art. 176.º, nº1, al. c) e 177º, nº7 do CP e o p. e p. pelo art. 176º, nº 5, quando ao último deveria verificar-se a consunção no primeiro, pois o arguido agiu numa única e mesma motivação criminosa, o bem jurídico tutelado é o mesmo e é única a ação criminosa (guarda de ficheiros de pornografia de menores num único equipamento informático).
B) Face ao exposto, não se autonomizando o crime do nº 5 do art. 176.º, do crime da al. c) do nº 1 do mesmo artigo do Código Penal, deveria o arguido ser absolvido desse crime, já que o Tribunal a quo considerou igualmente verificada a consunção nos dois crimes de Pornografia de Menores, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 1, alíneas c) e d) e nº 4 do Código Penal, relativamente à posse de “Representação realista de menor”» de que o arguido vinha acusado.
Sem prejuízo, caso tal entendimento não mereça provimento, mas mesmo assim, por ser relevante para a medida concreta da pena:
C) Há erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2 , al. c) CPP), porquanto os 148 ficheiros de imagem dos factos provados 14. e os 9 ficheiros de imagem dos factos provados 20., não foram enviados a terceiros, estavam simplesmente armazenados no caminho “WhatsApp Images” ou em pasta de memória, não havendo qualquer prova que tais ficheiros tivessem sido cedidos a terceiros.
D) Há contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2 , al. b) CPP), quando, na página 33 (e também na 53) do Acórdão, afirma que o arguido «enviou, através da aplicação, um total de 824 ficheiros de imagem e vídeo a utilizadores não identificados (factos provados 3. e 14. a 21.)», quando da análise de tais factos provados resulta que o arguido enviou 545 ficheiros de imagem e vídeo [sem prejuízo do erro na apreciação de prova alegado anteriormente relativo aos factos 14. e 20., que merecendo provimento, resultará provado que o arguido enviou através da aplicação WhatsApp um total de 388 (trezentos e oitenta e oito) ficheiros de imagem e vídeo], termos em que a pena terá de ser forçosamente reduzida na mesma proporção, isto é, reduzida em metade a pena aplicada pela prática do crime p. e p. art. 176.º, nº1, al. c) e 177º, nº7 do CP. Assim não se entendendo,
E) As penas parcelares aplicadas ao arguido na condenação são desproporcionais ao grau de ilicitude dos factos, considerando a forma de atuação, modalidades de ação e o período de tempo de atividade, pois a guarda num período relativamente curto de atividade de ficheiros (436) e o envio de ficheiros (388) poderá ser inicialmente indicativo de uma elevada ilicitude, todavia o meio informático com acesso à Internet é um potenciador de acesso/contacto com um número elevado de ficheiros, geralmente é necessária a instalação de programas e aplicativos de partilha automática, no caso concreto, o arguido ao ser membro de um grupo de conservação do WhatsApp dedicado ao fim criminoso de partilha de pornografia de menores, não tem qualquer controlo sobre o número de ficheiros transitados e, por defeito da aplicação, são automaticamente, guardados no seu equipamento; realça-se ainda o facto do arguido ter voluntariamente ter admitido ter aberto os ficheiros, tomado conhecimento do seu conteúdo e guardado os mesmos;
F) De igual forma, terá de relevar no caso concreto, outros factos/circunstâncias: um só ficheiro PDF tinha 121 (cento e vinte e uma) fotografias (Facto provado 24.); Todos os 388 ficheiros enviados já não estavam na disposição ativa de consulta/visionamento do arguido, estavam alojados no rastreamento automático que a aplicação WhatsApp grava de todos ficheiros enviados; todos os ficheiros estavam guardados num único equipamento eletrónico/informático;
G) Se operada a redução de pena de prisão em patamar que seja legalmente admissível, deverá a mesma ser suspensa na sua execução, apesar dos antecedentes criminais por crimes idênticos (tendo inclusivamente vindo a praticar os factos desde processo no período de suspensão da anterior condenação) e das necessidades de prevenção geral e especial serem elevadas (não se olvidando que «não deverá o abusador ser confundido com o consumidor da imagem do abuso. São ambas as condutas muito graves, mas incomparáveis, como será incomparavelmente mais grave a conduta do autor de um abuso sexual de menor de 14 anos do que o consumidor de milhares de ficheiros de imagens de abuso.»), é ainda possível um juízo e prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido, porque considerando os efeitos nefastos das medidas detentivas importa que o arguido beneficie de uma oportunidade de se ressocializar em liberdade, pois a aplicação nos autos de medida de coação da prisão preventiva desde a sua detenção em 14/11/2018 e que se mantém, e os eventuais efeitos na revogação da suspensão da pena de prisão em que foi condenado no processo anterior, levam a crer ser de dar uma nova oportunidade ao arguido, na convicção de que a advertência da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 50º nº 1 do Código Penal).”
O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, e concluindo:
“I - Os pretensos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, als. b) e c), do C. P. Penal, (a saber, "contradição insanável entre a fundamentação e a decisão" e "erro notório na apreciação da prova"), invocados pelo recorrente, consistem apenas em pretender contrapor a sua convicção perante a prova produzida em audiência, à convicção que sobre a referida prova, e de acordo com as regras de experiência comum, o douto tribunal adquiriu, o que é irrelevante, pois contraria o princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 127º do CPP, segundo o qual o tribunal aprecia e valora livremente a prova, de acordo com as regras de experiência comum, e responde segundo a convicção que sobre elas haja alcançado.
II - A douta sentença recorrida não só não enferma de contradição insanável da fundamentação da decisão nem de erro notório na apreciação da prova, ou de qualquer outro vício - tal omissão ou vício não resultam minimamente do seu texto - como é perfeitamente clara, lógica e coerente, consistente e suficiente, permitindo uma avaliação segura e cabal do porquê de tal decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, na medida em que explicou detalhada e racionalmente os elementos de prova de que partiu e as razões pelas quais se convenceu de que os factos haviam decorrido tal como havia dado como provado.
III – O tribunal deu como provado que o arguido tinha guardado no seu computador vários ficheiros de imagem e de vídeo onde são visualizadas crianças menores de 14 anos não identificadas, desnudadas, em poses sexuais, exibindo os órgãos genitais, as nádegas, em práticas sexuais de masturbação, sexo oral, sexo anal, introdução vaginal de partes do corpo, sozinhas e acompanhadas.
IV - E também se deu como provado que o arguido recebeu e enviou a partir do seu computador a utilizadores não identificados, várias imagens, vídeos, fotografias onde são visualizadas crianças menores de 14 anos não identificadas, desnudadas, em poses sexuais, exibindo os órgãos genitais, as nádegas, em práticas sexuais de masturbação, sexo oral, sexo anal, introdução vaginal de partes do corpo, sozinhas e acompanhadas.
V – A pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão em que o arguido foi condenado, pela prática de um crime de Pornografia de menores, na forma agravada, p. e pelo artigo 176.º, n.º 1, al. c), e 177.º, n.º 7, do CP, e de um crime de Pornografia de Menores, p . e p. pelo artigo 176º, nº 5, do CP, é justa, adequada e proporcional.
VI - Não foi violado qualquer preceito legal, nomeadamente o artigo 410º, do CPP.”
Neste Tribunal, o Sr. Procurador-geral Adjunto acompanhou a resposta ao recurso, sufragando a confirmação do acórdão.
Não houve resposta ao parecer. Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.

2. O acórdão, na parte relevante para o recurso, tem o seguinte teor:
“Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
1. No âmbito do processo n.º 804/16.2TELSB e na sequência dos exames periciais efectuados aos telemóveis na posse do aí arguido (…), verificou-se que este tinha instalado nestes equipamentos informáticos o programa de conversação móvel “WhatsApp“, através do qual fazia parte de grupos de conversação, com as denominações “ Full CP”; “Pornô Infantil”, “Zorrita CP” e “ conteúdo privado CP”, que visavam exclusivamente a partilha de conteúdos de abusos sexuais de crianças.
2. O Arguido (…) fazia parte do grupo de conversação “Conteúdo privado cp” participando nas conversações e na partilha de ficheiros de conteúdos de abuso sexual de crianças com os demais utilizadores, fazendo-se identificar com o número de telemóvel (…), da sua titularidade.
3. Desde data não concretamente apurada, mas que ocorreu entre o período compreendido entre o ano de 2017 e o dia 14 de Outubro de 2018 (data em que a aplicação WhatsApp foi bloqueada) o Arguido enviou e recebeu ficheiros vídeo e fotografias através da aplicação referida.
4. No dia 14 de Novembro de 2018, cerca das 08h30m, na sequência da busca domiciliária realizada à residência do Arguido, sita na (…) foram apreendidos na sua posse os seguintes equipamentos informáticos:
- um telemóvel da marca “ Huawei”, com o IMEI (…), com o cartão SIM (…), sem código de bloqueio;
- um telemóvel de marca “Vodafone”, modelo VFD510, com o IMEI (…);
- um telemóvel sem marca visível, modelo M503, com os IMEIS (…);
- um telemóvel/tablet de marca “Lenovo”, modelo PB2-670N, com o IMEI (…), com o Pin de desbloqueio (…) (Tablet LENOVO com (…);
5. No interior do telemóvel de marca “Vodafone”, o Arguido tinha associado o endereço de email (…), e as aplicações facebook e facebook Messenger com o id (…) e ainda o youtube, as quais permitiam, a partilha de conteúdos.
6. No interior do telemóvel de marca “HUAWEI”, o Arguido tinha igualmente associado o endereço de email (…), por si utilizado e as aplicações facebook e facebook Messenger com o id (…), WhatsApp Messenger; Youtube, Google Photos e Gmail, as quais permitiam a partilha de conteúdos e o armazenamento de imagens e vídeos.
7. Neste equipamento informático, o Arguido detinha ainda a aplicação “WhatsApp”, a qual havia sido bloqueada, tendo sido encontrada na caixa de correio electrónico uma informação desta plataforma informando o Arguido que o número associado à mesma – (…) - tinha sido bloqueado e a conta de WhatsApp banida porque as actividades do Arguido haviam violado os termos de serviço da mesma, a qual foi enviada nos seguintes termos:
8. No equipamento informático de marca “Lenovo” o Arguido tinha associado o e.mail (…) e instalada a aplicação WhatsApp, associada ao número de telemóvel (…), de sua pertença, o qual se encontrava bloqueado pela própria aplicação, bem como as aplicações facebook e facebook Messenger com o id (…), WhatsApp Messenger; Youtube, Google Photos e Gmail, as quais permitiam a partilha de conteúdos e o armazenamento de imagens e vídeos.
9. O Arguido detinha ainda em tal equipamento os seguintes termos de pesquisa, associados a grupos de conversação sobre temáticas de abuso sexual de crianças: (…)”.
10. Na memória interna do dito equipamento informático de marca LENOVO, o Arguido detinha o conteúdo dos ficheiros enviados e recebidos através da dita aplicação, numa pasta denominada “WhatsApp”, que é a pasta padrão que guarda automaticamente e renomeia os conteúdos (recebidos/enviados) no equipamento.
11. Assim, o Arguido guardava no dito equipamento informático de marca LENOVO, no caminho “Media/memória de armazenamento interno/.tumbnails”, as seguintes 34 (trinta e quatro) imagens: (…)
12. Nestas 34 imagens é possível visualizar o seguinte:
(…)
13. O Arguido guardava ainda no caminho “Media/memória de armazenamento interno/Android”, as seguintes 23 (vinte e três) imagens, nas quais se visualiza o seguinte:
(…)
14. O Arguido guardava ainda no equipamento informático acima indicado, na pasta “WhatsApp\Media\WatsApp Images”, e que enviou a utilizadores não identificados através de tal aplicação, as seguintes 148 (cento e quarenta e oito) imagens nas quais é possível visualizar o seguinte:
(…)
15. O Arguido guardava ainda no equipamento informático acima indicado, na pasta “WhatsApp\Media\WatsApp videos\sent” e que enviou e recebeu de utilizadores não identificados através de tal aplicação, os seguintes 340 (trezentos e quarenta) vídeos:
(…)
16. Nos supra referidos ficheiros de vídeo que o Arguido enviou através da aplicação Whatsapp e da forma supra referida visualizam-se, designadamente e a título exemplificativo:
(…)
17. O Arguido guardava ainda no equipamento informático acima indicado, na pasta “WhatsApp\Media\WatsApp images\sent” e que enviou a utilizadores não identificados através de tal aplicação, as seguintes 2 (duas) imagens nas quais é possível visualizar o seguinte:
(…)
18. O Arguido guardava também no equipamento informático acima indicado, na pasta “WhatsApp\Media\WatsApp video\sent” e que enviou a utilizadores não identificados através de tal aplicação, os seguintes 10 (dez) vídeos e nos quais é possível visualizar o seguinte:
(…)
19. O Arguido guardava ainda no equipamento informático acima indicado, na pasta “WhatsApp\Media\WatsApp animated gifs\sent” e que enviou a utilizadores não identificados através de tal aplicação, 1 (um) vídeo com a denominação VI-20181007.mp4 no qual é possível visualizar (…).
20. O Arguido guardava ainda no equipamento informático de marca LENOVO e que enviou a outros utilizadores através do Whatsapp, os seguintes 9 (nove) fotografias nos quais é possível visualizar o seguinte:
(…)
21. O Arguido guardava no tablet Lenovo acima indicado, na pasta “WhatsApp\Media\WatsApp Video\sent” e que enviou a utilizadores não identificados através de tal aplicação Whatsapp, 35 (trinta e cinco) ficheiros vídeo retratam abusos sexuais de crianças, com as seguintes designações:
(…)
22. Nos supra referidos 35 ficheiros de vídeo que o Arguido enviou através da aplicação e da forma supra referida visualizam-se, designadamente:
(…)
23. Na referida data, o Arguido guardava ainda no equipamento informático de marca Lenovo e acima indicado numa pasta denominada “VideosOcultos” os seguintes 101 (cento e um) ficheiros de vídeos, retratando abusos sexuais de crianças, nos mesmo termos atrás descritos:
24. O Arguido possuía ainda no equipamento informático LENOVO e na memória de armazenamento interno, um ficheiro em PDF, com a denominação “Preetens 6-2017-07-07 Román.pdf”, com 121 (cento e vinte e uma) fotografias nas quais é possível visualizar, designadamente:
(…)
25. Por sentença proferida em 16.02.2018 e transitada em julgado em 19.03.2018, no âmbito do processo n.º 663/15.2TELSB, o Arguido foi condenado pela prática de um crime de Pornografia de Menores, previsto e punível pelo artigo 176º, nº 5 do Código Penal e de um crime de Pornografia de Menores Agravada, previsto e punido no artigo 176.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 7 do Código Penal, na pena única de dois anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, acompanhado de regime de prova, por factos praticados ente 21.05.2015 e 02.11.2016.
26. Contudo, a condenação supra referida não serviu de suficiente advertência ao Arguido contra o crime, voltando este a cometer ilícito criminal da mesma natureza.
27. O Arguido quis receber e guardar nos referidos equipamentos informáticos os ficheiros de imagem e vídeo supra aludidos e quis ainda partilhá-los com os demais utilizadores dos grupos de WhatsApp ao qual pertencia a fim de satisfazer a sua líbido, o que conseguiu, bem sabendo que a sua detenção e a respectiva partilha era proibida.
28. O Arguido tinha perfeito conhecimento de que as referidas imagens e filmes de teor pornográfico com utilização de crianças de idade inferior a 14 anos, induzem a exploração efectiva dessas crianças, utilizadas para a realização dos filmes e fotografias em causa, não obstante, não se inibiu de as exibir, partilhar, ceder, através da Internet, e de as deter no suporte informático, que se encontrava na sua posse.
29. Sabia ainda que dois dos ficheiros eram relativo à exposição de órgão genital de criança de idade inferior a 14 anos, através de representações realistas, e que, por esse motivo, a sua aquisição e divulgação era igualmente proibidas.
30. O Arguido tinha ainda conhecimento de que, deste modo, ao efectuar o download e o upload/a partilha dos ficheiros que ali guardava, partilhava-os com diversas pessoas, assim conduzindo à sua difusão por um número não concretamente apurado de pessoas, o que, igualmente, quis e conseguiu.
31. O Arguido actuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Mais se apurou que
32. (...) é natural de (…), Algarve, local onde decorreu o seu processo de socialização. O agregado do Arguido era constituído pelos progenitores, fazendo parte de uma fratria de três elementos germanos.
33. O progenitor do Arguido era agricultor, comercializando os produtos que cultivava. (...) refere que o seu pai também era madeireiro. O progenitor do Arguido tem actualmente (…) anos de idade e encontra-se reformado. A progenitora do Arguido dedicava-se às lides domésticas, tendo atualmente (…) anos de idade. Um irmão do Arguido tem actualmente (…) anos de idade, é independente, residindo numa casa térrea que é pertença dos progenitores em (…). O outro irmão do Arguido tem actualmente (…) anos de idade, desempregado, residindo com os progenitores.
34. O agregado de (...) reside numa casa térrea com quatro quartos, em (…), pertença dos progenitores com todas as condições de habitabilidade. (...) refere que no agregado familiar nunca houve dificuldades económicas e que as relações afectivas eram normativas, no período da sua infância e adolescência.
35. (...) iniciou o percurso escolar em idade apropriada verbalizando ter concluído o 7º ano de escolaridade com 14 anos de idade após duas reprovações, referindo ter algumas dificuldades em algumas disciplinas. O Arguido refere que ainda tentou dar continuidade aos estudos no período noturno, mas desistiu.
36. (...), com 16/17 anos de idade, começou a trabalhar nas férias de verão no (…) de (…), tendo posteriormente ficado efetivo, desempenhando as funções de (…), encontrando-se a trabalhar no (…) há cerca de trinta e dois anos, auferindo 750,00 euros mensais.
37. O Arguido sempre viveu em casa dos progenitores e, no seio do agregado, constituído por quatro elementos, o Arguido o progenitor, a progenitora e o irmão, nenhum dos elementos fala com o progenitor. (...) verbaliza que esta situação decorre desde há vinte e cinco anos. O Arguido refere que a sua mãe fala o essencial com o marido, o próprio interage ainda menos com o pai, e o seu irmão mais novo também não fala com o pai.
38. (...) refere que o seu pai quis internar a sua mãe e o Arguido não concordou. As fontes referem que a progenitora do Arguido sofre de demência há longos anos.
39. O Arguido refere que o terreno onde se encontra implantada a casa dos progenitores era pertença da avó materna do Arguido e que na cidade de (…) os progenitores são proprietários de várias casas arrendadas que eram da avó materna do Arguido, sendo o progenitor de (...) que recebe as rendas das mesmas.
40. O Arguido faz referência a algumas relações passageiras. Em termos de saúde, (...) refere que tem falta de visão, essencialmente do olho esquerdo, nunca consumiu substâncias estupefacientes e que consume bebidas alcoólicas moderadamente e socialmente.
41. Em termos de tempos livres, o Arguido gosta de passear ao volante da sua viatura, ir a casa de um amigo e beber um café na companhia desse amigo. O Arguido é um amante de futebol, gostando de visionar jogos de futebol na televisão e quando pode desloca-se ao campo de futebol do (…) para ver alguns jogos.
42. À data dos factos subjacentes à presente acusação, o Arguido residia no agregado dos progenitores na morada constante nos presentes autos, numa casa térrea com quatro quartos, em (…), pertença dos progenitores com todas as condições de habitabilidade.
43. O Arguido refere que à data da detenção tinha o seu vencimento penhorado, auferindo 525,00 euros mensais, situação que ocorreu devido à utilização desregrada do cartão de crédito. Reconhece ter dificuldade em fazer a gestão do dinheiro que aufere, verbalizando que adquire produtos diversos, dando o exemplo de telemóveis que terá adquirido com o cartão de crédito que posteriormente tem dificuldade em pagar.
44. Em termos de características pessoais (...) aparenta ser um individuo introvertido com alguma dificuldade em socializar-se.
45. O Arguido deu entrada no Estabelecimento Prisional junto da Policia Judiciária em 15.11.2018, tendo sido transferido para o Estabelecimento Prisional de Caxias em 29.03.2019.
46. Em termos habitacionais não se regista impacto sendo que o Arguido pretende regressar ao agregado dos seus progenitores. Em termos laborais, o Arguido refere que mantém o seu posto de trabalho no (…), referindo que deixou de receber o ordenado em Janeiro de 2019.
47. Enquanto recluído no estabelecimento prisional de Caxias o Arguido nunca teve qualquer visita.
48. No seio institucional onde se encontra recluído, frequenta as sessões da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), frequenta o pátio no período da tarde e na camarata onde se encontra alocado, joga às damas, ouve programas radiofónicos e visiona alguns programas televisivos com alguma dificuldade devido ao seu problema de visão.
49. Durante a sua permanência no estabelecimento prisional tem mantido um comportamento adequado, isento de medidas disciplinares.
50. Do Certificado de Registo Criminal do Arguido constam as seguintes condenações:
- no Processo nº 835/04.5TAPTM, por decisão de 19.02.2009, transitada em julgado em 27.06.2011, pela prática, em 2005, de um crime de Abuso de Poder, na pena de 18 meses de prisão suspensa por 18 meses; e
- no Processo nº 663/15.2TELSB, por decisão de 16.02.2018, transitada em julgado em 19.03.2018, pela prática, em 21.05.2015, de um crime de Pornografia de Menor e de Pornografia de Menor Agravada, na pena única de 2 anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos com Regime de Prova.
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B. Factos Não Provados
Não se deixou de provar quaisquer factos com relevância para a boa decisão da causa.
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C. Motivação da Decisão de Facto
O Tribunal formou a sua convicção sobre os factos considerados provados, com base na análise crítica e conjugada de toda a prova testemunhal, pericial e documental junta aos autos, conjugadas com as regras da lógica e da experiência comum, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.
Assim, o Arguido limita-se a declarar que não partilhou os ficheiros em causa, apenas os tendo enviado para o seu próprio cartão de memória, referindo julgar que o grupo do WhatsApp a que pertencia dizia respeito apenas a material pornográfico de adultos.
Contudo, admite ter aberto os ficheiros, tomado conhecimento do seu conteúdo e guardado os mesmos.
Por seu turno, a testemunha (…), Inspector da Polícia Judiciária, descreveu, de forma circunstanciada, a forma como chegaram à identificação do ora Arguido, o modo como este se identificava na Internet, a busca levada a cabo à sua residência, os equipamentos encontrados na sua posse e que continham as imagens e vídeos respeitantes a pornografia de menores, equipamentos esses e aplicações informáticas que permitiam a partilha de ficheiros.
Mais explica que a menção “CP” contida na designação do grupo de que o Arguido fazia parte significa “Child pornography”, ou seja, pornografia infantil. Considerando que o Arguido havia sido condenado pela prática de crimes idênticos, admite ter aberto os ficheiros, alguns dos quais guardou, não merece qualquer credibilidade a sua versão de que desconhecia que o grupo era dedicado a tais conteúdos.
De igual forma, fica arredada a ideia asseverada pelo Arguido de que não procedeu a qualquer partilha de tais conteúdos, já que, como devidamente esclarecido pela mesma testemunha, os ficheiros de imagens e vídeos indicados como tendo sido enviados constavam de uma pasta “Sent” (ou seja “Enviados”) do WhatsApp, o que apenas pode ter ocorrido quando tais conteúdos são partilhados dentro da mesma aplicação (de um utilizador do WhatsApp para outro utilizador do WhatsApp) e já não quando são enviados entre equipamentos ou para outras aplicações.
A referida testemunha é peremptória ao afirmar que não se trataram de partilhas automáticas, mas com a intervenção do próprio utilizador, sendo certo que o tipo de grupos em que o Arguido se inseria tem um número significante de participantes e, para aí ser aceite, é exigido que já se seja conhecido de alguém dentro do mesmo.
Assinala também que a conta do Arguido no WhatsApp encontrava-se bloqueada pela própria aplicação por “Uso inaceitável”, o que não lhes permitiu aceder às conversações que haviam tido lugar e, portanto, aferir com quem os ficheiros foram partilhados.
Refere ainda que, além do mais, foram detectados termos de pesquisa nos equipamentos informáticos do Arguido referentes a este tipo de conteúdos, o que, associado à sua posse e partilha é claramente indicativo que (...) não foi um utilizador ocasional ou meramente curioso dos materiais de pornografia de menores.
(…) explica igualmente os ficheiros encontrados, o seu conteúdo, a sua designação e natureza, indicando também, assertivamente, o critério utilizado para afirmar que os menores retratados nas imagens e vídeos em causa eram menores de 14 anos, ou seja, a escala de Tanner, por meio da qual, consoante determinadas características físicas objectivas dos menores é possível situá-los dentro de uma certa faixa etária.
De resto, certifica o teor dos autos respeitantes às diligências em que participou.
A testemunha (…), Inspector da Polícia Judiciária, atesta o exame a que procedeu e confirma os ficheiros que encontrou no equipamento informático do Arguido, corroborando os esclarecimentos prestados por (…) no que respeita aos conteúdos que se encontravam na pasta “Sent” da conta do WhatsApp do Arguido.
As supra referidas testemunhas revelaram-se sérias e verdadeiras, não se detectando, por parte das mesmas, qualquer esforço em implicar o Arguido nos factos ou em agravar a sua actuação.
Quanto à idade dos menores retratados nas imagens e vídeos transferidos e guardados pelo Arguido, também não subsistem quaisquer dúvidas a este Tribunal de que os menores constantes das imagens e vídeos transferidos pelo aquele são, na sua esmagadora maioria, menores de 14 anos de idade, sendo notório, da sua visualização, face ao desenvolvimento físico apresentado e considerando os esclarecimentos prestados pela testemunha (…) e a escala de Tanner.
Assim e da conjugação de toda a prova supra mencionada, com o teor do Apenso de Exame Forense, do Auto de visualização e exame de fls. 233 a 275 e 278 /279 e 284 a 308, a certidão do Inquérito nº 804/16.2TALSB de fls. 2 a 84, o Auto de Busca e Apreensão e respectiva Reportagem Fotográfica de fls. 101 a 106, as capturas de ecrã de fls. 111 a 125, a certidão da sentença proferida no Processo nº 663/15.2TELSB de fls. 60 a 65, o Auto de Notícia e Detenção de fls. 127 a 129 e as informações de fls. 310 a 312 e 315 a 319, bem como com as regras da experiência comum, dúvidas não se suscitam quanto aos factos descritos em 1. a 26..
Do mesmo modo e sendo certo que o Arguido não padece de qualquer incapacidade intelectual ou psíquica e considerando as regras da normalidade da vida, as circunstâncias supra enumeradas, a anterior condenação já sofrida pelo mesmo e as suas próprias declarações, resulta, com segurança, a intenção com que agiu e o conhecimento da ilegitimidade e proibição das suas condutas - factos provados em 27. a 31..
Os factos relativos à situação pessoal dos Arguidos assentaram no Relatório Social junto aos autos.
Por fim, foram tidos em conta os demais documentos juntos aos autos, designadamente, o Certificado de Registo Criminal do Arguido donde decorrem os seus antecedentes criminais.
*
D. Enquadramento Jurídico-Penal
Tendo em conta a factualidade provada, cumpre, agora, indagar da responsabilidade jurídico-criminal do Arguido.
Dispõe o artigo 176º, do Código Penal que
“1- Quem:
a) Utilizar menor em espectáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim;
b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim;
c) Produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior;
d) Adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b) com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder; é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
(…)
4 - Quem praticar os actos descritos nas alíneas c) e d) do n.º 1 utilizando material pornográfico com representação realista de menor é punido com pena de prisão até dois anos.
5 - Quem, intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido com pena de prisão até 2 anos.”
No que respeita à agravação do ilícito, preceitua o artigo 177º, nº 7, do mesmo Código que “As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º, 168.º, 174.º, 175.º e no n.º 1 do artigo 176.º são agravadas de metade, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for menor de 14 anos. (…).”
O crime de pornografia de menores é, pois, praticado, nomeadamente, por quem utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim (al. b) do nº 1, do artigo 176º do Código Penal), bem como por quem produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os referidos materiais e ainda quem adquirir ou detiver tais materiais com o propósito de os distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder (als. c) e d) do nº 1, do artigo 176º do Código Penal).
A este respeito, lê-se no Acórdão do STJ de 13.03.2019 (no Processo nº 3910/16.0T9PRT.P1.S1, de que foi relator o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Vinício Ribeiro, disponível na Internet, in www.dgsi.pt), que
«As Nações Unidas definem pornografia infantil como sendo qualquer representação por qualquer meio de uma criança em actividades sexuais explícitas, reais ou simuladas ou qualquer representação das partes sexuais, de onde resulta que o conceito de pornografia infantil é amplo (cfr. art.º 2 .º, c), do Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos da Criança sobre o Tráfico de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia, de 2002), inexistindo pois qualquer distinção entre objecto pornográfico e erótico-sensual.
No que toca às faixas etária abrangidas cumpre sublinhar que “O limite etário dos 14 anos é normalmente entendido como a fronteira entre a infância e a adolescência. Citando Weinberg, Willians e Pryor, referindo que "os tipos de experiências sexuais que uma pessoa tem, especialmente durante a adolescência, são importantes na direção ou reforço do fluxo da sua preferência sexual", sendo por sobremaneira um desenvolvimento adequado da sexualidade, no sentido de proteger a liberdade do menor no futuro, para que decida, em liberdade, o seu comportamento sexual". (Ac.RE de 17.03.2015 in www.dgsi.com).
Neste sentido também Teresa Beleza, (in "O conceito legal de violação"), "já não é o pudor do jovem ou da criança (...) que está em causa (...), mas a convicção legal de que abaixo de uma certa idade ou privada de uma certa dose de autodeterminação, a pessoa não é livre de se decidir em termos de relacionamento sexual".
Costa Andrade ("Consentimento e acordo em Direito Penal), defende que "até atingir um certo grau de desenvolvimento, indiciado por determinados limites etários, o menor deve ser preservado dos perigos relacionados com o desenvolvimento prematuro em atividades sexuais".
“A lei presume que a prática de atos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem para a realização de ações sexuais bilaterais.
O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei.
Em jeito de conclusão, dir-se-ia que o legislador reconheceu o papel da sexualidade no desenvolvimento da personalidade humana e pretende proteger aqueles que, devido à sua imaturidade, ainda não têm capacidade para se autodeterminar nesta vertente.
No mesmo Acórdão do STJ, acima citado, datado de 5-9-2007, (disponível em www.dgsi.pt) consta o seguinte – “…Tal como sublinhado por Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 487, A fonte da disposição (art. 176.º do CP, introduzido pela reforma de 2007) é o Protoloco facultativo de 25.5.2000 à Convenção sobre os direitos da criança, relativo à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 16/2003, ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14/2003 (in D.R. I Série-A de 05.03.2003), conferindo à pornografia infantil o significado, segundo o seu art. 2.º, alínea c), de qualquer representação, por qualquer meio, de uma criança no desempenho de actividades sexuais explícitas reais ou simuladas ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança para fins predominantemente sexuais, relativamente ao que se deveria garantir abrangência pelo direito criminal ou penal de actos de produção, distribuição, difusão, importação, exportação, oferta, venda ou posse (seu art. 3.º, n.º 1, alínea c)).
Também, acolhendo o que a Decisão-Quadro 2004/68/JAI do Conselho, de 22.12.2003 (in Jornal Oficial de 20.01.2004), relativa à luta contra a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, definiu como pornografia infantil com crianças reais, reportada, segundo o seu art. 1.º, alínea b)/i, a qualquer material que as descreva ou represente visualmente envolvidas em comportamentos sexualmente explícitos ou entregando-se a tais comportamentos, incluindo a exibição lasciva dos seus órgãos genitais ou partes púbicas, o que foi reafirmado pela Directiva 2011/92/EU, de 27.10.2011 (in Jornal Oficial de 17.12.2011), que entretanto veio substituir aquela, definindo pornografia infantil, nos termos do seu art. 2.º, alínea c), como i) materiais que representem visualmente crianças envolvidas em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou ii) representações dos órgãos sexuais de crianças para fins predominantemente sexuais, iii) materiais que representem visualmente uma pessoa que aparente ser uma criança envolvida num comportamento sexualmente explícito, real ou simulado, ou representações dos órgãos sexuais de uma pessoa que aparente ser uma criança, para fins predominantemente sexuais, ou iv) imagens realistas de crianças envolvidas em comportamentos sexualmente explícitos ou imagens realistas dos órgãos sexuais de crianças para fins predominantemente sexuais.
Estando em causa nos autos a obtenção, posse e divulgação desses materiais, por via informática, a infracção surge relacionada com os conteúdos respectivos, em sintonia, ainda, com recomendação abrangente expressa na Convenção sobre o Cibercrime, adoptada em Budapeste em 23.11.2001, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 88/2009, ratificada por Decreto do Presidente da República n.º 91/2009 (in D.R. 1.ª série de 15.09.2009), no seu art. 9.º, designadamente protegendo, como menores, pessoas com menos de 18 anos de idade.
O tipo legal de pornografia de menores pode revestir, no que ora releva, qualquer acto que se enquadre nas quatro modalidades caracterizadoras, correspondentes às diferentes alíneas do n.º 1 do art. 176.º, em que transparece uma escala de valoração, embora punível de forma idêntica, desde a utilização de menor à detenção de materiais pornográficos com propósito legalmente definido.
Denota o objectivo do legislador de tutela antecipada do bem jurídico protegido, tratando-se de crime de perigo abstracto (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção), conforme Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 487, sendo que a utilização de material pornográfico com representação realista de menor e a mera detenção de materiais pornográficos merecem atenção punitiva.
De modo tendencialmente rigoroso e compatível com a intervenção do direito penal, o bem jurídico reside mais directamente na protecção da personalidade em desenvolvimento dos menores, entendida tanto numa dimensão interior (psico-física ou moral) como noutra exterior (social ou relacional), embora não deixando de atentar, ainda que remotamente, na sua autodeterminação sexual, opção neocriminalizadora justificada no reforço da tutela das pessoas particularmente indefesas (sobre o assunto, Pedro Soares de Albergaria/Pedro Mendes Lima, in “O crime de detenção de pseudopornografia infantil – evolução ou involução?” e Maria João Antunes, in “Crimes contra a Liberdade e a Autodeterminação Sexual dos Menores”, na Revista Julgar, Especial, n.º 12, Set./Dez.2010).»
Por seu turno, explicam-nos José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in Crimes Sexuais – Análise Substantiva e Processual, Edições Almedina, Dezembro 2019, pp. 219 a 221, que «Este crime consubstancia um reflexo das políticas de neocriminalização no âmbito dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual pretendendo-se essencialmente atacar a utilização de crianças nos circuitos cinematográficos (e videográficos) de cariz pornográfico, criminalizando a difusão dessas imagens num circuito pedófilo cuja extensão é já conhecida.
A criminalização da atuação e utilização de menores em material pornográfico assenta no princípio de que é autodeterminação sexual dos menores que ainda é posta em causa com tais condutas.
A exibição e cedência de fotografia, filmes ou gravações pornográficos, desde que aí seja utilizados menores (não apenas menores de 14 anos como até à reforma de 2007, fora dos casos em que o menor se encontrava numa situação de confiança ou dependência) independentemente de quem cede ou proceda a essa exibição, tendo na sua génese ainda a protecção dos menores que aí são utilizados, vai, no entanto, mais longe, no sentido de pretender desmotivar os próprios consumidores de pornografia de índole pedófila.(…)
3. Utilização direta de menores
Nas alíneas a) e b) do n.º 1 criminaliza-se a utilização direta de menores de 18 anos, ou o seu aliciamento, para espetáculos, fotografias, filmes ou gravações pornográficas. Neste caso é a liberdade e autodeterminação sexual dos menores envolvidos que é posta em causa, através da atividade do agente, seja na intervenção direta nos factos seja no seu aliciamento pessoal para participarem nos mesmos.
A natureza «pornográfica» dos atos referidos abrange menores em atividade sexuais, exibindo órgãos sexuais, ou em pose, posturas ou comportamentos suscetíveis de causar estímulo, excitação ou impulso sexual.
(…)
O menor será utilizado quando é fotografado, filmado, gravado ou objecto de registo, independentemente do suporte em que fique registado (câmara fotográfica, telemóvel, computador, i-pad, tablet, etc) em situações configuradas como pornográficas ou participa no espetáculo pornográfico.
Aliciar será todo o comportamento de que se socorre o agente do crime para motivar o menor a participar nos espetáculos, fotografias, filmes ou gravações pornográficas (dinheiro, prendas, promessas de trabalho ou outras promessas, ainda que falsas, entrega de bens em espécie, toda a conversa que convença o menor, mesmo que sem qualquer entrega ou promessa se bens monetários ou não monetários, incitamento, seduzir o menor, etc)
4. Utilização indireta de menores
Nas alíneas c) e d) do n.º 1 configuram-se condutas que, se bem que susceptíveis de sancionamento criminal, não comportam uma violação direta do bem jurídico liberdade e a autodeterminação sexual de um menor.
Trata-se de travar a proliferação da divulgação de condutas que atentam contra a liberdade e autodeterminação sexual de crianças, elas sim violadoras de bens jurídicos pessoais. Figueiredo Dias, a propósito da alínea d) da versão decorrente da reforma de 2001 do artigo 172.º, fala numa “criminalização (…) que não pode deixar de ser iluminada por um bem jurídico supra individual diverso do da liberdade e autodeterminação sexual de uma pessoa”.
Afigura-se-nos que para além de uma tutela da liberdade e autodeterminação sexual do menor, proibindo todo o mercado de produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, cedência de material pornográfico, também se procura através da incriminação evitar danos na esfera pessoal do menor, que decorre da sua associação ao mercado pornográfico, com as sequelas físicas, emotivas, de reputação e honra que daí advêm. Existe uma tutela antecipada do interesse superior da criança, e do seu direito a ser acautelado o seu bem-estar físico e psíquico. Ora, todas as atuações ali descritas são suscetíveis de causar tais danos, pela expansão do conhecimento de tal material pornográfico.
5. Modus operandi
Quando na alínea c) do n.º 1 se refere expressamente quem produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título fotografias, filmes ou gravações pornográficas que utilizem menores, a ação típica pretende cobrir todo o tipo de disseminação, sem contrapartidas, dos referidos materiais, aí se englobando a venda, o empréstimo, o aluguer ou qualquer outra forma de transmissão dos mesmos.
Por outro lado quando se refere, na mesma alínea, a quem produzir, distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio dos mesmos materiais, a ação típica pretende cobrir a divulgação dos materiais referidos por todos os meios de comunicação conhecidos, sejam publicações escritas, meios audiovisuais, mas também a divulgação por via telemática, ou seja, através de computadores, redes digitais (v.g.) internet), e telemóveis (v.g. envio de material pornográfico por e-mail, telemóvel, partilha no facebook, divulgação em blogs ou youtube etc). Assim, qualquer aparelho que registe o som e/ou imagens de fotografias, filmes ou gravações pornográficas contendo menores é um meio adequado a configurar o modo de praticar o crime.(...)».
Reportando-nos ao caso em apreço, apurou-se que o Arguido fazia parte do grupo de conversação “Conteúdo privado cp”, participando nas conversações e na partilha de ficheiros de conteúdos de abuso sexual de crianças com os demais utilizadores, fazendo-se identificar com o número de telemóvel (…), da sua titularidade (facto provado 2.).
Mais se apurou que, desde data não concretamente apurada, mas que ocorreu entre o período compreendido entre o ano de 2017 e o dia 14 de Outubro de 2018 (data em que a aplicação WhatsApp foi bloqueada) o Arguido recebeu e guardou em equipamentos informáticos ficheiros de imagem e vídeo de conteúdo sexual explícito, onde menores surgem em práticas de cariz eminentemente sexual, nomeadamente, (…), dos quais enviou, através da aplicação, um total de 824 ficheiros de imagem e vídeo a utilizadores não identificados (factos provados 3. e 14. a 21.). Desses ficheiros, uma imagem na qual é visível uma representação realista de uma criança do sexo feminino de idade inferior a (…) (facto 20.).
Com tais condutas, o Arguido preencheu o elemento objectivo do crime de Pornografia da Menores, previsto e punível pelo artigo 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal, uma vez que os indivíduos aí retratados eram menores de 14 anos.
Por outro lado, resultou que o Arguido guardou ficheiros de imagem e vídeo de idêntica natureza em equipamentos informáticos (factos 11. a 13., 23. e 24.). Desses ficheiros, uma imagem representava uma representação realista de crianças e de adultos a praticarem entre si diversos actos sexuais (facto 24.).
A respeito da alínea d) do mesmo artigo, esclarecem os mesmos autores in ob. cit., p. 222, que
«6. Aquisição ou detenção intencional
A alínea d) refere-se à aquisição ou detenção com o propósito de distribuir, importar, exportar, divulgar exibir ou ceder de fotografias, filmes, ou gravações pornográficas.
Na primeira versão da proposta de lei que deu origem ao tipo de crime incriminava-se a detenção “com intenção” de exibir ou ceder.
No entanto tal expressão foi substituída pela expressão “o propósito”.
Se não é inequívoco determinar qual o objectivo do legislador ao substituir os termos em causa, já nos parece claro que não pode tal inciso deixar de configurar um “elemento subjectivo do tipo de ilícito”, na expressão de Faria Costa (...), para este crime, de forma a ter de se demonstrar sempre que só a aquisição ou detenção de fotografias, filmes, ou gravações pornográficas que utilizem menores, com o propósito de virem a ser distribuídas, importadas, exportadas, divulgadas, cedidas ou exibidas é criminalmente punível.
Não assim se se demonstrar a sua utilização para qualquer outra finalidade – por exemplo, para serem destruídas. Trata-se, por isso, de um crime intencional.
A intenção de divulgação e cedência resultará da instalação de programas de partilhas de ficheiros (...). Ou seja, o agente do crime ao disponibilizar ficheiros com material pornográfico neste tipo de sistemas, sabe que outro utilizador da rede, que use o mesmo software, pode visualizar, ou copiar ficheiros contendo material pornográfico, tal como ele o poderá fazer de outros computadores.(...)».
No caso sub judice, pese embora resulte que o Arguido recebeu, guardou e enviou ficheiros vídeo e fotografias através da aplicação WhatsApp, não se demonstra que tivesse na sua posse os demais ficheiros com o propósito específico de os vir a distribuir, importar, exportar, divulgar exibir ou ceder.
Entende-se, deste modo, que não se mostra preenchida a alínea d), do nº 1, do artigo 176º.
Ao invés, tendo resultado provado que, no dia 14 de Novembro de 2018, o Arguido tinha na sua posse, guardados em equipamentos informáticos, 279 ficheiros de imagem e vídeo de conteúdo sexual explícito, onde menores surgem em práticas de cariz eminentemente sexual, nomeadamente, de (…) (factos 11. a 13., 23. e 24.), entende-se que se mostra preenchido o elemento objectivo do tipo legal de crime previsto no artigo 176º, nº 5, do Código Penal.
*
Uma vez que vem imputado ao Arguido a prática de vários crimes de Pornografia de Menores, cumpre aferir se estamos perante uma pluralidade de crimes ou perante um único crime.
A este respeito a jurisprudência tem-se dividido quanto à qualificação do trato sucessivo, sendo, contudo, esmagadora a maioria que afasta a figura da continuação criminosa.
Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 17.05.2017 (Processo nº 194/14.8TEL.SB.S1, de que foi relator o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Pires da Graça, disponível na Internet, in www.dgsi.pt) dá-nos nota do seguinte
«(...)Unidade/pluralidade de infrações
O crime de pornografia de menores visa, como se apontou, de forma mais direta ou indireta, defender a autodeterminação sexual de crianças e jovens, ou o seu livre desenvolvimento, de outro ponto de vista, bens jurídicos, de qualquer modo, de caráter eminentemente pessoal.
O número de crimes determina-se pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi cometido – conforme critério estabelecido pelo art. 30º, nº 1 do Código Penal.
Por outro lado, dispõe o art. 30.° do Código Penal, no seu n° 2 que: "Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente." Acrescentando o seu n." 3 que: "O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais."
Assim, estabelecida a regra, contempla o legislador exceções para situações em que a acentuada diminuição da culpa do agente justifica um ajuste da moldura abstrata aplicável à conduta, integrando num só crime continuado o que constituiria uma reiteração criminosa.
Assim, de acordo com o disposto no predito preceito são pressupostos do crime continuado:
. a homogeneidade da forma de execução do crime;
. a lesão do mesmo bem jurídico;
. a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
O n.º 3 do art. 30.° do CP, aditado pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, com a redação que se deixou supra consignada não veio, na realidade alterar em nada o entendimento jurisprudencial e doutrinal que vinha sendo seguido quanto à matéria, já que que aquilo que se encontrava previsto não era que nos crimes contra bens pessoais, tratando-se da mesma vítima, se devessem unificar as condutas, mas antes que nesses crimes a pluralidade de vítimas constituiria obstáculo a essa unificação. Ou seja, estando em causa a lesão de bens jurídicos eminentemente pessoais, a continuação criminosa só poderá estabelecer-se respeitando à mesma vítima e contanto que se encontrem reunidos os demais requisitos do crime continuado, mormente que estejamos perante uma diminuição acentuada da culpa do agente.
Como se refere no Ac. do STJ de 5/12/2007, proferido no âmbito do Proc. 0783989, disponível in www.dgsi.pt.:
"Na verdade, o elemento nuclear e substancial do instituto do crime continuado é a mitigação da culpa resultante de uma situação exógena à vontade do agente que induza ou facilite a repetição da conduta ilícita por parte daquele. Quando os factos revelarem que a reiteração criminosa resulta antes de uma pré-disposição do agente para a prática de sucessivos crimes, ou que estes resultam de oportunidades que ele próprio cria, está evidentemente afastada a possibilidade de subsumir os factos ao crime continuado, porque se trata então de uma situação de culpa agravada, e não atenuada. " No mesmo sentido o Ac. do STJ de 25/11/2009, proferido no âmbito do Proc. 490/07.0TAVVD.S1, disponível in www.dgsi.pt. no qual se refere:
"A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição; isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca. Ao invés, a culpa pode até ser mais grave, por revelar firmeza e persistência do propósito criminoso."
Também Leal Henriques e Simas Santos, no seu Código Penal Anotado, em anotação ao art. 30.0 e seguindo de perto o ensinamento do Prof. Eduardo Correia, dizem:
"Sucede, por vezes, que certas atividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime - ou mesmo diversos tipos legais, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico - e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que portanto atiraria a situação para o campo da pluralidade de infrações), devem ser aglutinadas numa só infração, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente. E quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. O pressuposto da continuação criminosa será, assim, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”
Para além do crime continuado, a nossa ordem jurídica contempla ainda outras modalidades de crime por atenção à duração e estrutura da ação criminosa. Fá-lo por se mostrar de suma importância a fixação do momento em que cessa a ação criminalmente punida, já que é esse o momento “a quo”, a partir do qual se procede à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Assim, atentando na previsão legal constante do art. 119º do Código Penal, os crimes, para além de continuados, podem ser:
. permanentes – em que ocorre uma persistência temporal da ação criminosa, que se mantém una;
. habituais ou de trato sucessivo – em que a ação criminosa envolve a prática de vários atos homogéneos.
Trata-se, este último, de um crime único com pluralidade de atos, ou seja, a consumação do crime protrai-se no tempo. A própria estrutura do tipo incriminador supõe a reiteração. Correspondem a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta, ou pode apresentar, mais complexa do que sucede habitualmente e se desdobra numa multiplicidade de atos semelhantes, que se vão praticando ao longo do tempo, mediante intervalos entre eles. É o caso de crime de maus tratos, lenocínio ou tráfico.
Figueiredo Dias, em “Direito Penal”, Parte Geral, Tomo I, 2ª Ed., pag. 314, ensina que crimes habituais são “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada”, avançando como exemplos, precisamente, os crimes de lenocínio e de aborto agravado.
A jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem entendido que estamos perante um único crime quando o comportamento do agente tem na sua base o que designam por unidade resolutiva, que se não se confunde com resolução criminosa única, que move o agente para a prática reiterada de atos que, isoladamente considerados, já integrariam a prática do crime. Reiterar significa repetir, pelo que está em causa uma pluralidade de atos homogéneos. Embora a caracterização legal se não esgote nisso, os “atos reiterados” são opostos aos “atos sucessivos”, no sentido de praticados em ato seguido, o que aponta para a necessidade de um certo distanciamento temporal – pelo menos o suficiente para se arredar a existência de um crime contínuo – o que faz o crime perder o cariz episódico isolado, para passar a estruturar-se numa atividade que se vai verificando, multi-episodicamente, ao longo do tempo.
Está em causa, como vimos, uma repetição de condutas homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa. Assim, o agente age em cada uma das ocasiões em concretização de um móbil que previamente o animou e que abrange todos os atos praticados em cada uma dessas ocasiões. Age, pois, sob uma unidade resolutiva, reiterando um dado comportamento sempre que as circunstâncias o permitirem. Como refere o nosso STJ em acórdão datado de 29-11-2012 (proferido no Proc. 862/11.6TAFRS.S1, disponível in www.dgsi.pt), estamos, nesses casos, perante uma atividade repetida, que se prolonga no tempo, em que o agente não renova o seu processo de motivação. Também o acórdão do STJ datado de 23-01-08 se pronuncia sobre esta matéria (Proc. 4830/07.3A, disponível in www.dgsi.pt) dizendo que estamos perante uma unidade de resolução criminosa quando ante “repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime”.
Sem prejuízo, não tem o nosso Supremo Tribunal de Justiça uma posição unívoca sobre o assunto, podendo ler-se no acórdão datado de 12-6-2013 (Proc. 1291/10.4JDLSB, disponível in www.dgsi.pt) o seguinte:
“...se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado no caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo ficcionando o julgado um dolo inicial que engloba todas as ações”.
Constituirá óbice à qualificação jurídica operada o facto de estarmos perante ilícitos que tutelem bens jurídicos eminentemente pessoais, inviabilizando a integração num só crime de trato sucessivo os diversos atos reiteradamente praticados numa dada circunscrição temporal, por constituírem uma unidade de resolução criminosa, tal como sucede no crime continuado?
Cremos que não.
No crime continuado estamos perante um determinado número de crimes, autónomos entre si por corresponderem a resoluções criminosas distintas, ainda que sucessivamente renovadas. Vêm a ser integrados num crime único nas circunstâncias especiais legalmente previstas, numa adequação, como se referiu já, da moldura abstrata da punição a aplicar à culpa do arguido.
Assim, os requisitos são precisamente a prática plúrima de ilícitos idênticos entre si, dentro de um quadro facilitador da conduta do agente com reflexos significativos no seu grau de culpa, entendendo-se que os fatores externos ao agente são susceptíveis de atenuar o juízo de censura a realizar sobre o seu comportamento. Recorrendo a linguagem coloquial, diremos que o agente não procurou o ilícito, mas não foi capaz de lhe resistir.
Diferentemente, no crime único de trato sucessivo ou habitual estamos perante um dolo perene, que anima todos os atos reiteradamente praticados pelo agente dentro de um mesmo quadro circunstancial, aquilo a que se denomina de unidade resolutiva.
No caso do crime de pornografia de menores estamos, como vimos, perante um crime de perigo abstrato, punindo o legislador um dada atividade pela sua potencialidade lesiva do bem jurídico protegido, independentemente da produção de qualquer dano ou perigo de dano. Assim sendo, antecipando-se a tutela dos bens jurídicos e prescindindo a previsão típica da ocorrência de dano, questiona-se se fará sentido “repartir” a atividade a sancionar por referência a cada ato isolado ou agrupar os atos em causa em função do número dos potenciais lesados. A resposta, em nosso entender, deverá ser negativa, dadas precisamente as características dos chamados “crimes de atividade”, de que constitui esclarecedor exemplo o crime de tráfico de estupefacientes. Este também visa, ainda que de forma indireta, a proteção de bens jurídicos eminentemente pessoais, como a integridade física e mesmo a vida de cada um dos “protegidos”. Contudo, por força da estrutura conferida pelo legislador ao ilícito, punindo a atividade, demonstrada a venda de produto estupefaciente a diversos consumidores, o agente não é punido por um crime por referência a cada um dos adquirentes.
Assim, conclui este Tribunal que, no caso do crime de pornografia de menores, não estamos perante um crime de trato sucessivo, estando as condutas isoladas criminalmente punidas unificadas numa unidade resolutiva, mas perante um único crime, consubstanciado na prática pelo arguido da atividade criminalmente punida.(...)”
Tal fundamentação mostra-se pertinente, inexistindo in casu, quer a figura do trato sucessivo, quer do crime continuado, e procedendo um só crime.(...)
II O acórdão recorrido, tratando da “Unidade/pluralidade de infrações”, sustentou que não faz sentido «“repartir” a atividade a sancionar por referência a cada ato isolado ou agrupar os atos em causa em função do número dos potenciais lesados», e a fls. 1026, concluiu que, «no caso do crime de pornografia de menores, não estamos perante um crime de trato sucessivo, estando as condutas isoladas criminalmente punidas unificadas numa unidade resolutiva, mas perante um único crime, consubstanciado na prática pelo arguido da actividade criminalmente punida».
III Não havendo unanimidade na doutrina sobre a matéria em causa, com toda a consideração pela Ex. ma recorrente, propendemos para a tese acolhida pelo acórdão recorrido.
Miguez Garcia e Castelo Rio, in Código Penal, Parte geral e especial, Almedina 2014, a fls. 731, em anotação e comentário ao artigo 176.º do Código Penal, referem: «As quatro variantes em que este art. 176º/1 se desdobra têm em comum o tema pornografia. Têm todas em vista sobretudo a proteção da juventude e indiretamente, enquanto crimes de perigo abstrato, o facto de concorrerem para a redução do número de destinatários e do chamado turismo sexual em prejuízo de menores.
(…) Nas alíneas c) e d) do n.º 1 trata-se de condutas que, embora merecedoras de pena, não configuram uma situação imediata (direta) do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual, mas sim interesses do Estado que poderiam ficar lesados com a proliferação da pornografia. A alínea c) aplica-se a quem produzir, distribuir… exibir ou ceder, a qualquer título ou por qualquer meio, os materiais previstos na alínea anterior (fotografias, filmes ou gravações pornográficas que utilizem menores…)
A alínea d) refere-se a quem adquirir ou detiver materiais previstos na alínea b) (fotografias, filmes ou gravações pornográficas), com o propósito de os distribuir, importar exportar, divulgar….
O agente comete tantos crimes de pornografia de menores quantos os menores utilizados em espetáculo, atenta a natureza pessoal do crime. Vale o mesmo para a fotografia, o filme ou a gravação pornográfica com vários menores. Mas só haverá um crime se A tira 20 ou mais fotografias ou faz um filme pornográfico de menor integrado em espetáculo pornográfico para distribuição ou cedência.»
Por seu turno, Ângela Pinto, in Crime de Abuso Sexual de Menores com Recurso à Internet, Enquadramento Jurídico, Prática e Gestão Processual, Trabalhos Temáticos de Direito e Processo Penal, CEJ, depois das referências ao conceito de pornografia infantil constante do artigo 2.º, alínea c), da Diretiva 2011/92/EU [qualquer representação, real ou figurada, por qualquer meio, de comportamentos sexuais, de qualquer espécie, de um menor no desempenho de atividades sexuais explícitas, ou qualquer representação dos órgãos sexuais de um menor para fins predominantemente sexuais], e considerações sobre a desnecessidade de identificação da vítima, anotando que é indispensável a determinação da idade, diz-nos:
«A Lei 103/2015, de 24 de agosto…, seria merecedora de aplauso apenas pela alteração que provocou ao introduzir o novo n.º 5 do artigo 176.º do CP, que veio substituir o anterior n.º 4. Onde antes se lia : “quem adquirir ou detiver os materiais previstos na alínea b) do n.º 1 é punido…”, hoje lê-se “quem intencionalmente, adquirir, detiver, aceder, obtiver ou facilitar o acesso, através de sistema informático ou qualquer outro meio aos materiais referidos na alínea b) do n.º 1 é punido…” (sublinhados da autora)…
No período anterior a esta alteração legislativa havia dificuldade em se enquadrar a mera visualização de pornografia de menores na internet quando não eram efetuados downloads, pois que a conduta não constituía exatamente um “adquirir” ou “deter” – pelo menos assim não era entendido unanimemente. Dúvidas não havia que o mero download de ficheiros constituía crime. Todavia, se o agente se limitasse a visualizar o material sem o descarregar para o seu computador, não era pacífica a opinião de que isso integraria a conduta de “aquisição ou detenção”, ainda que fosse genericamente admitido que tal diferenciação de tratamento conduziria a uma situação de justiça material, pois um consumidor de pornografia mais avisado evitaria os downloads, recorrendo à mera visualização online, que sempre estaria ao seu fácil dispor…
Com a alteração legislativa, a inclusão da palavra “intencionalmente” visa excluir todos aqueles que acidentalmente se veem perante material de pornografia infantil sem que o tenham procurado ou desejado…»
E, finalmente, pronunciando sobre o concurso, diz-nos:
«Quanto às hipóteses de concurso, diga-se que é habitual que quando está em causa um crime de pornografia de menores ele esteja em concurso efetivo com outro crime contra a autodeterminação sexual, desde logo porque haverá sempre um concreto abuso da criança que participa na produção do material pornográfico. Todavia, atendendo a que o crime de pornografia de menores apenas indiretamente tutela a autodeterminação sexual, protegendo em primeira linha a dignidade das crianças enquanto bem supraindividual, o entendimento de que haverá tantos crimes como o número de vítimas não tem aplicação neste tipo de ilícito, pois o bem jurídico em causa não é exclusivamente pessoal, nos termos do artigo 30,º do CP:»Ana Paula Rodrigues, in Revista do CEJ, 1.º Semestre 2011, Número 15, Pornografia de menores: novos desafios na investigação e recolha de prova digital, considera:
«Nos casos em que o agente pratica simultaneamente um crime de abuso sexual de criança do art. 171.º e ainda um crime abrangido pela previsão do art. 176.º, estas condutas assumirão ambas, sempre, um desvalor autónomo face a condutas anteriores e posteriores do agente, pelo que neste caso haverá sempre concurso efectivo de crimes, imputável a quem abusa e difunde a imagem
No que respeita à problemática do concurso de crimes, cumpre ainda referir que não se partilha o entendimento de que haverá tantos crimes como o número de vítimas.
Este tipo legal de crime visa tutelar bens jurídicos traduzidos no interesse da comunidade em proibir a circulação, venda, comercialização, a simples transmissão de registos audiovisuais de carácter pornográfico envolvendo crianças com idade inferior a 18 anos.
O legislador, através deste preceito visou, também, resolver o problema da criminalização do tráfico de fotografias, filmes e gravações pornográficas com crianças, baseado num bem jurídico supra individual diverso do da liberdade e autodeterminação sexual de uma criança.
Assim, não se aceita que a norma proteja interesses exclusivamente pessoais, com a consequente multiplicação de ilícitos, nos termos do art. 30.º do Código Penal.
Pelo exposto e em nosso entender, não obstante as imagens, na generalidade, conterem várias vítimas, comete um único crime quem as detém, exibe, ou cede.»
Já no Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª Edição, ao tratar do bem jurídico pelo tipo de crime do artigo 176.º, Maria João Antunes refere que a inserção na secção dos crimes contra a autodeterminação sexual é significativa «de que o bem jurídico protegido pela incriminação pretende ser o livre desenvolvimento da vida sexual do menor de 18 anos de idade face a conteúdos ou materiais pornográficos. É, porém, duvidoso que todas as condutas tipificadas sirvam a protecção deste bem jurídico.
Relativamente às condutas referidas no n. 1-a) e b), é questionável que a incriminação tenha ainda justificação por referência ao bem jurídico individual da liberdade e da autodeterminação, quando se trate de menor entre 14 e 18 anos de idade (supra art. 174º §§ 2 e 3)…
No que se refere aos n.ºs 1-c) e d) e 3 do que se trata, verdadeiramente, é da criminalização do comércio de material pornográfico, entendido este numa acepção ampla, havendo uma tutela demasiado longínqua e indeterminada do livre desenvolvimento sexual do menor “de carne e osso”… para se poder afirmar que este é o bem jurídico individual protegido pela incriminação…»
E assim, como parte dos autores atrás mencionados, entendemos que as alíneas c) e d), protegendo nuclearmente o interesse da comunidade em proibir a circulação, venda, comercialização, a simples transmissão de registos audiovisuais de carácter pornográfico envolvendo crianças com idade inferior a 18 anos, ou seja, criminalizando o comércio de material pornográfico com menores de idade inferior a 18 anos, não impõem a correspondência entre o número de menores utilizados nesse material e o número”
Procede pois a tese do acórdão recorrido, a existência de um único crime, atenta a natureza do bem jurídico violado. Não é imediatamente a liberdade e autodeterminação sexual ou interesses exclusivamente pessoais que estão em causa, na ilicitude em questão, mas um bem jurídico supra individual, de interesse público, de protecção e defesa da dignidade de menores, na produção de conteúdos pornográficos e divulgação ou circulação destes pela comunidade.»
Por seu turno, José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro (ob cit., p. 231), entendem que
«No que concerne às condutas descritas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 176.º do CP existe uma violação direta do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual, o que implica que por cada menor utilizado ou aliciado para efeitos de espetáculos, fotografias, filmes ou gravações pornográficas se consuma um crime. Assim, o número de crimes coincide com o número de vítimas usadas ou aliciadas. Por seu turno, as alíneas c) e d) do n.º 1, os nºs 4, 5 e 6 do art. 176.º do CP reconduzem a atuação ilícita à produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição, cedência, aquisição, detenção, acesso, obtenção e facilitação de acesso dos materiais pornográficos. A utilização no plural (materiais), aliado ao facto de que estas atividades são uma forma de tutela indireta da liberdade e auto-determinação sexual, determinam que se conclua que 0 número de materiais pornográficos em causa releva para a escolha e medida da pena, mas não para a individualização de crimes consumados. Assim, existirá um só crime, independentemente do número de fotografias, filmes ou gravações. (…)»
Já o Tribunal da Relação de Évora, no seu acórdão de 25.03.2014, relatado pelo Sr. Dr. Juiz Desembargador Sénio Alves (disponível na base de dados da DGSI, no mesmo sítio) refere que
«Nos termos do disposto no artº 30º, nº 2 do Cod. Penal, “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Como explicam Leal-Henriques e Simas Santos, “Código Penal anotado”, 3ª ed., 387, “quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. O pressuposto da continuação criminosa será, assim, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa”.
Ora, do factualismo apurado não resulta qualquer circunstancialismo exterior ao agente, que o solicite à prática do crime e que, por essa via, diminua de forma considerável a sua culpa. Existiu, efectivamente, um circunstancialismo facilitador da acção e da repetição: o facto de a vítima ser neta do agente e com ele viver, sob o mesmo tecto e, de alguma forma, à sua guarda. Tal circunstância, porém, não só não é exterior ao agente como, seguramente – e nisso todos estaremos de acordo – não só não diminui, antes acentua a culpa do arguido. (…)
E preferimos, sem dúvida, trilhar aquele que vem sendo seguido pelo nosso mais Alto Tribunal, maugrado a iniquidade que o douto tribunal a quo lhe aponta (e que nós, modestamente, não vislumbramos).
Como se afirma no Ac. STJ de 29/11/2012, Pr. 862/11.6TAPFR.S1, www.dgsi.pt., “quando os crimes sexuais são actos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem”. Daí que “a doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido. Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»].
Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por actos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os actos se repetem. O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque). Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma”.
Insurge-se o tribunal a quo contra este entendimento, dizendo que “onde se verificam vários crimes (quiçá, largas dezenas…), ficciona-se que apenas houve um”.
Em matéria de ficção, permita-se-nos que aqui lembremos um caso com algumas semelhanças com o tratado nestes autos e que foi objecto de estudo, num interessante trabalho da autoria da Drª Ana Brito, Desembargadora neste Tribunal da Relação de Évora, publicado na Revista do CEJ nº 15, 293/316:
- Na 1ª instância, o arguido havia sido condenado pela prática de dois crimes continuados, um de coacção sexual, outro de violação.
- Na Relação do Porto, decidiu-se deste modo (Ac. de 8/9/2010, rel. Leonor Esteves): “Não foi possível determinar o número exacto de vezes que o recorrente praticou as condutas delituosas. Ao certo, apenas se apurou que elas tiveram lugar a partir de data incerta de 2001/2002 e duraram até inícios de Outubro de 2008, ocorrendo com uma frequência semanal e, muitas vezes, mais do que uma vez por semana. Considerando, por a tal a certeza e a segurança nos obrigar, apenas o período que decorreu entre princípios de 2003 e finais de Setembro de 2008, que se traduz em 299 semanas, chega-se à conclusão de que, pelo menos, foram praticados outros tantos actos da natureza dos que vêm descritos nos factos provados. No entanto, ainda assim fica por determinar em quantos deles o recorrente se limitou a praticar actos sexuais de relevo ou praticou relações sexuais de cópula com a assistente, sendo apenas possível dar como certo que, tanto uns como outros, ocorreram mais do que uma vez. Decorrentemente, não é possível considerar que as condutas praticadas pelo recorrente preencheram mais do que duas vezes os tipos legais dos crimes de coacção sexual e de violação. Razão pela qual o enquadramento jurídico dos factos que consideramos correcto – e possível – consiste na sua subsunção a dois crimes de coacção sexual (…) e a dois crimes de violação (…)”.
- No Supremo Tribunal de Justiça (Ac. STJ de 12/5/2011, Pr. 14125/08.0TDPRT.P1.S1, www.dgsi.pt) considerou-se que a conduta do arguido integrava a prática de um único crime de coacção sexual e de um único crime de violação. E aí se escreveu: “a Relação, na base do entendimento de que não se verificava a diminuição da culpa em razão de uma exigibilidade diminuída, requerida para tal unificação normativa, rejeitou essa solução mas, na falta de factos que permitissem determinar o número exacto de actos singulares, na falta de factos que permitissem determinar o conteúdo objectivo de cada um dos actos singulares, na falta de factos que permitissem determinar se a cada um dos concretos actos singulares presidiu uma nova e autónoma resolução criminosa, na falta de factos que permitissem determinar se cada um dos actos singulares foi precedido de uma concreta acção de constrangimento, criou uma ficção. Na falta de averiguação e valoração jurídico-penal de todos e cada um dos crimes e na impossibilidade reconhecida de a alcançar, a Relação decidiu, arbitrariamente, que o recorrente cometeu dois crimes de cada um dos tipos” (subl. nossos).
Com efeito, a ficção não está no tratamento de várias condutas ilícitas, ligadas por uma unidade resolutiva (patente numa conexão temporal e numa uniformidade de actuações que leva a concluir que o agente as praticou sem necessidade de renovação do processo de motivação), como se de um único crime se tratasse. A ficção está em preencher conceitos propositadamente vagos (e são-no, face à impossibilidade de quantificar, de modo exacto, as condutas ilícitas) de forma arbitrária, porque assente em coisa nenhuma.
Estatui-se no nº 1 do artº 30º do Cod. Penal que o número de crimes se determina pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
A este propósito, anota o Cons. Maia Gonçalves, “Código Penal Português anotado e comentado”, 8ª ed., 268: “perfilha-se o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, atendendo-se assim ao número de tipos legais de crime efectivamente preenchidos pela conduta do agente, ou ao número de vezes que essa conduta preencheu o mesmo tipo legal de crime. (...) É claro que embora o artigo o não diga expressamente, não se abstrai do juízo de censura (dolo ou negligência). Depois de apurada a possibilidade de subsunção da conduta a diversos preceitos incriminadores, ou diversas vezes ao mesmo preceito, tal juízo de censura dirá a última palavra sobre se, concretamente, se verificam um ou mais crimes, e se sob a forma dolosa ou culposa. Isto se deduz do uso do advérbio efectivamente e dos princípios basilares sobre a culpa.”
Segue-se de perto, em tal anotação, a lição do Prof. Eduardo Correia (“Direito Criminal”, II, 1971, p. 197 e segs) que rejeita, como é sabido, a teoria naturalística da infracção, segundo a qual determinar o número de crimes praticados pelo agente seria o mesmo que saber em quantas acções se pode dividir a conduta. E aponta, de forma inequívoca, para uma teoria jurídica, de que resulta que o número de infracções se determina pelo número de valorações que, no mundo criminal, correspondem a uma certa actividade. Daí que “se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção” - op. cit., 201.
Posto que para que uma conduta seja considerada delituosa se torna necessário que para além de antijurídica seja, igualmente, culposa, a culpa apresenta-se - assim - como elemento limite da unidade da infracção, pois que sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes o mesmo tipo legal de crime se torna aplicável, de onde se nos depare uma pluralidade de infracções.
Assente, então, que sempre que se verifique uma pluralidade de resoluções criminosas, se verifica uma pluralidade de juízos de censura, a dificuldade residirá, apenas, em verificar se numa determinada situação concreta existe pluralidade de resoluções criminosas ou se o agente age no desenvolvimento de uma única e mesma motivação criminosa.
Essencial para tal determinação será, sempre, a conexão temporal que liga as várias condutas do agente. Daí que “para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação” - autor e op. cit., 202.»
Embora estivesse aí em causa crime diverso aos dos presentes, afigura-se-nos que a fundamentação expendida no aresto supra aplica-se ainda com maior acuidade in casu.
Com efeito e como acima já assinalado, as incriminações de pornografia infantil em questão são uma forma de tutela indireta da liberdade e auto-determinação sexual, pelo que o número de materiais pornográficos em causa não poderá servir para a individualização de crimes consumados.
Dos autos, não resulta especificamente momentos temporais e/ou formas de execução dos crimes distintos, nem o número de vezes em que o Arguido praticou as condutas delituosas por forma a podermos concluir, com acerto, pelas vezes em que se verificou a renovação dos mecanismos da sua vontade para praticar os crimes de Pornografia de Menores previsto e punível pelo artigo 176º, nº 1, al. c), do Código Penal e de Pornografia de Menores previsto e punível pelo artigo 176º, nº 5, do mesmo diploma.
Não se mostra, pois, possível, concluir pela pluralidade dos crimes apenas com base no número das imagens e dos vídeos.
Por outro lado, inexistindo qualquer circunstância externa que possa ter “arrastado” o Arguido à repetição reiterada do cometimento dos factos ilícitos em causa por forma a se poder afirmar que lhe era menos exigível que se comportasse de acordo com o direito, não podemos concluir que se encontra consideravelmente diminuída a sua culpa, ficando afastada a punibilidade da sua conduta através do crime continuado.
Assim e não obstante o Arguido ter enviado (por um lado) e ter guardado (por outro) uma multiplicidade de ficheiros de imagem e de vídeo onde são visualizadas crianças menores de 14 anos não identificadas, desnudadas, em poses sexuais, (…), sozinhas e acompanhadas, entende-se que praticou um único crime de Pornografia de Menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal, bem como um crime de Pornografia de Menores previsto e punível artigo 176º, nº 5 do mesmo diploma legal.
Vem ainda o Arguido acusado da prática de dois crimes de Pornografia de Menores, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176°, nº 1, alíneas c) e d) e nº 4 do Código Penal.
Relativamente à “Representação realista de menor” elucidam-nos José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in ob. cit., pp. 223 a 226, que a mesma «abrange a pedopornografia virutal, mas também a aparente, uma vez que a definição legal não exclui nenhuma delas, delimitando a abrangência incriminatória pela aptidão do material pornográfico retratar imagens que aparentam de forma realista serem menores de idade. Pedopornografia aparente é a “produção pornográfica com participação de adultos que pelos seus traços físicos ou caracterização aparentam ser menores”, e pedopornografia virtual são as “produções pornográficas em que os supostos menores participantes ou são uma pura criação de tecnologia gráfica (designadamente informática – imagens de geração computacional) ou o são pelo menos em parte (neste caso juntam imagens ou parte de imagens de menores – por exemplo colhidas de fotos de publicidade ou de outros suportes – com criações de técnica gráfica; o chamado morphing)”».
Porém, encontrando-se essas imagens entre as várias enviadas (por um lado) e guardadas na posse do Arguido (por outro) e partindo do entendimento, como acima assumido, de que a partilha dos referido ficheiros consubstancia um único crime de Pornografia de Menores Agravado (previsto e punido pelos artigos 176°, nº 1, alínea c) e 177º nº 7, ambos do Código Penal) e a sua posse, um único crime de Pornografia de Menores (previsto e punido pelo artigo 176º, nº 5, do Código Penal), o envio e a detenção das referidas representações realistas não se autonomizam daqueles dois tipos de crime, verificando-se a sua consunção.
Por fim, resultou que o Arguido quis receber e guardar nos referidos equipamentos informáticos os ficheiros de imagem e vídeo supra aludidos e quis ainda partilhá-los com os demais utilizadores dos grupos de WhatsApp ao qual pertencia a fim de satisfazer a sua líbido, o que conseguiu, bem sabendo que a sua detenção e a respectiva partilha era proibida.
O Arguido tinha perfeito conhecimento de que as referidas imagens e filmes de teor pornográfico com utilização de menores de 14 anos, induzem a exploração efectiva dessas crianças, utilizadas para a realização dos filmes e fotografias em causa, não obstante, não se inibiu de as exibir, partilhar, ceder, através da Internet, e de as deter no suporte informático, que se encontrava na sua posse.
O Arguido tinha ainda conhecimento de que, deste modo, ao efectuar o download e o upload/a partilha dos ficheiros que ali guardava, partilhava-os com diversas pessoas, assim conduzindo à sua difusão por um número não concretamente apurado de pessoas, o que, igualmente, quis e conseguiu, actuando de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Assim e não se verificando quaisquer causas que justifiquem a ilicitude do facto ou excluam a culpa do agente, importa concluir que o Arguido cometeu um crime de Pornografia de Menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal e um crime de Pornografia de Menores, previsto e punido pelo artigo 176º, nº 5, do mesmo diploma legal, pelos quais irá condenado, absolvendo-se do demais.
E. Da Medida da Pena
Aos crimes pelos quais o Arguido vai condenado, cabem as seguintes molduras penais:
- ao crime de Pornografia de Menores Agravado, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 7, do Código Penal: prisão de 1 anos e 6 meses até 7 anos e 6 meses; e
- ao crime de Pornografia de Menores, previsto e punido pelo artigo 176.º, n.º 5, do Código Penal: prisão até 2 anos.
Atendendo a que aos crimes em causa cabem apenas penas de prisão, não há que proceder à escolha da pena, nos termos do disposto no artigo 70º, nº 1, do Código Penal, passando-se, de imediato, à determinação da medida concreta daquela pena.
Cumpre apreciar, no entanto, se o Arguido deverá ser condenado como reincidente conforme indicado no ponto 27. do despacho acusatório.
Nos termos do artigo 75º, nº 1, do Código Penal é punido como reincidente quem cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. No entanto, o nº 2, do artigo 75º, prevê que o crime anterior não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo deve ser descontado o tempo durante o qual o arguido esteve preso ou sujeito a medida privativa da liberdade.
A este respeito, explica-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01.04.2008, disponível na Internet, in www.dgsi.pt o seguinte
“Como é jurisprudência dominante, a circunstância qualificativa da reincidência não opera como mero efeito automático das anteriores condenações, não sendo suficiente erigir a história delitual do arguido em pressuposto automático da agravação - acs STJ de 20-09-1995, processo nº 48167, de 12-03-1998, BMJ 474,492, de 15-12-1998, CJSTJ1998, T3, 241, de 27-09-2000, BMJ 499,132, de 15-03-2006, processo nº 119/06-3ª, de 12-07-2006, processo nº 1933/06-3ª, de 24-01-2007, processo nº 4455/06-3ª.
De acordo com o artigo 75.º do Código Penal, actualmente com a redacção conferida pela 3.ª alteração do C. Penal pelo D.L. 48/95, de 15/03, que se manteve inalterado com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, são pressupostos formais da agravante:
- A prática, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, de crime doloso;
- Punição com pena de prisão efectiva superior a 6 meses;
- Condenação anterior transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso;
- Lapso de tempo não superior a 5 anos entre a prática do crime anterior e a do seguinte.
Com a versão de 1995 foi eliminada dos pressupostos da reincidência a exigência do cumprimento, total ou parcial, da prisão aplicada na sentença anterior, ou seja, para efeito da reincidência não importa que a pena não tenha sido cumprida por efeito da prescrição da mesma, de amnistia, perdão genérico ou indulto.
A partir de 1 de Outubro de 1995 basta a mera condenação.
Para além dos citados pressupostos formais, acresce um pressuposto substantivo ou material, conforme a parte final do nº 1 do citado preceito.
A punição na forma agravada só terá lugar «se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime».
Com o C. Penal de 1982 incluiu-se na reincidência a sucessão de crimes, circunstâncias qualificativas previstas nos artigos 35.º e 37.º do C. Penal de 1886, equiparando-se as duas figuras, abandonando-se a exigência da prática de crimes da mesma natureza para configuração da reincidência, cessando a distinção entre a reincidência específica, própria ou homótropa e a genérica, imprópria ou polítropa.
Como assinalava Victor Sá Pereira, ao comentar o Código Penal de 1982, Livros Horizonte, p. 126, o instituto passava a funcionar sob condição, como decorria da parte final do n.º 1.
Segundo Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 16.ª edição, p. 268/9, exige-se expressamente, para que a reincidência funcione, a verificação de que a condenação ou condenações anteriores não constituíram suficiente advertência contra o crime, tratando-se manifestamente de uma prevenção especial. Faz-se assim a exigência da concreta verificação do funcionamento desta qualificativa, o que implica indagação da correspondente matéria de facto.
Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, II, Verbo, 1989, p. 151/2, refere que a fundamentação da agravação está na falta de eficácia da pena aplicada pelo primeiro crime e que a nova condenação é o indício relevante da falta de efectiva adesão do delinquente às injunções da lei.
Retomando esta ideia, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, III, p. 154, adianta que tal indício não vale por si só, sendo necessário que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente motivação para não praticar novos crimes.
Ainda segundo Cavaleiro Ferreira, loc. cit., a alteração da pena aplicável não é imposta por lei, mas terá lugar se as circunstâncias do caso concreto revelarem, na apreciação do tribunal, que a condenação anterior não constituiu suficiente prevenção contra o crime. Acrescenta que a reincidência denuncia a insuficiência da prevenção contra o crime da condenação anterior.
Como expendia Eduardo Correia, Direito Criminal, II, pág. 162, para além ou em vez da propensão criminosa, a que a declaração de habitualidade também atende, há sempre, assim, que considerar o desrespeito pela advertência contida na condenação.
Diz Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 268 : «É no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e portanto para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. É nele, por conseguinte, que reside o lídimo pressuposto material - no sentido de “substancial”, mas também no sentido de pressuposto de funcionamento “não automático” - da reincidência».
Como se refere no ac. STJ, de 24-05-1995, processo 47732-3.ª Secção, in Leal-Henriques - Simas Santos, Código Penal, 1º vol., p. 607: «1. O elemento fundamental do instituto da reincidência é o desrespeito, por parte do delinquente, da solene advertência contida na sentença anterior; 2. Por isso é exigido, para que seja dada por existente, a verificação concreta, com respeito pelo princípio do contraditório, de que a condenação ou condenações anteriores não constituíram suficiente prevenção contra o crime».
Como tem sido entendido, é de rejeitar uma concepção puramente fáctica da reincidência, que a faça resultar imediatamente da verificação de certos pressupostos formais, sendo necessária uma específica comprovação factual e uma avaliação judicial concreta e de exigir ponderação em concreto sobre a verificação ou não verificação do referido pressuposto material, exactamente o de funcionamento não automático, com vista à demonstração de que as condenações anteriores não tiveram a suficiente força de dissuasão para afastar o arguido do crime.
Como se referia no acórdão do STJ de 04-10-1989, CJ1989, T4, p.11: «Para verificação da reincidência é essencial a existência de averiguação, em matéria de facto, com respeito pelo contraditório, que demonstre que as condenações anteriores não constituíram suficiente prevenção para não continuar a delinquir», havendo, por outro lado, que estabelecer uma relação entre a falta do efeito da condenação anterior e a prática do novo crime. Vejam-se ainda os acórdãos do STJ, de 10-10-1990, proc.41213, de 19-12-1990, proc. 41235-3ª- AJ 13/14, de 09-07-1992, proc. 42872, de 15-09-1994, proc. 46835-3ª, de 29-03-1995, proc. 47813-3ª, de 03-07-1997, CJSTJ1997, T2, 258, de 04-03-04, proc. 456/04-5ª, de 12-01-2006, proc. 4133/05-5ª, de15-03-06, proc. 119/06-3ª, de 23-03-06, proc. 779/06-5ª, de 25-05-06, proc. 1616/06-5ª, de 22-06-06, proc. 1790/06-5ª, de 12-07-06, proc. 1933/06-3ª, de 22-11-06, proc. 3182/06-3ª, de 09-05-2007, proc. 1139/07-3ª.
Assim, a natureza «material» e «não fáctica» deste pressuposto significa, por um lado, que integra inequivocamente questão de direito e, por outro, que a respectiva verificação carece da apreciação e prova de factos concretos e específicos de cada situação, necessariamente inscritos em impulso acusatório prévio.
Daí a necessidade de uma específica comprovação factual, de enunciar os factos concretos dos quais se possa retirar a ilação de que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime, veiculada pela anterior condenação, e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor.
A agravação da pena assenta, essencialmente, numa maior disposição para o crime, num maior grau de culpa, decorrente da circunstância de, apesar de ter sido condenado em prisão efectiva, insistir em delinquir, donde resulta um maior grau de censura, por aquela não ter constituído suficiente advertência, não se ter revelado eficaz na prevenção da reincidência.
Para Sá Pereira, loc. cit., a averiguação do efeito da condenação ou condenações anteriores tem a ver com a problemática da capacidade do agente para ser influenciado pelas penas - cf. art. 20.º n.º3 do C. Penal. Só através da análise do caso concreto, do seu específico enquadramento, de uma avaliação judicial concreta das circunstâncias, poder-se-á concluir estarmos perante um caso de culpa agravada, devendo o arguido ser censurado por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, ou antes inexistindo fundamento para a agravação da pena, por se estar face a simples pluriocasionalidade.
No condicionalismo da parte final do n.º 1 do art. 75.º encontra-se espelhada a essência da reincidência, sendo exactamente face à necessária análise casuística, que se distinguirá o reincidente do multi-ocasional.
A pluriocasionalidade verifica-se quando a reiteração na prática do crime seja devida a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, que não se radicam na personalidade do agente, na sua culpa, em que não se está perante a formação paulatina do hábito enraizado na personalidade, tratando-se antes de repetição, de renovação da actividade criminosa, meramente ocasional, acidental, esporádica, em que as circunstâncias do novo crime não são susceptíveis de revelar maior culpabilidade, em que desaparece a indiciação de especial perigosidade, normalmente resultante da reiteração dum crime.
A pluriocasionalidade fica atestada, certificada, face à mera constatação da «sucessão» de crimes.
Com tanto não se basta a reincidência, cuja certificação está dependente de apreciação e decisão judicial.
Na sentença recorrida, na fundamentação de facto, sobre o que constava da acusação nada se referiu e não existe a mínima referência factual, que substancie o elemento material da reincidência, quedando-se os factos provados por conterem apenas referências à condenação anterior e a conclusão de que a advertência contida na decisão condenatória não foi suficiente para afastar o arguido da prática de novos crimes. Com efeito, constitui uma conclusão de direito saber se a condenação ou condenações anteriores não constituíram suficiente prevenção para o crime. Tal conclusão tem de ser tirada ou extraída através de factos concretos, aduzidos especialmente para o efeito, factos esses que têm de constar da acusação, como já se referiu para que o tribunal também faça incidir sobre eles a sua investigação e decisão.
É que, como se explica no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 3/7/97, in CJ/STJ, V, 2.º, 258, “... a situação criminosa pode ter diversa etiologia e, para o efeito da reincidência, apenas releva a que esteja ligada a um defeito da personalidade que leve o agente a ser indiferente à solene advertência contida na anterior condenação em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por crime doloso”.
É nessa mesma linha que, ainda o STJ, no seu Acórdão de 15/12/98, CJ/STJ, VI, 3º, 241, considera que, “preenchidos os restantes requisitos ou pressupostos da reincidência, cabe ao juiz determinar se, perante as circunstâncias do caso, a ou as condenações anteriores não constituíram advertência contra o crime. E, assim, se o agente deve ser censurado pela circunstância de a ou as condenações anteriores não terem constituído advertência suficiente contra o crime ou se, antes, o segundo crime pode não indiciar desrespeito por essa ou essas condenações, ficando porventura a dever-se a circunstâncias meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas”. Daí que se imponha indagar a matéria de facto adequada a demonstrar se essas condenações não constituíram suficiente prevenção contra o crime.
É, afinal, o entendimento que se expressa ainda noutra decisão do mesmo Tribunal - Ac. de 9/12/98, BMJ, 482, pag.77 -, em cujo sumário, em consonância, aliás, com o respectivo texto, se diz que “não se conhecendo os motivos e fins pelos quais os arguidos se determinaram, uma vez mais, à prática do tráfico, não existe matéria de facto bastante para se mostrar integrada a agravante da reincidência”.
E esse é, aliás, o alcance que a Comissão Revisora do Código Penal de 1982 atribuiu ao conceito de reincidência, como se vê da acta da 27.ª sessão (Actas, Parte Geral, II Vol., 147), onde o Autor do Projecto ponderou que “a manutenção do instituto da reincidência em face dos da habitualidade criminosa e análogos só pode justificar-se pelo entendimento de que na reincidência há uma mais grave culpa do delinquente referida ao facto que praticou, que não à sua personalidade. Ora esta maior culpa só pode advir de a anterior condenação lhe não ter servido de prevenção contra o crime, para que assim, como ensinava o Prof. Beleza dos Santos, se distinga correctamente o verdadeiro reincidente do pluriocasional. Quando, pois, a reiteração fique a dever-se a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas não deve ter lugar a agravação - aliás grave - que o preceito prevê.
Por tudo isto há que não descurar, mas até reforçar, os pressupostos apertados de que deve fazer-se depender a agravação:.. daí também a exigência de que se prove - segundo as regras gerais do processo - que elas (as condenações anteriores) lhe não serviram de prevenção contra o crime”.
No caso em apreço, temos, desde logo, que, por sentença proferida em 16.02.2018 e transitada em julgado em 19.03.2018, no âmbito do processo n.º 663/15.2TELSB, o Arguido foi condenado pela prática de um crime de Pornografia de Menores, previsto e punível pelo artigo 176º, nº 5 do Código Penal e de um crime de Pornografia de Menores Agravada, previsto e punido no artigo 176.º, n.º 1, alínea c) e 177.º, n.º 7 do Código Penal, na pena única de dois anos de prisão, suspensa na sua execução, pelo mesmo período, acompanhado de regime de prova, por factos praticados ente 21.05.2015 e 02.11.2016.
Ora, não tendo sido aplicada anteriormente pena de prisão efectiva não se mostram preenchidos os requisitos impostos pelo mencionado artigo 75º do Código Penal, não havendo que condenar o Arguido como reincidente.
*
Dispõe o artigo 71º que "a determinação da medida da pena dentro dos limites definidos na lei, far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes".
Segundo o modelo consagrado no artigo 40º do Código Penal, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada por considerações de prevenção geral positiva, isto é, prevenção enquanto necessidade de tutela dos bens jurídicos que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida. Através do requisito da culpa, dá-se tradução à exigência de que aquela constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (limite máximo). Por último, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável - podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo elas que vão determinar, em último termo, a medida da pena. (Cfr. Prof. Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e Anabela Rodrigues, in A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, p. 478 e ss. e, ainda, a título meramente exemplificativo, o acórdão do S.T.J., de 10.04..96, CJSTJ, ano IV, t. 2, p. 168).
Tendo presente o modelo adoptado, importa de seguida eleger, no caso concreto, os critérios de aquisição e de valoração dos factores da medida da pena referidos nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 71º do Código Penal.
Assim, será de considerar o seguinte:
É consabido que a natureza dos crimes praticados pelo Arguido, o bem jurídico violado nos crimes em questão (a autodeterminação sexual de crianças) e a frequência com que nos deparamos com este tipo condutas, bem como o conhecido alarme social e repúdio estes crimes em geral causam na comunidade e os valores culturais que ofende gravemente, tornam especialmente elevadas as necessidades de prevenção geral, exigindo uma resposta punitiva firme.
Há ainda a considerar o elevado grau de ilicitude dos factos e a culpa, atendendo ao seu modo de execução, ao lapso de tempo em que os mesmos ocorreram, o elevado número de ficheiros de imagem e vídeo de conteúdo sexual explícito de ficheiros que o Arguido tinha na sua posse (279) e, por outro lado, a divulgação nos grupos de WhatsApp ao qual pertencia, difundindo as imagens e vídeos (num total de 824) por um número indiferenciado de pessoas.
Acresce que o Arguido agiu sempre com dolo directo.
Por outro lado, o Arguido conta com anteriores condenações, entre as quais, pela prática de crimes de Pornografia de Menores Agravada e de Pornografia de Menores, tendo-lhe sido, inclusivamente, aplicada uma pena de prisão, suspensa na sua execução, com Regime de Prova, vindo a praticar os factos pelos quais vai ora condenado no período dessa suspensão.
É, pois, evidente, o desprezo a que o Arguido votou a intervenção judicial, reflectindo as fortes exigências de prevenção especial que se fazem sentir no caso em apreço.
Com efeito e não obstante a inserção familiar e laboral de que gozava, o Arguido não se coibiu de voltar a praticar, de forma intensa, os factos pelos quais vais condenado nos presentes autos.
Deste modo e ponderando todas as considerações numa visão de conjunto, julga-se adequado aplicar ao Arguido as seguintes penas:
- 6 (seis) anos de prisão pela prática do crime de Pornografia de Menores Agravado, previsto e punível pelos artigos 176º, nº 1,al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal; e
- 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão pela prática do crime de Pornografia de Menores, previsto e punido pelo artigo 176º, nº 5, do Código Penal.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, as questões a apreciar são o erro notório na apreciação da prova, a contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, e a determinação da pena. Nesta, assume especial relevância o problema da unidade ou pluralidade da infracção.
Na verdade, não deixando de aflorar também a matéria de facto, o recorrente impugna o acórdão sobretudo em matéria de direito. Cumprindo de tudo conhecer, justifica-se um maior desenvolvimento no tratamento da matéria que o arguido elegeu como nuclear, no seu recurso.
Concretizando, em matéria de facto, o recorrente circunscreveu-se à invocação dos dois vícios de decisão referidos nas alíneas b) e c), do art. 410.º, n.º 2, do CPP, e um deles até impropriamente. Em matéria de direito, e também por via da arguição do vício previsto na referida al. b), invocou o erro de subsunção no referente à pluralidade de crimes da condenação, e discute a severidade da pena e a não suspensão da prisão.

(a) Da impugnação em matéria de facto: do erro notório na apreciação da prova, da contradição insanável e da correcção de lapso de escrita
O arguido começa por invocar o vício da contradição insanável que, na sua alegação, se situa a páginas 33 e 53 do acórdão, e consiste em se poder ler na fundamentação do acórdão que o arguido “enviou 824 ficheiros”, quando da análise dos factos provados da própria decisão (pontos 3. e 14. a 21.) antes resulta que enviou apenas 545 ficheiros. E invoca o erro notório na apreciação da prova argumentando que, quanto aos factos provados 14. e 20., inexiste prova de que estes ficheiros tenham sido efectivamente enviados. Conclui, por tudo, ter resultado demonstrada a difusão pelo arguido de apenas 388 ficheiros, tendo, os restantes sido apenas descarregados evvisionados por si.
Começando pela invocação deste segundo vício, do erro notório na apreciação da prova (relativamente à prova da difusão de 148 dos 545 ficheiros enviados) constata-se logo do recurso que o arguido se limita a invocar o vício e a afirmá-lo, sem proceder a nenhuma (ulterior e pertinente) melhor concretização (do erro notório). E procedendo a Relação à leitura do “acórdão de facto” – consistente nos factos provados e na sua explicação de acordo com as provas examinadas em audiência – constata-se que este ponto de facto impugnado se encontra ali devidamente explicado de acordo com as provas que terão sido produzidas e que o acórdão adequadamente individualiza (e que o recorrente, por opção sua, se absteve de especificar no recurso, por via de uma impugnação ampla da matéria de facto, a que não procedeu).
Como o Ministério Público contrapôs na resposta, sempre em sintonia com o que resulta do acórdão, “tendo em atenção os factos 6., 7., 8. e 10. que foram dados como provados, a prova pericial (exame ao computador e telemóvel) e bem assim as declarações do perito feitas em audiência de discussão e julgamento deram-se provados os factos 14. e 20.”. E como igualmente refere, “do texto da sentença (por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum) não resulta que se apreciou de forma visivelmente descabida a prova, isto é, que os factos que vêm dados como tendo acontecido não podiam ter acontecido (ou não podiam ter acontecido do modo como a sentença diz que aconteceram). Pelo contrário, o que resulta do texto da mesma é que o tribunal a quo não teve dúvidas sobre a realidade dos factos que indica como provados, tanto que assim os indica como tal.”
Em suma, do cotejo do recurso com o texto do acórdão resulta que, por um lado, o recorrente limita-se a afirmar um erro notório na apreciação da prova, que não concretiza, designadamente com base em provas, que não especifica; e, pelo outro, encontrando-se suficientemente motivado de facto o acórdão, mormente na parte impugnada, nada mais resta do que confirmá-lo. Pois foi opção do arguido invocar apenas um erro de decisão, o qual, como tal, tem de resultar de fragilidades do próprio texto desta, tendo-se abstido de usar da via de impugnação mais ampla (da matéria de facto), que a lei lhe viabilizava e que se encontra prevista no art. 412.º, n.º 3, do CPP. Abstendo-se de proceder a especificação de provas que possibilitariam um conhecimento mais alargado, os poderes de cognição da Relação em matéria de facto esgotam-se aqui, sendo de confirmar o “acórdão de facto”.
Refira-se, no entanto, que o acórdão contém a outro propósito um lapso de escrita, a que o recorrente chamou inadequadamente vício de “contradição insavável”, e que, como mero lapso de escrita, cumpre corrigir. Não se trata assim de um vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP, mas de um lapso de escrita a cuja correcção se procede, ainda na concordância da resposta ao recurso.
O Ministério Público pertinentemente respondeu, sempre em conformidade com o que se pode ler no acórdão: “Como o tribunal a quo deu como provado, o arguido partilhou e guardou na sua posse uma multiplicidade de ficheiros de imagem e de vídeo onde são visualizadas crianças menores de 14 anos não identificadas, desnudadas, em poses sexuais, exibindo os órgãos genitais, as nádegas, em práticas sexuais de masturbação, sexo oral, sexo anal, introdução vaginal de partes do corpo, sozinhas e acompanhadas, daí ter praticado, em concurso efectivo, um crime de Pornografia de Menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176.º, n.º 1, al. c) e artigo 177.º, n.º 7, do Código Penal, bem como um crime de Pornografia de Menores, previsto e punível artigo 176.º, n.º 5, do mesmo diploma legal.
Nos factos 11., 13., 23. e 24. dos factos dados como provados, contam-se 279 ficheiros de vídeos, fotografias, imagens que o arguido guardava nos seus equipamentos informáticos.
Por sua vez, nos factos 14., 15., 17., 18., 19. 20. e 21 dos factos dados como provados, contam-se 556 imagens, vídeos, fotografias que o arguido, na sua larga maioria, enviou (mas também recebeu) a utilizadores não identificados através da aplicação “WhatsApp”.
Tudo somado, dá um total de 835 ficheiros (enviados e guardados no equipamento informático).
Todavia, não existe oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão recorrida, existindo apenas um mero lapso na indicação total do número difundido de imagens e vídeos, que são 556 e não 824, como consta no acórdão (a fls. 33 e 53/548 e 568). Com efeito, o que temos na indicação do número total de ficheiros enviados (indicados a fls. 33/53 ou 548/568 do acórdão) é um mero lapso, pois a indicação do número total de ficheiros guardados (indicados a fls. 34 ou 549 do acórdão) está correcto – 279.”
Pelo exposto, improcede a impugnação do acórdão em matéria de facto, por inexistência dos invocados vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, procedendo-se apenas à correcção do lapso de escrita referido, sendo factualmente claro na decisão que número de imagens e vídeos difundido pelo arguido totaliza 556, como ali foi factualmente explicado e considerado, embora nem sempre correctamente escrito.

(b) Da impugnação em matéria de direito: da contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, e da unidade de crime
O recorrente invoca o vício, mas agora insurgindo-se contra a decisão em matéria de direito. Por esta via, está no fundo a invocar um “erro de subsunção” no que respeita à decisão sobre o número de crimes efectivamente cometidos. Considera o recorrente dever ser condenado por um único crime - pelo crime de pornografia de menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal -, e não por este em concurso efectivo com um outro crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176º, nº 5, do Código Penal.
Argumenta do modo seguinte: “Há contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2, al. b) CPP), ao aplicar (e muito bem – diga-se) a posição doutrinária e jurisprudencial de que o número de materiais pornográficos não poderá servir para a individualização de crimes consumados, decidindo que o arguido praticou um crime único, contraditando-se a decisão de condenar o arguido pela prática de 2 (dois) crimes únicos, o p. e p. pelos art. 176.º, nº1, al. c) e 177º, nº7 do CP e o p. e p. pelo art. 176º, nº 5, quando ao último deveria verificar-se a consunção no primeiro, pois o arguido agiu numa única e mesma motivação criminosa, o bem jurídico tutelado é o mesmo e é única a ação criminosa (guarda de ficheiros de pornografia de menores num único equipamento informático); Face ao exposto, não se autonomizando o crime do nº 5 do art. 176.º, do crime da al. c) do nº 1 do mesmo artigo do Código Penal, deveria o arguido ser absolvido desse crime, já que o Tribunal a quo considerou igualmente verificada a consunção nos dois crimes de Pornografia de Menores, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176º, nº 1, alíneas c) e d) e nº 4 do Código Penal, relativamente à posse de “Representação realista de menor”» de que o arguido vinha acusado.”
Na resposta, o Ministério Público pronunciou-se pela confirmação da decisão sobre o número de crimes, pelos fundamentos que constam do acórdão. E esses fundamentos foram os que seguem.
Após citar jurisprudência e doutrina várias, o colectivo de juízes justificou a decisão sobre o concurso de crimes do modo seguinte:
“(…) as incriminações de pornografia infantil em questão são uma forma de tutela indireta da liberdade e auto-determinação sexual, pelo que o número de materiais pornográficos em causa não poderá servir para a individualização de crimes consumados.
Dos autos, não resulta especificamente momentos temporais e/ou formas de execução dos crimes distintos, nem o número de vezes em que o Arguido praticou as condutas delituosas por forma a podermos concluir, com acerto, pelas vezes em que se verificou a renovação dos mecanismos da sua vontade para praticar os crimes de Pornografia de Menores previsto e punível pelo artigo 176º, nº 1, al. c), do Código Penal e de Pornografia de Menores previsto e punível pelo artigo 176º, nº 5, do mesmo diploma.
Não se mostra, pois, possível, concluir pela pluralidade dos crimes apenas com base no número das imagens e dos vídeos.
Por outro lado, inexistindo qualquer circunstância externa que possa ter “arrastado” o Arguido à repetição reiterada do cometimento dos factos ilícitos em causa por forma a se poder afirmar que lhe era menos exigível que se comportasse de acordo com o direito, não podemos concluir que se encontra consideravelmente diminuída a sua culpa, ficando afastada a punibilidade da sua conduta através do crime continuado.
Assim e não obstante o Arguido ter enviado (por um lado) e ter guardado (por outro) uma multiplicidade de ficheiros de imagem e de vídeo onde são visualizadas crianças menores de 14 anos não identificadas, desnudadas, em poses sexuais, exibindo os órgãos genitais, as nádegas, em práticas sexuais de masturbação, sexo oral, sexo anal, introdução vaginal de partes do corpo, sozinhas e acompanhadas, entende-se que praticou um único crime de Pornografia de Menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal, bem como um crime de Pornografia de Menores previsto e punível artigo 176º, nº 5 do mesmo diploma legal.
Vem ainda o Arguido acusado da prática de dois crimes de Pornografia de Menores, previstos e punidos pelas disposições conjugadas dos artigos 176°, nº 1, alíneas c) e d) e nº 4 do Código Penal.
Relativamente à “Representação realista de menor” elucidam-nos José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro, in ob. cit., pp. 223 a 226, que a mesma «abrange a pedopornografia virutal, mas também a aparente, uma vez que a definição legal não exclui nenhuma delas, delimitando a abrangência incriminatória pela aptidão do material pornográfico retratar imagens que aparentam de forma realista serem menores de idade. Pedopornografia aparente é a “produção pornográfica com participação de adultos que pelos seus traços físicos ou caracterização aparentam ser menores”, e pedopornografia virtual são as “produções pornográficas em que os supostos menores participantes ou são uma pura criação de tecnologia gráfica (designadamente informática – imagens de geração computacional) ou o são pelo menos em parte (neste caso juntam imagens ou parte de imagens de menores – por exemplo colhidas de fotos de publicidade ou de outros suportes – com criações de técnica gráfica; o chamado morphing)”».
Porém, encontrando-se essas imagens entre as várias enviadas (por um lado) e guardadas na posse do Arguido (por outro) e partindo do entendimento, como acima assumido, de que a partilha dos referido ficheiros consubstancia um único crime de Pornografia de Menores Agravado (previsto e punido pelos artigos 176°, nº 1, alínea c) e 177º nº 7, ambos do Código Penal) e a sua posse, um único crime de Pornografia de Menores (previsto e punido pelo artigo 176º, nº 5, do Código Penal), o envio e a detenção das referidas representações realistas não se autonomizam daqueles dois tipos de crime, verificando-se a sua consunção.
Por fim, resultou que o Arguido quis receber e guardar nos referidos equipamentos informáticos os ficheiros de imagem e vídeo supra aludidos e quis ainda partilhá-los com os demais utilizadores dos grupos de WhatsApp ao qual pertencia a fim de satisfazer a sua líbido, o que conseguiu, bem sabendo que a sua detenção e a respectiva partilha era proibida.
O Arguido tinha perfeito conhecimento de que as referidas imagens e filmes de teor pornográfico com utilização de menores de 14 anos, induzem a exploração efectiva dessas crianças, utilizadas para a realização dos filmes e fotografias em causa, não obstante, não se inibiu de as exibir, partilhar, ceder, através da Internet, e de as deter no suporte informático, que se encontrava na sua posse.
O Arguido tinha ainda conhecimento de que, deste modo, ao efectuar o download e o upload/a partilha dos ficheiros que ali guardava, partilhava-os com diversas pessoas, assim conduzindo à sua difusão por um número não concretamente apurado de pessoas, o que, igualmente, quis e conseguiu, actuando de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Assim e não se verificando quaisquer causas que justifiquem a ilicitude do facto ou excluam a culpa do agente, importa concluir que o Arguido cometeu um crime de Pornografia de Menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal e um crime de Pornografia de Menores, previsto e punido pelo artigo 176º, nº 5, do mesmo diploma legal, pelos quais irá condenado, absolvendo-se do demais.
De acordo com a opção do recorrente, o objecto do recurso encontra-se aqui delimitado à questão da unidade e pluralidade de infracção, mas na vertente circunscrita à temática do concurso heterogéneo entre os dois crimes de pornografia de menores, pelos quais o arguido foi condenado.
Neste ponto, o tribunal considerou que os factos provados consubstanciam a prática dos dois referidos crimes em concurso efectivo. O recorrente defende que deve ser punido por apenas um crime, ou seja, apenas à luz do tipo de crime mais grave, que consome o menos grave, e fundamentalmente por considerar que as mesmas razões que justificaram a unidade de infracção quanto ao concurso homogéneo valem também aqui (sob pena de o acórdão enfermar de uma contradição nos seus próprios fundamentos). E tem em parte razão.
Da fundamentação do acórdão, e quanto a este preciso ponto impugnado, pouco ou nada se retira se retira sobre as razões que levaram o tribunal a punir aqui o arguido por dois crimes em concurso efectivo heterogéneo.
Na verdade, no que respeita ao problema do concurso homogéneo, o tribunal discorreu longamente, citando jurisprudência e doutrina de apoio, pronunciando-se a final pela unificação jurídica dos actos plúrimos praticados pelo arguido. Esta matéria (do concurso homogéneo) e a decisão sobre a unificação das várias acções num crime único nem é directamente objecto de recurso. E não só não é objecto directo do recurso, como se apresenta correctamente decidida. Ou seja, independentemente de uma maior ou menor adesão aos fundamentos que o acórdão vai enunciando, a conduta deve ser efectivamente unificada num crime único, como nesta parte o foi. E a justificação desta asserção (de confirmação do decidido nesta parte) acaba de resultar também das considerações que se farão a propósito do “aparente” concurso heterogéneo.
Já no que respeita ao concurso heterogéneo, e à justificação da decisão tomada sobre o concurso efectivo de crimes (que vingou na decisão), apenas se pode ler no acórdão o seguinte: “Assim e não obstante o Arguido ter enviado (por um lado) e ter guardado (por outro) uma multiplicidade de ficheiros de imagem e de vídeo onde são visualizadas crianças menores de 14 anos não identificadas, desnudadas, em poses sexuais, exibindo os órgãos genitais, as nádegas, em práticas sexuais de masturbação, sexo oral, sexo anal, introdução vaginal de partes do corpo, sozinhas e acompanhadas, entende-se que praticou um único crime de Pornografia de Menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal, bem como um crime de Pornografia de Menores previsto e punível artigo 176º, nº 5 do mesmo diploma legal.
Como se vê, o tribunal de julgamento retirou uma conclusão que não se mostra justificada. As razões porque entendeu assim – que o arguido “praticou um único crime de Pornografia de Menores, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 176º, nº 1, al. c) e artigo 177º, nº 7 do Código Penal, bem como um crime de Pornografia de Menores previsto e punível artigo 176º, nº 5 do mesmo diploma legal” - ficaram por explicar.
A ausência de justificação conflui com o desacerto da decisão. Desde logo, a solução encontrada no acórdão permitiria chegar ao resultado absurdo seguinte: caso o arguido tivesse chegado a enviar todos as imagens e ficheiros que visualizou e descarregou (835) – ou seja, caso tivesse praticado um facto global mais grave do que o realmente praticado - seria punido, segundo a construção do acórdão, apenas à luz de uma das normas incriminadoras – o tipo mais grave. Seria assim, nesse hipotético caso (mais grave) punido como autor de um único crime.
Mas como o arguido só enviou uma parte daqueles ficheiros (556), limitando-se a deter consigo os restantes (279) – praticando efectivamente um facto global menos grave do que o hipotético -, passou a ser punido por dois crimes em concurso efectivo.
Esta solução não pode vingar.
O comportamento do arguido realiza o tipo de crime de pornografia de menores. E é susceptível de ser enquadrado à luz do n.º 1 e à luz do n.º 5 do art. 176.º do CP, atendendo a que o arguido praticou actos da natureza dos previstos nestes dois números da norma incriminadora. As duas formas de actuação apuradas estão previstas no mesmo tipo de crime, mas são puníveis com diferentes penas abstractas e em diferentes números. Mas daqui não resulta, só por si, que se configure necessariamente uma situação de concurso efectivo de crimes.
A problemática da unidade ou pluralidade da infracção colocava-se de novo aqui, cumprindo salvaguardar o conhecimento esgotante da responsabilidade criminal do arguido sempre sem violação do ne bis in idem.
Na vertente do concurso homogéneo, o tribunal centrou a sua justificação para a decisão tomada sobre a unidade de infracção no excerto seguinte: “as incriminações de pornografia infantil em questão são uma forma de tutela indireta da liberdade e auto-determinação sexual, pelo que o número de materiais pornográficos em causa não poderá servir para a individualização de crimes consumados.
Dos autos, não resulta especificamente momentos temporais e/ou formas de execução dos crimes distintos, nem o número de vezes em que o Arguido praticou as condutas delituosas por forma a podermos concluir, com acerto, pelas vezes em que se verificou a renovação dos mecanismos da sua vontade para praticar os crimes de Pornografia de Menores previsto e punível pelo artigo 176º, nº 1, al. c), do Código Penal e de Pornografia de Menores previsto e punível pelo artigo 176º, nº 5, do mesmo diploma.
Não se mostra, pois, possível, concluir pela pluralidade dos crimes apenas com base no número das imagens e dos vídeos.”
Do exposto resulta que o tribunal terá acolhido aqui, essencialmente, a conhecida doutrina de Eduardo Correia (Correia, Eduardo, “Unidade e Pluralidade de Infracções”, in Coreia, Eduardo, A Teoria do Concurso em Direito Criminal (reimpr.), Coimbra: Almedina, 1963 (pp. 7-291)),
Para Eduardo Correia, o tipo legal é “o portador, o interposto da valoração jurídico-criminal”. Se a antijuridicidade de uma relação social começa por se exprimir pela possibilidade da sua subsunção a um ou vários tipos de crime, então essa possibilidade é a primeira chave para determinar a unidade ou pluralidade de crimes em que tal relação se sintetiza e desdobra.
Mas as normas penais não são apenas normas de valoração objectiva. São também normas de determinação, na medida em que intervêm (querem intervir) decisivamente no processo de motivação do indivíduo. Pelo que é na concreta violação desta norma de determinação que assenta o juízo de censura em que se estrutura a culpa .
Fácil se torna concluir que a uma reiterada ineficácia da mesma norma de determinação corresponderão plúrimos juízos concretos de reprovação. E o critério para averiguar a existência dessa reiteração é o da pluralidade de resoluções – determinações da vontade – pelas quais o agente actuou: se foram tomadas duas ou mais resoluções no desenrolar da actividade criminosa, então duas ou mais vezes falhou a eficácia determinadora da norma. E por cada vez que tal sucedeu há um fundamento para o juízo de censura em que se estrutura a culpa (loc. cit. pp. 86 a 95).
Mas o critério da unidade ou pluralidade de intenção criminosa, sendo importante, pode não ser, em concreto, nem único nem decisivo, podendo haver outros elementos de ponderação importantes a considerar, e que confluam na evidenciação de uma unidade de sentido da ilicitude, ou não.
Daí que Figueiredo Dias, não rejeitando a doutrina de Eduardo Correia, a tenha procurado desenvolver. Considera Figueiredo Dias (Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Penal: Parte Geral I. Questões Fundamentais: a Doutrina Geral do Crime, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007 (1ª ed., 2004), pp. 977 e ss.) que, sendo o crime o facto punível, ele traduz-se numa violação de bens jurídico-penais que preenche um determinado tipo legal.
O núcleo dessa violação não é o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico: o que está em causa é determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz – e é essa determinação que decide da unidade ou pluralidade de crimes.
Podem ocorrer situações em que vários tipos penais são concretamente convocáveis, ou em que o mesmo tipo é várias vezes preenchido pelo comportamento do agente. E nas situações deste tipo, podem distinguir-se os casos em que a essa pluralidade corresponde uma outra pluralidade de sentidos sociais de ilicitude típica (concurso efectivo ou próprio) daqueles em que, apesar de serem vários os tipos preenchidos, se retira do comportamento global do agente um sentido de ilicitude dominante ou um único sentido de ilicitude (concurso aparente ou impróprio).
Mas antes disso, e sempre segundo Figueiredo Dias, prévia à decisão sobre o concurso (aparente ou efectivo) é a decisão sobre a unidade de norma ou de lei. E se a um comportamento em abstracto são aplicáveis várias normas, cumpre primeiro observar se essas normas abstractamente aplicáveis se encontram numa relação logico-jurídica tal que, na verdade, apenas uma é aplicável (norma prevalecente), excluindo a outra (norma preterida), pois aquela já avalia esgotantemente o conteúdo do ilícito e da culpa do comportamento global. As formas de unidade de norma são a especialidade, a subsidiariedade e a consumpção, e a norma prevalecente é sempre a única aplicada.
Figueiredo Dias chama a atenção para a essencialidade do papel do julgador, na “apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto”, não podendo o juiz bastar-se com um mero trabalho sobre normas. Na prossecução da sua tarefa, o juiz deve recorrer a critérios orientadores, como o da unidade do desígnio criminoso do agente, o da unidade de sentido do comportamento ilícito global, o dos diferentes estádios de realização da actuação global, e serão as particularidades do caso concreto que decidirão da premência de uns em detrimento de outros.
Olhando agora o tipo de crime em análise, e centrando-nos apenas na(s) vertente(s) aqui em apreciação - obtenção, posse e divulgação desses materiais, por via informática - raramente o agente-tipo do n.º 1 al. c) e do n.º 5 do art. 176.º do CP pratica um só acto isolado. E assim a escala a que esta actividade delituosa é comummente desenvolvida, alimentando verdadeiros circuitos de pedofilia, não pode ter deixado se ser considerada pelo legislador, aquando da tipificação da pornografia de menores, mormente nos números e alínea aqui em causa.
Sabemos (e ensina-o designadamente Castanheira Neves) que a norma prevê sempre um critério de decisão para um certo tipo de problema pensado em abstracto. E que esta solução-critério pensada em abstracto tem de ser previamente compreendida para se poder utilizar como critério de decisão do caso concreto. E na lógica da previsão do crime de pornografia de menores na vertente agora em apreciação (de uso e divulgação de materiais pornográficos), já estará pensada uma pluralidade de ficheiros e de vítimas, no sentido de que a realidade social equacionada pelo legislador já a abrange, constituindo como que um padrão de normalidade delinquente. Esta pluralidade encontra-se já ponderada e enquadrada na norma-critério, ou seja, no tipo, o qual aliás faz referência a “materiais pornográficos” e, não, a material pornográfico.
Por outro lado, sendo o crime de pornografia de menores um crime de perigo (perigo abstracto), norteado por uma lógica de perigo, a “divulgação”, o acto de divulgar ou partilhar os ficheiros em causa (modalidade do art. 176.º, n.º 1, al. c) do CP), representa um estádio mais avançado dessa lógica de perigo. E daí que a pena prevista para esse comportamento seja superior à prevista para a mera detenção, que representa tão só um estádio menos avançado da agressão ao bem jurídico (modalidade do art. 176.º, n.º 5, do CP).
Se, num quadro de actuação como o presente que o tribunal já configurou juridicamente (e bem) como sendo de unidade de crime, o agente percorreu então diferentes estádios de agressão do bem jurídico, dentro da mesma “lógica de perigo” que a norma incriminadora consagra então ele deve ser punido (e só punido) à luz da alínea que prevê o estádio mais avançado dessa agressão.
Numa lógica de subsidiariedade que o tipo consagra (unidade de norma ou de lei), o estádio mais avançado prevalece, e o outro cede, atenta a unidade de sentido de ilicitude que se descortina. Ou seja, a norma preterida cede perante a norma prevalecente.
Assim, por um lado, inexiste em concreto uma base factual que levasse a concluir, juridicamente, por uma pluralidade de infracção, como aliás já o considerou o acórdão; por outro lado, o aparente concurso (em sentido impróprio, pois trata-se aqui, antes, de uma situação de unidade de norma) entre o n.º 1 e o n.º 5 do art. 176.º do CP deve ser então resolvido pela aplicação do número que prevê a pena mais grave.
Deve, por tudo, o arguido ser absolvido do crime de pornografia de menores do art. 176º, nº 5, do CP, revogando-se o acórdão nesta parte, em que indevidamente o condenou.

(c) Da impugnação em matéria de direito: da medida da pena.
Da procedência do recurso relativamente ao número de crimes efectivamente cometidos resulta que a pena parcelar de um ano e quatro meses de prisão deixa de existir, estando agora em apreciação apenas a pena de seis anos de prisão, correspondente ao crime do art. 176º, n.º 1, al. c), do CP, pelo qual o arguido se mantém condenado.
De notar que todos os factos provados originariamente configurados como crime autónomo do n.º 5 do mesmo art. 176.º estão agora enquadrados juridicamente, e em conjunto com os restantes que já o configuravam, no crime do n.º 1 do mesmo art. 176.º. Ou seja, a pena (então parcelar) de seis anos de prisão não os abrangia ainda, no acórdão. Mas passa agora a abrangê-los também.
Atento o sentido do recurso (interposto apenas pelo arguido), essa circunstância não o pode prejudicar, no sentido de esta pena não poder sofrer agora elevação (por o crime em causa passar a incluir mais factos delituosos do que os inicialmente valorados em primeira instância). Mas não está a Relação impedida de os ter em consideração, no sentido de que eles apontam também, reforçando até, a correcção da medida da pena fixada no acórdão. O que se adianta.
Sumariamente, defende o recorrente que esta pena é desproporcional ao grau de ilicitude dos factos, considerando a forma de atuação, modalidades de ação e o período de tempo de atividade. Mas nenhuma das razões que avança fragiliza a decisão sobre a pena fixada, ao ponto de esta se afigurar desnecessária e desproporcionada.
Desde logo, também em matéria de pena o recurso mantém o seu arquétipo de remédio jurídico. E o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, sempre reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar.
Assim, a sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se na detecção de um desrespeito aos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei, ou seja, numa incorrecção de procedimentos de aplicação, na decisão. A sindicância não abrange a determinação/fiscalização dum quantum exacto de pena que, decorrendo duma correcta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada. “Não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197)”.
Nesta margem de actuação da 2ª instância, não deixa de se consignar o total acerto do processo aplicativo da pena desenvolvido no acórdão. Tudo ali se fundamentou devidamente, revelando a selecção dos elementos factuais elegíveis, a identificação das normas legais aplicáveis, o cumprimento dos passos a seguir no iter aplicativo, a devida ponderação dos critérios legalmente atendíveis, justificando-se por tudo, de facto e de direito, a pena fixada. Tanto mais que, como se disse, correspondem-lhe agora mais factos delituosos.
No acórdão, referiu-se que “a natureza dos crimes praticados pelo Arguido, o bem jurídico violado nos crimes em questão (a autodeterminação sexual de crianças) e a frequência com que nos deparamos com este tipo condutas, bem como o conhecido alarme social e repúdio estes crimes em geral causam na comunidade e os valores culturais que ofende gravemente, tornam especialmente elevadas as necessidades de prevenção geral, exigindo uma resposta punitiva firme.
Há ainda a considerar o elevado grau de ilicitude dos factos e a culpa, atendendo ao seu modo de execução, ao lapso de tempo em que os mesmos ocorreram, o elevado número de ficheiros de imagem e vídeo de conteúdo sexual explícito de ficheiros que o Arguido tinha na sua posse (279) e, por outro lado, a divulgação nos grupos de WhatsApp ao qual pertencia, difundindo as imagens e vídeos (num total de 824) por um número indiferenciado de pessoas.
Acresce que o Arguido agiu sempre com dolo directo.
Por outro lado, o Arguido conta com anteriores condenações, entre as quais, pela prática de crimes de Pornografia de Menores Agravada e de Pornografia de Menores, tendo-lhe sido, inclusivamente, aplicada uma pena de prisão, suspensa na sua execução, com Regime de Prova, vindo a praticar os factos pelos quais vai ora condenado no período dessa suspensão.
É, pois, evidente, o desprezo a que o Arguido votou a intervenção judicial, reflectindo as fortes exigências de prevenção especial que se fazem sentir no caso em apreço.
Com efeito e não obstante a inserção familiar e laboral de que gozava, o Arguido não se coibiu de voltar a praticar, de forma intensa, os factos pelos quais vais condenado nos presentes autos.”
Em suma, é de reconhecer que, no caso presente, as exigências de prevenção geral e especial convergem em grau bastante elevado, justificando plenamente a pena aplicada, a qual se contém ainda no grau de culpa do arguido.

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando o acórdão na parte relativa à condenação pelo crime de pornografia de menores do art. 176º, nº 5, do CP, confirmando-o na parte restante, ou seja, relativamente à condenação do arguido como autor de um crime dos art.s 176º, nº 1, al. c) e 177º, nº 7 do CP, na pena de seis anos de prisão.
Sem custas
Évora, 23.06.2020 (Ana Barata Brito)
(Carlos Berguete)