Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
67/13.1TBLGS-D.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
PRIVILÉGIOS CREDITÓRIOS
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Estando em causa um imóvel, os créditos referentes a IMI (com privilégio creditório especial) devem ser graduados à frente do crédito garantido por hipoteca; e, por sua vez, o crédito hipotecário deve prevalecer sobre os créditos referentes a IRS, aos quais assiste apenas um privilégio imobiliário geral.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 67/13.1TBLGS-D.E1-2ª (2017)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)


ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

No âmbito do processo de insolvência, que corre termos na Secção de Comércio da Instância Central de Olhão da Comarca de Faro, em que foi declarado insolvente (…), foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, ao abrigo do artº 130º, nº 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3. Nessa sentença, datada de 9/12/2016 (e constante de fls. 14-19), julgaram-se verificados os créditos constantes da lista de credores reconhecidos elaborada por administrador da insolvência (AI), que foi homologada, e graduaram-se os respectivos créditos, para efeitos de prioridade de pagamento pelo produto dos bens apreendidos da massa insolvente (um bem imóvel e um bem móvel).

Da lista elaborada pelo AI, na sua versão rectificada de fls. 12-13, e do esclarecimento por este prestado quanto a alguns dos créditos reclamados, a fls. 11, resultou terem sido reclamados e reconhecidos um crédito garantido por hipoteca, em relação ao imóvel, no montante de 443.198,84 €, titulado por «(…) Banco, SA», e créditos da Fazenda Nacional, um no montante de 2.777,90 €, referente a IRS, garantido por privilégio creditório, outro no montante de 7.126,90 €, referente a IMI, também garantido por privilégio creditório, e outro ainda no montante de 1.316,73 €, de natureza comum. Os créditos reconhecidos foram graduados nos seguintes termos: quanto ao bem imóvel, graduaram-se, por esta ordem, os créditos garantidos – por hipoteca, entenda-se –, os privilegiados, os demais verificados (incluindo o remanescente dos créditos garantidos e privilegiados) e os créditos relativos a juros constituídos após a declaração de insolvência; quanto ao bem móvel, não foi estabelecida qualquer ordem de graduação.

Perante essa sentença, veio então o M.º P.º, em representação do credor «Fazenda Nacional», interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«1. No processo de insolvência foram reconhecidos à Fazenda Nacional créditos de IMI respeitante ao imóvel apreendido e [de] IRS, os quais foram classificados como privilegiados.

2. Nos termos do disposto no artº 744º nº [1] do CC, o IMI beneficia de privilégio imobiliário especial.

3. O crédito de IRS, segundo o disposto no artº 111º do CIR, beneficia de privilégio imobiliário e mobiliário geral.

4. O privilégio imobiliário especial prefere à hipoteca, como resulta expressamente do artº 751º do Código Civil.

5. Como o crédito de IRS apenas beneficia de privilégio imobiliário e mobiliário geral, aplicando-se aqui o regime previsto no artº 749º do CC, por analogia, este deverá ceder à hipoteca.

6. Assim, a graduação de créditos, com vista ao pagamento pelo produto da venda do imóvel, deverá ser feita pela seguinte ordem: em primeiro lugar o crédito de IMI, em segundo o crédito garantido por hipoteca e em terceiro o crédito [de] IRS.»


Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a apurar se, em relação ao bem imóvel apreendido, deve a respectiva graduação de créditos atender, no que respeita aos créditos da Fazenda Nacional, a uma distinção entre os créditos referentes a IMI (imposto municipal sobre imóveis) e os créditos referentes a IRS (imposto sobre o rendimento das pessoas singulares), enquanto créditos com privilégio imobiliário especial e com privilégio imobiliário geral, respectivamente, de modo a estabelecer uma diferente prioridade de uns e de outros, por referência ao crédito hipotecário do «(…) Banco, SA», com a consequente alteração da graduação determinada na decisão recorrida.

Cumpre apreciar e decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO:

No relatório supra ficaram já enunciados os elementos que relevam para a apreciação do recurso.

Sublinha-se, uma vez mais, que o presente recurso apenas versa sobre a graduação de créditos estabelecida quanto ao bem imóvel apreendido nos autos, na medida em que expressamente o declarou o recorrente. Desse modo restringiu o recorrente a essa matéria o objecto do recurso em apreço – o que necessariamente delimita os poderes de cognição deste Tribunal de recurso.

Quanto à questão substantiva em discussão, trata-se essencialmente de averiguar qual a posição relativa dos créditos da Fazenda Nacional referentes a IMI e referentes a IRS – assente que está, no caso dos autos, a existência desses dois tipos de créditos, nos montantes, respectivamente, de 7.126,90 € e de 2.777,90 € –, por referência ao crédito hipotecário do «(…) Banco, SA».

Ora, quanto à natureza do privilégio invocado a favor dos créditos referentes a IMI, entende-se não oferecer dúvida que estes créditos integram o conceito de «créditos por contribuição predial devida ao Estado ou às autarquias locais» a que alude o artº 744º, nº 1, do C.Civil (dado ser o imposto com tal designação aquele a que sucedeu o IMI), preceito esse que lhes confere «privilégio sobre os bens cujos rendimentos estão sujeitos àquela contribuição» – o que permite qualificar esse privilégio como imobiliário especial (conforme também resulta do artº 735º, nº 3, do C.Civil, quando estabelece que «os privilégios imobiliários estabelecidos neste Código são sempre especiais»). Sobre a posição relativa dessa qualidade de créditos privilegiados, face a outros créditos garantidos, estabelece o artº 751º do C.Civil que «os privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores» – o que confere inequívoca prioridade aos créditos referentes a IMI relativamente a crédito garantido por hipoteca (como o que assiste, no caso concreto, ao «… Banco, SA»).

Em relação aos créditos referentes a IRS, rege o artº 111º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, segundo o qual «para pagamento do IRS relativo aos três últimos anos, a Fazenda Pública goza de privilégio mobiliário geral e privilégio imobiliário sobre os bens existentes no património do sujeito passivo à data da penhora ou outro acto equivalente» – o que se traduz na consagração de um privilégio imobiliário geral (i.e., que poderia incidir sobre todos os bens imóveis do devedor) e que, em concreto, incide sobre o imóvel apreendido nos presentes autos. Quanto à posição relativa desses créditos com privilégio imobiliário geral em face de créditos garantidos por hipoteca, é genericamente aceite na doutrina e na jurisprudência que aqueles caem sob a alçada do regime do artº 749º do C.Civil (seja por interpretação extensiva ou por analogia, consoante os diferentes entendimentos), o que lhes confere uma posição subalterna relativamente aos créditos hipotecários (no sentido de o privilégio imobiliário geral dever ceder perante direitos reais de terceiro, como a hipoteca, v. MIGUEL LUCAS PIRES, Dos Privilégios Creditórios, Almedina, Coimbra, 2ª ed., 2015, pp. 102-103 e 168-170; e, na jurisprudência, cfr., por todos, Ac. RP de 6/5/2014, Proc. 1514/13.8YYPRT-A.P1, e Ac. RE de 21/6/2007, Proc. 1037/07-2, in www.dgsi.pt).

Em consequência, impõe-se alterar a graduação estabelecida na decisão recorrida, de modo a distinguir, nos créditos da Fazenda Nacional, entre os créditos referentes a IMI e os referentes a IRS, com diferentes posicionamentos em relação ao crédito hipotecário em presença: os créditos referentes a IMI devem ser graduados à frente do crédito garantido por hipoteca; e, por sua vez, o crédito hipotecário deve prevalecer sobre os créditos referentes a IRS, aos quais assiste apenas um privilégio imobiliário geral. E, assim, se conclui no sentido de reconhecer razão ao apelante, devendo proceder plenamente o presente recurso.

Em suma: pelas razões aduzidas, a presente apelação merece provimento, devendo ser revogada a decisão recorrida na parte impugnada – ou seja, enquanto nela se gradua, em relação ao bem imóvel apreendido nos autos, os créditos garantidos por hipoteca em 1º lugar e os créditos privilegiados em 2º lugar –, e determinada a alteração da mesma nessa parte (e mantendo-se quanto ao mais o aí decidido), de modo a que seja estabelecida, quanto a esses créditos, uma nova graduação, pela ordem seguinte: créditos da Fazenda Nacional referentes a IMI (com privilégio imobiliário especial); créditos garantidos por hipoteca (do «… Banco, SA»); e créditos da Fazenda Nacional referentes a IRS (com privilégio imobiliário geral).

III – DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em conceder provimento à apelação deduzida pelo M.º P.º, em representação do credor «Fazenda Nacional», decidindo:

a) revogar a sentença recorrida, quanto à graduação respeitante ao bem imóvel apreendido nos autos, e apenas quanto às duas primeiras posições dessa graduação, mantendo-a quanto ao mais;

b) e, consequentemente, determinar que essas duas posições se desdobrem em três novas posições (às quais sucederão as demais posições indicadas na parte não alterada da decisão recorrida), sendo as mesmas graduadas por esta ordem:

– em 1º lugar: créditos privilegiados da Fazenda Nacional referentes a IMI;
– em 2º lugar: créditos garantidos por hipoteca (do «… Banco, SA»);
– em 3º lugar: créditos privilegiados da Fazenda Nacional referentes a IRS.

Sem custas a apelação, por os apelados a elas não terem dado causa (artº 527º, nos 1 e 2, a contrario, do NCPC, ex vi do artº 17º do CIRE).

Évora, 11 / 05 / 2017

Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)