Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
277/15.7TELSB.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: NULIDADE DA ACUSAÇÃO
INSTRUÇÃO
REMESSA DOS AUTOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Em processo penal não fica na disposição do julgador o aditamento de factos, assim como a escolha do tipo de crime; tais funções - descrição dos factos e subsunção dos mesmos ao direito, com a indicação do concreto ou concretos crimes e sua forma - competem e são atribuição do Ministério Público, quando deduzida acusação pública.
Se nos termos do artigo 283º, nº 3 do C.P.P. a acusação padecer de elementos essenciais para a sua validade, restará declarar a nulidade da mesma, não sendo legalmente possível (na esteira de vasta a jurisprudência) o convite ao Ministério Público para reparar as nulidades detetadas, atento o princípio do acusatório que informa o nosso sistema penal.

Assim, e em tese conclusiva, perante uma acusação nula, assim entendida em sede de instrução, não pode o M. Juiz de Instrução remeter os autos ao Ministério Público para aperfeiçoar a sua acusação.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
Notificados do requerimento acusatório deduzido pelo Ministérios Público, que acusou os arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG, em co-autoria material da prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art.º103º RGIT, por referência ao nº 3 do art.º 104º do mesmo diploma legal e art.º 30º do Código Penal), os arguidos HH e II, em co-autoria material da prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art.º 103º RGIT, por referência à alínea b) do nº 2 do art.º 104º do mesmo diploma legal e art.º 30º do Código Penal), os arguidos JJ e KK, em co-autoria material da prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art.º 103º RGIT, por referência ao nº 3 do art.º 104º do mesmo diploma legal e art.º 30º do Código Penal), as arguidas LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR e SS, da prática de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art.º 103º RGIT, por referência ao nº 3 do art.º 104º do mesmo diploma legal e art.º 30º do Código Penal) e a arguida TT de 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art.º 103º RGIT, por referência à alínea b) do nº 2 do art.º 104º do mesmo diploma legal e art.º 30º do Código Penal), vieram os arguidos PP, CC, BB, II e TT, requerer a abertura de instrução.

No termo da instrução, o Exmº. Sr. Juiz de Instrução por despacho proferido em 13/07/2023, decidiu:

- Nestes termos, não podem os arguidos PP, CC, BB, II e TT ser pronunciados, nesta sede, pela prática dos crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pela alínea b) do nº 1 do art.º 103º RGIT, por referência ao nº 3 do art.º 104º do RGIT, que lhes foram imputados, por via da nulidade da acusação, dos presentes autos, que expressamente se declara, com os contornos previstos no artigo 122°, do C. P Penal, declarando-se nula a acusação e todos os actos subsequentes á mesma e a ela respeitantes determinando-se a, oportuna, remessa dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes. (negrito nosso)

É do último segmento do sobredito despacho que os arguidos PP, CC, BB, II e TT recorrem para esta Relação, formulando, no termo da sua motivação, as seguintes conclusões:

“ A - Vem o presente Recurso interposto da Douta Sentença lavrada nos autos pela Mm.º Juiz “a quo”, pela qual se considera que: «(fls. 8 e 9) “Assim, e por todo o exposto, a acusação terá, efectivamente, que ser considerada nula, por violação do disposto nos artigos 283.º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal e 32.º, números 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa,

B - Por via da nulidade da acusação, dos presentes autos, que expressamente se declarada, com os contornos previstos no artigo 122.º, do C. P. Penal, declarando-se nula a acusação e todos os actos subsequentes à mesma e a ela respeitantes, determinando-se a oportuna, remessa dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes”.

C - Precise-se assim, que é esta última parte do acervo decisório que o presente Recurso versa, tendo em linha de conta, que ao ser declarada (e quanto a nós, muito bem) a nulidade da acusação, não poderia, nem deveria a M. m.ª Juiz a quo, ter decidido (como o fez), i.e. pela remessa dos autos ao Ministério Público e, muito menos, para os efeitos que tiver por convenientes.

D - Em abono da verdade, o presente recurso tem a sua génese no destino a dar ao processo após a declaração de nulidade da acusação por ofensa do ínsito na alínea b) do n.º 3 do art. 283.º do CPP.

E - Consumada a declaração de nulidade da acusação, a M. m. ª juiz a quo, determina a remessa dos autos para o M.P., para os efeitos tidos por convenientes.

F - Desde logo, fica por entender o que entende a M. mª Juiz a quo “por efeitos tidos por convenientes”, e menos se entende, qual a motivação para a remessa dos autos ao M.P.

G - E se a acusação é nula porque – “[(….), apresenta-se totalmente omissa no que respeita à fundamentação necessária que permita aferir-se do percurso cognitivo percorrido pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público, que o levou a concluir da forma que o fez.”, o mesmo se terá de aplicar, mutatis mutandis, quanto à fundamentação (ou falta dela) na parte deste Despacho recorrido.

H - Em abono da verdade, os Recorrentes apenas podem presumir, com base no Despacho Instrutório que a remissão dos autos ao M.P., apenas visa a possibilidade de a acusação ser reformulada.

I - Este é o pensamento que pode ser induzido, pela decorrência lógica do antevertido, no entanto, estamos em crer que é manifestamente insuficiente para se ter por fundamentado.

J - A assim o ser, também esta decisão de que ora se recorre, padece do vício de falta de fundamentação, contrariando o plasmado nos artigos 205.º, n.º 1 da C.R.P. e art. 97.º, n.º 5 do CPP.

L - Neste ponto e tendo sido declarada a nulidade da acusação, coloca-se a questão de saber, se se deve seguir o regime da invalidade previsto no artigo 122.º do CPP ou, em alternativa, trilhar o caminho do arquivamento dos autos.

M – Decorre da jurisprudência maioritária que a consequência perante a declaração de uma acusação nula, por violação dos requisitos necessários para a ter por conforme – os factos essenciais ao preenchimento do tipo legal imputado, ou seja, os essenciais à condenação – passará pelo arquivamento da mesma e ainda, pela preclusão da possibilidade de emergir nova acusação quando não surgem factos novos que a sustentem.

N - Assim o impõe a harmonização do sistema jurídico, porquanto, sendo a fase da instrução facultativa e (diremos nós), saneadora do próprio processo, seria intrinsecamente contraditório, que a declaração de nulidade de uma acusação em sede de julgamento, tenha por consequência o arquivamento do processo (artigo 311.º do CPP), enquanto a mesma declaração de nulidade da acusação em sede de instrução, implicasse resultado diferente, mormente, passando pela possibilidade do Ministério Público prover a alguma correção; ou ainda, formular uma nova acusação.

O – Ademais, segundo o nosso humilde entendimento, a consequência jurídica proposta pela Mm.ª Juiz a quo, entra em conflito com o princípio da igualdade, tendo em linha de conta, que consoante se esteja perante uma situação/direito, de uso facultativo, conferido a favor do arguido – Instrução –, as consequências para a mesma situação são, diametralmente opostas, resultando inadmissível que o Juiz possa ordenar ao Ministério Público os termos em que deve formular acusação.

P - E se assim o é, por maioria de razão não pode o Juiz suprir os vícios de que a acusação padeça, mormente, convidando o Ministério Público a suprir as deficiências da acusação, renovando a violação do princípio da igualdade - i.e., face à nulidade da acusação, o Ministério Público teria uma derradeira hipótese para sanar esse vício, enquanto, por exemplo, o Assistente, colocado em posição semelhante, não poderia beneficiar da mesma prerrogativa.

Q - Acresce que no direito processual penal vigora o princípio da preclusão, pelo que uma vez proferida a acusação, fica precludida a possibilidade de o Ministério Público renovar a prática desse ato.

R - E se V. Exas., Venerandos Desembargadores, assumirem por boa a tese preconizada pelos recorrentes, a consequência a extrair do arquivamento da acusação, terá de abarcar todos os demais arguidos nela contidos, mesmo aqueles, que não requereram a Abertura de Instrução.

S - Por outras palavras, a própria acusação é por si só nula em toda a sua integralidade e plenitude, o que motiva que a declaração de nulidade tenha os mesmos efeitos para todos os arguidos nela contemplados e, não, tão só, aqueles que requereram a abertura da instrução.

T - Neste conspecto, não obstante a nulidade da acusação ter sido requerida por alguns dos arguidos, a mesma aplica-se a todos.

U - Desde logo porque, analisando o teor do despacho de acusação, facilmente se constata que a metodologia é a mesma para cada um dos “casos” nela descritos.

V - Pelo que, a violação do disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP é transversal a toda a narração efetuada na Acusação, razão pela qual, a decisão instrutória declara a nulidade global (e não parcial) da acusação, como aliás, só assim podia suceder.

X - A tudo isto, acresce a proibição da prática de atos inúteis, tendo em linha de conta que como aferido, a acusação não reúne os elementos necessários para ser válida, e deste modo, sempre a consequência seria a absolvição de todos os arguidos nela contemplados.

Z - Face a tudo o que se acabou de expor, deverá a decisão instrutória proferida nos autos ser revogada na parte em que ordenou a oportuna remessa dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes, que deverá ser substituída pelo arquivamento dos presentes autos relativamente a todos os arguidos, dando assim cumprimento ao ínsito no n.º 4 do art. 307 do CPP.

Nestes termos e nos mais de Direito e com o sempre Mui Douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que ordenou a oportuna remessa dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes, a qual deverá ser substituída pelo arquivamento dos presentes autos relativamente a todos os arguidos.

Pelo que deve ser em conformidade revogada a douta decisão recorrida nesses segmentos e substituída por outra decisão que decida como pedido nos termos deste recurso,

Com o que se fará

Sã, SERENA E OBJECTIVA JUSTIÇA”

O Ministério Público respondeu às motivações de recurso apresentadas pelos Arguidos, pugnando pela improcedência do mesmo.

Neste Tribunal o Exma. Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido do não provimento do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417º do CPP, na sequência do que os Arguidos/Recorrentes reiteraram a argumentação já aduzida na sua motivação, no sentido da procedência do recurso por eles interposto.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

A DECISÃO RECORRIDA

O despacho judicial do Mmº. Juiz de Instrução do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo de Instrução Criminal de Faro – Juiz … objecto do presente recurso é do seguinte teor:

“Declaro encerrada a instrução.

*

I – Relatório

Por despacho proferido a 13/09/2018, o Digno Magistrado do Ministério Público acusou:

- os arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG, em co-autoria material:

→ 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art. 103º RGIT, por referência ao nº 3 do art. 104º do mesmo diploma legal e art. 30º do Código Penal).

- os arguidos HH e II, em co-autoria material:

→ 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art. 103º RGIT, por referência à alínea b) do nº 2 do art. 104º do mesmo diploma legal e art. 30º do Código Penal).

- os arguidos JJ e KK, em co-autoria material:

→ 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art. 103º RGIT, por referência ao nº 3 do art. 104º do mesmo diploma legal e art. 30º do Código Penal);

- as arguidas LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR e SS:

→ 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada na forma continuada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art. 103º RGIT, por referência ao nº 3 do art. 104º do mesmo diploma legal e art. 30º do Código Penal).

- a arguida TT:

→ 1 (um) crime de fraude fiscal qualificada (previsto e punível pela alínea b) do nº 1 do art. 103º RGIT, por referência à alínea b) do nº 2 do art. 104º do mesmo diploma legal e art. 30º do Código Penal).

Inconformados, vieram os arguidos PP, CC, BB, II e TT, requerer a abertura de instrução, negando a prática dos factos tal como se afiguram na acusação, pugnando, deste modo, pela sua não pronuncia.

No mais, a arguida PP arguiu a nulidade da acusação, invoca para o efeito, em síntese, que a acusação apresenta uma contradição intrínseca no ponto 11; que revela imprecisão no seu ponto 21.5.7; que é omissa na fundamentação quando refere que AA e CC eram fundadores e gerentes de facto; que demonstra errada compreensão da realidade subjacente aos factos.

Por sua vez, CC alega que do libelo acusatório não se depreende o percurso lógico – cognitivo calcorreado pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público, que lhe tenha permitido pronunciar-se como o fez, sobre a ilicitude da sua conduta, perpassando por um juízo conclusivo pré-elaborado, no fato de ser filho do arguido AA e irmão do arguido BB.

Deste modo, conclui que tais imputações genéricas não indicam o lugar, tempo, motivação, grau de participação e/ou circunstâncias relevantes, o que põe em crise os direitos de defesa do arguido garantidos pelo art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Já BB invoca que não se vislumbra onde repousa a fundamentação da acusação que permita afirmar que o mesmo era gerente de facto das sociedades arguidas à altura dos factos que lhes são imputados. Assim, constatando o arguido que a acusação se baseia em imputações genéricas, não indicando o lugar, tempo, motivação, grau de participação e/ou circunstâncias relevantes, põe em crise, antes de tudo o mais, os direitos de defesa do arguido garantidos pelo art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, visto que o mesmo para contraditar os crimes por que é acusado, tem que conhecer do conjunto de factos que lhe são imputados.

As requeridas aberturas de instrução foram deferidas.

Procedeu-se ao interrogatório do arguido BB seguido de debate instrutório com observância das formalidades legais, conforme melhor se alcança das respectivas actas.

*

II – Despacho saneador

O Tribunal é o competente e o Ministério Público tem legitimidade para acusar.

Verifica-se que é invocada por todos os arguidos que requereram a abertura da instrução, em primeira linha, a nulidade da acusação pública, questão que cumpre-se, desde já, conhecer, porquanto o seu conhecimento é prévio à análise do mérito e, caso se venha a concluir pelo seu deferimento, as demais questões suscitadas ficam precludidas.

Assim, para analisar tal nulidade invocada, cumpre ter em atenção, antes de mais, o disposto no artigo 283°, do C. P. Penal que dispõe:

«1- Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.

2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;

d) A indicação das disposições legais aplicáveis;»

Por outro lado, cumpre atentar no que resulta do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 103º RGIT, por

referência ao nº 3 do art. 104º do mesmo diploma.

Prevê o artigo 103º do RGIT que:

«1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.

3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.»

O tipo objectivo de ilícito preenche-se com a adopção de qualquer das condutas previstas nas diversas alíneas do art.103.º, nº1 do RGIT, que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.

O bem jurídico tutelado pela incriminação em referência nos autos atém-se à verdade fiscal e, por conseguinte, visa-se a protecção da integridade da esfera jurídica patrimonial do Estado na sua vertente tributária.

O sistema fiscal português assenta no princípio da auto-responsabilização do contribuinte no cumprimento das suas obrigações fiscais, mormente no que tange às declarações que apresenta junto da administração tributária, pelo que o tipo incriminador visa também assegurar a fidedignidade de tais declarações e, mais concretamente, que as mesmas se fundam em operações reais.

A conduta típica consiste na ocultação ou alteração de factos ou valores fiscalmente relevantes ou na celebração de negócio simulado. «Para o preenchimento do tipo se torna necessário a verificação de três elementos: desde logo, a existência de um mecanismo fraudulento – através da ocultação de factos (ou seu registo) e/ou valores ou, então, através da simulação de negócio -; uma finalidade específica (“visem a não liquidação…”) a enformar a actuação; e a idoneidade da conduta para diminuir a receita tributária» (Carlos Teixeira, Sofia Gaspar, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. 2, Univ. Católica Editora, p. 454).

No que concerne à consumação do crime, a regra é a de que aquela se verifica no momento da liquidação, sendo realizada pela administração financeira ou, tratando-se de autoliquidação, quando o contribuinte entrega a declaração na repartição de finanças ou na data da sua omissão.

Quanto ao elemento subjectivo, exige-se que o agente vise obter vantagem patrimonial ilegítima, actuando com a intenção defraudatória dirigida à obtenção dessas vantagens, através da diminuição das receitas tributárias.

Assim, atento o teor do supra referido preceito legal, bem como o que o mesmo exige como elemento objectivo e subjectivo para que o tipo de crime se preencha e, por sua vez, compulsada a acusação pública e o disposto no supra transcrito artigo 283º do Código Processo Penal verifica-se que do texto da mesma não constam factos bastantes para que, uma vez considerados indiciados integrem a prática do referido crime e, consequentemente, possam os arguidos ser pronunciados pela prática do mencionado tipo de ilícito.

Com efeito, compulsada a acusação pública constata-se, desde logo, que a mesma é de teor conclusivo, omissa em factos e contraditória.

Na verdade, a acusação encontra-se coberta de factos gerais sem que a concretização quanto à acção concreta de cada arguido ocorra de forma rigorosa e inequívoca, bem como é omissa de factos concretos de onde se possa chegar às conclusões que constam do libelo acusatório, tanto quanto aos elementos objectivo como aos elementos subjectivo do tipo de crime.

Veja-se.

Caso PP ( facto 21.5 e ss da acusação)

Em relação à sociedade arguida bem como aos arguidos a título individual verificamos, desde logo, que ressaltam como gerentes de facto os arguidos AA, BB e CC e EE, sem se especificar, em concreto, que conduta/função cada um tinha perante a sociedade arguida para se afirmar tal facto.

Portanto, assumiu o Digno Magistrado do Ministério Público que os quatro arguidos durante os anos de 2014 e 2015 (sem se especificar em concreto em que período do ano e como) realizaram, em nome da sociedade arguida, várias aquisições intracomunitárias de material electrónico e afins a diversas firmas, no valor global de 21.204.810,06€.

Em consequência, no ponto 21.5.8, conclui que a arguida PP não liquidou a quantia monetária de 137.387,23€ a título de IVA ao Estado Português no 4º trimestre de 2014, não liquidou a quantia monetária de 446.260,36€ a título de IVA ao Estado Português no 1º trimestre de 2015, não liquidou a quantia monetária de 2.524.297,54€ a título de IVA ao Estado Português no 2º trimestre de 2015 e não liquidou a quantia monetária de 230.996,91€ a título de IVA ao Estado Português no 3º trimestre de 2015.

Ora, tudo o que temos na acusação são valores globais, conclusivos, inespecificados.

Os recebimentos concretos (provavelmente titulados por facturas emitidas) estão totalmente indiscriminados e esta circunstância não é aceitável face ao disposto no artigo 283º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal, já que essa emissão, seus concretos (individuais) valores e o efectivo recebimento (ou não) dos mesmos são a materialidade fulcral que permitiria uma condenação dos arguidos na hipótese de virem a ser julgados.

Diz-se, com referência aos referidos períodos temporais, que os arguidos não liquidaram “o montante de IVA”, mas não se sabe, de acordo com a acusação, que recebimentos concretos estiveram na base desse cálculo, sendo que diversos serviços poderão ter estado na base das diversas liquidações de IVA. Desconhece-se.

Atendendo a que os valores globais de 21.204.810,06€ assentam em somas de valores individuais, imprescindível seria que esses valores individuais estivessem cabalmente descritos para que pudessem ser objecto de prova. Consideramos, assim, que era imprescindível saber-se quem pagou o quê, para se poder alegar o recebimento e a falta de entrega.

Na verdade, desconhece-se, de acordo com a acusação (que define a matriz pela qual será aplicada aos arguidos uma pena ou medida de segurança), concretamente que valores, respeitantes a quais facturas, foram efectivamente recebidos, por a acusação não no-lo indicar.

Deste modo, fica assim arredada a possibilidade de correlacionar qualquer possível defesa dos arguidos com a materialidade que lhes é imputada, precisamente, porque se desconhece, em concreto, essa materialidade.

Caso TT ( factos 21.7 e ss da acusação).

Em idêntico raciocínio, em relação à sociedade arguida bem como aos arguidos a título individual verificamos, desde logo, que ressaltam como gerentes de facto os arguidos AA, BB e CC, HH e II, sem se especificar, em concreto, que conduta/função cada um tinha perante a sociedade arguida para se afirmar tal facto.

Portanto, assumiu o Digno Magistrado do Ministério Público que os cinco arguidos durante o ano de 2016 (sem se especificar em concreto, uma vez mais, em que período do ano e como) realizaram, em nome da sociedade arguida, várias aquisições intracomunitárias de material electrónico e afins a diversas firmas, no valor global de 2.247.996€.

Em consequência, conclui que essas transacções intracomunitárias concretizadas pela firma arguida TT deveriam ter sido incluídas nas declarações de IVA do 3º trimestre de 2016, pelo que o comportamento da arguida TT determinou a falta de pagamento da quantia monetária de 76.344,25€ a título de IVA ao Estado Português no 3º trimestre de 2016.

Uma vez mais, constatam-se valores globais, factos conclusivos e inespecificados.

Os recebimentos concretos (provavelmente titulados por facturas emitidas) estão totalmente indiscriminados e esta circunstância não é aceitável face ao disposto no artigo 283º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal, já que essa emissão, seus concretos (individuais) valores e o efectivo recebimento (ou não) dos mesmos são a materialidade fulcral que permitiria uma condenação dos arguidos na hipótese de virem a ser julgados.

Diz-se, com referência ao ano de 2016, que os arguidos não liquidaram “o montante de IVA”, mas não se sabe, de acordo com a acusação, que recebimentos concretos estiveram na base desse cálculo nem quando.

Atendendo a que os valores globais de 2.247.996€ assentam em somas de valores individuais, imprescindível seria que esses valores individuais estivessem cabalmente descritos para que pudessem ser objecto de prova. Consideramos, assim, que era imprescindível saber-se quem pagou o quê, para se poder alegar o recebimento e a falta de entrega.

Na verdade, e repetindo-nos, desconhece-se, de acordo com a acusação (que define a matriz pela qual será aplicada aos arguidos uma pena ou medida de segurança), concretamente que valores, respeitantes a quais facturas, foram efectivamente recebidos, por a acusação não no-lo indicar.

Deste modo, fica assim arredada a possibilidade de correlacionar qualquer possível defesa dos arguidos com a materialidade que lhes é imputada, precisamente, porque se desconhece, em concreto, essa materialidade.

Como bem referem os arguidos, nos respectivos requerimentos para abertura de instrução, a acusação apresenta-se totalmente omissa no que respeita à fundamentação necessária que permita aferir-se do percurso cognitivo percorrido pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público, que o levou a concluir da forma que o fez.

Ora, em processo penal, não fica na disposição do julgador o aditamento de factos, assim como a escolha do tipo de crime, tais funções - descrição dos factos e subsunção dos mesmos ao direito, com a indicação do concreto ou concretos crimes e sua forma - competem e são atribuição do Ministério Público, quando deduzida acusação pública, como é o caso dos autos.

O juiz tem poucos e limitados poderes quanto a tais tarefas. Não se pode olvidar que tanto o juiz de instrução, assim como o juiz do julgamento se encontram limitados, quanto à alteração ou aditamento de factos, atento e nos termos do disposto nos artigos 303, 358° e 359°, todos do C. P. Penal.

Assim, e por todo o exposto, a acusação terá, efectivamente, que ser considerada nula, por violação do disposto nos artigos 283º, número 3, al. b), do Código de Processo Penal e 32º, números 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, não podem os arguidos PP, CC, BB, II e TT ser pronunciados, nesta sede, pela prática dos crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pela alínea b) do nº 1 do art. 103º RGIT, por referência ao nº 3 do art. 104º do RGIT, que Ihes foram imputados, por via da nulidade da acusação, dos presentes autos, que expressamente se declara, com os contornos previstos no artigo 122°, do C. P Penal, declarando-se nula a acusação e todos os actos subsequentes á mesma e a ela respeitantes determinando-se a, oportuna, remessa dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.

Notifique e registe.

O OBJECTO DO PRESENTE RECURSO

Como se sabe, é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer (cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal”, pág 48; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363). «São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal ad quem tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem).

Assim sendo, no caso sub judicio, as questões submetidas pelos ora recorrentes à apreciação desta Relação são:

1. Se o despacho recorrido é nulo, por falta de fundamentação.

2. A de saber se, perante uma acusação nula o M. Juiz de Instrução em sede de instrução requerida pelos arguidos deverá remeter os autos ao Ministério Público para reformular a acusação.

O MÉRITO DO PRESENTE RECURSO

1) DA INVOCADA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DO DESPACHO RECORRIDO.

Em primeiro lugar cabe referir que a necessidade de fundamentação das decisões decorre do disposto no artigo 205°, nº1, da Constituição da República, onde se impõe a obrigatoriedade de fundamentação das decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente. A parte final deste preceito refere que as decisões são fundamentadas na forma prevista na lei, remetendo assim, para o legislador a tarefa de adaptar este comando constitucional ao universo judiciário.

Assim se justifica que as exigências formais estabelecidas na Lei Ordinária quanto à fundamentação das decisões não sejam idênticas para todas, variando os requisitos ou os graus de exigência consoante o tipo de decisão em causa. No que respeita ao processo penal, e em decorrência do referido preceito Constitucional, dispõe o art. 97°, nº 1, al. b), do C.P.P., que os actos decisórios dos juízes tomam a forma de "despachos" quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora dos casos previstos para as sentenças.

O nº 4, por sua vez, diz que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.

A fundamentação visa permitir o controlo da legalidade do acto e deve conter as informações que permitam convencer os interessados e os cidadãos em geral, sobre a correcção e justiça da decisão.

Tolda Pinto, in "A Tramitação Processual Penal", 2.ª ed., pg. 206 sgs. diz que "a fundamentação das decisões judiciais, em geral, cumpre duas funções: a) – Uma de ordem endoprocessual – que visa impor ao juiz um momento de verificação e controle crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente; b) – Outra, de ordem extraprocessual – que procura, acima de tudo, tomar possível um controle externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão.

(...). Relativamente àquela, uma vez que se liga directamente com o princípio consagrado no art. 32°, n.º 1, da Constituição, a fundamentação das decisões judiciais justifica-se, desde logo, na medida em que funciona como garantia de racionalidade, imparcialidade e ponderação da própria decisão judicial. A motivação da decisão judicial funciona aqui como elemento de controle interno necessário do princípio da livre convicção do juiz em matéria probatória".

Depois, citando ainda Eduardo Correia, in Revista do Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, diz que "a motivação da decisão é também imprescindível, entre outras razões, para favorecer o auto-controle dos juízes, designadamente, obrigando-os a analisar, à luz da razão, as impressões recolhidas no decurso da produção da prova, bem como para estimular a recolha jurisprudencial de regras objectivas de experiência e o respeito pela lógica e pelas leis da psicologia judiciária na apreciação das mesmas".

Em suma, conclui, dizendo que a fundamentação de facto e de direito, da decisão judicial visa, desde logo, garantir uma mais adequada ponderação da prova produzida, bem como do direito aplicável".

Justifica ainda a necessidade de fundamentação pela garantia assim dada à ponderação dos argumentos da defesa, do mesmo modo que constitui um elemento imprescindível ao exercício efectivo do direito ao recurso.

Feita assim esta incursão doutrinária sobre a justificação e necessidade da fundamentação de decisões como a aqui em causa, cumpre dizer que o despacho ora sob censura se encontra fundamentado, mencionando explicitamente as razões e os motivos concretos, pelos quais, no caso em apreço, declarou nula a acusação dos presentes autos e todos os actos subsequentes á mesma e a ela respeitantes, tendo fixado os efeitos dessa declaração de nulidade, nos termos previstos no artigo 122°, do C. P Penal e determinado a oportuna, remessa dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes, isto é, conforme decorre do nº 2 do citado artigo 122°, do C. P Penal, para, se possível o acto nulo ser repetido.

Não existindo assim qualquer nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação, satisfazendo esta o exigido pelo art.º 97º, nº4, do C.P.P.

Pode, é certo, discordar-se da valoração e do normativo em que se alicerça a decisão, mas não existe, qualquer invalidade na fundamentação.

Improcede, consequentemente, o recurso quanto a esta primeira questão.

2) A DE SABER SE, PERANTE UMA ACUSAÇÃO NULA O M. JUIZ DE INSTRUÇÃO EM SEDE DE INSTRUÇÃO REQUERIDA PELOS ARGUIDOS DEVERÁ REMETER OS AUTOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA REFORMULAR A ACUSAÇÃO.

O recorrente restringiu o recurso, conforme lhe é possibilitado pelo art.º 403º nº 1 e 2 do CPP, ao último segmento da decisão recorrida, ou seja, à questão que se refere com o destino a dar ao processo, no âmbito da decisão instrutória, após a declaração de nulidade da acusação pública.

Concretizando o recorrente suscita a seguinte questão:

Declarada a nulidade da acusação pública, por ofensa ao disposto no art. 283.º, n.º 3 al. b), do CPP, deve o processo ser devolvido ao Ministério Público para suprir a deficiência da acusação, ou, antes pelo contrário, deve ser ordenado o arquivamento dos autos?

Defende o recorrente que a consequência perante a declaração de uma acusação nula, por violação dos requisitos necessários para a ter por conforme – os factos essenciais ao preenchimento do tipo legal imputado, ou seja, os essenciais à condenação – passará pelo arquivamento da mesma e ainda, pela preclusão da possibilidade de emergir nova acusação quando não surgem factos novos que a sustentem.

A questão ora submetida à apreciação deste Tribunal da Relação já não é nova, tendo sido objecto de variadas decisões, umas no sentido pretendido pelos recorrentes, outras no sentido da decisão recorrida e subscrita pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido e pelo Exmº Procurador–Geral Adjunto junto deste Tribunal

Assim, e ressalvado sempre o devido respeito por diversa opinião, não podemos deixar de referir que sobre a apontada problemática se pronunciou, em termos que se têm como inequivocamente correctos, o Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do

processo n.º 10221/2006-5, de que foi relator o Exmo. Desembargador José Adriano, com o qual nos identificamos e subscrevemos, com a devida vénia, e no qual se consignou que:

“ Cremos ser inquestionável que, caso o processo tivesse sido remetido directamente para julgamento – a instrução é facultativa e no caso sub judice só o arguido a podia ter requerido, como requereu, para impugnar a acusação pública contra ele deduzida – o respectivo juiz, ao proferir despacho ao abrigo do art.º 311.º, do CPP e constatando a escassez de factos para preenchimento do tipo legal de crime imputado, deveria rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, ao abrigo do n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do mencionado normativo legal.

Igualmente, caso tal falha não tivesse sido detectada nestas fases processuais e o processo chegasse a julgamento, ao lavrar a sentença, o juiz julgador, perante a insuficiência dos factos, só tinha uma solução: absolver o arguido.

Isto porque, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art.º 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal – leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido. Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem uma terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito. O mesmo se passa com o juiz de instrução. Requerida esta fase pelo arguido para contrariar a acusação pública, ou particular nos casos de procedimento dependente de acusação particular, o JIC, chegado o momento de sobre ela decidir, ou considera que aquela contém todos os elementos essenciais e que há “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena …” e, então, profere despacho de pronúncia, ou faz um juízo negativo e profere despacho de não pronúncia. Não pode ordenar, perante a insuficiência de factos, que os autos voltem ao MP – ou ao acusador particular – para que seja completada a acusação.

Aliás, tal maneira de ver as coisas está bem explícita e expressa na muita jurisprudência, que actualmente se pode dizer uniforme, que se tem debruçado sobre os requerimentos de abertura de instrução do assistente, quando o MP não deduziu acusação, que têm vindo sucessivamente a serem rejeitados pelos respectivos juízes de instrução, precisamente pelos mesmos fundamentos que levam à rejeição da acusação pública formulada nestes autos: a ausência do elemento subjectivo da infracção na narração dos factos imputados ao arguido. Como é do conhecimento generalizado, tais requerimentos acusatórios são liminarmente rejeitados, com a aquiescência dos tribunais superiores, com o argumento de que aqueles consubstanciam uma verdadeira acusação substitutiva da acusação pública não deduzida, defendendo-se que não há, em tais casos, lugar a convite para aperfeiçoamento dos mesmos requerimentos, porque, por um lado, também não há aperfeiçoamento da acusação do MP, por outro, tal convite corresponderia a uma verdadeira prorrogação do prazo, peremptório, para acusar, agravando, de forma injustificada, os direitos e garantias de defesa do arguido.

Acabando mesmo por ser fixada jurisprudência na matéria, mediante o Acórdão n.º 7/2005, de 12/05/2005, do Plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (3), no seguinte sentido:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Porque também não o pode haver ao MP, em igualdade de circunstâncias.

Conforme se pode ler na fundamentação do mesmo acórdão uniformizador, «a falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada (4), nos termos dos arts. 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP».

Para mais adiante se voltar a afirmar: «Significante, ainda, estar vedado ao juiz do julgamento direccionar convite ao Ministério Público para complementar o elenco factual acusatório (5), ante e com apoio nos peremptórios termos do citado art. 311.º, n.º 3, alínea b)».

Citando-se aí um acórdão do Tribunal Constitucional (6), a propósito do mesmo tema, transcreve-se o seguinte:

«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre aos quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução».

E, por maioria de razão, diríamos nós, se conta também aquele em que é deduzida a acusação pública.

E aquele continua: «Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º 3 do art. 283.º, do Código de processo Penal. Tal exigência decorre […] de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória», referindo-se ainda, no mesmo acórdão, «que tal exigência é suficientemente justificada e legitimada, “sendo a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa” (7)».

Maior clareza nos argumentos não é possível.

Nessa conformidade, concluindo o juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos – nomeadamente, de facto – de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, in fine, do CPP.»

Destarte, e ressalvando sempre o devido respeito por opinião contrária, afigura-se-nos que o despacho recorrido não pode subsistir.

Se nos termos do artigo 283º, nº 3 do C.P.P. a acusação padecer de elementos essenciais para a sua validade, restará declarar a nulidade da mesma, não sendo legalmente possível (na esteira da jurisprudência que perfilhamos) o convite ao Ministério Público para reparar as nulidades detectadas, atento o princípio do acusatório que informa o nosso sistema penal.

Assim, e em tese conclusiva diremos que, perante uma acusação nula, assim entendida em sede de instrução, não pode o M. Juiz de Instrução remeter os autos ao Ministério Público para aperfeiçoar a sua acusação.

Neste sentido também se pronunciou o acórdão desta Relação, de 24 de maio de 2022, proferido no processo 404/16.7GESTB.E1 e relatado pelo Desembargador J. F. Moreira das Neves, onde se pode ler:

«Quanto à devolução dos autos para a fase de inquérito entendemos que tal, simplesmente, não deverá ocorrer (pese embora haja basta jurisprudência que com entendimento diverso),(Cf. acórdão do T R Évora, de 10/4/2018, proc. 1559/16.6GBABF.E1, Des. Gomes de Sousa; acórdão do T R Évora, de 27/4/2021, proc. 60/19.0GCPTM.E1, Des. António Condesso; acórdão do T R Coimbra, de 8/5/2018, proc. 542/16.6GCVIS.C1, Des. Elisa Sales; acórdão do T R Coimbra, de 13/1/2021, proc. 99/19.6GASAT.C1, Des. Helena Bolieir).

Com efeito, os autos, vindos do Ministério Público, deram entrada em juízo (no tribunal) e ali foram distribuídos ao juiz competente. Quando este se pronunciou fê-lo num processo judicial; e não (já) no inquérito.

Verificando-se que este processo judicial não pode prosseguir (para julgamento) deverá ser arquivado no tribunal (repete-se - porque já não é um inquérito), sem que isso em nada prejudique tudo o que supra se deixou dito».

Eis por que, e sem necessidade de mais considerações haverá que concluir que o despacho recorrido não pode subsistir.

Finalmente, tendo em conta o disposto nos artigos 307º, nº4 e 402º, n.º 2, alínea a) ambos do C. P. Penal, inexistem dúvidas de que o recurso interposto pelos arguidos PP, CC, BB, II e TT, por não se fundar, na íntegra, em motivos estritamente pessoais, aproveita também aos restantes arguidos dos presentes autos.

Até porque, conforme se estabelece no Art.º 403º, n.º 3 do mesmo Código, a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.

Donde que, o presente recurso irá proceder.

DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido na parte em que determinou a «remessa dos autos ao Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes», o qual deverá ser substituído por outro que conclua pela não pronúncia dos arguidos (recorrentes e não recorrentes), com o consequente arquivamento dos autos.

Sem tributação.

Évora, 06 / 02 /2024