Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
940/13.7TAABF.E1
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: BURLA
ELEMENTOS ESSENCIAIS DO CRIME
ACUSAÇÃO
Data do Acordão: 04/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Para que se verifique o crime de burla, p. e p. pelo art.º 217.º, n.º 1 do CP, é necessário que a conduta do agente, para além de enganosa, seja levada a cabo de forma astuciosa, ou seja, o estado de erro ou engano do ofendido deverá ser provocado astuciosamente, apto a manipular a vontade da vítima, determinando-a à prática de atos que lhe causem, a si ou a outra pessoa, prejuízo patrimonial, e que de outro modo não praticaria.
II – Porém, no domínio contratual, situações há em que o crime de burla pode ser praticado, não só por ação - em que o erro ou engano é provocado através de um comportamento ativo do agente (o agente cria o erro) - mas também por omissão, em que esse engano resulta de comportamentos omissivos do agente (o agente limita-se a aproveitar o erro em que o sujeito passivo já incorre, omitindo ou ocultando informações determinantes para a formação vontade, as quais, sendo conhecidas pelo ofendido, evitariam a que o resultado típico se verificasse).
III – Em conformidade com as proposições anteriores, deve ser recebida a acusação – por integrar, indiciariamente, os elementos objectivos e subjectivos do crime de burla –, donde consta (i) que o arguido disse ao ofendido que lhe vendia um determinado bem pelo preço de € 1.550,00, “tendo de imediato solicitado o pagamento… através de transferência bancária”, (ii) que o ofendido efetuou a transferência do valor correspondente ao bem, (iii) que o arguido não entregou o bem e posteriormente não foi mais possível estabelecer qualquer contacto com o mesmo, (iv) que o arguido atuou dessa forma “com o conseguido propósito de convencer o queixoso que lhe venderia o mencionado rolo... e… a efetuar a referida disposição patrimonial de 1.550,00 euros… bem sabendo que nada lhe iria entregar”, ou seja, em síntese, o arguido criou uma falsa convicção no ofendido (determinante para a entrega da referida quantia) de que estava em condições de lhe entregar o bem cujo preço solicitava (e que recebeu), em suma, de cumprir a sua parte no negócio, quando não estava nem essa era sua intenção (de acordo com o alegado na acusação), e ainda (v) que “atuou… de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei”.
Decisão Texto Integral: Proc. 940/13.7TAABF.E1

Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal da Comarca de Faro (Albufeira, Instância Local, Secção Criminal, J2) foi distribuído, como Processo Comum Singular, o Proc. n.º 940/13.7TAABF, no qual, por despacho de 13.05.2016 (fol.ªs 139 a 145), foi decidido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público (na qual é imputada ao arguido BB a prática de um crime de burla, p. e p. pelo art.º 217 n.º 1 do CP), por manifestamente infundada, nos termos do art.º 311 n.º 2 al.ª a) do CPP, por referência à al.ª d) do n.º 3 do mesmo preceito, ou seja, em síntese, porque “os factos imputados ao arguido não constituem qualquer ilícito criminal, não podendo, em consequência, conduzir a uma condenação do arguido pela prática do crime de que se encontra acusado”.
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2. Recorreu o Ministério Público de tal despacho, concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões (fol.ªs 160 a 164):
1 - Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de factos susceptíveis de integrar o cometimento de um crime de burla, p. e p. pelo art.º 217 n.º 1 do Código Penal.
2 - Distribuídos ao Juízo 2 da Secção Criminal da Instância Local de Albufeira, foram os autos conclusos à Mm.ª Juíza que, após conhecer das questões a que se refere o art.º 311 n.º 1 do Código de Processo Penal, decidiu, nos termos do art.º 311 n.ºs 2 al.ª a) e 3 al.ª d) do Código de Processo Penal, rejeitar a acusação, por a considerar manifestamente infundada, dado que os factos ali narrados não constituem crime.
3 - Fundamenta a Mm.ª Juiz a quo a sua decisão na circunstância de, aparentemente, a factualidade imputada ao arguido cair no âmbito do Direito Civil, mormente no instituto do incumprimento contratual. É que, quando o ofendido entregou o dinheiro ao arguido fê-lo a título de pagamento de preço, como prestação a que se obrigou por força da celebração do negócio jurídico - no caso, contrato de compra e renda - que, pela sua natureza e regime, é sinalagmático, ou seja, a entrega da quantia pecuniária corresponde ao cumprimento de uma obrigação civil por parte do ofendido, a título translativo da propriedade.
4 - Porém, tem sido entendido maioritariamente pela jurisprudência que a acusação só pode ser rejeitada por manifestamente infundada desde que, por forma clara, flagrante, e para além de qualquer dúvida razoável, seja desprovida de fundamento, ou por ausência de fados que a sustentem ou porque os factos nela descritos não integram qualquer norma jurídico-penal, constituindo a realização de julgamento evidente violência desnecessária para o arguido.
5 - “Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o Juiz no despacho… não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente... Assim, por exemplo, o Juiz não pode rejeitar a acusação com base no disposto na alínea d) do n.º 3 (“Se os factos não constituírem crime”) se a questão for discutível. Só o poderá fazer se for inequívoco e incontroverso que os factos não constituem crime…” - Dr. Vinício A. P. Ribeiro, CPP anotado, Coimbra Editora, 2008, pág. 644.
6 - Havendo dúvidas se os factos descritos na acusação constituem crime, dado que tal subsunção à norma jurídica violada é objecto de debate e de discórdia jurisprudencial, tal dúvida deverá aproveitar à continuação da ação penal, já que a putativa inexistência de crime não é algo pacífico e manifesto, como exige o corpo do art.º 311 n.º 2 al.ª a) ao integrar a expressão “manifestamente infundada”.
7 - Para mais, a análise do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de burla, em particular, daqueles últimos, é uma tarefa de minúcia interpretativa, pois este crime apresenta-se, na verdade, como uma “forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar”. Conforme acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.12.2002, Processo n.º 02P3122, disponível em wvw.dgsi.pt.
8 - Acresce que os incumprimentos contratuais, bastantes vezes, são o instrumento para o cometimento do crime de burla, quando acompanhados de uma reserva mental antecedente.
9 - Como referido no ac. do TRC de 07/06/2006, Proc. n.º 1148/06, relator Dr. Gabriel Catarino, disponível em www.dgsi.pt: “… A fragilidade e a ténue linha delimitadora que se pressente entre o dolo civil e o dolo penal, neste tipo de infracções, levou a que alguma jurisprudência crismasse certas situações charneira ou de difícil enquadramento jurídico-penal como “negócios jurídicos ou contratos criminalizados”, que seriam aqueles negócios jurídicos ou contratos civis em que o ilícito penal aparece caracterizado - frente ao incumprimento civil - pela intenção inicial ou antecedente de não fazer a efetiva contraprestação ou pela consciência da impossibilidade de o fazer, de modo a que o contrato aparente é o instrumento da fraude, ou noutra formulação, nos negócios jurídicos de direito privado em que a aparência do próprio negócio constituem uma operação de engano, enquanto o autor simula um propósito de contratar quando realmente só quer aproveitar-se do cumprimento da outra parte, recebendo a contraprestação acordada, mas sem intenção de cumprir....
… todos os autores colocam o momento deflagrador do ilícito penal na precedência ou antecedência da ação enganosa relativamente à atitude do sujeito em aderir ao pacto contratual depreciador do seu património…”.
10 - E, no caso concreto, a reserva mental inicial ou antecedente do arguido, ou seja, o propósito originário de receber o pagamento e não efetuar a contraprestação devida está descrito no ponto 5 do articulado da acusação. Há, pois, que introduzir os factos em julgamento para que se prove (ou não) esse propósito, ao invés de se presumir com antecedência que esse intuito delituoso não se verificou.
11 - Se a isto somarmos a atitude furtiva do arguido após o recebimento do preço, o qual se subtraiu aos contactos do queixoso, facto que mostra vertido, em termos indiciários, no art.º 4 da acusação, bem como às tentativas de notificação do Ministério Público em fase de inquérito, mais se adensa, sempre em termos indiciários, é certo, aquele inicial propósito de incumprimento, densificado nesta persistente conduta “contumaz” do arguido.
12 - Acresce que embora tenha, de facto, sido o queixoso a contactar o arguido para a aquisição do rolo de pano, como refere a Mm.ª Juiz, o certo é que foi o arguido que disponibilizou os seus contactos na “internet” e colocou publicidade em tal plataforma, visando, assim, ampliar a captação de putativos clientes e chamar a si o maior número interessados, como veio a acontecer com o queixoso. Dito por outras palavras, se o queixoso quis celebrar um contrato é porque foi colocado nessa posição de negociação pele arguido.
13 - Tais factos, embora não articulados na acusação, estão vertidos no teor de fol.ªs 2/4 e 6 dos autos, elemento de prova que é indicado no requerimento probatório e devia ter sido levado em conta.
14 - Assim, os factos vertidos na acusação, a provar-se a sua veracidade, constituem inexoravelmente crime, sendo certo que dessa peça processual constam todos os demais requisitos previstos no n.º 3 do art.º 311 do Código de Processo Penal. Com efeito, do despacho de acusação constam, para além da imputação de factos constitutivos de um delito penal, a identificação do arguido - al.ª a) - a narração dos factos - al.ª b) - a disposição legal aplicável e as provas que a fundamentam - al.ª c).
15 - Mesmo que a subsunção de tais factos ao cometimento do crime de burla, p. e p. pelo art.º 217 n.º 1 do Cód. Penal possa ser objeto de controvérsia jurisprudencial, a mera defesa da tese que nega tal subsunção não pode conduzir à automática rejeição da acusação, nos termos do art.º 311 n.ºs 2 al.ª a) e 3 al.ª d) do Código de Proc. Penal.
16 - Ao não receber a acusação, a Mm.ª Juiz a quo violou o disposto no art.º 217 n.º 1 do Cód. Penal e o disposto no art.º 311 n.ºs 2 al.ª a) e 3 al.ª d) do Cód. Proc. Penal.
17 - Deve, pois, o douto despacho recorrido ser substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido e que designe data para julgamento do mesmo pela autoria material do crime de burla, p. e p. pelo art.º 217 n.º 1 do Cód. Penal.
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3. Respondeu o queixoso e demandante civil, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:
1 - O MP deduziu acusação nos presentes autos contra o arguido Pedro Rafael Varandas Lopes, imputando-lhe a prática de factos suscetíveis de integrar o cometimento de um crime de burla, p. e p. pelo art.º 217 n.º 1 do CP.
2 - Distribuídos ao Juízo 2 da Secção Criminal da Instância Local de Albufeira, foram os autos conclusos à Mmª. Juiz, que rejeitou a acusação, por a considerar manifestamente infundada, dado considerar que os factos constantes da acusação não consubstanciam o crime de burla (art.º 311 n.ºs 2 alínea a) e 3 alínea d) do CPP).
3 - A Mm.ª Juiz a quo fundamenta a sua decisão na circunstância de lhe parecer que a factualidade imputada ao arguido cai no âmbito do incumprimento contratual do Direito Civil, porquanto, considera que quando o ofendido entregou o dinheiro ao arguido fê-lo a título de pagamento do preço, no âmbito de um contrato sinalagmático de compra e venda, com o que não se concorda.
4 - A jurisprudência maioritária considera que a acusação só pode ser rejeitada por manifestamente infundada, ou seja, desprovida de qualquer fundamento, ou por ausência de factos que a sustentam ou porque os factos nela descritos não integram qualquer tipo de crime, constituindo a realização de julgamento evidente violência desnecessária para o arguido.
5 - Se existirem dúvidas se certa conduta preenche ou não um tipo legal de crime, então deve ser recebida a acusação e levado o arguido a julgamento, pois que, havendo dúvidas, não se poderá dizer que é manifestamente infundada, como exige a lei.
6 - Para além de que os incumprimentos contratuais são instrumentos privilegiados para a prática do crime de burla, quando acompanhados de uma reserva mental antecedente.
7 - Essa reserva mental antecedente só se poderá provar em audiência de julgamento e não presumir que a mesma não se verificou.
8 - Por outro lado, tal como consta da participação e acusação, após o recebimento do valor de € 1550,00, nunca mais o arguido foi encontrado, nem no âmbito do presente processo, apesar das várias tentativas feitas pelo ofendido e posteriormente pela GNR e pelo tribunal, através do MP.
9 - O facto de ter sido o ofendido a contactar o arguido para aquisição do rolo de pano, esse contacto só foi possível porque o arguido publicitou o seu contacto na “internet” como fornecedor daquele tipo de material, criando assim a convicção ao ofendido que era uma empresa séria. E só por isso é que o ofendido telefonou para ele (tais factos cponstam dos auitos como elementos de prova e deviam ter sido considerados pela Mm.ª Juiz).
10 - Os factos constantes da acusação, a provar-se a sua veracidade, constituem crime de burla, p. e p. pelo art.º 217 n.º 1 do CP, e contêm todos os requisitos previstos no n.º 3 do art.º 311 ° do CPP.
11 - Mesmo que possa haver dúvidas se estão ou não preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime, a própria dúvida afasta a possibilidade de rejeição, por não ser manifestamente infundada a acusação (art.º 311 n.º 2 aliena a) do CPP).
12 - O tribunal a quo, ao não receber a acusação, violou o disposto no artigo 217 n.º 1 do CP e o disposto no art.º 311 n.ºs 2 al.ª a) e 3 al.ª d) do CPP.
13 - Nestes termos, e nos demais de direito, deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que receba a acusação nos termos em que foi proferida e que designe data para julgamento.
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4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (fol.ªs 191 a 192), em síntese, porque “a descrição dos factos é manifestamente insuficiente para integrar os elementos objetivo e subjetivo segundo o tipo legal de crime concretamente imputado… não constam descritos elementos susceptíveis de integrar que o arguido determinou o ofendido à entrega do valor de 1.550,00 euros através de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou com vista a obter um enriquecimento ilegítimo…”.
5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência (art.º 419 n.º 3 al.ª b) do CPP), atenta a questão colocada pelo recorrente à consideração deste tribunal (nas conclusões da motivação do recurso, sendo que são estas que delimitam o seu âmbito, em face do disposto no art.º 412 n.º 1 do CPP, e, entre outros, no acórdão do STJ de 97.09.17, Col. Jur., Ano V, t. 3, 173).
A questão que se coloca é, pois - em face de tais conclusões - a de saber se a factualidade constante da acusação deduzida pelo Ministério Público, tal como se apresenta, preenche os elementos objetivos do tipo de crime imputado ao arguido, ou seja, se a mesma não pode considerar-se “manifestamente infundada”.
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5.1. O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido BB, imputando-lhe a prática de um crime de burla, p. e p. pelo art.º 217 n.º 1 do CP (fol.ªs 76 e 77).
Em síntese, consta da acusação:
“…
1
Em data não concretamente apurada, no início do mês de julho de 2013, o arguido… foi contactado pelo ofendido CC, o qual pretendia comprar um rolo de pano para snooker.
2
No seguimento, o arguido disse ao ofendido que lhe venderia o referido rolo pelo preço de € 1.550,00, tendo de imediato solicitado o pagamento de tal quantia através de transferência bancária para a conta cujo NIB indicou.
3
O queixoso efectuou a transferência… em 16.08.2013.
4
Após ter efetuado a referida transferência, o queixoso, por diversas vezes, tentou entrar em contacto com o arguido, não mais o tendo conseguido.
5
O arguido atuou da forma descrita com o conseguido propósito de convencer o queixoso que lhe venderia o mencionado rolo de pano e, consequentemente, a efetuar a referida disposição patrimonial de € 1.550,00, valor de que se apoderou, bem sabendo que nada lhe iria enviar.
6
O arguido atuou da forma supra descrita de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei”.
5.2. Remetidos os autos à distribuição, veio a ser lavrado o despacho de fol.ªs 139 a 145 - o despacho recorrido - no qual se escreveu, em síntese, que não resulta da factualidade imputada ao arguido que este “determinou o ofendido à entrega da quantia de € 1.550,00 euros por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente empregou com vista a um enriquecimento ilegítimo. Não se vislumbra que sagacidade ou penetração psicológica tenha usado… com vista a manipular a vontade do ofendido, ou que concreta astúcia usou de molde a motivar o ofendido em erro.
(…)
… quando o ofendido entrega o referido montante ao arguido fá-lo a título de pagamento de preço, como prestação a que se obrigou por força da celebração do negócio jurídico - no caso, contrato de compra e venda - que, pela sua natureza e regime é sinalagmático… a entrega da quantia pecuniária corresponde ao cumprimento de uma obrigação civil por parte do ofendido… o pagamento do preço do rolo de pano de snooker corresponde à obrigação que o credor (arguido) tem direito e a que o devedor (ofendido) se obrigou…”.
5.3. A nossa posição.
Estabelece o art.º 217 n.º 1 do CP que é punido “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”.
A lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma “muito particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
… não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação de estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlão, dos atos de que decorrem os prejuízos patrimoniais
…a este processo, globalmente considerado, se reconduz o «domínio-do-erro» como critério de imputação inerente à figura da burla e que esgota o sentido da referência à «astúcia» constante do n.º 1 do art.º 217” (Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 2, Coimbra Editora, 1999, 293).
Significa isto, em suma, que a conduta do agente, para além de enganosa, tem de ser levada a cabo de forma astuciosa, ou seja, o estado de erro ou engano do ofendido deverá ser provocado astuciosamente, apta a manipular a vontade da vítima, determinando-a à prática de atos que lhe causem, a si ou a outra pessoa, prejuízo patrimonial, e que de outro modo não praticaria.
Porém, no domínio contratual, situações há em que o crime de burla pode ser praticado, não só por ação - em que o erro ou engano é provocado através de um comportamento ativo do agente (o agente cria o erro) - mas também por omissão, em que esse engano resulta de comportamentos omissivos do agente (o agente limita-se a aproveitar o erro em que o sujeito passivo já incorre, omitindo ou ocultando informações determinantes para a formação vontade, as quais, sendo conhecidas pelo ofendido, evitariam a que o resultado típico se verificasse) - veja-se, entre muitos outros identificados no acórdão da RP de 27.04.2016, o acórdão do STJ de 18.06.2008, ambos in www.dgsi.pt.
No caso em apreço, da acusação consta:
- que o arguido disse ao ofendido que lhe vendia um determinado bem pelo preço de 1.550,00 euros, “tendo de imediato solicitado o pagamento… através de transferência bancária”;
- que o ofendido efetuou a transferência do valor correspondente ao bem;
- que o arguido não entregou o bem e posteriormente não foi mais possível estabelecer qualquer contacto com o mesmo;
- que o arguido atuou dessa forma “com o conseguido propósito de convencer o queixoso que lhe venderia o mencionado rolo... e… a efetuar a referida disposição patrimonial de 1.550,00 euros… bem sabendo que nada lhe iria entregar”, ou seja, em síntese, o arguido criou uma falsa convicção no ofendido (determinante para a entrega da referida quantia) de que estava em condições de lhe entregar o bem cujo preço solicitava (e que recebeu), em suma, de cumprir a sua parte no negócio, quando não estava nem essa era sua intenção (de acordo com o alegado na acusação).
E “atuou… de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei”.
A atuação do agente - assim delimitada - integra, indiciariamente, os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla que lhe era imputado na acusação, pelo que não se pode dizer que esta é manifestamente infundada, entendida esta como a acusação em que os factos nela descritos não preenchem, de forma clara e evidente, os elementos que integram o crime imputado ao agente; como se escreveu no acórdão deste tribunal de 15.11.2016, in www.dgsi.pt, “a acusação só pode ser rejeitada por ser manifestamente infundada… se ocorrer um erro claro (inequívoco, patente, evidente) na qualificação jurídica dos factos, não bastando um simples erro provável, de tal qualificação (nomeadamente, por existir controvérsia jurídica acerca dessa mesmo qualificação ou por o Exm.º Juiz ter da qualificação jurídica dos factos um entendimento diametralmente oposto ao constante da acusação”.
Considerando, pois - pelo exposto - que a acusação não é manifestamente infundada, procede o recurso interposto pelo Ministério Público.
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6. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que, recebendo a acusação, determine o prosseguimento dos autos.
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Sem tributação.
(Este texto foi por mim, relator, integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 18/04/2017
Alberto João Borges (relator)
Maria Fernanda Pereira Palma