Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
72/15.3 JASTB.E1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: PORNOGRAFIA DE MENORES
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
Data do Acordão: 03/16/2017
Votação: DECISÃO DO RELATOR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário:
I – Configura a prática de um crime de trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal.
Decisão Texto Integral:

Decisão sumária

I- Relatório

AB foi absolvido da prática de 539 crimes de pornografia de menores agravados p. e p. pelo artigo 176º, nº. 1, al. d) e 177º, nº. 7, do Código Penal.

Mais, foi absolvido da prática dos 437 crimes de pornografia de menores p. e p. pelo artigo 176º, nº 4, do Código Penal (em virtude da subsunção da respectiva conduta à figura do crime de trato sucessivo).

Sendo condenado pela prática de um crime de pornografia de menores p. e p. pelo artigo 176º, nº 4, do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano, sob as seguintes condições:

1- obrigação de entregar a uma Instituição de Solidariedade Social à sua escolha, preferencialmente vocacionada para a protecção de crianças e jovens, a quantia de € 1.500,00, devendo comprová-lo nos autos no prazo máximo de 3 meses, a contar do trânsito em julgado do acórdão;

2- submeter-se a acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico, no âmbito da sexologia, juntando aos autos, no prazo de dois meses após o trânsito em julgado do acórdão, documento comprovativo.

Inconformado veio o MP interpor recurso, terminando com as seguintes conclusões:

1- O Ministério Público proferiu despacho de acusação contra o arguido AB imputando-lhe à final a prática dos seguintes crimes:

-- 438 crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo arts. 176° nº 4 do Código Penal, a que corresponde atualmente ao nº5 na redação dada pela Lei nº103/2015 de 24 de Fevereiro;

-- 539 crimes de pornografia de menores agravados, p. e p. pelos arts. 176° nº1 al. d) e 177º nº7 do Código Penal.

2- Na douta decisão proferida, entendeu o douto Tribunal a quo

Absolver o arguido AB da prática de 539 crimes de pornografia de menores agravados p.p. pelo art. 176º nº1 al. ad) e 177º nº7, do Código Penal;

Absolver, ainda, o arguido da prática de 437 crimes de pornografia de menores p.p. pelo art. 176º nº4 do Código Penal (em virtude da subsunção da conduta do arguido à figura de trato sucessivo);

Condenar o arguido AB pela prática de um crime de pornografia de menores previsto e punido pelo artigo 176.º n.º 4 do Código Penal na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano.

3- Entendeu aquele douto Tribunal, entre o mais, que se colocava a questão de “... saber se a conduta do arguido é subsumível à figura do concurso de crimes (tal como é imputado na acusação), ou do crime continuado, ou se estamos perante um crime único de trato sucessivo.”

4- O douto Tribunal recorre à aplicação no caso em apreço à figura do crime exaurido ou de trato sucessivo porquanto

“...neste domínio, dos crimes contra a autodeterminação sexual de menores, em certas situações, a subsunção ao crime de trato sucessivo, tratando-se esta de uma figura que não vem contemplada na lei, sendo caracterizada pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, como sendo um crime habitual, cuja consumação se prolonga no tempo por força da prática de uma multiplicidade de atos reiterados e sucessivos, cuja contagem não se mostra possível efetuar.(...)

Acresce que não é possível a identificação das vítimas. “

5- Salvo o devido respeito, por aquela douta decisão, que é muito, não podemos concordar quando ali se diz que o caso dos autos consubstancia uma situação típica de crime de trato sucessivo ou exaurido porquanto se reporta a uma “multiplicidade de atos reiterados e sucessivos, cuja contagem não se mostra possível efetuar”. A que acresce que não é possível a identificação das vítimas.

6- O Tribunal a quo deu como provado, entre o mais, que o arguido tinha na sua posse 977 ficheiros de pornografia de menores.

Assim, o tribunal a quo dá como provado que no seu computador o arguido detinha este número concreto de ficheiros, descriminados nas diferentes modalidade de detenção e partilha.

Pelo que, não pode o Ministério Público aceitar quando na douta decisão se conclui que “ a contagem não é possível efetuar”.

7- E, assim sendo, não pode, também, o Ministério Público concordar que o arguido seja punido apenas por um crime de detenção, nos moldes sustentados no douto Acórdão recorrido, pois no caso dos autos sabe-se, e foi dado como provado, quantos ficheiros o mesmo detinha. E a cada um destes corresponde um crime praticado pelo arguido.

8- Acresce que, ressalvado o devido respeito por opinião contrária, também não assiste razão quando o douto Tribunal fundamenta a sua decisão alegando que não é possível a identificação das vítimas, porquanto a concreta identificação das vítimas não constitui elemento do tipo de pornografia de menores previsto e punido no art. 176º do Código Penal, bastando-se que os intervenientes sejam pessoas com idade inferior a 18 anos. – neste sentido Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 17.03.2015, Proc. Nº524/13.0JDlSB.E1, disponível em www.dgsi.pt

9- Sempre se dirá que a Jurisprudência invocada pelo douto Tribunal a quo – referida em cima sob o ponto III- para fundamentar a sua decisão, se reporta à prática do crime de abuso sexual de crianças, e não ao crime de pornografia de menores.

10- Neste sentido, entendemos que não havia necessidade de recorrer à figura jurídica do crime exaurido ou de trato sucessivo. Antes havendo que aplicar o disposto no art. 30º nº1 do Código Penal: o número de crimes determina-se pelo número de vezes que o mesmo crime foi cometido – 438 no caso do nº4 do art. 176º.

(Porquanto no que concerne à partilha, o douto Tribunal absolveu o arguido por considerar que existia falta de consciência da ilicitude).

11- Ao decidir como decidiu o douto Tribunal a quo fez uma incorreta aplicação do art. 30º nº1 do Código Penal, em violação do mesmo, e consequentemente quanto ao número de crimes pelos quais condenou o arguido, devendo condenar pelos 438 crimes, em concurso real, e não por 1 crime na forma exaurida.

Consequentemente,
12- Em face do que acima se deixou consignado e ponderando os factos na sua globalidade, afigura-se-nos que a pena aplicada ao arguido não reflete a censura que o comportamento do mesmo, e o número de crimes praticados, merece.

13- Ainda que o arguido não seja o “abusador” que surge nos ficheiros, a sua conduta não é menos censurável porque a verdade é que alimenta toda uma indústria de exploração sexual de crianças, não raras vezes associada ao sequestro e tráfico das mesmas para esse fim.

14- Os índices de prevenção geral pela prática deste ilícito – ainda que seja o de pornografia de menores (e não o de abuso em si) são elevadíssimos, causadores na comunidade de “choque” e insegurança “ (...) dada a forte e crescente censura desses comportamentos numa sociedade que se quer protetora da vulnerabilidade própria dos menores e dissuasora da fácil acessibilidade a conteúdos pornográficos a coberto do anonimato e do silêncio, da proliferação de atitudes tendencialmente pedófilas, da deterioração de valores e de cultura que potenciam…”. – in Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 17.03.2015, Proc. Nº524/13.0JDlSB.E1, disponível em www.dgsi.pt

15- Mas no caso em apreço, de igual modo, as exigências de prevenção especial se revelam elevadas. O móbil do crime mais não é do que a satisfação dos instintos libidinosos do arguido e, pese embora, o arguido tenha algum apoio familiar, dos autos não resulta uma diminuição do risco de reincidência.

O arguido respondeu ao recurso pugnando pela respectiva improcedência.

Nesta Relação, o Exº PGA emitiu douto parecer no mesmo sentido da improcedência do recurso.

II- Fundamentação
A- Factos Provados

“1) No dia 16 de Março de 2015 o arguido AB entregou na loja “T…, PT”, sita na Av. Bento Gonçalves – Shopping Aranguez – Loja ---, em Setúbal um computador portátil da marca Toshiba, modelo Sattelite L750-1ME, com o número de série XB465451W, a fim de ser reparado, porquanto não ligava.

2) Para efeito da reparação foi elaborada a “Folha de Assistência” na qual JP, legal representante da supra referida loja, apôs o nome “M” e o número de telemóvel 96----, que lhe tinha sido indicado pelo arguido, e atribuiu o nº “540” à ordem de reparação em causa, colocando na base do computador um papel autocolante com o número “ OR540” inscrito, manualmente.

3) JP solicitou a MM que efetuasse a reparação, a quem fez a entrega do portátil.

4) Quando MM ligou o referido computador verificou que no Desktop (ambiente de trabalho) se encontrava uma pasta com o título “shared folder”. E ao verificar o seu conteúdo constatou a existência de inúmeros ficheiros de vídeo, sob o nome “porno infantil”. Ao aperceber-se dos títulos dos ficheiros dirigiu-se, de imediato, à Polícia Judiciária onde fez a entrega do mesmo e reportou o sucedido.

5) No dia 28 de Abril de 2015, em resultado da busca domiciliária realizada à residência do arguido, sita na Avenida das Descobertas, …., em Setúbal, foi aí encontrado e apreendido diverso material informático, pertença do arguido, com conteúdos multimédia de abuso sexual de crianças, menores de 14 anos, em atos explícitos de práticas sexuais, designadamente, um computador portátil de marca ASUS, modelo Sonic Masters, com o número de serie E7N0CV113507280 que se encontrava ligado e a fazer descarga de ficheiros, através da aplicação de partilha, na internet denominada BitComet, aplicação esta que estava configurada de modo a que se procedesse à partilha ilimitada de ficheiros com terceiros.

6) No computador aludido em 5), o arguido instalou, em data não concretamente apurada, mas anterior a 16.03.2015, um programa de partilha de ficheiros denominado “ARES” que funciona em sistema de rede Torrent peer to peer.

7) Servindo-se de tal programa, o arguido passou, então, a efetuar pesquisa na internet de ficheiros de imagem e vídeo, de natureza pornográfica e onde existissem intervenientes menores de idade.

8) Localizados que eram esses ficheiros, o arguido realizava o download dos mesmos, gravando-os na memória do computador ou em discos externos que possuía e possibilitando, através do programa referido supra, que terceiros tivessem acesso aos referidos ficheiros, mediante a partilha automática dos mesmos.

9) Foi, ainda, apreendido no âmbito da busca domiciliária realizada à residência do arguido um disco externo da marca WD, modelo WD15EADS, com o número de série WMAVU2018838 e outro disco externo da marca Toshiba, modelo 26874495, com o número de série 335XCDHDTN69.

10) Os discos externos mencionados no ponto 9) continham ficheiros que já antes tinham estado armazenados em pasta do disco do computador portátil de marca ASUS, permitindo-se assim a partilha ilimitada dos mesmos.

11) Efetuada perícia forense pela U.T.I. (Unidade de Telecomunicações e Informática) apurou-se que, na sua posse, o arguido detinha 977 ficheiros de pornografia de menores armazenados nos seguintes termos:

a) No Portátil Toshiba: 398 ficheiros de imagem (fotos) e 32 ficheiros de vídeo (31 alocados na pasta de partilha, logo a serem partilhados e 1 não alocado) + dois programas de partilha “Ares” e “Bitcomet”;

b) No Portátil Asus: 508 ficheiros de imagem (fotos) + dois programas de partilha “Ares” e “Bitcomet”;

c) No Disco externo Toshiba: 39 ficheiros de vídeo.

12) Nos computadores e discos externos apreendidos ao arguido, acima referidos, este possuía e, ao efetuar o download, partilhava com terceiros, uma vasta quantidade de compilação de ficheiros de imagens reais, fotografias, filmes e gravações de crianças, de menores com idades inferiores a 14 anos, alguns ainda bebés, em práticas sexuais com adultos e entre si, exibindo de forma lasciva os órgãos sexuais, como se afere designadamente pelos fotogramas juntos aos autos, onde se pode visualizar:

- Imagens de crianças de idade inferior a 14 anos, a praticarem sexo oral com adulto, introduzindo na boca o pénis deste (cfr. fls. 17, 61, 62, 63 e 71);

- Imagens de crianças de sexo feminino de idade inferior a 14 anos algumas aparentando entre 4 a 6 anos, a praticarem ato sexual de cópula com adulto (cfr. fls. 70,71 e 72);

- Imagens de crianças de idades inferiores a 12 anos, aparentando algumas idades entre 4 a 6 anos, a exibirem a vagina, o ânus e o sémen de adulto (cfr. fls. 18, 62, 71 e 72);

- Imagens de menores de 12 anos despidas, exibindo os órgãos sexuais (cfr. fls. 70);

- Imagens de crianças de idade inferior a 14 anos onde é visível a introdução de dedo de adulto na vagina e ânus das mesmas (cfr. fls. 18, 61 e 63);

- Imagem de criança de idade inferior a 14 anos amarrada de pés e mãos com tiras de pele preta presas ao pescoço e com uma máscara preta nos olhos (cfr. fls. 70).

13) O arguido bem sabia que os ficheiros encontrados nos suportes informáticos acima descritos, com imagens pornográficas, expunham menores, com idade inferior a 14 anos e que, por tal circunstância, estava proibida a sua detenção, exibição, cedência ou partilha.

14) O arguido quis deter, nos referidos computadores, imagens de menores utilizados em filmes e gravações pornográficos de conteúdo sexual, para satisfazer a sua libido, o que conseguiu, bem sabendo que a sua detenção era proibida.

15) O arguido tinha perfeito conhecimento de que as referidas imagens e filmes de teor pornográfico, com utilização de crianças, induzem a exploração efetiva dessas crianças, utilizadas para a realização dos filmes e fotografias em causa, não obstante, não se inibiu de as visionar, armazenar e deter nos suportes informáticos, que se encontravam na sua posse, tendo, através do programa utilizado partilhado também algum desse material com terceiros.

16) O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Factos atinentes à personalidade e às condições pessoais do arguido:

17) O arguido tem origem numa família do Norte de Portugal de estrato socioeconómico baixo e com um ambiente relacional/educativo deficitário em termos de afetos e proteção. Iniciou a atividade laboral aos onze anos de idade numa casa agrícola e aos dezassete anos estabeleceu-se em Setúbal, cidade onde os irmãos viviam e onde começou a trabalhar na área da restauração.

18) Após o cumprimento do serviço militar obrigatório, ingressou na PSP, em Abri1 de 1978, onde desenvolveu a sua carreira profissional, particularmente em atividades de carácter processual.

19) Nos anos 1990 e 2000 (aos 36 anos) estudou Direito na Universidade Moderna, de que viria a desistir, segundo referiu, por a organização e qualidade do ensino não corresponder às suas expectativas.

20) Em 2013 viria a reformar-se após ter completado as condições necessárias para a aposentação.

21) Em termos relacionais, salienta-se a relação matrimonial estabelecida aos 30 anos de idade com MM, após dois anos de namoro. O casal teve uma filha, tendo o papel educativo e parental assumido um relevo particular na forma como a família se organizou.

22) Na vivência conjugal ocorreu a doença oncológica da mulher numa fase precoce do casamento com repercussões ao nível da intimidade. O casal viria a encontrar o seu equilíbrio numa dinâmica baseada no companheirismo e na funcionalidade da família que ambos consideraram como satisfatória.

23) Ao nível social, o arguido não mantinha relacionamentos significativos, as suas relações interpessoais circunscreviam-se ao ambiente profissional e familiar.

24) À data dos factos, o arguido vivia com a mulher - a filha já se tinha autonomizado - mantendo um estilo de vida sedentário. Após a reforma passou a permanecer a maior parte do tempo na habitação e muito centrado em atividades através da internet – audição de música, visualização de filmes, utilização de redes sociais – isolando-se no quarto que ocupava.

25) A mulher e a filha (que mantém hábitos de convivência próxima com os pais) começaram a notar alterações no seu comportamento, nomeadamente, isolamento, progressiva desvinculação afetiva - afastamento -, tristeza e alguma confusão e exagero na utilização da internet, no tempo e na quantidade de downloads. Na altura sugeriram-lhe a procura de ajuda psicológica mas o arguido não reconheceu a necessidade de uma intervenção clínica.

26) O arguido apresenta capacidade de autoanálise e auto-revelação, não omitindo áreas da sua intimidade, nomeadamente da sua vida sexual. Reconhece a importância que a internet, nas suas várias vertentes, passou a desempenhar na sua vida, quer em termos de ocupação do tempo (acesso a atividades do seu interesse, como a música/filmes/séries), quer em termos relacionais (conhecimento de pessoas e interações/conversas através desta via) e também da sua própria intimidade (acesso a conteúdos de natureza sexual). Qualifica esta utilização como uma relação maioritariamente virtual com o mundo, que muitas das vezes não encontra paralelo na realidade.

27) O arguido foi detido em 28/04/2015, estando, desde, então, sujeito a medidas coativas privativas da liberdade, prisão preventiva e OPHVE.

28) A presente situação jurídico-penal está a ser vivida com forte penosidade pelo arguido, quer por todas as implicações das medidas de coação aplicadas, quer pelo impacto que teve na sua família. O arguido expressa sentimentos de vergonha e tristeza pelas consequências que provocou, nomeadamente o sofrimento causado à família.

29) Desde que se encontra sujeito às medidas coativas no âmbito do presente processo, o arguido tem realizado consultas de várias especialidades (psiquiatria, neurologia, psicologia clínica e forense) com o objetivo de conseguir um diagnóstico que o ajudasse a identificar a origem/causas do seu comportamento. A posição apresentada é de reconhecimento do sofrimento das vítimas e de tomada de consciência da implicação/reforço, ainda que indireto, destas práticas.

30) O arguido mostrou-se disponível para iniciar um processo terapêutico com objetivos quer de autoconhecimento, quer de ajuda e orientação relativamente às mudanças pessoais que seja necessário realizar.

31) A família do arguido tem manifestado apoio e disponibilidade para lidar com a presente situação jurídico-penal, não obstante o sofrimento e a atitude crítica revelada, reforçando aquela a necessidade do arguido ser sujeito a uma intervenção clínica/ psicoterapêutica.

32) No desempenho da sua atividade profissional, na PSP, os colegas e superiores hierárquicos com quem privou consideram-no uma pessoa trabalhadora, esforçada e sem problemas de relacionamento.

33) O arguido tem-se apresentado muito deprimido, ansioso, com inquietação e pensamento ruminativo, estando a ser acompanhado em psiquiatria, pela médica psiquiatra Drª. ML.

34) O arguido não tem antecedentes criminais”.

B- Factos Não Provados

“- que o arguido quisesse partilhar com terceiros os ficheiros que detinha e que lhe foram apreendidos ou representasse que, através do programa utilizado, estava a realizar tal partilha”.

C- Qualificação Jurídica (parte relevante)
“… É, pois, manifesto o preenchimento pelo arguido, através da sua descrita conduta, do elemento objetivo do tipo de crime previsto no n.º 4 do artigo 176.º do Código Penal.

E tendo-se provado também que o arguido conhecia o conteúdo dos ficheiros, bem como o seu carácter proibido, tendo descarregado da internet e gravado em ficheiro de forma livre e consciente, pelo que se encontra igualmente preenchido o elemento subjetivo do tipo de crime, agindo o arguido com dolo direto (cfr. artigo 14º, nº. 1).

Assim sendo, dúvidas não existem do preenchimento de todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime previsto no artigo 176º, nº. 4, do C.P.

Já relativamente ao crime de pornografia de menores na modalidade típica prevista na al. d) do nº. 1 do artigo 176º, entendemos não poder concluir-se que o arguido o preencheu. Com efeito, pese embora tenha ficado provado que o arguido através do programa ARES que instalou no computador, ao fazer download dos ficheiros em questão, possibilitava a partilha dos mesmos com terceiros, sendo tal atuação passível de integrar o tipo objetivo do crime ora referenciado, não se tendo provado que o arguido quisesse ou tivesse a intenção de partilhar com terceiros os ficheiros que detinha e que lhe foram apreendidos ou representasse que, através do programa ARES utilizado, estava a realizar tal partilha, sendo que a partilha era automática logo que fosse feito o download, não pode considerar-se preenchido o tipo subjetivo do crime de pornografia de menores na modalidade típica prevista na al. d) do nº. 1 do artigo 176º, pelo que, tem o arguido de ser absolvido em relação a tal ilícito, por que vem acusado…

Aqui chegados coloca-se a questão de saber se a conduta do arguido é subsumível à figura do concurso de crimes (tal como é imputado na acusação), ou do crime continuado, ou se estamos perante um crime único de trato sucessivo

… Assim, a realização plúrima do mesmo tipo de crime constituirá, em princípio um concurso de infrações, mas pode constituir:

a) Um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou a resolução inicial; ou,

b) Um só crime na forma continuada, se toda a atuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por fatores externos que arrastam o agente para a reiteração da conduta criminosa.

Deste modo, para que se verifique um crime único, mesmo que traduzido em diversas condutas semelhantes, é necessário que estas últimas resultem de uma só e única resolução criminosa.

E para optar pelo crime continuado, é necessário que, além do mais, a reiteração advenha de uma mesma situação externa que diminua consideravelmente a culpa do agente.

Temos, pois, que tratando-se do "mesmo tipo de crime", "o número de vezes que ele é preenchido", conta-se pelo número de resoluções criminosas.

E, havendo mais do que uma resolução, a regra será a do concurso real de crimes; a continuação criminosa será uma exceção, a aceitar quando a culpa do agente se mostre consideravelmente diminuída, mercê de fatores exógenos que facilitem a recaída ou recaídas.

Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 139, nota 29: “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele ativamente a provoca.”

Certo setor da doutrina e da jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, sobretudo do STJ, tem vindo a defender, neste domínio, dos crimes contra a autodeterminação sexual de menores, em certas situações, a subsunção ao crime de trato sucessivo, tratando-se esta de uma figura que não vem contemplada na lei, sendo caracterizada pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, como sendo um crime habitual, cuja consumação se prolonga no tempo por força da prática de uma multiplicidade de atos reiterados e sucessivos, cuja contagem não se mostra possível efetuar. No sentido que se deixa enunciado, citam-se, entre outros:

O Acórdão do STJ de 12/6/2013, proferido no proc. 1291/10.4JDLSB, em que no confronto entre o crime continuado e o crime de trato sucessivo, decidiu:

«(…) IV- O crime de trato sucessivo serve também hipóteses de pluralidade de crimes, mas cuja prática conforma uma actividade, prolongada no tempo, em que se torna tarefa difícil, se não arbitrária, definir o concreto número de actos parcelares que a integram. No entanto, diferentemente do que é requerido na figura do crime continuado, não se verifica uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente. (…)»

O Acórdão do STJ, de 29/11/2012, proferido no proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, acessível no endereço www.dgsi.pt, no qual se decidiu:

«I- Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

II- O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.

III- A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.»

E o Acórdão do STJ, de 22/01/2013, proferido no proc. n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1, acessível no endereço já citado supra, em cujo VIII do respetivo sumário se escreve: «Configura o trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal.»

Seguindo aqui de perto, o decidido no Acórdão da Relação de Lisboa de 15/12/2015, proferido no proc. 3147/08.JFLSB.L1-5, acessível no endereço www.dgsi.pt, cujas considerações jurídicas a este propósito passamos a citar:

«É essa unidade de resolução, a par da homogeneidade da actuação e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos vários actos sucessivos num só crime. O dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando as condições da sua realização, estando-se no plano da unidade criminosa. A reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada do mesmo, existindo ainda um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo (vide neste sentido, designadamente: Ac. do STJ de 02/10/2003, in CJSTJ, 2003, T.3, p.194; Ac. do STJ de 14/06/2007, in CJSTJ, 2007, T. 2, p. 220; Ac. do STJ, de 07/10/2010, in CJSTJ, 2010, T. 1, p. 176; Ac. do STJ, de 29/11/2012, de 13/06/2013, in www.dgsi.pt, entre outros).»

Conforme expendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/06/2013, com o qual se concorda «A solução do crime de trato sucessivo serve também hipóteses de pluralidade de crimes mas cuja prática conforma uma “actividade”, prolongada no tempo, e em que se torna tarefa muito difícil, se não arbitrária, definir o concreto número de actos parcelares que a integram. No entanto, diferentemente do que é requerido para a afirmação da figura do crime continuado, não se verifica uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa do agente (in www.dgsi.pt).»

… «Todavia, verifica-se a reiteração de condutas essencialmente homogéneas, unificadas por uma mesma resolução criminosa. Acresce que não é possível a identificação das vítimas.

Deste modo, atenta a factualidade apurada nos autos, existiu por parte do arguido um dolo inicial que abarcou os factos que praticou ao longo do período apurado. Ou seja, a conduta do arguido é fruto de uma unidade resolutiva, que abarcou ab inicio as circunstâncias de modo e lugar, sendo que a consumação do crime prolongou-se no tempo.»

Considera, assim, este Coletivo de Juízes, que, no caso vertente, o arguido não praticou, em concurso real, 438 crimes, tal como vem acusado, mas um crime «prolongado ou de trato sucessivo» de pornografia de menores p. e p. pelo artigo 176º, nº. 4, do C.P”.

Apreciando

Pugna o recorrente pela punição do arguido, em pena efectiva de prisão, pela prática de 438 crimes de pornografia de menores, p. e p. pelo art. 176º, nº4 CP (antes da alteração introduzida pela Lei nº 103/2015 de 23 de Agosto), por entender que no caso dos autos sabe-se o número de crimes cometidos pelo arguido, tantos quantos os ficheiros contabilizados e com conteúdo de pornografia de menores que o mesmo detinha.

Por seu turno, o arguido e o Exº PGA pugnam pela improcedência do recurso, referindo este último, com inteira pertinência no respectivo parecer o seguinte:

“… Embora respeitemos a posição assumida pela Exª Magistrada recorrente afigura-se-nos mais consentânea a assumida pelo Tribunal a quo.

De facto, sufragamos a posição assumida pelo Supremo Tribunal de Justiça nos seus acórdãos de 22 de Janeiro de 2013 e de 13 de Junho de 2013, invocados na decisão ora recorrida, quando se diz que “Configura o trato sucessivo a existência de um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal” e “A solução do crime de trato sucessivo serve também hipóteses de pluralidade de crimes e em que se torna tarefa muito difícil, se não arbitrária, definir o concreto número de actos parcelares que a integram”.

Por sua vez, e quanto à pena concretamente aplicada.

Ao arguido foi-lhe aplicada a pena de 10 meses de prisão, cuja execução lhe foi suspensa pelo período de um ano.

Se é certo que a prática deste tipo de crime choca a generalidade das pessoas, levando a que os critérios de prevenção geral sejam muito exigentes, não é menos certo que sendo o arguido um delinquente primário lhe deverá ser dada uma oportunidade de arrepiar o caminho traçado até aqui, interiorizando o malefício da sua conduta.

Deste modo, não nos parece que a decisão ora recorrida deva ser alterada.

Pelo exposto, somos de parecer de que o recurso não merece provimento e, por conseguinte, ser de manter a douta decisão recorrida”.

Ora, compulsados os autos, resulta patente a razão que assiste ao Exº PGA, subscrevendo-se o respectivo entendimento, em consonância com a melhor doutrina e jurisprudência, onde de forma escorreita e pertinente se esclarece a situação em análise, tornando manifestamente desnecessários quaisquer outros acrescentos, julgando-se, em consequência, improcedente o recurso.

Destaque-se, somente, uma pequena passagem do Ac. TRE de 5-7-2016, pr. 255/13.0 TELSB.E1, sendo relator o mesmo dos presentes:

“… O Tribunal a quo analisou, assim, tal questão:

“Do concurso de crimes
O arguido vem acusado de 6022 crimes p. e p. pelo artigo 176.º n.º 4.º e 191 crimes p. e p. pelo artigo 176.º n.º 1 alínea d), todos do Código Penal.

Não é defensável a aplicação da figura do crime continuado nos presentes autos, considerando o bem jurídico que o legislador quis salvaguardar por um lado - liberdade e autodeterminação sexual de crianças - e o facto de não se vislumbrar uma qualquer diminuição da culpa apta a preencher a previsão do disposto no artigo 30º, n.º 2 do Código Penal. Pelo contrário, vislumbrando as imagens e vídeos constantes nestes autos, chocantes para qualquer comum homem médio, apenas será defensável que por cada visualização o arguido fosse compelido a cessar a prática criminosa, e não o contrário. Verifica-se um aumento do grau de culpa e não uma diminuição.

Não obstante, a condenação pela prática de milhares de crimes não se vislumbra razoável, desde logo por não ter sido individualizado cada um dos downloads, e cada uma das partilhas. A própria descrição em sede de acusação e que se seguiu na descrição dos factos provados, trata a atuação do arguido como um todo, apenas distinguindo a conduta que integra cada um dos dois tipos de crime que aqui estão em causa.

Nestes casos tem a nossa jurisprudência defendida a figura do crime de trato sucessivo, ou crime exaurido, não contemplada na lei. Caracteriza esta figura como sendo um crime habitual, cuja consumação se prolonga no tempo por força da prática de uma multiplicidade de atos reiterados e sucessivos, cuja contagem não se mostra possível efetuar. Veja-se neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/2012, proferido no proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, acessível no endereço www.dgsi.pt. Aqui é feita a analogia – bem – com o crime de tráfico de droga em que não se contabiliza um crime por cada ato de venda. Dentro da moldura penal aplicável, o crime será tanto mais grave quanto o número de vezes que a conduta foi repetida.

Afigura-se ser de aplicar esta figura nos presentes autos. Com efeito, pese embora o conteúdo chocante das imagens, não deverá o abusador ser confundido com o consumidor da imagem do abuso. São ambas as condutas muito graves, mas incomparáveis, como será incomparavelmente mais grave a conduta do autor de um abuso sexual de menor de 14 anos do que o consumidor de milhares de ficheiros de imagens de abuso.

Termos em que será o arguido condenado pela prática em concurso real efetivo e na forma consumada de um crime de pornografia de menores previsto e punido pelo artigo 176.º n.º 4 do Código Penal e um crime de pornografia de menores previsto e punido pelo artigo 176.º n.º1 alínea d) e 177.º n.º 6 do Código Penal”.

Ponderada a situação em causa, afigura-se-nos que tal enquadramento jurídico da matéria fáctica apurada não merece qualquer censura.

Na verdade os potenciais mais de 6200 crimes não se mostram individualizados, devidamente concretizados, de modo a que possa saber-se relativamente a cada um deles que tipo de factos concretos estão em causa e o que se censura ao arguido, sendo constitucionalmente inadmissível por violador do contraditório e do respectivo direito de defesa do arguido qualquer tentativa de imputação de concurso efectivo de crimes efectuada de forma simplesmente genérica e conclusiva, sem a exigível e devida concretização crime a crime.

Aliás, tal como a jurisprudência dos Tribunais superiores tem apontado amiúde, máxime no tocante a situações de tráfico de estupefacientes ou de violência doméstica.

Assim, por exemplo:
Ac. STJ de 6-11-2008, pr. 08P2804, rel. Rodrigues da Costa, in www.dgsi.pt

“Uma imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contra-ordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar”.

Ac. STJ de 2-7-2008, pr. 07P3861, rel. Cons. Raul Borges
“XX - Resultando da matéria de facto apurada apenas que (aqui se excluindo factualidade abrangida por anterior condenação judicial), após 03-11-2003, o arguido, que havia estado preso e voltara a viver com a mulher e as filhas, «continuou a consumir bebidas alcoólicas e, por algumas ocasiões, em datas não apuradas», agrediu aquela «com bofetadas» e que com «frequência era chamada a Polícia àquela residência», impõe-se concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das agressões e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido o número de ocasiões em que tal ocorreu, a quantidade de bofetadas em causa ou qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram desferidas, ao local do corpo da ofendida atingido e às suas consequências, em termos de lesões corporais ou de efeitos psíquicos, também se desconhecendo, além do contexto de consumo de álcool, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal.

XXI - Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. N.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. N.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. N.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. N.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. N.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. N.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. N.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. N.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. N.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. N.º 4197/07 - 3.ª.” .»

Ac. STJ de 21-2-2007, pr. 06P3932, rel. Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt

“VIII- O arguido só pode contrariar a acusação ou a pronúncia, de forma adequada e eficaz, se naquelas peças processuais se encontrarem vertidos especificadamente e com clareza os factos imputados, isto é, o caso concreto ou particular submetido a julgamento. De outro modo, ou seja, perante uma acusação ou uma pronúncia constituídas por factos genéricos, não individualizados, fica ou pode ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender.

IX- Com efeito, ninguém pode contestar, eficazmente, a imputação de uma situação abstracta ou vaga, muito menos validamente contraditar a prova de uma tal situação”.

Ac. STJ de 15-12-2011, pr. 17/09.0TELSB.L1.S1, rel. Raul Borges, in www.dgsi.pt

“Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante deste Supremo Tribunal, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o imputado comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente - neste sentido, podem ver-se os acórdãos de 06-05-2004, processo n.º 908/04-5.ª; de 04-05-2005, processo n.º 889/05; de 07-12-2005, processo n.º 2945/05; de 06-07-2006, processo n.º 1924/06-5.ª; de 14-09-2006, processo n.º 2421/06 - 5.ª; de 17-01-2007, processo n.º 3644/06-3.ª; de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3.ª; de 21-02-2007, processos n.ºs 4341/06 e 3932/06, ambos da 3.ª Secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07-3.ª; de 16-05-2007, processo n.º 1239/07-3.ª; de 15-11-2007, processo n.º 3236/07-5.ª, podendo ver-se ainda os acórdãos deste Supremo Tribunal de:

04-07-2007, processo n.º 2303/07-3.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 234 – A imputação genérica de uma actividade de tráfico, no concreto, de venda de quantidade não determinada de droga e a indefinição daí sequente, não oferece qualquer relevância em termos de qualificar a actuação do arguido;

31-01-2008, processo n.º 1411/07-5.ª (citando o acórdão de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3.ª) - Como vem sendo pacificamente entendido pela jurisprudência do STJ, «as imputações genéricas, designadamente, no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente»;

02-04-2008, processo n.º 4197/07-3.ª, por nós relatado (São de evitar as imputações genéricas com utilização de fórmulas vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras, que afastarão a qualificação) e n.º 578/08-3.ª (neste afirmando-se que a dúvida sobre a quantidade de droga vendida a vários consumidores, durante vários meses, desacompanhada de outro elemento coadjuvante, e apresentada de forma indeterminada e em jeito de imputação genérica, tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo);

02-07-2008, processo n.º 3861/07-3.ª, por nós relatado, em caso de imprecisão de matéria de facto em sede de crime de maus tratos a cônjuge;

03-09-2008, processo n.º 2044/08-3.ª - A imputação genérica de uma actividade de venda de quantidade não determinada de droga e a indefinição sequente nunca poderão ser valoradas num sentido não compreendido pelo objecto do processo, mas apenas dentro dos limites da acusação, e quanto à matéria relativamente à qual existiu a possibilidade de exercício do contraditório. É evidente que tal em nada colide com as inferências que, em termos de lógica e de experiência comum, são permitidas pela prova produzida, mas sempre dentro daqueles limites. O exercício do contraditório está necessariamente carente de objecto perante uma imputação de tal forma genérica e imprecisa que pode ser concretizada das mais diversas formas e com significados jurídicos diversos. Apela igualmente ao princípio in dubio pro reo como forma de equacionar a dúvida para a transposição do tipo legal em apreço (do mesmo relator o acórdão de 09-06-2010, processo n.º 1699/07.2TBEVR.S1-3.ª);

02-10-2008, processo n.º 1314/08-5.ª – A propósito da agravante da alínea b) refere não poderem os factos indeterminados, pouco precisos nos seus contornos, servir para agravar substancialmente as penas do crime de tráfico, quando este já é muito severamente punido. Além disso, a própria lei já parte de conceitos indeterminados, de forma a acrescentar à indeterminação legal a indeterminação ou imprecisão dos factos é correr um risco muito acentuado no que diz respeito às garantias do processo criminal.

06-11-2008, processo n.º 2804/08-5.ª - Uma imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contraordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar.

20-11-2008, processo n.º 3269/08-5.ª - “Certas referências a “ aquisição de droga”, sem outra concretização, não passam de afirmações genéricas, insusceptíveis de contradita, pois não se sabe se houve uma verdadeira aquisição, se foi de estupefacientes, quando foi feita, a quem, o que foi efectivamente adquirido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. por disso, a aceitação dessas afirmações como “factos” inviabiliza o direito de defesa que assiste ao arguido e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32.º da Constituição”.

25-03-2009, processo n.º 380/09-5.ª – A jurisprudência do STJ tem sido firme em afastar os factos genéricos de qualquer incriminação propriamente dita, pois muitas vezes são resultantes de meras observações feitas na fase investigadora do processo, e que são indicadas nos relatórios policiais como diligências de prova que foram levadas a cabo, pelo que nem deveriam fazer parte da acusação.

27-05-2009, processo nº 484/09 (relatado pelo ora relator) - As imputações genéricas, designadamente, no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa, constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.

Sem a individualização concreta e clara dos actos integrantes da actividade do arguido, a referência vaga e indeterminada não relevará para efeitos de enquadramento de tráfico com a amplitude temporal certificada nas instâncias, ou seja, durante cerca de 4 anos e 5 meses.

Não pode ser conferida toda essa amplitude, a extensão da conduta, pois não se concretiza o modo de execução, os locais onde tiveram lugar as vendas, a periodicidade da sua realização, se os compradores eram revendedores ou meros consumidores, e quanto a qualidade, o que foi efectivamente vendido, se haxixe, ou heroína.

Tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente nestes casos pronunciar-se sobre a afirmação genérica em causa, uma vez que não concretizada ou individualizada noutros pontos da matéria de facto, no que respeita a alguns períodos.

Nesta conformidade, cumpre concluir que a imprecisão inviabiliza a sua aceitação para efeitos penais - exceptuados os casos concretizados - designadamente, para efeitos de consideração da indicada delimitação temporal da prática do crime, dado que tal constituiria uma violação do direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado.

17-12-2009, processo n.º 11/02. 1PECTB-5.ª - Face a imprecisão do relato factual, atenta a caracterização do tráfico de estupefacientes como crime de trato sucessivo, é colocada a questão de eventual violação do princípio ne bis in idem, concluindo que a dúvida sobre tal ponto não pode desfavorecer os arguidos…

…No caso ora em apreciação, retirados os factos genéricos, indeterminados, imprecisos, difusos, impeditivos do exercício do direito de defesa, resta um acto isolado, único, falecendo por completo a imprescindível multiplicidade que conduz à afirmação de reiteração, com integração num bando, elemento decisivo do preenchimento da qualificativa, presente no tráfico, como no furto qualificado”.

Jurisprudência esta que, igualmente, tem sido perfilhada nesta Relação de Évora. Vd., por exemplo, os Acórdãos de 1-10-2013 (pr. 948/11.7PBSTR.E1), de 15-12-2015 (pr. 653/14.2TDLSB.E1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, ou o recente Ac. Rel. Évora de 21-6-2016, pr. 76/13.0 GDARL.E1, no qual foi relator o mesmo dos presentes autos.

Por outro lado, a figura do crime de trato sucessivo tem sido utilizada com frequência na jurisprudência do STJ em situações semelhantes à presente.

Para além do acórdão referido na peça recorrida (Ac. STJ de 29/11/2012, pr. 862/11.6TAPFR.S1), assim foi entendido também, entre o mais, nos seguintes casos:

Ac. STJ de de 02-10-2003, pr. 2606/03-5.ª, in CJ-STJ 2003, tomo 3, pág. 194;
Ac. STJ de 14-06-2007, pr. 1580/07-5.ª, CJ-STJ 2007, tomo 2, pág. 220;
Ac. STJ de 23-1-2008, pr. 4830/07-3.ª;
Ac. STJ de 21-10-2009, pr. 33/08.9 TAMRA.E1.S1-3.ª;
Ac. STJ de 7-1-2010, pr. 922/09.1 GAABF-5.ª, CJ-STJ 2010, tomo 1, pág. 176;
Ac. STJ de 20-1-2010, pr. 19/04.2JALRA.C2.S1-3.ª.

Daí que não seja a peça recorrida passível de qualquer censura nesta sede”.

Tão pouco merecendo censura a opção pela suspensão da pena no presente caso perante os termos da respectiva fundamentação utilizada.

III- Decisão
Termos em que se nega provimento ao recurso.

Sem tributação.

Évora, 16/3/2017

António Condesso