Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
322/14.3T8TMR-C.E1
Relator: SILVA RATO
Descritores: ABANDONO DE CÔNJUGE
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 04/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Perante o completo abandono pelo Requerente da sua família – mulher e três filhos menores – por volta de 1955, só vindo a dar notícias por volta de 1961 para se divorciar da Requerida, com quem casara em 1947, a que se seguiu um novo hiato de cerca de 44 anos sem que esta sua família soubesse dele, é perfeitamente plausível que Requerida tenha deduzido que o abandono da família pelo Requerente importaria também o desinteresse pela correspondente quota-parte em quaisquer rendimentos (e despesas) que adviessem do prédio referido, cujo direito veio ao património do dissolvido casal, por morte do pai da Requerida em 1953.
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

Proc. N.º 322/14.3T8TMR-C
Apelação
Comarca de Santarém (Tomar – IC-2ªFM-J1)
Recorrente: (…)
Recorrido: (…)
R27.2015

I. (…) intentou veio instaurar a presente acção especial de prestação de contas, contra o seu ex-cônjuge (…), pedindo que seja condenada a prestar contas da sua gerência e relativa às rendas recebidas quanto ao imóvel sito na Rua (…), nºs 16 a 18, em Tomar, prédio este composto de rés-do-chão, 1º andar e 2º andares e às despesas suportadas, no período compreendido entre 1962 e 2008 e a final, ser esta condenada a entregar ao requerente metade do valor do saldo que se venha a apurar.
Para tanto alegou, em síntese que, Requerente e Requerida foram casados um com o outro sob o regime da comunhão de bens e adveio-lhes ao património comum o prédio supra citado e sito na Rua (…), em Tomar; ambos encontram-se divorciados desde 25.01.1962 e já nessa data os três pisos se encontravam arrendados tal como hoje se mantêm arrendados; a Requerida desde 1962 que não presta contas ao Requerente; desconhece este quais os rendimentos e despesas pagas pela requerida quanto a tal imóvel; ao longo dos anos o Requerente tem solicitado a prestação de contas à Requerida, sendo que esta as nega o que aconteceu no processo de inventário que este corre por apenso, pelo que vem deste modo exigir que a Requerida preste contas da sua administração.
Respondeu a Requerida alegando que não tem de prestar quaisquer contas e o único bem partilhado entre os ora Requerente e Requerida como consta do processo de partilhas principal é ¼ do prédio supra citado e este é um bem que vem da herança aberta por óbito de seu pai (…) que ocorreu em 09.03.1953 no entanto sucede-lhe a sua mãe viúva (…) e ela própria como filha e sua irmã (…), logo feitas as contas da herança apenas coube ¼ a si e onde entra enquanto casado o ora requerente; a sua mãe (…) falece em 29.04.1984 e até aí quem recebeu as rendas relativas aos inquilinos que habitaram nestas fracções foi sua mãe; de qualquer forma o valor das rendas que o requerente reclama também só poderão ser no valor de ¼ das mesmas; ainda assim o requerente atua em manifesto abuso de direito porquanto em 1955, o requerente abandonou a requerida e três filhos menores e nunca mais quis saber deles, tendo emigrado para Léopoldville, no Congo Belga; entretanto ela e o seu companheiro (…), fizeram obras no 1º andar deste prédio onde começou a habitar em 1960 em diante; de resto e quando sua mãe falece continua a ser esta a suportar as despesas com a manutenção e reparação deste prédio sendo que quando falece o seu companheiro em 1993 o inquilino do R/C sai daí à custa do pagamento de 1.000.000$00 (1994), sendo que é a partir daqui que a requerida tem necessidade de fazer grandes obras neste prédio onde despende avultadas quantias tendo de recorrer em parte a empréstimo bancário e ao seu filho mais velho a quem ainda deve dinheiro; também ao longo dos anos suportou despesas com seguros e obrigações fiscais deste imóvel.
Requerente deduziu Réplica em que manteve tudo o por si alegado na p. i..

Efectuado julgamento, foi proferida sentença em que foi decidido o seguinte:
“Pelas razões expostas, condeno a Requerida (…), a prestar contas ao Requerente (…), relativamente ao prédio urbano sito na Rua (…), n.ºs 16 a 18, em Tomar, desde Maio de 1984 até Setembro de 2008.
…”

Inconformada com tal decisão, veio a Requerida interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
1 - Existiu na sentença recorrida omissão de pronúncia quanto à deduzida exceção perentória de "abuso de direito", que inclusive é o do conhecimento oficioso, mesmo em sede de recurso;
2 - Face aos factos dados como provados e outros que constam no processo e no Inventário a que esta acção está apensada, conforme referidos nas motivações deste recurso, fls. nº 3, impunha-se decisão bem diferente, que julgasse procedente aquela exceção;
3 - Na medida em que o Recorrido no exercício desta ação excedeu manifesta e claramente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico do direito a que se arroga.
4 - E isso tanto pela própria acção, redundando um claro "venire contra factum proprium", em combinação com o principio da confiança que ele próprio gerou na pessoa da Recorrente, como pela também clara neutralização do alegado direito.
5 - Efetivamente as várias décadas decorridas, na ausência do Recorrido, bem como a conduta censurável de em 1955 ter abandonado a Recorrente com 3 filhos menores, que o Recorrido sempre ignorou, criou naquela a convicção justificada de que aquele hipotético direito não seria exercido.
6 - Convicção que levou a Recorrente a orientar em conformidade a sua vida, a tomar medidas e adotar ações na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa, lhe acarreta uma desvantagem muito maior do que o seu exercício atempado;
7 - Não bastando, como refere a Mma Juiz "a quo" que o Recorrido venha acionar a Recorrente por um direito que lhe é reconhecido legalmente;
8 - Sendo mister apurar se, embora observando a estrutura formal do poder que ao Recorrido a Lei à partida confere, excedeu ele ou não manifestamente os limites que deve observar, atendendo aos interesses que legitimam a concessão desse poder, que exerça o direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça - e é isto que acontece no caso em apreço!
9 - Conclui-se ter existido abuso de direito. E, ao não decidir assim, na sentença recorrida, violado ficou o artº 334º do Código Civil, sendo que o abuso de direito equivale á falta do direito, devendo revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que absolva a Recorrente de prestação de contas ao Recorrido.
... “

Cumpre decidir.
II. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
-No dia 23.12.1947, casaram um com o outro, (…) e (…), na Conservatória de Registo Civil de Tomar, tendo declarado que o pretendiam fazer no regime da comunhão de bens, conforme assento de casamento que consta de fls. 2 e verso do processo principal de inventário a que estes autos de prestação de contas se encontram apensos.
-No dia 25.01.1962, estes cônjuges divorciaram-se, por sentença proferida em processo de divórcio que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Tomar e há muito transitada em julgado.
-Entretanto, pelo processo de inventário principal nº 6-A/1961, correu termos neste mesmo juízo a partir de 2006, a fim de serem partilhados os bens comuns que fizeram parte deste património conjugal dissolvido.
-Da relação de bens que consta de fls. 49 a 50 desses autos, foram arrolados apenas dois bens a partilhar, a saber, um direito de crédito às rendas vencidas e vincendas relativas aos contratos de arrendamento do prédio sito na Rua (…), nºs 16 e 18, em Tomar e um prédio urbano para casa de habitação composto de R/C com três divisões e um 1º e 2º andares, do prédio sito na Rua antes referida, inscrito na matriz urbana sob o artigo (…) e descrito na CRP de Tomar sob a ficha nº …/20051127 e com o valor patrimonial de 49.527,14 €.
-Entretanto, foi apresentada reclamação a esta relação de bens, na qual se decidiu que a dita distribuição de rendas não podia ser feita dento daquele processo de inventário, mas sim ou através de um incidente autónomo de distribuição de rendimentos, ou até por uma prestação e contas e determinou-se a sua exclusão daquela partilha, mantendo-se a outra verba, isto é, aquele imóvel supra referido, bem como, ainda se determinou a rectificação da descrição da verba nº 2.
-Apresentada nova relação de bens conforme fls. 93 e 94, desta feita apenas passa a fazer parte do inventário a partilhar o direito destas partes à herança aberta por óbito de (…) na proporção de ¼ do imóvel.
-Em conferência de interessados este direito e acção sobre este imóvel, é adjudicado por acordo entre os então interessados a (…), mediante o pagamento de uma contrapartida financeira de 15.000,00 €, dividido em várias prestações, conforme fls. 111 a 113.
-A sentença que faz terminar o processo de inventário é proferida em 8 de Setembro de 2008, conforme fls. 127 dos autos principais.
-A partir de Maio de 1984, é a requerida (…) quem passa a administrar e a receber as rendas dos inquilinos que se mantinham a arrendar, os locados no dito prédio da Rua (…), em Tomar.
-Porque até à data do óbito da mãe da requerida, (…), que ocorreu em 29.04.1984, era esta que recebia e geria tais valores.
-Por volta do ano de 1955, o requerente abandona a requerida e os seus três filhos menores e vai para o Congo Belga, Léopoldville.
-Nunca mais tendo sabido da família que aqui deixou.
-Mais recentemente regressa a Tomar (pelo menos em 2006 já cá se encontra), para tratar do inventário.
-No R/C existia um latoeiro, o Sr. (…), o qual aceitou sair de lá em 08.04.1984, mas contra o pagamento de uma quantia de 1.000 contos.
-Mais tarde, a partir de 1994, faz obras de reparação e restauro de todo o prédio, recorrido a um empréstimo bancário e ao seu filho mais velho e outras pessoas.
-Sempre pagou os seguros e despesas com obrigações fiscais do prédio.
-Como consta dos documentos de fls. 177 a 197, são vários os contratos de arrendamentos que foram celebrados entre os donos/administradores do prédio da Rua (…) desde o falecido (…), passando pela (…) e terminando em (…), que junta os contratos de arrendamento até Dezembro de 2008, e pelos valores de renda aí mesmo apostos.
-Por sua vez, consta de fls. 203 a 235 e de fls. 239 e verso, as declarações de rendimentos relativas aos anos de 1989 a 2000 (por súmula) e de 2001 a 2008, quanto à requerida (…), onde se pode que a mesma para além da sua reforma pessoal, ainda recebia rendas nos montantes aí especificamente mencionados e que aqui se reproduz para os devidos efeitos legais.
-Vê-se dessas mesmas declarações, que aquela foi pagando vários impostos e em vários anos, pois que se encontram registados.
***
III. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

As questões a decidir resumem-se, pois, a saber:
a) Se a decisão recorrida padece da arguida nulidade de omissão de pronúncia;
b) Qual a solução a dar ao pleito.

No que respeita à arguida nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia sobre a questão do abuso do direito, a que alude a alínea d), do n.º 1 do art.º 615º do NCPC, diremos que falece razão à Apelante, uma vez que a Sr.ª Juíza “a quo” se pronunciou sobre a questão, ao dizer a dado passo da decisão “Logo, o direito de exigir esta prestação de contas não está prescrito, nem há qualquer abuso de direito, pelo contrário, o requerente vem accionar a requerida por um direito que lhe é reconhecido legalmente.”.
O que acontece é que a Sr.ª Juíza “a quo” não fundamentou a sua conclusão de não estarmos perante uma situação de abuso de direito, mas esta situação configura outra nulidade, a de“falta de fundamentação”, consagrada na alínea b), do n.º 1 do art.º 615º do NCPC.
Improcede assim a arguida nulidade da decisão recorrida.

Mas se a arguida nulidade improcede, tal não obsta a que este Tribunal aprecie a questão do alegado abuso de direito, agora no âmbito do mérito da decisão recorrida.

Citando o Acórdão do TR de Guimarães, no processo n.º 1385/02 (Relator Des. Arnaldo Silva), que subscrevemos, diremos a propósito do abuso de direito:
“Nos termos do art.º 334º do Cód. Civil há abuso de direito quando o titular do direito exceda, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A boa fé a que se refere o art.º 334º do Cód. Civil é a boa fé objectiva[1], ou seja o princípio pelo qual o sujeito deve actuar como pessoa de bem, honestamente, com lealdade. Neste sentido a boa fé não versa sobre factores atinentes, directamente, ao sujeito, mas diz respeito a elementos que, enquadrando directamente o seu comportamento, se lhe contrapõem, vale não como um estado de espírito subjectivo mas como um princípio normativo, pelo qual todos devem actuar como pessoas de bem, num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança gerada nos outros e ainda na proibição de «venire contra factum proprium», ou aquilo a que os alemães chamam «Verwirkung[2]» com que se veta o exercício de um direito ou de uma pretensão, por o titular não os ter exercido durante muito tempo e, por isso, ter criado na contraparte uma fundada expectativa de que tais direitos já não seriam exercidos, revelando-se posteriormente, um posterior exercício manifestamente desleal e intolerável. É isto que acontece nos vários tipos de «facta propria», v.g. o abuso da nulidade por vícios formais de alguém que, apesar disso o cumpre ou aceita o cumprimento realizado pela outra parte; a proibição de o credor recusar a prestação apta a satisfazer o seu interesse apesar de não estar inteiramente de acordo com as estipulações contratuais (v.g., ligeira ou insignificante ultrapassagem do prazo ou a falta de entrega de uma diminuta importância em dinheiro numa vultuosa obrigação pecuniária – cf. art.º 802º, n.º 2 do Cód. Civil); a proibição de se invocar a «excepção do não cumprimento do contrato» (art.º 428º do Cód. Civil) quando a falta do inadimplente não seja de tal modo grave que justifique a recusa de cumprir da outra parte[3].
O «venire contra factum proprium» postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos e diferidos no tempo. O primeiro – o «factum proprium» – contraria o segundo. Só se considera como «venire contra factum proprium» a contradição directa entre a situação jurídica originada pelo «factum proprium» e o segundo comportamento do autor – exclui-se, pois, no fundamental a «supressio», a actuação por conta própria, a situação dita «tu quoque» e a do chamado dolo inicial –, o «factum proprium» não surge à partida como um acto jurídico que vincule o autor em termos de o segundo comportamento representar a violação desse dever específico, porque isso seria o accionamento dos pressupostos da responsabilidade obrigacional e não o exercício inadmissível de posições jurídicas. Há «venire contra factum proprium» quando uma pessoa, em termos que, especificamente, a não vinculem, manifeste a intenção de não ir praticar determinado acto e depois o pratique, ou quando uma pessoa, de modo a não ficar especificamente adstrita, declare avançar com certa actuação e depois se negue. O «venire contra factum proprium» é o assumir de comportamentos contraditórios que violam a regra da boa-fé e é dotado de carga ética, psicológica e sociológica negativa[4].
Por bons costumes entende-se aqui[5], numa concepção de base sociológica, os usos ou costumes (mores) que são valorados como bons (boni) pelo conjunto das regras morais aceites pela consciência social, identificáveis através da moral pública, externa ou social. Nesta medida são factos sociais variáveis no espaço e no tempo e valorados pelo sentido ético imperante na sociedade. Factos sociais que exprimem a moral social vigente no espaço e no tempo, compreendendo regras impeditivas de comportamentos que, embora não tendo consagração expressa, quer por tradição quer por insipiência, são consideradas em vigor. Está-se pois perante uma moral objectiva – não a subjectiva ou pessoa do juiz. Desta forma estão aqui afastada uma concepção idealista dos bons costumes, de cariz filosófico ou religioso, orientada por um ideal divino ou humano, oposta à mera aceitação de práticas usuais, antes visando reagir sobre elas com vista a alcançar esse mesmo ideal –, uma moral pública, a moral que deve ser observada («bonus mores»), o «conjunto das regras morais aceites pela consciência social dominante», o que é algo fluído. Esta moral social, engloba naturalmente, no caso de Portugal, áreas da moral católica, bem como das morais pró­prias de outras religiões, com predominância da primeira, visto ser a religião largamente maioritária na sociedade por­tuguesa. É um princípio jurídico que compreende regras que, não estando explicitadas em normas, são no entanto observadas. Encontram-se abrangidas por estas regras da mora social comportamentos nos domínios da actuação sexual e familiar e da deontologia profissional, proibindo-se actos que as contrariem. Os bons costumes referidos no art.º 334º do Cód. Civil são, pois, uma cláusula geral que preserva a sensibilidade jurídica em áreas onde falhem outros princípios, mas cuja regulamenta­ção a sociedade exige. A razão da exigência destes bons costu­mes é a mesma que é exigida para a boa-fé[6].
O fim social ou económico do direito são os juízos de valor positivamente consagrados na lei. Cada direito tem uma função instrumental própria que justifica a sua atribuição ao titular e define o seu exercício. O titular do direito deve exercê-lo nos limites do seu fim social e económico. Ultrapas­sadas essas fronteiras, o exercício será abusivo. No que toca a estes juízos consagrados na lei, uns são acentuadamente consagrados a um fim (v.g. o poder paternal, o poder tutelar, etc.) e outros dão maior liberdade de actuação ao seu titular (v.g. direitos potestativos, o direito de propriedade dentro de certos limites)[7].”

Feito este enquadramento, importa analisar a situação em apreço.

Perante o completo abandono pelo Requerente da sua família – mulher e três filhos menores – por volta de 1955, só vindo a dar notícias por volta de 1961 para se divorciar da Requerida, com quem casara em 1947, a que se seguiu um novo hiato de cerca de 44 anos sem que esta sua família soubesse dele, é perfeitamente plausível que Requerida tenha deduzido que o abandono da família pelo Requerente importaria também o desinteresse pela correspondente quota-parte em quaisquer rendimentos (e despesas) que adviessem do prédio supra referido, cujo direito veio ao património do dissolvido casal, por morte do pai da Requerida em 1953.
Mais, seria o comportamento que a moral exigiria.
E, consequentemente, que a Requerida tenha pautado a sua conduta em conformidade com a expectativa criada pela longa inércia do Requerente no exercício do seu direito, nomeadamente quanto à gestão dos rendimentos que lhe advieram do prédio e à realização de investimentos e outras despesas nesse mesmo prédio com vista a melhorar os seus frutos, que seriam grandemente frustrados se fosse reconhecido ao Requerente o direito que agora se arroga.

Consequentemente, o exercício do direito a exigir contas da Requerida relativamente à quota-parte dos rendimentos do referido prédio, no período compreendido entre Maio de 1984 e o dia anterior à data da instauração do Processo de Inventário em apenso, que deu entrada em juízo em 19 de Julho de 2006, é manifestamente abusivo por “venire contra factum proprium” do Requerente.

Resta assim o direito à prestação de contas pela Requerida, relativa à quota-parte dos rendimentos do referido prédio entre 19 de Julho de 2006, data da propositura do Processo de Inventário, e a data da sentença que homologou a partilha dos bens do dissolvido casal, 08 de Setembro de 2008.
***
IV. Decisão
Pelo acima exposto, pela procedência parcial do recurso, decide-se:
a) Revogar parcialmente a sentença recorrida no que respeita à obrigação de prestação de contas pela Requerida no período compreendido entre Maio de 1984 e 18 de Julho de 2006, dia anterior à data em que foi intentado o Processo de Inventário em apenso, por o exercício desse direito pelo ora Requerente ser manifestamente abusivo.
b) Condenar a Requerida à prestação de contas, relativa à quota-parte dos rendimentos do referido prédio entre 19 de Julho de 2006, data da propositura do Processo de Inventário, e 08 de Setembro de 2008, data da sentença que homologou a partilha dos bens do dissolvido casal.
Custas pelo Recorrente e pela Recorrida na proporção do decaimento.
Registe e notifique.
Évora, 30 de Abril de 2015
Silva Rato
Assunção Raimundo
Sílvio Sousa
__________________________________________________
[1] Num sentido subjectivo boa-fé é essencialmente um estado ou situação de espírito de que se retiram consequências favoráveis. É o estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na igno­rância da sua ilicitude. O que se visa aqui é uma actuação em boa-fé. Num sentido objectivo visa-se uma actuação segundo a boa-fé. Vd. Cunha de Sá, Abuso de Direito, Liv. Almedina, Coimbra - 1997, pág. 165 e 171; Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora - 1995, pág. 530; António Menezes Cordeiro, Da Boa- Fé no Direito Civil, Vol. II, Colecção Teses, Liv. Almedina - Coimbra 1984, pág. 662.
[2] De «verwiken», v.t., incorrer em, perder. Verwirkung, «perda prescrição, caducidade, perempção, vencimento». A tradução mais expressiva e apropriada é aqui é «exercício inadmissível do direito». Ligado ao § 242 do B.G.B. – [Leistung nach Treu und Glauben] «O devedor está obrigado a efectuar a prestação como exigem a fidelidade e a boa-fé em atenção aos usos do tráfico» – o instituto da «Verwikung» proíbe, no âmbito de uma relação pré-existente, que o titular de um direito o venha fazer valer em contradição com a conduta anterior, porque tal se afigura inadmissível perante os deveres de correcção e de boa-fé vigentes na relação que seriam violados por tal exercício. Vd. Cunha de Sá, Abuso de Direito, Liv. Almedina, Coimbra - 1997, pág. 95.
[3] Vd. Jorge M. Coutinho de Abreu, in «Do Abuso de Direito», Liv. Almedina, Coimbra-1983, págs. 55 a 60.
[4] Vd. Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé no Direito Civil, II Vol., Colecção Teses, Liv. Almedina, Coimbra 1984, págs. 745 e segs..
[5] Os antecedentes históricos dos bons costumes encontram-se nos «boni mores» romanos cujo controlo, confiado ao censor, marcava bem a separação cuidada existente entre as normas morais que os integravam e as normas jurídicas, estas entregues ao pretor. Os romanos não definiam a imoralidade, apenas se encontram, espalhadas pelos Digesta várias ocorrências típicas tidas por contra os bonos mores. Embora os antecedentes dos bons costumes se reportem historicamente aos «boni mores» romanos, e com uma origem bem diferenciada da boa fé, todavia não foi a partir dos «boni mores» romanos que fizeram a sua aparição no Código Civil de 1966 mas sim a partir da Ciência Jurídica da segunda codificação. Sobre isto Vd. António Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé no Direito Civil, Vol. II, Colecção Teses, Liv. Almedina – Coimbra 1984, págs. 1210 e segs. e pág. 210, nota 33.
[6] Vd. Jorge M. Coutinho de Abreu, opus cit., págs. 63 a 66; M. Almeida Costa, in «Dir. Obrigações», 4ª Ed., págs. 56-57; A. Menezes Cordeiro, in Dir. Obrigações, I Vol., págs. 368 nota 99 e 369; Da Boa-Fé no Direito Civil, Vol. II, Colecção Teses, Liv. Almedina – Coimbra 1984, págs. 1222 e segs.; Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora - 1995, pág. 531 e 531 nota 46; Cunha de Sá, Abuso de Direito, Liv. Almedina, Coimbra – 1997, págs. 188 e segs..
[7] Vd. P. Lima e A. Varela, in «Cód. Civil Anot.», I Vol., 4ª Ed., pág. 299; A. Almeida Costa, opus cit., págs. 57.