Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
59/22.0GBABT.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: FORÇAS POLICIAIS
PODER DE EXIGIR A IDENTIFICAÇÃO
SUSPEITA DA PRÁTICA DE CRIME
COMINAÇÃO DE DESOBEDIÊNCIA
DETENÇÃO
Data do Acordão: 11/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: As forças policiais não podem exigir a identificação de uma pessoa que não seja suspeita da prática de qualquer crime, sob pena de desobediência. Não sendo legítima a sequente detenção por prática deste crime.
Decisão Texto Integral: I – Relatório
a. No Juízo Local Criminal de … procedeu-se a julgamento em processo comum perante tribunal singular de AA, nascido a … de … de 1981, com os demais sinais dos autos, a quem fora imputada a prática de: um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no artigo 347.º, § 1.º do Código Penal (CP); um crime de desobediência, previsto no artigo 348.º, § 1.º CP; um crime de dano qualificado, previsto nos artigos 212.º, § 1.º e 213.º, § 1.º, al. c) CP; um crime de ameaça qualificado, previsto nos artigos 153.º, § 1.º e 155.º, § 1.º, als. a) e c) CP; e dois crimes de injúria, previstos no artigo 181.º CP, com referência ao artigo 184.º do mesmo código.

Contra o arguido foi também deduzido pelo Estado, representado pelo Ministério Público, um pedido de indemnização civil, por danos causados numa viatura, no valor de 328, 64€, acrescido de juros moratórios.

O arguido não contestou nem indicou prova.

b. A final o tribunal proferiu sentença pela qual condenou o arguido como autor de dois crimes de injúria, previstos no artigo 181.º, com referência ao artigo 184.º, ambos do CP; e um crime de ameaça agravada, previsto no artigo nos artigos 153.º, § 1.º e 155.º, § 1.º, al. c) CP, respetivamente nas penas de:

- 120 dias de multa, à razão diária de 7€; e

- 245 dias de multa, à mesma razão diária.

Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares condenou-o na pena única de 245 dias de multa à razão diária de 7€.

Absolvendo-o do demais que vinha acusado, bem assim como do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

c. Inconformados com a decisão recorreram o arguido e o Ministério Público.

c.1 Conclusões do recurso do arguido (transcrição):

«1 – A expressão “Seus palhaços do caralho” não se afigura assumir dignidade penal, na perspetiva de ter proferido qualquer expressão ou imputação criminalmente relevante adequada a ofender a honra e consideração dos dois militares.

2 - Nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações suscetíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado.

3 - A conduta indiciada do Recorrente, não assume a gravidade suficiente para merecer a tutela do direito penal, tanto mais quando a mesma é assumida no âmbito de uma “discussão” e de uma altercação, na qual ficou dado como provado que os militares não seguiram todas os procedimentos legais a que estavam obrigados, sendo que também não a dirigiu diretamente e concretamente aos militares;

4-Oprincípio da insignificância, como máxima interpretativa dos tipos de ilícito, exclui condutas que, embora formalmente típicas, não o sejam materialmente – a insignificância penal exclui a tipicidade e as condutas insignificantes não são típicas porque o seu sentido social não é de ofensa do bem jurídico.

5 - O Direito Penal não deve intervir para criminalizar condutas comuns, simples desrespeitos, descortesias ou más educações. Tem que haver um mínimo de significado da conduta, um mínimo de gravidade, para que se considere ter a mesma alcançado o patamar da tipicidade e para se lhe conferir dignidade penal.

Por outro lado,

6 - Da expressão “BB, estás fodido. Não te estás a meter com qualquer um. Isto não vai ficar assim, vou apanhar-te na rua!” não resulta qualquer mal concreto suscetível de constituir um crime.

7 - Da referida expressão nem é possível extrair que bem jurídico o Recorrente poderia estar a ameaçar com um mal, nem se é de natureza pessoal ou patrimonial…

8 – Sendo que, as características da ameaça são a existência de

- mal (de natureza pessoal ou patrimonial);

- futuro (não iminente);

- e cuja ocorrência dependa da vontade do agente.

9 - Nem toda a ameaça com um mal futuro é suscetível de constituir o crime tipificado no artigo 153.º, n.º 1, do CP, inexistindo o ilícito referido quando o mal ameaçado é de tal modo longínquo e improvável que não tem aptidão para causar aquele mínimo de inquietação justificativo da tutela penal da tranquilidade e paz interior do ameaçado.

10 – Além disso, não sendo concretizado um mal futuro, deverá a questão ser solucionada a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.

11 – E, o mal ameaçado, isto é, o objeto da ameaça tem de constituir crime, ou seja, tem de configurar em si mesmo um facto ilícito típico, não sendo possível extrair da expressão utilizada pelo Recorrente qualquer tipo de crime…

12 - A expressão proferida não culmina com qualquer mal futuro concreto, não sendo possível discernir o bem jurídico que se pretende ameaçar, não estando verificados os elementos objetivos do tipo de crime de ameaça, devia o Recorrente ter sido absolvido da prática do crime em causa.

13 - Devendo a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que absolva o Recorrente dos crimes de injuria e ameaça agravada, mostrando-se violado o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 20.º da CRP, 181.º e 153.º do CP.»

c.2 Conclusões do recurso do Ministério Público (transcrição):

«B. Salvo melhor opinião, o Tribunal a quo decidindo como decidiu não apreciou corretamente a prova produzida, como não interpretou, nem aplicou corretamente o direito atinente.

DO CRIME DE DESOBEDIÊNCIA (contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada):

C. Matéria dado como não provada e que deveria ter sido considerada como provada: (13.º parágrafo da acusação): O militar da GNR podia solicitar a identificação do arguido, face aos factos praticados pelo mesmo. - cfr. Ponto III-B)- alínea f) da matéria de facto não provada, constante da sentença.; (20.º parágrafo da acusação): O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que estava obrigado a identificar-se perante solicitação do militar da GNR, devidamente uniformizado e identificado, e que, não o fazendo, como não o fez, desobedecia a uma ordem legítima, e cujas consequências também lhe foram regularmente comunicadas pela autoridade competente. - cfr. Ponto III-B)- alínea g) da matéria de facto não provada, constante da sentença.

D. Nos termos do artigo 5.º, n.º1, da Lei da Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, de 29 de Agosto), os cidadãos têm o dever de colaborar na prossecução dos fins de segurança interna: cumprindo as disposições preventivas estabelecidas na lei; acatando ordens e mandados legítimos das autoridades; e não obstruindo o normal exercício das competências dos funcionários e agentes das forças e dos serviços de segurança.

E. Nos termos das disposições combinadas dos artigos 28.º, n.º1, alínea a) e 30.º da Lei da Segurança Interna, a medida de policia de exigência identificativa é suscetível de ser aplicada quando se revele necessário, pelo período de tempo estritamente indispensável para garantir segurança e a proteção de pessoas e bens e desde que haja indícios fundados: (i) de preparação de atividade criminosa; ou (ii) de perturbação séria ou violenta da ordem pública.

F. A Guarda Nacional Republicana exerce funções de segurança interna e no âmbito das suas atribuições tem competência para aplicar as medias de polícia nas condições e termos da Constituição e da lei de segurança interna – cfr. arts. 25.º, n.º 2, al. a), 28.º, n.º 1, al. a), 30.º, 32.º, n.º 1, da Lei de Segurança Interna, arts. 1.º e 14.º, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana – Lei n.º 63/2007, de 06/11-, e artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 5/95, de 21/02, na versão conferida pela Lei n.º 49/98, de 11/08, [com referência, naturalmente, ao referido art.º 25.º, n.º 2, al. a) da cit. Lei de Segurança Interna].

G. É assim, salvo melhor opinião, inquestionável a licitude da exigência identificativa em face da matéria de facto provada em III-A), sob os números 1 a 8, da Fundamentação de Facto da sentença recorrida, uma vez que o arguido estava a perturbar seriamente a ordem pública; e a entidade que aplicou essa medida de polícia é uma força de segurança interna.

H. Em lógica decorrência da licitude daquela exigência identificativa, impor-se-ia ao ora Arguido, o correlativo dever de prontamente acatar as respetivas ordens, como, aliás, expressa e reforçadamente se estabelece, máxime, no art.º 5.º, n.º 1, da referida Lei de Segurança Interna.

I. A correspondente recusa fá-lo-ia imediatamente incorrer no cometimento dum crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art.º 348.º, n.º 2, do Código Penal – e não simples, conforme indicado na acusação - por tal consequência se encontrar expressamente cominada no cit. n.º 2 do art.º 14.º da LOGNR, e condicionaria a sua pronta detenção, com vista, inclusive à respetiva sujeição a julgamento sob a forma de processo sumário, [cfr. arts. 254.º, n.º 1, al. a), 255.º, n.º 1, al. a), 256.º, n.º 1, e 381.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal], e independentemente, pois, de qualquer outro procedimento do respetivo agente de autoridade, quer da verbal advertência da incursão em crime de desobediência, quer do correspondente à indagação da recusada identificação, como inelutável decorre do art.º 30.º da LSI. – neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de18-09-2013, Processo 75/12.0GBMIR.C1.

J. Donde resulta contradição insanável entre a factualidade provada sob os n.ºs 1 a 8, do ponto III-A) fundamentação de facto da sentença recorrida; e a factualidade não provado sob as alíneas, f) e g), do ponto III-B) da fundamentação de facto da sentença recorrida, vício previsto no artigo 410.º, n.º2, alínea b), do Código de Processo Penal, posto ser empiricamente irracional e absolutamente incoerente e inconciliável o simultâneo ajuizamento da ostensiva, irredutível e reiterada recusa identificativa do arguido perante agentes policiais perfeitamente identificados, após sucessivas advertências e das respetivas consequências jurídico-criminais e processuais, e o do irreconhecimento da respetiva consciência e volição.

K. Termos em que deverão considerar-se integralmente provados os factos mencionados em C e, consequentemente, deve assim o arguido AA ser condenado, como autor material e na forma consumada, na prática de 1 (um) crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos artigos 14.º, 26.º e 348.º do Código Penal, por referência ao artigo 14.º, n.º2, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana, sem prejuízo da observância do disposto do artigo 358.º, n.º3, do Código de Processo Penal.

DO CRIME DE DANO QUALIFICADO (erro de julgamento e erro notório na apreciação da prova)

L. Matéria de facto dado como não provada e que deveria ter sido considerada como provada, com referência à acusação pública e sentença: (10.º parágrafo da acusação): (…) com matrícula …, momento em que o arguido desferiu três pancadas com a cabeça no capô do carro da GNR, que se encontrava devidamente caracterizado com as insígnias da Guarda Nacional Republicana. – cfr. Ponto III-B)-alíneas b) e c) da matéria de facto não provada, constante da sentença; (15.º parágrafo da acusação): O arguido provocou estragos na chapa do capô, do carro da GNR matrícula …, implicando ainda a substituição do vinil das insígnias da GNR, causando prejuízos no montante de €328,64 e de €79,95. - cfr. Ponto IIIB)- alínea d) da matéria de facto não provada, constante da sentença; (21.º parágrafo da acusação): Agiu ainda o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de causar estragos no veículo automóvel identificado, apesar de saber que o mesmo pertencia ao Estado Português, encontrando-se ao serviço da Guarda Nacional Republicana, e que atuava contra a vontade do respetivo proprietário, sabendo que essas suas ações eram aptas a provocar os danos referidos, resultado que previu e com o qual se conformou. - cfr. Ponto III-B)- alínea i) da matéria de facto não provada, constante da sentença.

M. Prova que impõe tal decisão: depoimentos dos militares da GNR, BB e CC, prestados em sede de audiência de discussão e julgamento nos dias 12/04/2023 e 26/04/2023, auto de notícia de fls 7 a 10, fotografias de fls 26 a 27, e o orçamento de fls 45 a 46, e ainda os depoimentos das testemunhas DD e EE.

N. Da audição do depoimento da testemunha DD – cfr. minutos 31:34 a 34:39 – resulta que estava de costas quando colocaram o arguido no capô e longe do veículo, por isso não viu o que se passou a seguir a terem-no colocado no capô; da audição da testemunha EE – cfr. minutos 18:33 a 19:17 e 19:26 a 19:50 – resulta que colocaram o arguido de frente, sobre a lateral direita do veículo, do lado do pendura; imediatamente depois, a testemunha foi-se embora, por isso não viu o que se passou a seguir.

O. Ou seja, da audição destes depoimentos, ao contrário do parece fazer crer o Tribunal a quo na apreciação crítica que faz, não resulta que as referidas testemunhas DD e EE afirmaram que o arguido não desferiu as cabeçadas.

P. Mais, quanto estes factos, como relativamente às expressões, o arguido disse não se lembrar, conforme resulta per se da apreciação crítica feita pelo Tribunal a quo.

Q. Donde se conclui, ao contrário do alegado pelo Tribunal a quo, que não existem versões contraditórias, mas apenas uma única versão, a dos militares da GNR, e que não foi infirmada por mais nenhuma outra prova.

R. Posto isto a descoberto e ponderadas as íntimas dúvidas do Tribunal a quo em resultado de pretensas deficiências/insuficiências das fotografias e do auto de notícia juntos aos autos, afigura-se não estarem explanadas em termos perfeitamente compreensíveis, claros ou racionais, desconhecendo-se se estamos perante uma questão de falta de credibilidade (e porquê?) em relação aos depoimentos dos militares da GNR BB e CC, sendo certo que, também aqui, nada fez no sentido de tentar ultrapassar a incerteza que sentia, quando podia, limitando-se a invocar o princípio in dubio pro reo, em lugar de diligenciar pela identificação e inquirição dos reforços que foram chamados ao local, em ordem a suplantar, o dito auto de exame, que no seu entender permitiria identificar o veículo automóvel.

S. Na verdade, o Tribunal a quo sustentou a sua dúvida em mera suposições não demonstradas, para depois tecer considerações subjetivas, sem qualquer eco nos parâmetros das regras da objetividade, lógica e da experiência, tais como: (i) os militares não tiveram o cuidado de levar o arguido ao hospital a fim de acautelar que ele não tinha colocado a sua saúde em perigo com tal ação – circunstância absolutamente nova, nunca foi alegada, nem objeto de prova; (ii) tais cabeçadas teriam de ter causado manchas avermelhadas na testa, naquele momento - circunstância também absolutamente nova, nunca foi alegada, nem foi objeto de prova.

T. Foi com base em tais suposições/considerações subjetivas que sustentou, por sua vez, a dúvida séria sobre o auto de notícia, as fotografias juntas e os depoimentos concordantes dos mencionados militares, ou seja, de que fora o arguido a causar com cabeçadas as amolgadelas no capô, sendo certo que mais nenhuma outra versão existe sobre estes factos.

U. Não se vislumbra a mais leve mácula no depoimento das mencionadas testemunhas militares, nem o Tribunal a quo o regista qualquer relação de animosidade ou espirito de vingança e persecutório por parte de tais militares em relação ao arguido que pudesse pôr em causa a fidedignidade do auto de notícia, das fotografias e seus depoimentos, conforme decorre per se da apreciação crítica feita pelo Tribunal a quo destes depoimentos.

V. Por esta ordem de razões, não se lobriga qualquer razão objetiva, lógica e racional para as dúvidas suscitadas, já que nenhuma prova foi produzida que infirmasse tais documentos e os depoimentos do aludidos militares.

W. Posto que se trataram depoimentos isentos e imparciais, com conhecimento direto dos factos, impunha-se que o Tribunal a quo desse como provada a referida factualidade e inferisse/concluísse, sem margem para dúvidas, que o arguido AA agiu com a consciência e propósito constante do 21.º paragrafo da acusação.

X. Dúvidas também não existem que os factos dados como provados e os que deveriam ter sido considerados provados - e que não o foram – consubstanciam, os elementos objetivos e subjetivos de 1 (um) crime de dano qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 212.º, n.º 1 e 213º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, conjugados com os artigos 14.º, n.º1, e 26.º do mesmo diploma legal.

Y. Deve assim o arguido AA ser condenado como autor material, na forma consumada, na prática do crime de que vem acusado.

Z. Pelo que, decidindo como decidiu, nos termos constantes da sentença recorrida – na parte que por esta via se impugna, o Tribunal a quo violou o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.

AA. Caso assim não se entenda, o que não concede, acresce que o Tribunal a quo não ponderou devidamente e em concreto o respetivo âmbito de aplicação e as implicações que o Princípio in dúbio por reo tem associadas, ao decretar a absolvição do arguido com base em dúvidas que a versão deste justificaria e que o auto de notícia, fotografias juntas e as declarações dos militares da GNR não permitiriam afastar.

BB. Com efeito a dúvida que fundamenta o princípio in dubio pro reo terá de ser insanável, razoável e objetivável.

CC. Sendo este, realmente, o contexto da atuação do princípio em causa, facilmente se intui que, na hipótese em apreço, é impossível afirmar a existência de dúvida insanável ou inultrapassável, apenas se vislumbrando a opção do julgador por uma “possibilidade”, apontada, mas não demonstrada ou sequer suficientemente esclarecida, do arguido não ter desferido cabeçadas no veículo automóvel e causado tais danos, à revelia do dever de descoberta da verdade material que, entre outros, lhe impunha o artigo 340.º, do Código de Proc. Penal, acrescida de uma dúvida nascida - pasme-se - do dito veículo não estar identificado no auto e nas fotografias, não sendo suficiente os depoimentos concordantes dos militares da GNR e as fotografias juntas, e bem assim a ausência de prova que os infirme; segundo alega o Tribunal a quo, era necessário o auto de exame, a efetuar pelo reforços que ali se deslocaram, mas sem a prática de qualquer ato visando suplantar tal deficiência sentida, mas dificilmente perceptível atentos os moldes em que foi exprimida.

DD. O Tribunal a quo não cuidou de identificar e inquirir os reforços que ali se deslocaram, a fim de colmatar as alegadas insuficiências.

EE. É, assim manifesto o recurso indevido a tal princípio para legitimar a absolvição pois que as dúvidas referenciadas não atingem a densificação que o próprio Tribunal a quo lhe atribuiu.

FF. Termos em que o Tribunal a quo ao assim decidir incorreu em insuficiência na fundamentação da matéria de facto não provada e erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL:

GG. Pelas razões atrás tecidas, deverão considerar-se integralmente provados os factos articulados nos pontos 1 a 4 do pedido de indemnização civil e que foram dados como não provados, conforme Ponto III-B)- alíneas j), k), l) e m) da matéria de facto não provada, constante da sentença.

HH. De acordo com o disposto no artigo 129.º do Código Penal “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”, isto é, de acordo com o previsto nos artigos 483.º e seguintes, e nos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.

II. Para que exista responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483.º n.º 1 do Código Civil, é necessário que ocorra um facto voluntário, ilícito, culposo, do qual resultem danos (patrimoniais e/ou não patrimoniais), e que exista um nexo de causalidade entre o facto e os danos, de acordo com a teoria da causalidade adequada, prevista no artigo 563.º do Código Civil.

JJ. Perante o preenchimento de todos estes pressupostos cumulativos é gerada a obrigação de indemnizar.

KK. Volvendo ao caso em apreciação, dúvidas também não existem que os factos dados como provados e os que deveriam ter sido considerados provados - e que não o foram – fazem incorrer concomitantemente o arguido/demandado em responsabilidade civil aquiliana e no dever de indemnizar o Estado Português, impondo-se por isso a procedência do pedido de indemnização civil formulado pelo demandante civil Estado Português contra o arguido/demandado civil.»

d. Admitidos os recursos respondeu o arguido ao do Ministério Público e este ao daquele, aduzindo, em síntese que:

d.1 Diz em síntese o arguido: - A impugnação da decisão de facto vem feita de modo genérico, sem cumprimento dos ónus previstos nos § 3.º e 4.º do artigo 412.º CPP; - A contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão implica que esta emirja do texto da decisão recorrido, o que não ocorre; - A lei não acolhe as razões de direito invocadas relativamente ao imputado crime de desobediência; - As razões indicadas na decisão recorrida evidenciam porque se não atendeu aos depoimentos das testemunhas militares da GNR relativamente ao dano alegado na viatura; - Não se provou o nexo causal entre a atuação do demandado e os danos que se alegam com referência à viatura policial.

d.2 Diz em síntese o Ministério Público: - A expressão dirigida pelo arguido aos militares em serviço são claramente ofensivas da honra dos visados; - o mesmo sucedendo relativamente à ameaça que subjaz às palavras que o arguido especificamente dirigiu ao militar BB.

e. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, aderindo à argumentação esgrimida junto do órgão jurisdicional de 1.º instância quer quanto ao seu recurso, quer relativamente à resposta ao recurso do arguido.

f. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nada se acrescentou.

g. Os autos foram a vistos aos adjuntos e teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (1). Em conformidade com esta orientação normativa, a motivação do recurso deverá especificar os fundamentos e enunciar as respetivas conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

Neste contexto constatamos serem as seguintes as questões que cumpre apreciar e sobre as quais importa decidir:

- Do recurso do arguido

i) Erros de julgamento da questão de direito (não se verifica o crime de injúria nem o crime de ameaça).

- Do recurso do Ministério Público i’) Vícios da decisão recorrida (contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada e erro notório na apreciação da prova); ii’) Erro de julgamento da questão de facto;

iii’) Erro de julgamento da questão de direito (crime de desobediência e crime de dano);

iv’) Erro de julgamento da questão de direito quanto ao pedido de indemnização civil).

B. O tribunal recorrido considerou provado e não provado o seguinte quadro factológico, que motivou também como a seguir se indica:

«A. Factos Provados:

1. No dia 20 de março de 2022, pelas 20h30, o arguido encontrava-se no Largo …., junto ao lote …, …, ali estando presentes os militares da GNR, devidamente uniformizados e identificados, BB e CC, para tomar conta da ocorrência de desacatos familiares.

2. Nessas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido dirigiu-se aos militares da GNR BB e CC colocando o seu corpo entre os dos militares e os dos visados pela ação de fiscalização levada a cabo por estes.

3. O militar da GNR, sargento BB transmitiu ao arguido que tinha que se afastar e permitir que os militares procedessem à identificação dos visados no desacato que ocorrera, ao que o arguido recusou afastar-se.

4. Nessa sequência, o militar da GNR BB transmitiu ao arguido que perante a sua conduta de tentar impedir a intervenção dos militares sobre os intervenientes no aludido desacato, o mesmo teria que se identificar.

5. O arguido dirigiu-se ao militar da GNR Sargento BB afirmando que não se identificava.

6. O militar da GNR BB transmitiu ao arguido que caso não apresentasse a sua identificação incorria na prática de um crime de desobediência e procederia à sua detenção.

7. O militar da GNR solicitou então ao arguido novamente a identificação e transmitiu-lhe que, caso não o fizesse, incorria num crime de desobediência, ao que o arguido negou mais uma vez fornecer a sua identificação.

8. O militar BB deu voz de detenção ao arguido, tentou segurar-lhe o braço para proceder à sua algemagem.

9. Em ato contínuo, o arguido começou a girar o corpo de um lado para o outro, impedindo a sua algemagem, se seguida o arguido atirou-se para o chão, o que provocou o desequilíbrio dos dois militares, caindo ambos militares da GNR ao chão.

10. Após ser algemado, os militares da GNR ergueram-se do chão, levantando o arguido e encostando o corpo deste sobre o capô do carro da GNR.

11. Nesse momento, o arguido dirigindo-se ao militar da GNR, BB devidamente uniformizado e identificado disse: “BB, estás fodido. Não te estás a meter com qualquer um. Isto não vai ficar assim, vou apanhar-te na rua!”

12. O arguido, dirigindo-se aos dois militares da GNR, BB e CC, devidamente uniformizados e identificados disse: “Seus palhaços do caralho!.

13. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que os ofendidos eram militares da GNR e se encontravam, nas referidas ocasiões, no exercício das suas funções.

14. Com a expressão referida “Seus palhaços do caralho!”, o arguido quis ofender a honra, o bom nome, a consideração pessoal e profissional dos Militares da GNR BB e CC, o que quis e conseguiu.

15. Com a expressão referida “BB, estás fodido. Não te estás a meter com qualquer um. Isto não vai ficar assim, vou apanhar-te na rua!”, o arguido agiu com o propósito concretizado de atemorizar aquele militar da GNR com a prática de crime contra a vida deste, e atingir o seu sentimento de segurança, bem sabendo que tais palavras eram suscetíveis de causar inquietação ao mesmo.

16. Agiu sempre o arguido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal.

Das condições pessoais, familiares, económicas e sociais do arguido

17. O arguido vive com a mulher e com dois filhos com … e … anos de idade, respetivamente.

18. O arguido vive em casa própria,

19. O arguido tem o 9º ano de escolaridade.

20. O arguido trabalha por conta própria, no sector da construção civil, como pedreiro.

21. O arguido iniciou o seu percurso profissional aos 15 anos, no sector da construção civil, após concluir a escolaridade.

22. O arguido aufere cerca de 700,00 euros mensais.

23. A sua mulher é empregada de balcão e aufere cerca de 750,00 euros mensais.

24. O arguido suporta uma prestação mensal de 380,00 euros para amortização de empréstimo contraído para a aquisição de habitação.

25. No meio sociocomunitário de …, o arguido não tem uma imagem negativa, mas é-lhe atribuída alguma impulsividade interpessoal, em contextos de maior tensão, o qu foi confirmado pela esposa.

26. Ocupa os tempos livres a executar pequenos trabalhos de agricultura, numa pequena horta.

27. O arguido apresenta dificuldades a nível de autocontrolo emocional em situações que envolvam maior tensão e complexidade interpessoal.

- Dos antecedentes criminais

28. O arguido não tem antecedentes criminais averbados.

B. Factos Não Provados

Não foram apurados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:

a) Na situação referida em 9, desferiu um empurrão com as duas mãos no corpo do militar da GNR BB e do militar CC, empurrando-os, provocando a queda dos três ao chão, momento em que o militar CC tentou algemar o arguido, tendo o arguido forçado a mão do militar contra o chão, arranhando-o, para evitar que colocasse as algemas.

b) Na situação referida em 10., o veículo tinha matrícula ….

c) Na situação referida em 10, o arguido desferiu três pancadas com a cabeça no capô do carro da GNR, que se encontrava devidamente caracterizado com as insígnias da Guarda Nacional Republicana.

d) O arguido provocou estragos na chapa do capô, do carro da GNR matrícula …, implicando ainda a substituição do vinil das insígnias da GNR, causando prejuízos no montante de 328,64€ e de 79,95€.

e) Como consequência necessária e direta das agressões, o militar da GNR CC ofendido sofreu dores na zona do peito e do braço esquerdo, mas não necessitou de receber assistência médica.

f) O militar da GNR podia solicitar a identificação do arguido, face aos factos praticados pelo mesmo.

g) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que estava obrigado a identificar-se perante solicitação do militar da GNR, devidamente uniformizado e identificado, e que, não o fazendo, como não o fez, desobedecia a uma ordem legítima, e cujas consequências também lhe foram regularmente comunicadas pela autoridade competente.

h) Ao agir da forma supra descrita, o arguido agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente os militares da GNR BB e CC e, por essa via, conseguir eximir-se à detenção que aquele militar da GNR lhe pretendia efetuar, assim pondo em causa a autoridade subjacente aos mesmos, o que representou.

i) Agiu ainda o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de causar estragos no veículo automóvel identificado, apesar de saber que o mesmo pertencia ao Estado Português, encontrando-se ao serviço da Guarda Nacional Republicana, e que atuava contra a vontade do respetivo proprietário, sabendo que essas suas ações eram aptas a provocar os danos referidos, resultado que previu e com o qual se conformou.

DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

j) O demandado AA causou ao Estado Português (GNR) um prejuízo no valor de 408,59€.

k) Referente à reparação dos estragos na chapa do capô e no vinil com as insígnias do veículo policial com matrícula …, marca ….

l) O demandado atuou conscientemente, bem sabendo que com tal conduta lesava os interesses patrimoniais do Estado Português.

m) Até hoje, continua por pagar a referida importância à GNR, que não foi ressarcida e, assim, se encontra prejudicada.

C. FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento globalmente considerada, atendendo aos dados objetivos fornecidos pela mesma.

Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova, destacando-se:

- Prova Pericial

* Do teor das Perícias de avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, de fls. 47 a 48, sendo que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador” (artigo 163.º/1 do Código de Processo Penal) e do qual resultou provado que o militar da GNR CC apresentava lesões em ambas as mãos, a data da cura, o período de doença e os dias com afetação da capacidade para o trabalho em geral e profissional, mas tal não permitiu dar como provado que foi na sequência da conduta do arguido, o que melhor se fundamentará em sede de análise do depoimento do militar em causa. Igualmente este documento levou a dar como não provado o facto constante na alínea e), uma vez que o ofendido apenas apresentava lesões em ambas as mãos, não tendo sido detetado lesões quer no braço esquerdo, quer na zona do peito, como vinha imputado na acusação.

- A prova documental, cujo teor não foi impugnado:

* Comunicação de detenção de fls. 3 a 4, o qual permitiu dar como provado que o motivo da detenção foi resistência e coação sobre funcionário e não a recusa de identificação do arguido. Note-se que nem foi elaborado o auto de identificação conforme dispõe o art 250º, nº 7 do C.P.P. Ou seja, os militares da GNR tinham consciência que a detenção por recusa de identificação não era legítima, dado que até àquele momento, o arguido não era suspeito da prática de qualquer crime. Pelo que se conclui que a detenção foi ilegal, uma vez que a ordem de identificação apenas só pode ser exigida quando alguém é suspeito da prática de um crime, nos termos e fundamentos dos art 250º do C.P.P. e art 1º da Lei 5/95, de 21/02, conforme se explanará melhor em sede de fundamentação de direito. Consequentemente, deu-se como não provado os factos constantes nas alíneas f) e g).

* Auto de notícia de fls. 7 a 10, o que permitiu dar como provado a data, hora e local dos factos e a origem da intervenção dos militares da GNR (facto 1) e que o veículo que era utilizado naquelas circunstâncias não foi identificado.

* Fotografias de fls. 26 a 27, as quais apenas refletem três amolgadelas num capot de uma viatura da GNR, mas que não permite apurar se era a viatura que foi utilizada pelos militares da GNR no dia e hora dos acontecimentos. Note-se que no auto de noticia nem consta a identificação da matrícula do veículo.

Na verdade, poderia a GNR ter-se socorrido, de imediato, da realização da prova de exame, prevista no artº 171º ex vi art 249º do C.P.P., lavrando o respetivo auto nos termos do artº 99º, de modo a obter prova com o valor determinado no art 169º do mesmo diploma legal, uma vez que os militares em causa solicitaram reforços, de modo a que tal meio de prova fosse assistido por outros militares que não intervieram na situação. De facto, esta prova permitiria a identificação do veículo. Da observação das fotografias, o Tribunal não consegue apurar a que viatura pertence tais amolgadelas. Acresce que o arguido refere não se lembrar de ter dado cabeçadas no capot do carro. Mesmo admitindo que o estado de embriaguez do arguido fosse elevado e este, por tal motivo, não se lembrar que tinha dado cabeçadas no capot do veículo da GNR, para que as cabeçadas provocassem as três amolgadelas, no dia seguinte teria de ter hematoma, mesmo que ligeiro (o denominado “galo na cabeça”). Acresce que as cabeçadas, para provocar tais danos, teriam de ter sido desferidas com violência. E muito se estranha que os militares não tenham tomado providências, nomeadamente, levando o arguido ao hospital para ser observado, pois é do conhecimento geral que as pancadas na cabeça podem ter efeitos graves na saúde das pessoas, afim de atestar que a sua conduta não tinha tido consequências para a saúde do arguido.

A não ser as testemunhas militares intervenientes nos autos, as demais testemunhas ouvidas (e uma delas até ajudou os militares a algemar o arguido), nenhuma delas disse ter assistido a tal circunstância.

Portanto, o facto do arguido não se lembrar, de não ter sido realizado o respetivo exame à viatura e ainda do auto de noticia não ter identificado o veículo em causa, sem olvidar que as fotografias não permitem estabelecer o nexo de causalidade entre as amolgadelas e o veículo que foi utilizado pelos militares naquele dia, hora e local, por força do principio in dúbio pro reo, deu-se como não provado os factos constantes nas alíneas c), d), i) a m).

* Os orçamentos de fls. 45 a 46, apesar de indicarem um valor estimado de reparação e um deles mencionar a matrícula do veículo, em face da ausência de prova bastante que as amolgadelas retratadas nas fotografias existentes nos autos correspondiam ao veículo usado pelos militares no dia, hora e local dos acontecimentos, não permitiu dar como provado que o arguido deu cabeçadas no capot do carro. Sucede que o orçamento de fls. 46 tinha duas reservas quanto ao valor indicado: tal valor só era válido por 30 dias e estava dependente de desmontagem e estado do veículo. Nessa medida, foi determinado pelo Tribunal que a GNR apresentasse o comprovativo da reparação e respetivo valor (Cfr. despacho de 20.04.2023), contudo, a GNR igualmente informou que ainda não tinha procedido à sua reparação e que os valore indicado nos orçamentos até poderiam ser superiores (cfr informação sob a refª … de 17.04.2023).

Em suma, da conjugação da prova documental (fotografias e orçamentos) com as declarações do arguido, das testemunhas que não são militares da GNR, suscitou-se dúvidas no espírito do julgamento que as amolgadelas constantes no capot de um carro da GNR foram desferidas pelo arguido.

Na realidade, o Tribunal não conseguiu formar a sua convicção positiva relativamente à ocorrência do facto, isto é, que tenha sido o arguido a praticar cabeçadas no capot, antes tendo sido assolado por uma dúvida inultrapassável quanto à sua verificação, atenta a versão dos factos trazida pelo arguido, o qual, antes de ver ser produzida a prova testemunhal perante si, reportou ao Tribunal, não se lembrar e de a testemunha DD, o qual até ajudou a algemar o arguido, referiu não ter visto o arguido a dar cabeçadas no capot. Não obstante dos militares assim o reportarem, a verdade é que a demais prova documental não foi no sentido de corroborar as suas declarações, não existindo, pois, elementos probatórios que permitam atestar com segurança a versão dos militares neste aspeto, nem o contrário resulta das regras da experiência comum, apesar do arguido ter dito não se lembrar de dar as cabeçadas no carro (o que se estranha, pois as amolgadelas retratadas nas fotografias, permitem concluir que, se tal sucedesse, as cabeçadas teriam de ter sido desferidas com violência e o arguido teria de ter necessariamente lesões (ainda de ligeiras) no próprio dia e no dia seguinte.

O julgador está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, tal como estabelece o artigo 127º do Código de Processo Penal.

Sempre que no espírito do julgador, ao fixar a matéria de facto, se instale uma dúvida séria e insanável acerca da veracidade ou não de um determinado facto desfavorável ao arguido, deve lançar-se mão do princípio do in dúbio pro reo.

O princípio da presunção de inocência, princípio basilar e fundamental da prova em Direito Processual Penal, e espelhado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, consagra a inadmissibilidade da condenação de uma pessoa enquanto não for demonstrada a sua culpabilidade, pelo que, a dúvida acerca da ocorrência dos factos deverá ser valorada e resolvida a favor do arguido.

Na verdade, estamos no âmbito de um princípio com consequências exclusivas ao nível da apreciação da matéria de facto, ou seja, um princípio que opera na fase da valoração da prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão suscetível de desfavorecer, objetivamente o arguido (neste sentido Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Volume I, Lisboa, 2000, 4ª Edição, pág. 83, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04.11.1998, CJ 98, III, 201, entre outros), nos termos do qual, qualquer dúvida, fundamentada e motivada, relativamente à ocorrência de um facto pressuposto do preenchimento do tipo de crime ou demonstrativo da existência de uma causa da exclusão da ilicitude ou da culpa, deverá ser valorada a favor do arguido.

No entanto, note-se, que não é qualquer dúvida sobre o facto que permite uma solução mais favorável ao arguido, mas apenas aquela dúvida insanável, motivada, que não é suscetível de ser ultrapassada com recurso a critérios objetivos.

Nestes termos, na medida em que existe uma dúvida insanável acerca se o arguido foi o autor das cabeçadas, decide-se, por aplicação do supra referido princípio constitucional, dar como não provado os factos b) a d), e i) a m).

* CRC de fls. 137, o qual permitiu apurar que o arguido não possui antecedentes criminais (facto nº 28);

* Relatório social de fls. 139 a 143, o qual permitiu apurar as circunstâncias de vida do arguido e sua personalidade, porquanto elaborado de forma objetiva, fundamentada, conseguido através de entrevista com o arguido, contacto com sua filha e junta de Freguesia, permitindo dar como provado os factos nº 17 a 27.

- Nas declarações do arguido, no âmbito das quais, assumiu que esteve no dia, hora e local dos acontecimentos, admitindo os factos dados como provados em 1, 4 a 8, negando a demais factualidade imputada no libelo acusatório. Quanto às cabeçadas no capot, o mesmo referiu não se lembrar que tal tivesse acontecido, pois estava embriagado e alterado, referindo igualmente não se lembrar de ter proferido tais expressões. Relativamente à detenção, o arguido referiu que foram os militares da GNR que o empurraram e não o contrário.

Não obstante do arguido referir não se lembrar de algumas circunstâncias, dado que não se lembrava do sucedido por estar embriagado, é medianamente claro e evidente, que não é o facto de o arguido não respeitar a ordem de afastamento, tudo fazendo para impedir que estes repusessem a serenidade e a sossego público naquele local, onde os acontecimentos maioritariamente se passaram, que tal facto lhe retira a vontade e o discernimento, de forma a excluir a incorreção da sua atuação. Coisa diversa, que de resto, também, não tem essa virtualidade, é o facto de se não ingerisse álcool, não provocava problemas – o que, de resto, poderia colocar uma situação de embriaguez pré ordenada.

Portanto, as suas declarações neste aspeto, apenas serviram para ilustrar a sua atitude interna e que o mesmo, sabendo que tem reações desconformes com as adequadas a um bom cidadão quando ingere bebidas alcoólicas voluntariamente, não se abstém de as consumir, o que revela uma personalidade desfasada dos ditames do direito e das regras sociais de boa convivência.

- As declarações do militar BB, interveniente nos factos (conjugadas com as declarações da testemunha DD), foram decisivas para a formação da convicção do Tribunal, descrevendo a situação por si presenciada de forma objetiva, sincera e constante no libelo acusatório, tal como atinente à factualidade dada como provada. Tal testemunha depôs em termos que se afiguraram sinceros e credíveis, tendo sido criteriosa na justificação que o levou a pedir ao arguido que se identificasse (por não ter acatado a ordem de afastamento) e perante a sua recusa em identificar-se, advertiu que tal recusa constituía a prática de um crime de desobediência. O arguido manteve tal recusa e o militar deu-lhe voz de detenção. Nessa sequência o arguido resistiu à sua detenção, em tudo atinente à factualidade dada como provada em 1 a 12 e como não provado a alínea a) do factos não provados.

Em face do exposto, ficou este Tribunal suficientemente esclarecido acerca dos motivos que estiveram na base da atuação policial, isto é, que o arguido impediu os militares de exercerem as suas funções enquanto autoridade policial, procedendo à identificação de familiares do arguido e suspeitos de prática de crimes. Nessa sequência, foi-lhe ordenado, várias vezes, que se afastasse. Como não se afastou, pediu a identificação do arguido e perante a sua recusa e advertência da prática de um crime de desobediência por não se identificar, deu-lhe voz de detenção.

Não tem dúvidas o Tribunal que o motivo da detenção foi a recusa por parte do arguido em identificar-se. Sucede, que as forças policiais, por força da lei, não podem exigir a identificação de uma pessoa, a não ser que a mesma seja suspeita da prática de um crime, como supra já se dilucidou, em sede de análise de prova documental.

Na verdade, a circunstância de o arguido não acatar a ordem legítima de afastamento deu origem ao pedido de identificação. Sucede, porém, que o militar em causa, não advertiu que, caso o arguido não obedecesse ordem de afastamento, incorreria na prática de um crime de desobediência. E aqui, sim, tal advertência seria correta, dado que uma das atribuições da GNR é manter a ordem e a tranquilidade públicas. E mantendo-se tal recusa, aí sim, o arguido já seria suspeito da prática de um crime de desobediência e o pedido de identificação já seria legitimo nos termos do art 250º do C.P.P.

Mas do seu depoimento, resultou claro e inequívoco, que o militar não cominou o arguido com a prática de um crime de desobediência por não acatar a ordem de afastamento.

Na verdade, apesar da conduta do arguido ser altamente censurável em termos cívicos (por se intrometer na ação policial de restabelecer a tranquilidade pública), tal conduta não implica responsabilidade criminal – e, portanto, até aqui o arguido não era suspeito da prática de qualquer crime - a não ser, repita-se, que lhe tivesse ordenado para se afastar e caso não o fizesse, incorreria em crime de desobediência.

Sucede que nada disto se passou.

O que se passou foi que o arguido foi cominado com o crime de desobediência por se recusar em identificar-se.

E na verdade, não tendo até ali o arguido praticado quaisquer factos que consubstanciariam na prática de um crime, a exigência de tal identificação mostra-se ilegítima e, por inerência, a sua detenção, conforme se fundamentará melhor em sede de análise jurídica dos crimes de desobediência e de resistência e coação.

Por isso se deu como não provado os factos f) e g) e como provados os factos 1 a 12.

Quanto às suas declarações, no que diz respeito as cabeçadas no capot da viatura, em face das declarações do arguido referir que não se lembrava e de nenhuma testemunha não militar ter referido tal circunstância e ainda em face da insuficiente prova documental, como supra se aludiu, mormente a ausência da prova de exame e respetivo auto, o Tribunal não ficou convicto de que tal sucedeu, dado que tais cabeçadas teriam de ter sido desferidas com muita força para causar tais amolgadelas. Sendo certo que se estranha que os militares não tivessem tido o cuidado de levar o arguido ao hospital a fim de acautelar que ele não tinha colocado a sua saúde em perigo com tal ação. É convicção do julgador que tais cabeçadas teriam de ter causado manchas avermelhadas na testa, naquele momento. E, por isso, se deu como não provado os factos c), d) e i).

- As declarações do militar da GNR CC. O seu depoimento esteve longe de convencer, dado que o mesmo, em sede de audiência veio reportar factos para além dos que constavam no auto de noticia, nomeadamente, referindo que o militar BB foi pontapeado pelo arguido e que, inclusivamente, também, foi objeto de ameaças por parte do arguido. Desde logo se afigurou o relato em causa estranho, por parecer que a testemunha estava a querer empolar a gravidade de factos.

Sucede que o seu depoimento, neste aspeto, não foi corroborado pelo depoimento do próprio militar da GNR, BB, e por isso não foi merecedor de credibilidade, no que diz respeito à expressão ameaçadora e à agressão física perpetrada contra o militar BB.

Ao invés, o seu depoimento já mereceu credibilidade no que toca ao motivo que deu origem à cominação do crime de desobediência (recusa em identificar-se) e subsequente detenção, bem como a conduta praticada pelo arguido no que toca à resistência da algemagem, dado que o seu depoimento, neste aspeto, manteve-se consentâneo com o do militar da GNR BB.

Mais reportou que o arguido não o arranhou e que as lesões na sua mão ocorreram porque quando caiu ao chão ficou com a mão debaixo do tronco do arguido e, por tal motivo, a compressão das costas da mão contra o alcatrão, provou os arranhões.

Não obstante deste militar referir que o arguido desferiu 3 pancadas no capot do carro, a verdade é que não se deu como provado tal factos nos termos já expostos aquando a análise do depoimento do militar BB e da análise documental, considerando-se aqui tecidas as mesmas considerações neste tema,

Pelo exposto, deu-se como não provado os factos constantes nas alíneas a), c) a m).

- A testemunha de acusação DD, referiu estar no dia, hora e local dos acontecimentos, tendo constatado que, na sequência de um carro estar mal estacionado, apareceu a patrulha da GNR e interveio, tendo os militares apercebido que havia uma briga entre familiares do arguido. De seguida, os militares quiseram reporá ordem no local e mandaram o arguido retirar-se (“mandaram para trás)”, pelo menos duas vezes. Como o arguido não se retirou um militar disse que o tinha de o identificar. Como se recusou a identificar porque não era criminoso, os militares disseram que o teriam de deter. Como o arguido reagiu à detenção, levantando os braços para cima, os militares atiraram-no para o chão, dando-lhe um toque na parte de trás dos joelhos.

Nesta parte, isto é, terem sido os militares a causar a queda do arguido ao chão, o Tribunal não colheu o seu depoimento como credível, dado que, se assim tivesse ocorrido, o militar não apresentaria escoriações nas mãos. De facto, é impressão psicológica do julgador que ocorreu um excesso de voluntarismo e precipitação na conclusão de que foram os militares a causar a queda do arguido ao chão.

Mais referiu a testemunha que, perante a resistência do arguido em ser detido, que auxiliou os militares da GNR a algemá-lo.

Esta testemunha também permitiu ao Tribunal apurar as circunstâncias que rodearam a prática dos factos, nomeadamente, o facto do arguido não ter obedecido à ordem de se afastar do local e por isso o militar quis identificá-lo e como se recusou a identificar, foi detido.

Excetuando a parte em que a testemunha referiu que foram os militares a causar a queda ao chão do arguido, o seu depoimento foi valorado positivamente, por ter sido prestado de forma sincera e consentânea com o depoimento dos militares (motivo da intervenção policial, atuação do arguido e subsequente detenção).

Referiu igualmente, não ter visto o arguido ter batido com a cabeça no capot do carro.

Pelo exposto, deu-se como provado os factos 1 a 8.

- A testemunha de defesa EEs, reportou ter chegado ao local quando o arguido já se encontrava algemado e no chão, não tendo visto o arguido a bater com a cabeça no capot do carro, quando foi colocado, apesar de ter observado os militares a colocarem o seu tronco sob o capot do veículo da GNR. Tratou-se de um depoimento objetivo e sincero e por isso foi valorado positivamente. Na verdade, tendo os militares da GNR referido que assim que colocaram o arguido sob o capot do carro, este deferiu três cabeçadas naquele, muito se estranha que esta testemunha não tenha observado tais pancadas. Por isso, e como já supra se referiu, o Tribunal teve sérias dúvidas que tal tivesse acontecido, nos moldes supra e amplamente fundamentados.

– A prova dos elementos subjetivos dos crimes em apreço (factos 13 a 16) resultou da factualidade objetiva provada, porquanto, tratando-se de demonstrar a intenção do agente, é a mesma, as mais das vezes, insuscetível de prova direta, devendo comprovar-se por meio de presunções baseadas nas regras da experiência e da normalidade – cfr., neste sentido, o decidido no Ac. do STJ, de 08/04/1999, in CJ/STJ, Tomo II, p. 171.

Atenta a factualidade objetiva que resultou provada, a intenção subjetiva do arguido, uma vez que se trata de presunção natural que quem dirige expressão “BB, estás fodido. Não te estás a meter com qualquer um. Isto não vai ficar assim, vou apanhar-te na rua!” dada como provada, ou seja, ameaçando com a prática de um crime contra integridade física, na sequência de uma atuação por parte dos militares da GNR, pretende criar no seu espírito a convicção de que tal ameaça se concretizará, sendo certo que a expressão em causa sé, em qualquer meio social, adequada a amedrontar e a causar receio no visado.

A prova do elemento subjetivo (factos ____) do crime de injuria agravado, na verdade, o arguido ao apelidar os militares de palhaços do caralho, e quando estes se encontravam em pleno exercício das suas funções, quis ofender na sua honra e consideração, bem sabendo que tal não correspondia à verdade. As circunstâncias da ação revelam, inequivocamente, atentas as regras da lógica, o comportamento voluntarioso do arguido na ação que tomou e, bem assim, a intenção havida, que não poderia ser qualquer outra, até pela natureza da própria expressão dita e o contexto em que o foram.

- A demais factualidade dada como não provada resultou de total ausência de prova que a confirmasse nesse sentido.»

C. Apreciando

C.1 Do recurso do arguido

C.1.1 Erro de julgamento da questão de direito

O arguido/recorrente considera que ele dirigiu aos militares da GNR («seus palhaços do caralho») no momento em que eles com ele interagiam no legítimo exercício das suas funções, sendo um comportamento incorreto, indelicado e grosseiro, não atinge, contudo, a dignidade nem o bom nome dos referidos militares, pelo que não terá cometido o crime de injúria. Manifesta, também, o entendimento que a afirmação que na mesma ocasião dirigiu ao militar BB, concretamente, «BB, estás fodido. Não te estás a meter com qualquer um. Isto não vai ficar assim, vou apanhar-te na rua!», constituindo embora um comportamento formalmente típico é insuscetível de constituir o crime de ameaça, por ser de tal modo longínquo e improvável que não tem aptidão para causar a inquietação que justifica a tutela penal.

Sobre este temário o Ministério Público pronuncia-se dizendo, em síntese, que a expressão utilizada não enquadra mero desabafo, antes se tratando «de um ataque gratuito e de menorização da reputação pessoal dos visados, com dignidade criminal, porquanto tal expressão é objetivamente ofensiva da honra e consideração dos visados, e foram proferidas unicamente com o propósito de achincalhar, humilhar e rebaixar os militares da GNR no exercício das suas funções e por causa desse exercício, cuja honra também merece tutela penal.»

Adianta-se que o recorrente não tem razão.

Com efeito, a honra e consideração pessoal têm assento constitucional nos artigos 25.º (direito à integridade pessoal) e 26.º (direito à proteção do bom nome) da Constituição da República Portuguesa.

Com a incriminação da injúria a lei giza tutelar o bem jurídico honra e consideração. Este «bem jurídico complexo inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior». (2) A honra encerra o conjunto de valores éticos de cada pessoa, que tem que ver com a sua dignidade subjetiva, e a consideração tem que ver com o reflexo nos outros dessa dignidade, ou seja, a forma como os outros consideram cada pessoa.(3)

Com efeito, a mais da sua valência subjetivo-individual, os direitos fundamentais têm uma dimensão marcadamente objetiva. Como sustenta Vieira de Andrade (4) «os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade como valores ou fins que esta se propõe prosseguir».

É certo que «ao Direito Penal não cabe proteger as pessoas face a comportamentos indelicados ou mesmo boçais ou perante meras impertinências.» (5) Daí que para aferir se determinada expressão, imputação ou juízos de valor têm relevância típica no âmbito dos crimes contra a honra, deverá atender-se ao contexto em que o agente atuou, às razões que o levaram a agir como agiu, à maior ou menor adequação social do comportamento, tudo dependendo da intensidade da ofensa ou perigo de ofensa. (6)

Por seu turno, no concernente ao elemento subjetivo, os crimes de injúria (e de difamação) são crimes essencialmente dolosos, podendo o dolo consubstanciar-se em qualquer das suas modalidades (artigo 14.º do Código Penal). A verificação do crime de injúria basta-se, pois, com a consciência de que o que foi dito ofende a pessoa visada na sua honra e consideração, sem necessidade de qualquer dolo específico (animus injuriandi).

No caso concreto estamos perante imputação objetivamente injuriosa, tendo o arguido exata noção disso, tanta que o contexto em que surge, de toada ofensiva visando a consideração dos militares que consigo interagiam, evidencia sua intenção de atingir a honra dos visados, que inequivocamente vulnerou.

E como assim cometeu o ilícito em referência.

O mesmo sucedeu relativamente ao crime de ameaça agravada relativamente ao militar BB, quando no mesmo referido contexto, dirigindo-se-lhe, o precatou: «BB, estás fodido. Não te estás a meter com qualquer um. Isto não vai ficar assim, vou apanhar-te na rua!».

Ora, resulta precetivamente do texto do § 1.º do artigo 153.º CP, que a criação de um sentimento de inquietação no visado, com a cominação de um mal futuro, é o bastante para a integração do crime de ameaça. Sendo que o critério da adequação da ameaça para provocar medo ou inquietação ou para prejudicar a liberdade de determinação, conforme refere Taipa de Carvalho (7), «é objetivo-individual: objetivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é suscetível de intimidar ou de intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado). (...) Uma vez que o atual crime de ameaça não exige, por um lado, a intenção do agente de concretizar a ameaça, nem se exige a ocorrência do resultado/dano, e, por outro lado, exige que o mal ameaçado seja constituído pela prática de determinados crimes, a conclusão a tirar é de que a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é suscetível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado).» Nas circunstâncias do presente caso mostram-se provadas não apenas as expressões ameaçadoras, como o contexto em que foram proferidas, as quais são, evidentemente, idóneas a provocar medo no ofendido e a prejudicar a sua liberdade de determinação. E como o ameaçado foi um militar da GNR, no exercício de funções (artigos 153.º, § 1.º, 155.º, § 1.º, al. c) e al. l) do § 2.º do artigo 132.º CP) tal ameaça é agravada, conforme bem considerou o tribunal recorrido. Não sobrando, pois, qualquer dúvida, sobre a comissão pelo arguido do crime de ameaça em que foi condenado. Mostrando-se, por conseguinte, totalmente improcedente o recurso do arguido.

C.2 Do recurso do Ministério Público

C.2.1 Vícios da decisão recorrida

Começando por invocar a emergência de «contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada»; e também, de «erro notório na apreciação da prova», o recorrente aporta como razões desse contexto a sua discordância relativamente ao julgamento da matéria de facto, tanto assim que logo indica do rol dos provados e não provados aqueles que entende demonstrarem tais vícios! Trata-se, evidentemente, de uma confusão dos conceitos e, sobretudo, da autonomia dos meios impugnatórios disponíveis com referência à matéria de facto. Porquanto não se podem incluir nos vícios previstos no § 2.º do artigo 410.º CPP o modo como o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência – valoração que aquele tribunal é livre de fazer, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Sendo que essa valoração também é sindicável, mas mediante regras distintas.

Na sua resposta ao recurso, sobre esta específica matéria, o arguido nada diz. Clarifiquemos o que turvo parece apresentar-se. Conforme deflui das normas pertinentes, em processo penal a impugnação da matéria de facto pode fazer-se por duas vias distintas: uma via ampla (artigo 412.º, § 3.º e 4.º CPP); e uma via restrita (artigo 410.º, § 2.º, al. a), b) e c) CPP). A via ampla (ou «impugnação ampla») consiste na invocação de erro de julgamento e consequente reapreciação da prova produzida, documentada nos autos ou gravada. Nesta modalidade impugnatória cabe ao recorrente o ónus de indicar os concretos factos a que se reporta, as concretas provas a ter em conta e as razões pelas quais as provas indicadas, com referência a factos concretamente identificados, impõem decisão diversa daquela que foi tomada pelo tribunal recorrido (cf. § 3.º e 4.º do artigo 412.º CPP). Já a via restrita (também designada de «revista alargada») consiste na invocação de algum dos vícios previstos nas als. a), b) e c) do § 2.º do artigo 410.º CPP, cujo conhecimento é também oficioso. A apreciação da ocorrência de vício previsto no § 2.º do artigo 410.º CPP, dispensa a aferição de quaisquer elementos externos à decisão, designadamente a apreciação de documentos, a valoração das declarações do arguido ou dos depoimentos das testemunhas. Porquanto, os vícios são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, comprometedores da lógica da decisão e da sua conformidade com a lei. Consistem em anomalias ao nível da elaboração da sentença (ainda que com referência à matéria de facto), sendo apreensíveis pela simples leitura do respetivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Por serem vícios intrínsecos à sentença enquanto peça autónoma, têm de resultar do texto da própria decisão recorrida tomada na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Não se confundindo, pois, com a errada apreciação e valoração das provas com referência a factos concretos – que é o que acaba por fazer o recorrente!

O invocado vício da contradição insanável surge quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, «I. sobre a mesma questão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito. II. Há contradição insanável da fundamentação quando através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou seja quando se dá como provado ou não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto. III. Ocorre contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando através de um raciocínio lógico se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão, ou seja, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.» (8)

Por seu turno, no concernente ao erro notório na apreciação da prova, ele verificar-se-á «quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio. É um vício intrínseco da sentença, isto é que há de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que lendo-o, logo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou co a decisão tomada.» (9)

Ora, nada disto sucede com referência à sentença recorrida, pelo que improcede este fundamento do recurso do Ministério Público.

C.2.2 Erro de julgamento da questão de facto

Há erro de julgamento relativamente à matéria de facto quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando se dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. O recorrente começa por impugnar o julgamento feito relativamente aos factos provados 1 a 8 e aos não provados constantes das alíneas f) e g) da sentença, considerando que a valoração da prova testemunhal, concretamente dos depoimentos das testemunhas BB e CC, imporia que as alíneas f) e g) dos factos não provados devessem ter sido julgados provados. O teor das referidas alíneas é o seguinte: «f) O militar da GNR podia solicitar a identificação do arguido, face aos factos praticados pelo mesmo.

g) O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que estava obrigado a identificar-se perante solicitação do militar da GNR, devidamente uniformizado e identificado, e que, não o fazendo, como não o fez, desobedecia a uma ordem legítima, e cujas consequências também lhe foram regularmente comunicadas pela autoridade competente.»

Ora, o teor das alíneas f) e g) não respeita a factos que dependam da valoração de meios de prova ou de obtenção de prova, incorporando antes, no essencial, o juízo sobre as prescrições legais. Isto é, a demonstração da conclusão que naquelas alíneas se encerra não é suscetível de ser alcançado através da valoração das declarações das referidas testemunhas (ou de quaisquer outras). O que ali se encerra é na verdade o juízo sobre o direito de o referido militar exigir a identificação do arguido e do dever deste o fazer. O que, como se afigura óbvio, depende da interpretação das normas jurídicas pertinentes. Tanto assim que a sentença, no momento próprio, conheceu dessa questão e decidiu-a. Em rigor tais factos, pelo menos na exata formulação constante das citadas alíneas, não deveria sequer constar do acervo factológico. A questão não é, pois, neste conspecto, de erro de julgamento de questão de facto, mas da questão de direito, concretamente sobre a verificação (ou não) do crime de desobediência, a que nos dedicaremos adiante, porquanto essa é também uma das questões suscitadas no recurso do Ministério Público.

O recorrente impugna também as alíneas i), j), k), l) e m) dos factos julgados não provados da sentença recorrida. Para tanto invoca que tais factos se mostram comprovados nos depoimentos das testemunhas BB e CC (militares da GNR em serviço), que nos respetivos depoimentos os afirmaram, conjugados com o teor do auto de notícia de fls. 7/10, das fotografias de fls. 26/27 e orçamento de fls. 45/46. Acrescentando que os depoimentos das testemunhas DD e EE não contrariam os depoimentos das testemunhas BB e CC. Sobre esta questão o arguido louva-se nas considerações tecidas na sentença relativamente aos depoimentos prestados pelas testemunhas militares, afirmando não se ter provado o nexo causal entre a atuação do arguido e os danos da viatura policial. Sintetizemos o que nos diz a sentença sobre esta matéria relativamente às declarações e depoimentos prestados na audiência: - que os dois militares da GNR confirmaram que o arguido logo após ser algemado foi encostado sobre o capot da viatura da GNR e a dado passo desferiu algumas cabeçadas no capot da viatura, causando-lhe as amolgadelas que as fotografias documentam. - nas declarações sobre este segmento dos acontecimentos o arguido «referiu não se lembrar que tal tivesse acontecido, pois estava embriagado e alterado»; - por seu turno a testemunha DD referiu «não ter visto o arguido ter batido com a cabeça no capot do carro»; - e a testemunha EE referiu «ter observado os militares a colocarem o seu tronco sob o capot do veículo da GNR», acrescentando a Mm.a Juíza que «muito se estranha que esta testemunha não tenha observado tais pancadas». O auto de notícia (fls. 7/10) não faz realmente menção às amolgadelas da viatura policial. Mas as fotografias de fls. 26/27 mostram-nas, documentando o orçamento de fls. 45/46 o valor da reparação. Na sentença recorrida diz-se que a verificarem-se as cabeçadas no capot da viatura, como descrito pelas testemunhas militares, então «no dia seguinte [o arguido] teria de ter hematoma, mesmo que ligeiro (o denominado “galo na cabeça”)». E, realmente, no exame médico realizado no dia seguinte (21/3/2022), também documentado nos autos, não consta que o arguido apresentasse hematoma, ferida ou edema (o tal «galo na cabeça»). A Mm.a Juíza veio a considerar não provado o segmento factológico respetivo, constante nas als. b), c) e d) do acervo dos factos não provados. Isto é, que o veículo ao qual o arguido foi encostado depois de ter sido algemado tivesse sido o … de …, caracterizado com as insígnias da Guarda Nacional Republicana; que naquela circunstância o arguido desferiu três pancadas com a cabeça no capot daquela viatura, provocando estragos na chapa, que implicam a substituição do vinil das insígnias da GNR, causando prejuízos no montante de 328,64€ e 79,95€. Para tanto se firmando na circunstância de o arguido não ter confirmado o referido pelas testemunhas militares da GNR envolvidas nos acontecimentos, o mesmo sucedendo com as testemunhas DD e EE (que declararam disso não se terem apercebido); o auto de notícia não conter a identificação da viatura nem referência a tais danos; e o arguido não apresentar hematoma e ou edema na cabeça! Com o devido respeito não podemos sufragar este entendimento. Nem da motivação de facto da sentença consta nem da audição dos depoimentos das testemunhas BB e CC (militares da GNR intervenientes nas circunstâncias referidas na sentença) emerge razão, que permita sustentar quaisquer reservas de credibilidade relativamente à credibilidade dos respetivos testemunhos. Não há dúvida que no local dos acontecimentos se encontrava uma viatura policial – todos os intervenientes o referem e a sentença também. Está provado que o arguido depois de ter sido algemado (em circunstâncias que nem a sentença – nem os recursos - questionam), foi encostado à viatura policial. Está provado através das fotografias de fls. 26/27 que a viatura policial tem o capot amolgado e que a sua reparação custará o que se indica a fl.s 45 a 46. As únicas testemunhas que com toda a certeza podem assegurar que as cabeçadas foram desferidas pelo arguido e os danos verificados na viatura foram por ele causados afirmam-nos, categoricamente, sem sombra de dúvida. Não há nenhuma prova direta que tal contradiga, desde logo os depoimentos das outras testemunhas e as declarações do arguido. Aquelas nada viram e este não se lembra! É certo que o auto de notícia (artigo 243.º CPP) deveria conter nota identificadora da viatura danificada e breve indicação do dano – o que dele efetivamente não consta. Mas a natureza, o mundo e as ações humanas não são perfeitos. Nalgumas dessas dimensões a regra talvez seja mesmo a imperfeição. Mas será tal falha suficientemente relevante para desvalorizar os depoimentos das testemunhas militares? Para mais sendo estas as que comprovadamente estiveram no local e que de tudo se aperceberam porque tudo passou por elas! Acresce que a suposta imperatividade de as cabeçadas terem de produzir um hematoma ou edema é que será mais que questionável! Prudentemente diríamos que poderia ter causado ou não. Ou, ainda, tendo causado poderá não ter sido detetado (ou ter sido desvalorizado) no exame médico. Vejamos o quadro com mais detalhe. É indubitável que os militares da GNR se deslocaram ao local dos factos por causa de uma altercação familiar. E fizeram-no deslocando-se numa viatura policial (todos o referem). É igualmente inquestionável (depoimentos das testemunhas e declarações do próprio arguido) que nessa intervenção o arguido, que era um terceiro (na verdade), esteve sempre muito agitado. Tanto que veio a ser algemado pelos agentes da autoridade. E depois de estar algemado foi conduzido ao interior da viatura policial? Não foi. Porventura deveria. Mas foi encostado ao capot da viatura policial. Nem assim a sua agitação cessou, de tal modo que a dado momento deu cabeçadas no capot da viatura policial, que vieram a gerar os danos verificados. Note-se que a viatura ficou amolgada justamente na zona à qual o arguido fora encostado… No capot.

Questionamos outra vez: o facto de o auto de notícia se cingir às razões que levaram os militares ao local das altercações e aos motivos que vieram a determinaram a detenção do arguido, comprometerá (só por isso) a credibilidade dos seus depoimentos? Não vemos, realmente, nenhuma razão para isso. Nem sequer a ausência do «galo na cabeça» do arguido. Donde, o recurso do Ministério Público, nesta parte, é inteiramente merecedor de provimento, devendo considerar-se provados os factos das alíneas b), c), d) e i) (do acervo factológico julgado não provado na sentença recorrida), neles se considerando integrada a factualidade relevante das alíneas j), k), l) e m) do mesmo segmento. Aditando-se, assim, à matéria de facto provada:

«b) Na situação referida em 10., o veículo tinha matrícula ….

c) Na situação referida em 10. o arguido desferiu três pancadas com a cabeça no capô do carro da GNR, que se encontrava devidamente caracterizado com as insígnias da Guarda Nacional Republicana.

d) O arguido provocou estragos na chapa do capô, do carro da GNR matrícula …, implicando ainda a substituição do vinil das insígnias da GNR, causando prejuízos no montante de 328,64€ e de 79,95€.

i) Agiu ainda o arguido de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito, concretizado, de causar estragos no veículo automóvel identificado, apesar de saber que o mesmo pertencia ao Estado Português, encontrando-se ao serviço da Guarda Nacional Republicana, e que atuava contra a vontade do respetivo proprietário, sabendo que essas suas ações eram aptas a provocar os danos referidos, resultado que previu e com o qual se conformou.

Não deixaremos de assinalar a estranheza de no recurso sobre o erro de julgamento da questão de facto (impugnação da decisão de facto), ao invés de a referência ser a sentença, por referência aos factos provados e não provados e às provas que impõem decisão diversa (artigo 412.º, § 3.º CPP), se ter por referência o que foi alegado na acusação! Entendamo-nos: a estrutura acusatória do processo penal - cuja dimensão material são as fases do processo da competência de entidades distintas -, postula que a acusação delimita o objeto do julgamento. Mas depois de realizado este, aquela só deve ser chamada para o recurso nos casos de omissão ou excesso de pronúncia ou ainda nos casos de condenação por factos diversos dos descritos na acusação - ou na pronúncia - fora dos casos previstos nos artigos 358.º e 359.º CPP (nulidade da sentença - artigo 379.º CPP). Mas não é esse o foco do recurso. E, não o sendo, a sua referência no contexto impugnatório da decisão de facto da sentença será, então, simplesmente, excrescente.

C.2.3 Erro de julgamento da questão de direito

C.2.3.1 Do crime de desobediência

O recorrente Ministério Público sustenta que a detenção do arguido, nas circunstâncias em que ocorreu – recusa por banda do arguido a identificar-se na sequência de a tal ser instado - foi legítima - os militares podiam legalmente realizá-la -, por terem o poder de exigir a sua identificação, redundando a recusa deste, após advertência de desobediência, no cometido do crime respetivo, não se vulnerando nenhum direito do arguido. Por seu turno o arguido considera que a detenção do arguido, por se ter recusado identificar-se, foi ilícita.

O recorrente não tem razão. O pedido de identificação foi ilegítimo. E a detenção também. Vejamos. Está provado que no dia e hora dos acontecimentos que levaram os militares da GNR ao …, o arguido se interpôs entre os agentes da autoridade, devidamente uniformizados, e os envolvidos numa altercação familiar, visando impedir a ação policial dos militares. A dada momento o arguido foi advertido de que tinha de se afastar de modo a que os militares procedessem à identificação dos visados no desacato que ocorrera. Tendo o arguido recusado afastar-se.

Nessas circunstâncias, o sargento BB transmitiu ao arguido que se persistisse na sua conduta de impedir a intervenção dos militares sobre os intervenientes no desacato teria de se identificar.

Retorquindo o arguido que não se identificaria.

Nessa ocasião o mesmo militar informou o arguido que caso de se não identificar incorreria na prática de um crime de desobediência e procederia à sua detenção.

Solicitando então ao arguido novamente a sua identificação ao que este se mais se negou. Sendo-lhe nestas circunstâncias dada voz de detenção, por desobediência (por ter praticado um crime de desobediência, previsto no artigo 348.º,4 1.º, al. b) CP).

A verdade é que a oposição que o arguido vinha exercendo era de mera interposição, não sendo violenta ou ameaçadora, pelo que também contrariamente ao sustentado pelo recorrente não existia nenhuma situação subsumível ao ilícito de resistência e coação sobre funcionário (347.º CP). E os militares bem o sabiam. Por isso mesmo não o detiveram com esse fundamento.

Também contrariamente ao que sustenta o recorrente, em tais circunstâncias, não era lícito ao referido militar exigir a identificação do arguido. E, por assim ser, também a sequente detenção por desobediência foi ilegítima, pelas razões bem expostas na sentença, com cujos fundamentos concordamos.

Refere a sentença neste conspecto:

«Estatui o art 348.º do Código Penal que:

“1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:

a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou

b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.

2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”.

Dispõe o artigo 14.°, da Lei n.º 63/2007, de 06.11 [Lei Orgânica da GNR] , o qual dispõe:

"1 - No âmbito das suas atribuições, a Guarda utiliza as medidas de polícia legalmente previstas e nas condições e termos da Constituição e da lei de segurança interna, não podendo impor restrições ou fazer uso dos meios de coerção para além do estritamente necessário.

2 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade de polícia ou agente de autoridade da Guarda, é punido com a pena legalmente prevista para a desobediência qualjficada."

Por sua vez, o artigo 250.°, do Código de Processo Penal, preceitua que:

"1 - Os órgãos de polícia criminal podem proceder à identificação de qualquer pessoa encontrada em lugar público aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre ela recaiam fundadas suspeitas da prática de crimes, da pendência de processo de extradição ou de expulsão, de que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou de haver contra si mandado de detenção. (...)

3 - O suspeito pode identificar-se mediante a apresentação de um dos seguintes documentos:

a) Bilhete de identidade ou passaporte, no caso de ser cidadão português;

b) Título de residência, bilhete de identidade, passaporte ou documento que substitua o passaporte, no caso de ser cidadão estrangeiro.

4 - Na impossibilidade de apresentação de um dos documentos referidos no número anterior, o suspeito pode identificar-se mediante a apresentação de documento original, ou cópia autenticada, que contenha o seu nome completo, a sua assinatura e a sua fotografia.

5 - Se não for portador de nenhum documento de identificação, o suspeito pode identificar-se por um dos seguintes meios:

a) Comunicação com uma pessoa que apresente os seus documentos de identificação;

b) Deslocação, acompanhado pelos órgãos de polícia criminal, ao lugar onde se encontram os seus documentos de identificação;

c) Reconhecimento da sua identidade por uma pessoa identificada nos termos do n.° 3 ou do n.° 4 que garanta a veracidade dos dados pessoais indicados pelo identificando.

6 - Na impossibilidade de identificação nos termos dos ns.° 3, 4 e 5, os órgãos de polícia criminal podem conduzir o suspeito ao posto policial mais próximo e compeli-lo a permanecer ali pelo tempo estritamente indispensável à identificação, em caso algum superior a seis horas, realizando, em caso de necessidade, provas dactiloscópicas, fotográficas ou de natureza análoga e convidando o identificando a indicar residência onde possa ser encontrado e receber comunicações. (...)."

O artigo 1.º da Lei n.º 5/95, de 21 de fevereiro – “Obrigatoriedade do porte de documento de identificação” – dispõe que:

“1 - Os agentes das forças ou serviços de segurança a que se refere a Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, no artigo 14.º, n.º 2, alíneas a), c), d) e e), e a Polícia Marítima, como força policial com competências de fiscalização e policiamento nas áreas de jurisdição do sistema da autoridade marítima, podem exigir a identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, sempre que sobre a mesma pessoa existam fundadas suspeitas de prática de crimes contra a vida e a integridade das pessoas, a paz e a Humanidade, a ordem democrática, os valores e interesses da vida em sociedade e o Estado ou tenha penetrado e permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual penda processo de extradição ou de expulsão.

2 - Os mesmos agentes só podem exigir a identificação depois de exibirem prova da sua qualidade e de terem comunicado ao identificando os seus direitos e, de forma objetiva, as circunstâncias concretas que fundam a obrigação de identificação e os vários meios por que se pode identificar.

3 - A omissão do dever de comunicação a que se refere o número anterior determina a nulidade da ordem de identificação.”

E o art 2.º, n.º 1 da mesma lei: “1 - Os cidadãos maiores de 16 anos devem ser portadores de documento de identificação sempre que se encontrem em lugares públicos, abertos ao público ou sujeitos a vigilância policial.”

De acordo com art 29º, nº 1, al. b) do revogado DL n.º 231/93, de 26 de Junho - LEI ORGÂNICA DA GNR: “Constituem medidas de polícia aplicáveis nos termos e condições previstos na Constituição e na lei: (…) al. b) A exigência de identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público ou sujeito a vigilância policial;

Sucede que este diploma foi expressamente revogado pela Lei n.º 63/2007, de 06/11, a atual Lei Orgânica da GNR. E neste diploma, não existe norma idêntica ao revogado art.º 29º supra aludido.

E da leitura do art.º 3.º da atual Lei Orgânica da GNR, não refere que seja atribuição da força policial a exigência de identificação de qualquer pessoa que se encontre ou circule em lugar público.

E da conjugação destas normas (art 250.º do C.P.P., art.º 1.º da Lei n.º 5/95, de 21 de fevereiro), só pode ser conduzido ao posto policial, para identificação, quem é suspeito da prática de um crime.

No crime de desobediência, tal como nos demais crimes contra a autoridade pública, o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado, "de uma forma particular, a não colocação de entraves à atividade administrativa por parte dos destinatários dos seus atos" (conf. MONTEIRO, Cristina Líbano; - Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, pág. 350, no mesmo sentido Acórdão da Relação do Porto de 20 de maio de 1987, CJ, XII, tomo III, pág. 225).

São elementos objetivos do tipo

a) a existência de ordem ou mandado de autoridade ou funcionário, na aceção do art. 386.º do CP, impondo uma determinada conduta, um dever de acção ou omissão;

b) a sua legalidade material e formal;

c) a competência de quem a emite;

d) a comunicação regular da ordem ao destinatário; e

e) incumprimento da ordem ou mandado.

Da factualidade dada como provada em 1 a 8, com relevo para este tipo criminal, resulta que o militar da GNR, impedido pelo arguido de exercer cabalmente as sus funções (manter a ordem pública) decorrente de desacatos existentes, porquanto o arguido metia-se à sua frente, deu-lhe ordem de afastamento.

Como o arguido persistia em intrometer-se, exigiu a sua identificação e como este se recusou, advertiu-o que, caso o arguido não se identificasse, que incorria na prática de um crime de desobediência. E o arguido manteve a recusa em identificar-se, sendo, de seguida, detido.

Ora, aqui chegados, ficou provado que o arguido foi cominado pelo crime de desobediência porque se recusou a identificar.

Em face dos preceitos legais anteditos, os militares da GNR só podiam exigir a identificação do arguido, caso ele fosse suspeito da prática de um crime.

O que não foi, manifestamente o caso. Os suspeitos da pratica de um crime seriam os familiares deste.

Portanto, esta ordem de identificação foi ilegítima, pois o militar não tinha respaldo na lei para exigir a sua identificação.»

Objeta o recorrente que a Lei de Segurança Interna (artigos 5.º/1, 25.º/2-a), 28.º/1-a), 30.º, 31.º/1), o Estatuto da GNR (artigos 1.º e 14.º) e a Lei n.º 5/95 (que estabelece a obrigatoriedade do porte de documento de identificação), permitem que os militares possam exigir a identificação dos cidadãos, sob pena de desobediência.

Mas não é assim, como muito bem ficou dito na sentença recorrida.

Com efeito, de nenhuma das normas citadas emerge o poder de as forças policiais exigirem a identificação de uma pessoa que não é suspeita da prática de qualquer crime, sob pena de desobediência. E, muito menos, sequente detenção por prática deste crime.

O arguido não cometeu o crime de desobediência.

Improcedendo este fundamento do recurso.

C.2.3.2 Do crime de dano qualificado

Considera o recorrente Ministério Público que em razão das alterações da matéria de facto, deverá o arguido ser punido pela prática de um crime de dano qualificado, previsto nos artigos 212.º, § 1.º e 213.º, § 1.º, al. c) CP.

Vejamos, então.

Preceitua o artigo 212.º, § 1.º CP que: «quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido...»

O crime de dano é um crime contra a propriedade. Consistindo a ação ou execução do dano em destruir, isto é, dar cabo de, demolir, arrasar, fazer desaparecer, inutilizar; ou danificar, isto é, estragar, arruinar, adulterar; desfigurar, ou seja, mudar a figura de, alterar-lhe os traços; ou tornar não utilizável, isto é, impedir a utilização normal; coisa alheia.

É indubitável, no que respeita aos danos causados na viatura policial, ter o arguido cometido um crime de dano. Pois sabia que sabendo tratar-se de um bem que lhe não pertencia, danificou, intencionalmente, sabendo serem tais atos criminalmente puníveis. E como se trata de um bem afeto ao uso de um serviço público, como é indubitável ser o que presta a GNR, tal crime é qualificado, nos termos previstos no artigo 213.º, § 1.º, al. c) CP, punível com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 660 dias.

A medida concreta da pena deve ser determinada dentro dos limites fixados na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, considerada a finalidade das penas referida no artigo 40.º, § 1.º CP, atendendo-se a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo legal de ilícito, deponham a favor ou contra o arguido, designadamente o grau da ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, bem como a sua conduta anterior e posterior ao facto e a falta de preparação para manter uma conduta lícita (artigo 71.º Código Penal).

A pena tem como suporte axiológico uma culpa concreta, que fundamenta e limita a pena concreta. A sua individualização pressupõe uma proporcionalidade entre a medida desta e a culpabilidade, intervindo igualmente as exigências de prevenção e de reprovação do crime, devendo nesta parte a execução da pena manter um sentido pedagógico e ressocializador (artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal).

Vejamos então. Atento o contexto e circunstâncias em que ocorreu o ilícito, o valor dos prejuízos causados e as condições pessoais do arguido (descrita nos pontos 11. a 27. dos factos provados da sentença), seguindo a orientação dada no artigo 70.º CP optaremos pela pena de multa, graduando esta em 160 dias, à razão diária de 7€. O crime de dano a que vimos fazendo referência está em concurso efetivo com os demais que a sentença recorrida considerou. Como assim, conforme imposição constante do artigo 77.º do Código Penal, deverá o arguido ser punido com uma única pena.

Para tanto, deverá atender-se, em conjunto, aos factos e à personalidade do agente.

Considerando as penas parcelares relativas a cada um dos crimes integrados no concurso (160 dias pelo crime de dano, 100 dias por cada um dos dois crimes de injúria qualificada e 120 dias pelo crime de ameaça qualificada), a moldura abstrata da pena que a este respeita é 160 a 480 dias.

Tem-se em consideração a gravidade do conjunto dos factos praticados, sequentes e dependentes uns dos outros, dos quais se extrai a gravidade do ilícito global perpetrado.

Assim, atendendo à gravidade dos factos, tendo em conta as circunstâncias atinentes à globalidade dos mesmos e à personalidade do arguido, evidenciada neles e na caracterização das suas condições pessoais, a pena única deverá fixar-se em 300 dias de multa, à razão diária de 7€.

C.2.3.3 Do pedido de indemnização civil

Considera o recorrente Ministério Público que da alteração factológica preconizada, deveria resultar a procedência do pedido cível oportunamente formulado, mediante o qual reclamou a condenação do arguido/demandado no pagamento ao Estado/Guarda Nacional Republicana a quantia 408,59€ (correspondente à soma das parcelas 328,64€ e 79,95€) a título de danos patrimoniais, acrescidas de juros de mora, contados à taxa legal desde a notificação do pedido e até efetivo e integral pagamento. O demandado considera não haver razões para alterar a matéria de facto fixada na 1.ª instância, da qual não decorria o nexo causal entre a sua atuação e os danos que foram alegados. Sucede, porém, que, como se deixou expresso supra, foram aditados ao acervo dos factos provados os que são demonstrativos da prática pelo demandado dos atos ilícitos que foram causa direta de danos causados pelo demandado (cf. supra aditamento aos factos provados das als. b), c) d) e i) da sentença recorrida). O valor correspondente aos danos patrimoniais causados ao Estado mostra-se cabalmente provado, razão pela qual tem o demandado o dever de indemnizar (artigo 483.º do Código Civil - CC), sendo o respetivo quantitativo o correspondente à reconstituição da situação que existiria se não se tivessem verificado os eventos que obrigam à reparação (artigo 562.º CC), acrescida dos correspondentes à mora. Termos em que se julga integralmente procedente o pedido de indemnização formulado contra o arguido.

III – Dispositivo Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso do arguido;

b) Conceder parcial provimento ao recurso do Ministério Público, por via do qual:

b’) aditar à matéria de facto provada da sentença os factos que nela estavam alinhados em b), c), d) e i) do acervo dos «não provados»;

b’’) condenar o arguido pela prática de um crime de dano qualificado, previsto nos artigos 212.º, § 1.º e 213.º, § 1.º, al. c) do Código Penal, na pena de 160 dias de multa, à razão diária de 7€;

c) No integral provimento do pedido de indemnização civil, condenar o arguido a pagar ao Estado/Guarda Nacional Republicana, a quantia de 408,59€, acrescida de juros de mora, contados à taxa legal, desde a data da notificação daquele.

d) Operando o cúmulo jurídico das penas correspondentes a todos os crimes pelos quais o arguido fica condenado neste processo, nos termos previstos no artigo 77.º do Código Penal, fixamos a pena única em 300 dias de multa, à razão diária de 7€.

e) Custas pelo arguido. Considerando por junto os dois recursos fixa-se a taxa de justiça (global) em 6 UC (artigo 513.º, § 1.º e 3.º do CPP e artigo 8.º Reg. Custas Processuais e sua Tabela III).

f) Notifique-se.

Évora, 7 de novembro de 2023

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Filomena Soares

Nuno Garcia

.............................................................................................................

1 Em conformidade com o entendimento fixado pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28dez1995.

2 Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, p. 607.

3 Neste sentido, cf. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 1999, Coimbra Editora, p. 607; e Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Inviolabilidade Pessoal - Uma perspectiva jurídico-criminal, Coimbra Editora, 1996, p. 79.

4 José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Almedina, 1983, p. 144.

5 António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, 1996, p. 39.

6 António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, 1996, p. 39.

7 Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª ed., 2012, Coimbra Editora, p. 553 ss.

8 Acórdão do STJ, de 11jan2017, proc. 93/14.3AGRD.C1.S1, citado por Pereira Madeira, no Código de Processo Penal Comentado, 2021, 3.ª ed. revista, p. 1298.

9 Acórdão do STJ, de 2mar2016, proc. 81/12.4GCBNV.L1.S1, citado por Pereira Madeira, no Código de Processo Penal Comentado, 2021, 3.ª ed. revista, p. 1304.