Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
444/13.8TBETZ-D.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: LEILÃO JUDICIAL
ANÚNCIO
ANULAÇÃO
LEGITIMIDADE PARA ARGUIR A ANULABILIDADE
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1- O anúncio de venda dos bens em leilão eletrónico deve conter quaisquer informações relevantes, designadamente, os ónus ou encargos que incidam sobre o bem e que não caduquem com a venda.
2- O contrato de arrendamento, na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do respetivo proprietário, devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, está sujeito ao regime previsto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, na parte em que consagra uma exceção à regra de que os bens judicialmente vendidos são transmitidos livres de quaisquer encargos.
3- O arrendamento deve, por isso, figurar no anúncio público de venda.
4- Por força do artigo 838.º, n.º 1, do CPC, o comprador, principal interessado no conhecimento do ónus, pode pedir a anulação da venda que o não publicite.
5- O ato de venda pode ainda ser anulado, por outros interessados, nos termos do artigo 195.º do CPC, quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
6- A falta de indicação da existência de um arrendamento a onerar o imóvel em venda é, objetivamente, suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, porque pode viciar o valor de proposta de compra.
7- Tendo o remidor um interesse legítimo na repetição do ato, por ter perdido a possibilidade de remir por um valor eventualmente inferior, se o bem tivesse sido publicitado como onerado.
8- Mas já não os executados porque o interesse destes é tão só o de evitar a saída do bens do âmbito familiar, o que lograram com a remissão exercida por um descendente que se conformou com a nulidade.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 444/13.8TBETZ-D.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I

Na presente execução em que é Exequente Caixa (…), S.A. e Executados (…) e mulher (…), procedeu-se à realização de leilão eletrónico, na data de 08/07/2021, tendo em vista a venda do imóvel que foi objeto de penhora, tendo sido apresentada uma oferta, por (…), em representação de “(…) Indian, S.A.”, pelo valor de € 165.000,00, superior ao anunciado para venda, sendo este de € 156.400,00.

Exequente e Executados foram notificados do teor da certidão de encerramento do leilão tendo-o sido estes últimos, ainda, para em 10 dias procederem à entrega voluntária do imóvel vendido, livre e devoluto de pessoas e bens e respetivas chaves, sob pena de entrega coerciva no final do aludido prazo.

Vieram então os executados informar que o leilão em causa não teve em consideração a existência de um contrato de arrendamento que incide sobre o imóvel em questão, de que a Sra. Agente de Execução tinha perfeito conhecimento em razão do exercício das suas funções (no âmbito de outro processo), e cujo ónus deveria ter sido publicitado aquando do leilão, sob pena de se ter por condicionada a apresentação das propostas de compra e venda em causa, com influência direta no resultado final das licitações, nos termos dos artigos 835.º e 837.º do CPC, o que tudo impõe o reconhecimento da nulidade da venda efetuada, que requerem que seja ora declarada.

Pronunciaram-se a Sra. Agente de Execução e a Exequente, pugnando ambas pelo improcedência da arguida nulidade.

Por despacho de 20/06/2022 veio o Tribunal a quo pronunciar-se sobre a arguida nulidade, indeferindo a mesma.

Inconformados com tal decisão vieram os Executados recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

A. Os ora Recorrentes não podem concordar com o decidido no douto Despacho ora recorrido que indeferiu a nulidade da venda efetuada, arguida pelos aqui Executados, no seu requerimento de 10.09.2021, sob a Ref.ª 39811858, tendo por base o facto do leilão eletrónico realizado não ter tido em consideração a existência de um contrato de arrendamento que incide sobre o imóvel em questão, de que a Sra. Agente de Execução tinha perfeito conhecimento em razão do exercício das suas funções, e cujo ónus deveria ter sido publicitado aquando do leilão, sob pena de se ter por condicionada a apresentação das propostas de compra e venda em causa, com influência direta no resultado final das licitações, nos termos dos artigos 835.º e 837.º do CPC.

B. Isto porque, e ainda que, como se refere em tal douto Despacho, efetivamente se tenha por cometida/verificada aquela omissão, a irregularidade/nulidade em causa apenas poderia ser invocada pelo proponente e não pelos aqui Executados.

C. Não obstante, com todo o devido e merecido respeito pelo entendimento vertido no douto Despacho ora recorrido, não podem os Apelantes concordar com o mesmo, na medida em que, mais que não fosse, da simples análise dos presentes autos sempre resulta que se verificaram os pressupostos para que fosse decretada a arguida nulidade.

D. Com efeito, e desde logo, define o artigo 6.º do Despacho 12.624/2015, publicado no DR, II Série, de 9.11.2015, as regras aplicáveis à venda em leilão eletrónico, expressamente indicando o seu n.º 6, que, «A publicitação no portal www.e-leiloes.pt deve indicar, pelo menos: (…) alínea m) Quaisquer circunstâncias que, nos termos da lei, devam ser informadas aos eventuais interessados, nomeadamente a pendência de oposição à execução ou à penhora, a pendência de recurso, a existência de ónus que não devam caducar com a venda e de eventuais titulares de direitos de preferência manifestados no processo»;

E. Assim, inquestionável é que, exige-se clareza e rigor na publicitação da venda judicial (Cfr. douto Acórdão do STJ de 28/04/2009 – Relator: Salvador da Costa, Processo n.º 3827/1990.S1 e douto Acórdão do mesmo STJ de 22/10/2015 – Relator: Pires da Rosa, Processo n.º 896/07.5TBSTS.P1.S1, ambos in www.dgsi.pt).

F. Ora, analisando a causa de anulação da venda aqui invocada pelos Executados – a existência de contrato de arrendamento que incide sobre o imóvel dos autos – enuncia-se estarmos perante “encargos ou ónus que incidam sobre o direito objeto de transmissão”, como é o caso, no que concerne a bens imóveis, dos direitos como o arrendamento, ónus esse que não caduca com a venda.

G. Sendo ainda certo que, a existência de arrendamento influencia negativamente o valor de mercado dos prédios, no sentido de que constitui limitação que excede os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, por exemplo, o direito pessoal de gozo sobre o prédio vendido, designadamente o derivado de contrato de arrendamento que seja eficaz em relação ao comprador por força do artigo 1057.º do Código Civil.

H. Assim, tendo-se considerado provada a existência do aludido contrato de arrendamento – veja-se que, na douta decisão recorrida, consta expressamente que o Ex.ma Senhora Agente de Execução reconheceu que efetivamente o imóvel em questão se encontra arrendado a um terceiro e que tal menção não foi feita constar do anúncio que publicitou a venda – haveria de ter-se concluído que pelo erro sobre a coisa transmitida por falta de conformidade com o que foi anunciado,

I. E, consequentemente, determinado que existia fundamento de anulação do ato da venda executiva por erro sobre a coisa transmitida, atenta a falta de conformidade com o que foi objeto dos editais e dos anúncios, o que abrange, igualmente, o erro sobre o objeto propriamente dito e sobre as suas qualidades.

J. Efetivamente, na publicação de venda, não foi feita qualquer referência à circunstância de um contrato de arrendamento que tinha como objeto o prédio dos autos, apesar de nessa altura já ser conhecida da Ex.ma Senhora Agente de Execução essa existência, com influência no valor dos bens anunciados para venda.

K. É que, não é displicente que o valor anunciado para venda, se tivessem os potenciais compradores sabido da existência de um ónus (arrendamento), por certo seria menor a proposta apresentada – ou não haveria sequer proposta apresentada – que aquela que foi efetivada com a venda aqui em causa.

L. O que prejudica não só os direitos do potencial comprador, mas, de igual modo, o direito de remição que pudesse vir a ser exercido (como foi) pela filha dos aqui Executados.

M. Direito de remição esse cujo núcleo fundamental de proteção é a esfera patrimonial dos aqui Executados, pois que, nos termos do artigo 842.º do Código de Processo Civil, é possível reverter a venda de bem adjudicado ou vendido em processo de execução, o qual, ficará, pois, na esfera patrimonial da relação familiar dos Executados.

N. É que, a finalidade conspícua do direito de remição – que prevalece sobre o direito de preferência – é a proteção da família, através da preservação do património familiar, evitando a saída dos bens objeto de execução do âmbito da família do executado.

O. Logo, a omissão da existência daquele ónus – arrendamento – na publicação da venda em causa, acarreta direto prejuízo para os próprios Executados, os quais vêm o preço a ser pago, pelo exercício do direito de retenção (leia-se “remissão”), a ser sobrevalorizado, em detrimento da verdade relativamente aos ónus existentes no dito imóvel.

P. Com efeito, visando-se, com a atribuição de tal direito, a proteção familiar do património dos Executados, resulta claro e evidente que é um direito próprio dos Executados que está em causa;

Q. E tanto assim é que, aliás, por serem os próprios os interessados no exercício daquele direito de remição, é que não existe sequer qualquer dever de notificar as pessoas elencadas do artigo 842.º do CPC para o exercício daquele direito; antes cabendo aos próprios Executados “avisá-los” para o exercício em causa.

R. Do que, assim decorre que o legislador tratou o exercício daquele direito como se fosse um direito próprio e intrínseco à qualidade de Executados nos autos, tendo de ser os próprios a diligenciar, caso assim o pretendam, pelo exercício de tal direito, ainda que, através do seu cônjuge, ascendentes e/ou descendentes.

S. Razão pela qual, sendo este o entendimento legislativo, somos a concluir, sempre com o devido respeito, que mal andou o Dign.º Tribunal a quo ao ter considerado que “Interessados serão apenas e só os pretensos compradores”.

T. Pois, de facto, o leilão em causa, como consta dos factos constantes da decisão ora em crise, foi publicitado na respetiva plataforma (link: https://e-leiloes.pt/info.aspx?lo= LO792582021), da qual constava que o mesmo encerraria às 11:00horas, do dia 08.07.2021, mas sem qualquer referência ao aludido contrato de arrendamento;

U. Nesse sentido, não foi cumprida a regra obrigatória imposta no artigo 6º do Despacho 12.624/2015.

V. Donde, tendo sido preterida formalidade, prescrita na lei, e essencial ao ato de venda em causa – a omissão, no anúncio eletrónico, da menção de que o imóvel cuja venda por aquela via se publicita se encontra dado de arrendamento –, por ser suscetível de influenciar a decisão do comprador interessado e, consequentemente, do remidor, impõe-se por isso, ao invés do que foi decidido na douta decisão ora recorrida, a anulação do ato de venda executiva em causa.

W. É que, tal omissão de informação, com clara relevância no âmbito da publicitação da venda, constitui nulidade relevante e considerável no quadro da presente ação executiva, nos termos do artigo 195º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

X. Ou seja, e concretizando, a omissão no anúncio publicado no portal “e-leiloes.pt”, ao qual a Sra. Encarregada de venda havia decidido recorrer para publicitar a venda do imóvel penhorado, de que este possuía um contrato de arrendamento em vigor, e através do qual o Proponente veio a apresentar proposta de venda, que condicionou o exercício do direito de remição, constitui a omissão de ato relevante na formação da vontade de adquirir por parte dos potenciais interessados e dos próprios Executados, legalmente imposto pelos princípios gerais de clareza, verdade, transparência e boa-fé negocial.

Y. E, tal omissão revelou-se como relevante na prática dos atos subsequentes, concretamente na apresentação ou não de proposta e, na afirmativa, do valor a apresentar ou oferecer, que não puderam considerar aquela informação omitida.

Z. Determinando, neste contexto, reconhecimento da verificação da nulidade inscrita no n.º 1 do artigo 195.º do Código de Processo Civil, que abrange o anúncio de publicitação de venda do imóvel, bem como o subsequente processado, nomeadamente a proposta de aquisição apresentada pelo Proponente, e o ulterior exercício do direito de remição pela filha dos Executados.

AA. Por conseguinte, em harmonia com o artigo 839.º, n.º 1, alínea c), do C.P.C., a venda executiva também fica sem efeito se for anulado o ato da venda nos termos do artigo 195.º do CPC.

Em suma,

BB. Do exposto, temos então que o douto Despacho recorrido, ao não reconhecer e declarar a Nulidade nos termos invocados pelos Executados, incorreu em errada apreciação e aplicação do direito, violando o disposto no artigo 6.º, n.º 6, alínea m), do Despacho 12.624/2015, publicado no DR, II Série, de 9.11.2015, bem como, os artigos 195.º e 839.º, n.º 1, alínea c), e ainda, o escopo do artigo 842.º, todos do C.P.C..

CC. Impondo-se, por isso, a revogação do douto Despacho recorrido e a sua substituição por uma nova decisão que julgue por verificada a arguida Nulidade por parte dos aqui Executados.

Requerendo a final que seja revogado o Despacho recorrido, e substituído por outro que julgue verificada a arguida nulidade, a qual abrange o anúncio de publicitação de venda do imóvel, bem como o subsequente processado, nomeadamente a proposta de aquisição apresentada pelo Proponente, e o ulterior exercício do direito de remição pela filha dos Executados.

Em contra-alegações concluiu a exequente Caixa (…), SA

A. Vêm os aqui Recorrentes interpor recurso do douto despacho de fls. (…), que indeferiu a arguida nulidade, mais condenou os executados nas custas do incidente a que deram causa, fixando no mínimo a taxa de justiça por eles devida;

B. Vieram os Recorrentes interpor recurso de Apelação, porquanto consideram que o leilão realizado não ter tido em consideração a existência de um contrato de arrendamento que incide sobre o imóvel em questão;

C. Salvo o devido respeito por opinião diversa, entende a Recorrida que não assiste razão aos Recorrentes, carecendo de qualquer fundamento legal a sua pretensão;

D. Vieram os ora Recorrentes alegar que aquando da publicação da venda não foi feita qualquer referência à existência de um contrato de arrendamento que tinha como objeto o prédio dos autos, apesar de nessa altura já ser conhecida da Exma. Senhora Agente de Execução essa existência;

E. Não é verdade que no momento da publicação de venda a Sra. Agente de Execução sabia da existência do contrato de arrendamento que tinha como objeto o referido imóvel, visto que, a mesma só obteve conhecimento da existência do mesmo aquando do término do leilão;

F. A Sra. Agente de Execução foi notificada do requerimento junto aos autos a 10 de setembro 2021, a informar a mesma da existência do contrato de arrendamento que incide sobre o referido imóvel, bem como a informar que a mesma já tinha sido notificada da existência do referido ónus no âmbito do processo de execução n.º 443/13.0TBETZ;

G. A Sra. Agente de Execução veio aos presentes autos confirmar que no âmbito do referido processo de execução foi junta cópia do contrato de arrendamento, contudo a mesma não associou a existência desse ónus à presente execução, visto que cada processo tem a sua tramitação específica e não pode existir cruzamento de dados informáticos entre as execuções, apesar dos intervenientes processuais serem os mesmos;

H. Não tem qualquer cabimento legal a mesma ser notificada num outro processo de execução quanto a existência de um contrato de arrendamento que incide sobre um imóvel penhorado no presente processo, sendo que, não foi devidamente notificada para o efeito e só teve conhecimento da existência do mesmo após termino do leilão;

I. Visto que a cópia do contrato de arrendamento apenas foi junto aos autos no âmbito do processo executivo n.º 443/13.0TBETZ, onde não estava a decorrer qualquer tipo de venda do referido bem, a Sra. Agente de Execução não foi devidamente notificada e claramente não tinha conhecimento do referido ónus que incide sobre o imóvel objeto de venda na presente execução;

J. Não poderíamos considerar que a mesma conhecia de facto a existência de um contrato de arrendamento que tinha como objeto o referido bem, visto que cada processo é um processo, cada um tem a sua tramitação específica e, mais importante, a venda judicial do bem estava a ser realizada no âmbito dos presentes autos;

K. Os Recorrentes vêm ainda alegar que “a referida omissão de informação, relevante no âmbito da publicitação da venda em execução, constitui, pois, nulidade com relevância no quadro da ação executiva, a que se reporta o artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil”. (…) “Isto porque, prejudica não só os direitos do potencial comprador, mas, de igual modo, o direito de remição que pudesse vir a ser exercido (como foi) pela filha dos aqui Executados”;

L. Segundo uma interpretação literal do artigo 195.º do Código de Processo Civil, estar-se-á perante uma nulidade sempre que a omissão de um ato ou formalidade possa influir no exame ou na decisão da causa;

M. A omissão da existência de um contrato de arrendamento que incide sobre o referido imóvel aquando da publicidade da venda, não seria necessariamente suscetível de influir no exame e na decisão da causa;

N. O facto de sobre o referido imóvel incidir um contrato de arrendamento, não quererá dizer que o promitente comprador demonstrasse falta de interesse em adquirir o imóvel. Até porque a existência de contrato de arrendamento não impede a venda de coisa imóvel, independentemente de caducar ou não o referido ónus;

O. Veja-se, neste sentido, o entendimento proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 2026/17.6T8LRA-F.C1;

P. Não estando perante uma nulidade expressamente prevista na lei, a omissão da menção de que o imóvel cuja venda por aquela via se publicita se encontra dado de arrendamento, pode consubstanciar uma irregularidade;

Q. Nunca os executados poderiam invocar a existência da mesma. Apenas os interessados o podem fazer na observância da formalidade omitida ou na repetição ou eliminação do ato nos termos do disposto no artigo 197.º do C.P.C;

R. Para este efeito, os interessados são apenas aqueles que demonstraram interesse em adquirir o imóvel, isto é, os potenciais compradores;

S. Seria bastante prejudicial para as partes intervenientes na presente execução, principalmente para a ora Recorrida, visto que, com o conhecimento da existência do contrato de arrendamento, o promitente comprador poderia apresentar uma proposta inferior aquela já apresentada, o que prejudicaria a ora recorrida em ver o seu crédito satisfeito em tempo útil;

T. Como iria prejudicar no exercício do direito de remir por parte da filha dos recorrentes, visto que, haveria a possibilidade de o arrendatário vir a dar azo ao seu direito de preferência;

U. Direito de preferência é o direito que certa pessoa tem de preferir a qualquer outra pessoa na compra, ou noutro negócio, previsto na lei. Isto quer dizer que, iria sim prejudicar o exercício do direito de remição, se o arrendatário tivesse dado ao azo ao seu direito de preferência;

V. Os executados sempre souberam da existência desse contrato de arrendamento bem como a filha dos mesmos, que sempre deu azo ao seu direito de remir, e até a esse momento, nunca nos presentes autos os mesmos informaram da existência de um contrato de arrendamento precisamente para assegurarem o exercício de tal direito por parte da filha;

W. Tendo, por isso, exercido o direito de remir sobre o imóvel, não podemos concordar com o que os Recorrentes alegam quando referem que “(…) a omissão da existência daquele ónus – arrendamento – na publicação da venda em causa, acarreta direto prejuízo para os próprios executados (…)”;

X. Os executados bem como a filha de ambos poderiam ter informado há muito a existência do contrato de arrendamento e, bem sabemos que, não o fizeram para se certificarem que a própria filha demonstrasse o seu interesse em exercer o direito de remir, e assim, manter o imóvel no seio da família;

Y. A ora Recorrida entende que a venda do referido imóvel deverá prosseguir os seus trâmites normais, uma vez que não estamos perante uma nulidade prevista na lei, nem a Sra. Agente de Execução tinha conhecimento sobre a existência de contrato de arrendamento que incide sobre o imóvel objeto de venda na presente execução.

Pugnando, a final, pela manutenção do julgado.


II


Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), a questão a decidir é a seguinte:

- Da legitimidade dos executados quanto ao pedido de anulação da venda com fundamento na existência de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado.


III


Importa considerar a seguinte factualidade:

1 – O anúncio de venda por leilão eletrónico respeitante ao imóvel – urbano situado em Sousel, Quinta da (…), freguesia e concelho de Sousel. Composto por rés-do-chão para habitação e quintal com a área total de 1440m2. Descrito na conservatória do registo predial de Sousel com o n.º (…) e inscrito na matriz sob o artigo (…) do respetivo serviço de finanças, localizado em (…), 7470-224 Sousel – pertencente aos executados, omitiu que o mesmo se encontra arrendado.

2 – A venda foi marcada para 08/07/2021 e teve cinco propostas de compra, tendo a melhor proposta sido a de (…), em representação de “(…) Indian, S.A.” no valor de € 165.000,00.

3 - Em 13/07/2021 (…), maior e filha dos Executados, veio exercer o seu direito a remir o referido prédio urbano, pelo mesmo preço de € 165.000,00, prestando-se ao respetivo depósito.

4 - Em 10/09/2021, ainda antes de haver pronuncia sobre o exercício do direito de remição, vieram os Executados, invocar a nulidade derivada do facto de o antecedente leilão não ter tido em consideração a existência de um contrato de arrendamento incidente sobre o referido prédio.

5 - A Srª agente de execução veio informar que junto a uns outros autos de execução (P. 443/13.0TBETZ), com as mesmas partes deste, se encontra um contrato de arrendamento, que não considerou por falta de cruzamento de dados informáticos.

6- Em 21/10/2021 vieram os executados juntar a estes autos, comprovativo de notificação do contrato de arrendamento junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.


IV


Fundamentação:

Pretendem os Executados que a falta de indicação da existência de um contrato de arrendamento a onerar o imóvel a vender condicionou as propostas de venda, influenciando o resultado final das licitações, pois que a existência de um arrendamento influencia negativamente o valor de mercado dos prédios.

Logo, dizem, a falta da indicação desse ónus prejudica não só os direitos do potencial comprador, mas, de igual modo, o direito de remição que possa vir a ser exercido (como o foi) pela sua filha.

Sugerindo terem legitimidade para essa arguição com fundamento em que o direito de remição visa proteger a esfera patrimonial dos executados, uma vez que, nos termos do artigo 842.º do Código de Processo Civil, é possível reverter a venda de bem adjudicado ou vendido em processo de execução, o qual, virá a ficar por essa via na esfera patrimonial da relação familiar dos Executados.

Considerando a finalidade do direito de remição como sendo a de proteção da família, de preservação do património familiar evitando a saída dos bens, aos executados assistirá legitimidade para a presente arguição.

Vejamos, pois.

Ainda que o contrato de arrendamento apenas se mostrasse junto ao processo executivo n.º 443/13.0TBETZ, sendo as mesmas as partes e mesma a Agente de Execução, caberia a esta, com todo o respeito, diligenciar no sentido de obter tal informação antes de colocar um bem imóvel em venda (artigo 24.º do Reg. N.º 202/2015, de 28/04).

Nos termos do preceituado no artigo 837.º do CPC, a venda de imóveis é feita preferencialmente em leilão eletrónico, nos termos da Portaria n.º 282/2013, de 29/08, em cujo preâmbulo se realça a razão de ser desta opção:

“As vantagens do leilão eletrónico são claras, permitindo obter a máxima transparência do ato de venda e criar as condições para a valorização máxima dos bens, ao mesmo tempo que se obtém maior celeridade na tramitação. São, por esta via, beneficiados todos agentes processuais e a generalidade dos potenciais interessados na aquisição dos bens, à semelhança do que tem sucedido nas execuções fiscais.”

Dispõe o artigo 19.º da referida Portaria, respeitante à publicidade, o seguinte:

« Anúncio eletrónico

1 - A venda dos bens penhorados é publicitada, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 817.º do Código de Processo Civil, através de anúncio na página informática de acesso público, na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, acessível no endereço eletrónico https://tribunais.org.pt.

2 - O anúncio contém:

a) A identificação do processo de execução;

b) O nome do executado;

c) A identificação do agente de execução;

d) As características do bem;

e) A modalidade da venda;

f) O valor para a venda;

g) O dia, hora e local de abertura das propostas;

h) O local e horário fixado para facultar a inspeção do bem;

i) Menção, sendo caso disso, ao facto de a sentença que serve de título executivo estar pendente de recurso ou de oposição à execução ou à penhora.

3 - O anúncio deve ainda conter quaisquer outras informações relevantes, designadamente ónus ou encargos que incidam sobre o bem, e que não caduquem com a venda, bem como, sempre que possível, fotografia que permita identificar as características exatas do bem e o seu estado de conservação.»

O contrato de arrendamento, na medida em que sujeita o bem arrendado a uma situação fora da disponibilidade do respetivo proprietário, devido ao seu carácter vinculístico, traduz-se num verdadeiro ónus e, como tal, está sujeito ao regime previsto no artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, na parte em que consagra uma exceção à regra de que os bens judicialmente vendidos são transmitidos livres de quaisquer encargos.

Indiscutível é, assim, que tal ónus deveria ter figurado no anúncio público de venda.

Prevê a lei, no artigo 838.º, n.º 1, do CPC, que:

«Anulação da venda e indemnização do comprador

1 - Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil.»

Desse modo, o comprador, principal interessado no conhecimento do ónus, pode pedir a anulação da venda que o não publicite.

Nos termos do artigo 839.º, n.º 1, alínea c), a venda fica, igualmente, sem efeito:

«Se for anulado o ato da venda, nos termos do artigo 195.º»

O artigo 195.º do CPC estabelece as regras gerais sobre a nulidade dos atos.

Assim, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa (n.º 1).

A falta cometida – omissão dum ónus persistente – é objetivamente suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, porque pode viciar o valor de proposta de compra.

Questão diferente é se os executados têm legitimidade para a invocar.

Não configurando o caso em apreciação uma nulidade de conhecimento oficioso (artigo 196.º, a contrario), importa recorrer ao disposto no artigo 197.º, sob o título: “Quem pode invocar e a quem é vedada a arguição da nulidade”, para apurar se os executados podem ser considerados “interessado(s) “na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato.

Entendeu o tribunal a quo que:

“Ora, independentemente do reconhecimento pela Sra. Agente de Execução de que efetivamente o imóvel em questão se encontra arrendado a um terceiro e de essa menção não ter sido feita constar do anúncio que publicitou a venda, a verdade é que isso não constitui nulidade que aos executados seja lícito invocar. De resto até é curioso que o façam (ou talvez não, uma vez que entretanto se apresentou uma filha dos executados a pretender remir), já que para os potenciais interessados na aquisição o conhecimento desse ónus eventualmente importará uma desvalorização do bem. E naturalmente que isso não aproveita, nem ao credor, nem sobretudo aos devedores, que, como é óbvio quererão obter o melhor valor que for possível.

(…)

A não consubstanciar nulidade alguma expressamente prevista na lei, a omissão, no anúncio eletrónico, da menção de que o imóvel cuja venda por aquela via se publicita se encontra dado de arrendamento, necessariamente que consubstancia uma irregularidade suscetível de influenciar a decisão do comprador interessado. Basta pensar, por exemplo, na hipótese de o comprador pretender adquirir o imóvel para sua habitação própria, pois que o arrendamento não caduca só pelo facto da transmissão do imóvel arrendado, sendo confrontado com a impossibilidade de o ocupar. Não é indiferente adquirir um prédio devoluto ou um que esteja arrendado.

Impõe-se todavia atentar no seguinte: não se tratando de nulidade que ao Tribunal se imponha conhecer ex oficio, só pode invocá-la o interessado na observância da formalidade omitida ou na repetição ou eliminação do ato (cfr. o artigo 197.º do C.P.C.).

E os executados não são claramente os interessados no cumprimento da concreta formalidade omitida. Interessados serão apenas e só os pretensos compradores” (sublinhados nossos).

Concordamos que o comprador é o principal prejudicado, tendo de resto uma norma específica a proteger o seu direito à transparência no anúncio de venda, uma vez que, desconhecendo a oneração do imóvel tende a oferecer um valor superior. A sua legitimidade advém diretamente da norma do artigo 838.º.

Concedemos ainda, que à remidora filha dos devedores se possa reconhecer um interesse legítimo na repetição do ato, por ter perdido a possibilidade de remir por um valor eventualmente inferior, se o bem tivesse sido publicitado como onerado.

E quanto aos executados?

Imaginemos a situação inversa, ou seja, uma situação em que, por lapso, seja anunciado um ónus na realidade inexistente. Cremos, com segurança poder integrar tal situação na previsão do artigo 197.º do CPC, porquanto o bem dos executados entrou no mercado de venda desvalorizado, o que é suscetível de lhes trazer prejuízo, porque menor a oferta, logo, teriam os executados interesse direto nessa nulidade, que poderiam invocar.

A situação que se coloca no presente litígio é uma situação diferente, porquanto a omissão cometida permite aos potenciais compradores, ignorantes do erro, tomar o bem como não onerado e por isso oferecer um preço maior. O que à partida favorece os executados devedores, porquanto, com tal oferta mais facilmente conseguirão cobrir ou exceder o valor em dívida. Logo, à partida, não têm interesse em anulá-la.

Os apelantes apelam à figura da remição e ao espírito de defesa do património familiar subjacente ao instituto, invocando a remissão da filha, para tentarem obter o reconhecimento dum interesse legítimo, deles.

Dispõe o artigo 842.º do CPC:

«Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.»

O direito de remição, considerado um direito de preferência qualificado, tem por finalidade a proteção do património familiar, evitando, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado.

O direito de remissão foi exercido e, se bem exercido, o imóvel não sairá do património familiar. Está acautelado o interesse que o direito de remissão confere aos executados.

O que os executados não podem é substituir-se à filha, invocando ter perdido esta, em tese, a possibilidade de ter remido por um valor inferior.

Essa invocação só à remidora pertence, porque é seu o eventual prejuízo, logo seu o interesse em repará-lo invocando a nulidade da venda no âmbito do artigo 197.º do CPC.

Desse modo, não têm os executados legitimidade para invocar tal nulidade, ainda que a filha o pudesse ter.

No que se confirma a sentença, ainda que com fundamentos parcialmente diferentes.

Assim, nenhuma censura merece a decisão recorrida.

Síntese conclusiva:

(…)


IV

Termos em que, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Évora, 09 de fevereiro de 2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)

Jaime Pestana (2º Adjunto)