Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
89/06..9GCSTB-A.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: NULIDADE INSANÁVEL
EFEITOS
Data do Acordão: 09/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - As nulidades insanáveis, enquanto espécie do género invalidades processuais, não se confundem com o vício de inexistência jurídica, produzindo efeitos jurídicos no processo se e enquanto não forem declaradas, não podendo mais sê-lo após o trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao procedimento.
II - A nulidade insanável por falta de audição do arguido nos termos do art. 495.º, n.º 2, do CPP, pode ser invocada perante o tribunal competente para a execução e deve ser oficiosamente conhecida por aquele, antes de proferida decisão sobre a revogação da suspensão da pena ou da PTFC e mesmo depois de proferida tal decisão, enquanto a mesma não transitar em julgado.
III - Na verdade, a nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119.º do CPP, por falta de audição prévia do arguido nos termos do art. 495.º, n.º 2, do CPP, não constitui vício próprio da decisão de revogação, pelo que não se coloca a questão de saber se o tribunal esgotara o poder jurisdicional respectivo ao proferir a decisão revogatória. É exterior e prévia àquele despacho, constituindo a invalidade da decisão revogatória mero efeito da declaração de nulidade nos termos do art. 122.º do CPP.
IV - Tanto do ponto de vista gramatical, como sistemático e teleológico, não há nenhuma razão para que a referência do art. 119.º do CPP a qualquer fase do procedimento deva ser entendida como reportando-se unicamente às fases preliminares (inquérito e instrução) e à fase de julgamento do processo penal. Antes, abrange igualmente as nulidades insanáveis verificadas na fase de execução do processo penal, nomeadamente as respeitantes às normas do CPP que disciplinam a execução das penas não privativas da liberdade.
Decisão Texto Integral:
89/06..9GCSTB-A.E1


I. Relatório

Em conferência, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que corre termos no 3º juízo criminal do T.J. de Setúbal, o arguido e ora recorrente, A, foi condenado numa pena de 2 anos de prisão, substituída por 480 horas de Prestação de Trabalho a Favor da Comunidade (PTFC).
2. – Pelo despacho judicial de 28.06.2013 que constitui fls 8 e 9 dos presentes autos de recurso em separado, correspondentes a fls 213 e 214 dos autos principais, foi revogada a substituição da pena principal de 2 anos de prisão pela pena de PTFC, nos termos do art. 59º nº2 b) do C.Penal, determinando-se o cumprimento da pena principal de prisão pelo arguido.
3. – Notificados o arguido (15.10.2013-fls 18vº) e defensor daquele despacho, veio este último, pelo requerimento de fls 13 a 16 destes autos em separado, correspondentes a fls 219 a 222 dos autos principais, requerer em 21.10.2013 a suspensão da pena efetiva de prisão nos termos do art. 59º do C.Penal, o que foi objeto do despacho de fls 241 que, invocando mostrar-se esgotado o respetivo poder jurisdicional quanto à questão, não conheceu da pretendida suspensão da pena de prisão.
4. Por requerimento de 05.06.2014, que constitui fls 33 a 41 destes autos de recurso em separado, veio o arguido, invocando o disposto no art. 49º nºs 3 e 4 do C. Penal, requerer a suspensão da execução da prisão subsidiária, em período igual ao remanescente, o que foi indeferido pelo despacho judicial de 11.06.2014, que constitui fls 43 e 44 destes autos em separado, por manifesta falta de fundamento legal.
5. Veio então o arguido interpor o presente recurso daquele despacho, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:

« Conclusões:
1- Em 12-05-2010, data do trânsito em julgado da Douta Sentença, as medidas de coacção, das quais o termo de identidade e residência faz parte, extinguiam-se, sem qualquer excepção, com o trânsito em julgado da sentença condenatória (art.214°, n.º 1, alínea e.), o que só veio a sofrer alteração com a Lei 20/2013 de 21 de Fevereiro.
2- Ao arguido não se impunha que informa-se o Tribunal da nova morada,
3- O arguido nunca foi notificado pessoalmente da promoção do Ministério Público que visava a revogação da pena de trabalho a favor da comunidade, tal omissão consubstancia uma violação do princípio do contraditório e das garantias constitucionais de defesa.
4- A violação das garantias constitucionais de defesa, previstas no artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa CRP, seja por acção, seja por omissão, acarreta uma nulidade insanável.
5- A decisão de revogação da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, tem que ser precedida da audição presencial do condenado nos termos do n.º 2 do artigo 495.° do CPP.
6- A falta de audição presencial do condenado consubstancia nulidade insanável nos termos da c) do art." 1190 do CPP.
7- Uma nulidade insanável implica a inexistência de todos os actos posteriores que dela dependam, pelo que o despacho que revoga a pena de trabalho a favor da comunidade é inexistente, o que significa que não ocorreu o trânsito em julgado do mesmo. »
6. – Na sua resposta, o MP em 1ª Instância pronunciou-se pela total improcedência do recurso.
7. – Nesta Relação, a senhora magistrada do MP emitiu parecer no mesmo sentido.
8. – Cópia digitalizada do despacho recorrido:
« CONCLUSÃO - 11-06-2014
(…)
Req. de fls. 288 a 296:
Veio o condenado A requerer a suspensão da execução da prisão subsidiária, em período igual ao remanescente, estribando-se para esse efeito no disposto no art. 49.º, n.ºs 3 e 4 do Cód. Penal.
O Ministério Público teve vista dos autos, tendo pugnado pelo indeferimento de tal pedido, por falta de fundamento legal- [d. fIs. 297].
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
Compulsados os autos, verifica-se que o despacho datado de 28-06-2013 e cotado a fls. 213 e 214, nos termos do qual se decidiu pela revogação da pena de substituição de trabalho a favor da comunidade e, destarte, se determinou o cumprimento efectivo da pena principal de prisão, se mostra transitado em julgado, conforme decorre das notificações de fls. 205 (MP), 217 (defensora do arguido) e 238 e 239 (notificação pessoal do arguido), dado que, pese embora tivesse sido esclarecido nesse sentido por despacho datado de 241 e cotado de fls. 241, a defesa do arguido não interpôs recurso de tal despacho.
É certo que tal despacho mereceu uma rectificação nos termos ordenados por despacho datado de 15-01-2014 e cotado a fIs. 245, mas tal despacho outrossim já transitou em julgado, conforme decorre das notificações de fIs. 246 (MP), 248 (defensora do arguido) e 249 a 251 (notificação pessoal do arguido).
Assim, sob promoção do Ministério Público e perante o trânsito em julgado desse despacho, foram emitidos os competentes mandados de detenção e condução do condenado ao estabelecimento prisional para cumprimento da pena de prisão ordenada, o que veio a suceder no passado dia 12 de Abril de 2014, estando já liquidada a contagem da pena de prisão e a mesma homologada judicialmente, conforme decorre de fls. 257, 268, 271 e 272 dos autos.
Ou seja, não se vislumbra a ocorrência de qualquer anomalia, diga-se!
Agora, já preso o condenado, veio a defesa do mesmo requerer, ao que se crê, «a suspensão da execução da prisão subsidiária, em período igual ao remanescente», estribando-se para esse efeito no disposto no art. 49.º, n.ºs 3 e 4 do Cód. Penal.
Quid Iuris?
Desde já se diga que no que tange ao mérito do despacho que procedeu à revogação da pena substitutiva de trabalho e, destarte, determinou a execução da pena de prisão aplicada ao arguido a título principal, deve dizer-se que perante o trânsito em julgado do
mesmo, nada mais se pode apreciar a respeito.
Por outra banda, importa esclarecer a ilustre defesa do arguido que este foi condenado, a título principal, numa pena de prisão (e não numa pena de multa!), sendo assim erróneo requerer-se «a suspensão da execução da prisão subsidiária, em período igual ao remanescente» (sublinhado nosso), dado que manifestamente tal não acontece nos autos e, por isso, não tem aqui ainda aplicação o disposto no art. 49.º, n.ºs 3 e 4 do Cód. Penal. Parece linear.
Destarte, sem necessidade de se expender outras considerações a respeito, indefere¬se o ora requerido por manifesta falta de fundamento legal, com base nas razões supra aduzidas a respeito.»

Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso.
Conforme é entendimento pacífico, os poderes de cognição do tribunal ad quem são limitados pelas conclusões da motivação de recurso, as quais delimitam o respetivo objeto.
Assim, as questões suscitadas pelo arguido no presente recurso, que se impõe apreciar e decidir sem prejuízo daquelas cujo conhecimento fique prejudicado pela decisão de outras, são as seguintes:
- Saber se a falta de notificação pessoal da promoção do Ministério Público que visava a revogação da pena de trabalho a favor da comunidade, consubstancia uma violação do princípio do contraditório e das garantias constitucionais de defesa, que acarreta uma nulidade insanável;
- Saber se a falta de audição presencial do condenado nos termos do nº 2 do artigo 495.° do CPP, no caso sub judice, consubstancia o vício processual de nulidade insanável nos termos da c) do artº 119º do CPP;
- Saber se aquela nulidade insanável implica a inexistência de todos os actos posteriores que dela dependam, pelo que o despacho que revoga a pena de trabalho a favor da comunidade é inexistente, o que significa que não ocorreu o trânsito em julgado do mesmo.
2. Decidindo
Começa o arguido e recorrente por entender que a falta de notificação da promoção do MP no sentido da revogação da substituição da pena principal de prisão pela PTFC (pena de substituição em sentido próprio), bem como a falta de audição presencial do condenado em cumprimento do disposto no art. 495º nº 2 (ex vi do art. 498º nº3), do CPP, constituem nulidades insanáveis.
Vejamos.
2.1. Compulsando os presentes autos de recurso em separado, constata-se que foi ordenada pelo despacho de fls 3 a notificação do arguido para se pronunciar sobre a promoção do MP no sentido da revogação da substituição da pena principal por pena de substituição, sem que o arguido tenha sido encontrado para o efeito (cfr informações policiais de 13.12.2012 e 02.01.2013, a fls 5 e 6), tendo sido ordenada a notificação do seu defensor para se pronunciar sobre aquela promoção por despacho de 4.03.2013 (cfr fls 7), o que não se verificou, até que pelo despacho judicial de 28.06.2013 que constitui fls 8 e 9 dos presentes autos foi revogada a substituição da pena principal de prisão pela pena de PTFC, conforme indicado no relatório do presente acórdão.
Ora, independentemente de saber se aquela promoção do MP deve ser pessoalmente notificada ao arguido e se, em todo o caso, a falta de notificação do arguido, por não ter sido encontrado, pode configurar alguma invalidade processual nos termos em que ocorreu, parece-nos inquestionável que, em geral, a falta de notificação ao arguido da promoção do MP no sentido da revogação da substituição da pena principal por pena de substituição não constitui nulidade insanável, por não se enquadrar em nenhuma das situações previstas no art. 119º do CPP ou noutra disposição legal, pelo que qualquer irregularidade ou nulidade dependente de arguição que tivesse ocorrido sanara-se há muito pelo decurso dos respetivos prazos – cfr art.s 120º nº3 e 123º, do CPP.
2.2. Já o mesmo não sucede, porém, relativamente à falta de audição do condenado com violação do estabelecido no art. 495º nº2 do CPP (aplicável à revogação da PTFC por remissão do nº3 do art. 498º) que na redação introduzida pela Lei 48/2007 de 29 de agosto estabelece o seguinte :, ,
«O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão».
Na verdade, são muitas as decisões das Relações no sentido de, pelo menos quando tal audição seja possível, a falta de audição (presencial) do arguido imposta pelo art. 495º nº 2 do CPP constituir nulidade insanável nos termos do art. 119º nº1 al. c) do CPP, aí se incluindo o Ac R.E de 12.07.2012 (relatora, Ana Bito)[1]/[2], subscrito pelo agora relator como adjunto, que foi proferido num caso de revogação da substituição da prisão por PTFC como o presente, entendendo-se aí que «A preterição da audição presencial do arguido, sendo ela possível, integra a nulidade do art. 119.º, al. c) do Código de Processo Penal ….».
Porém, apenas haverá que apreciar se a audição presencial do arguido era possível no caso concreto, de modo a podermos concluir se estamos perante hipótese de nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. c) do Código de Processo Penal de acordo com o entendimento perfilhado se, genericamente, a ocorrência de nulidade insanável por falta de audição presencial do arguido nos termos do art. 495º nº2 do CPP, implicar a inexistência do despacho que revoga a pena de trabalho a favor da comunidade, impedindo o respetivo trânsito em julgado, como pretende o arguido e recorrente.
2.3. Por isso, impõe-se apreciar e decidir, antes de mais, esta última questão, ou seja, se a falta de audição presencial do arguido nos termos do art. 495º nº2 do CPP, implica a inexistência do despacho que revoga a pena de trabalho a favor da comunidade, impedindo o respetivo trânsito em julgado, como pretende o arguido e recorrente. Vejamos então
2.3.1. O legislador processual penal português criou um sistema de nulidades progressivas que variam consoante a gravidade da imperfeição do ato viciado e as correspondentes necessidades de tutela dos interesses subjacentes à norma jurídica violada, de modo que as infrações mais graves dão lugar às nulidades insanáveis, que são de conhecimento oficioso em qualquer estado do procedimento mas que não obstam à formação do caso julgado, as infrações de gravidade mediana originam as nulidades intermédias, que devem ser arguidas pelo interessado dentro de certos limites temporais e as infrações mais leves, que são relegadas para a figura das irregularidades, sujeitas a causas de sanação fulminantes (Vd, para mais desenvolvimentos, João Conde Correia, Contributo Para a análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Stvdia Ivridica, 44 (1999)).
Embora a lei processual não mencione a Inexistência no quadro das invalidades processuais, admitem-na pacificamente entre nós a Doutrina e Jurisprudência, pois há atos com aparência de atos processuais que se impõe distinguir destes, sendo impensável no plano teórico e insustentável em termos práticos que situações de maior gravidade fiquem desprotegidas por terem sido omitidas pelo legislador.
O campo da Inexistência é constituído pelas hipóteses de falta de algum dos elementos constitutivos da relação jurídica processual[3], como será o caso de falta de jurisdição, de processo que tenha por objeto um facto não punível, de condenação de pessoa diferente do arguido, de sentença condenatória sem menção de pena ou medida de segurança concretas, ou ainda de sentença não registada em escrito ou outro meio legalmente previsto.
Nestes hipóteses, a ação ou omissão processualmente verificadas não têm o mínimo de requisitos imprescindíveis ao seu reconhecimento jurídico, pelo que não pode formar-se caso julgado sobre decisão eventualmente proferida que impedisse a respetiva invocação e declaração, podendo afirmar-se quanto aos atos inexistentes que estes são efetivamente insuscetíveis de sanação . (Cfr João Conde Correia, ob. pp. 161-4).
2.3.2. – Diferentemente, as legalmente designadas nulidades insanáveis previstas em disposições dispersas e no art. 119º do CPP, incluindo a nulidade por ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência, devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (cfr art. 119, corpo, do CPP), sanando-se com o trânsito em julgado da decisão final do processo. Como diz Germano M. Silva, “ A designação legal de nulidade insanável não é correta.
Com efeito, a nulidade não pode ser declarada após a formação do caso julgado da decisão final que, neste aspeto, atua como meio de sanação. A declaração da nulidade insanável pode ter lugar em qualquer fase do procedimento, mas apenas enquanto a decisão final não transita em julgado. No processo, a nulidade absoluta é coberta pela impossibilidade, depois de findo aquele, de a fazer reviver, no seu todo ou parcialmente. A decisão judicial com trânsito em julgado não se anula, como se não declara a nulidade de atos de um processo que fundou com decisão irrevogável” – Cfr Curso de Processo Penal II, Verbo-1999, p. 75.
É igualmente este o entendimento de M. Simas-Santos e Leal-Henriques, Código de Processo Penal Anotado, I Vol. – 199, p. 603, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 9ª ed.-1998, p. 305 e Souto Moura, estudo citado, p. 130, bem como de João Conde Correia, que afirma “… no direito processual os atos nulos só podem ser anulados até ao trânsito em julgado da decisão final. Com a formação do caso julgado, mesmo as nulidades arguíveis em qualquer estado do procedimento, incluindo os vícios da própria sentença, tornam-se insindicáveis. O valor da segurança jurídica acaba por sobrepor-se à justiça processual, inviabilizando qualquer modificação da sentença definitiva …» - Cfr, pp. 116-7 “
Na jurisprudência, veja-se por todos o Ac do TC 146/2001 que não julgou inconstitucional a interpretação do art. 119º do CPP seguida no Acórdão de 21 de novembro da 5ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, no sentido de não dever declarar-se a nulidade insanável prevista no art. 119º nº1 c) do CPP depois de transitada em julgado a decisão final condenatória,.
Não tem, pois, razão o arguido e recorrente ao pretender que as nulidades insanáveis implicam a inexistência dos atos posteriores que delas dependam, inexistência que impediria o trânsito em julgado das decisões posteriores por ela afetadas que, por via da nulidade, seriam inexistentes. Como refere Maia Gonçalves, ob. e loc. citados, “ … o ato que enferma de nulidade tem existência jurídica e por isso subsiste enquanto não for declarado nulo “, sendo certo que não obstante a sua designação legal as nulidades insanáveis não podem ser oficiosamente conhecidas e declaradas após o trânsito em julgado da decisão final, como vimos.
Por outro lado, tal como destaca João Conde Correia, se um determinado vício estiver previsto na lei como causa de nulidade, não faz sentido apurar se em atenção à sua gravidade o mesmo deve ser qualificado de inexistência. “Julgar inexistente um ato que a lei comina com nulidade significa substituir arbitrariamente a sanção prevista pelo legislador e alterar o seu programa legisladtivo” (cfr ob. citada pp118-9, nota 251.)”.
As nulidades insanáveis, enquanto espécie do género invalidades processuais, não se confundem, pois, com o vício da inexistência jurídica, produzindo efeitos jurídicos no processo se e enquanto não forem declaradas, não podendo mais sê-lo após o trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao procedimento (cfr art- 119º CPP).
2.3.3. No caso sub judice, a alegada nulidade insanável reporta-se à falta de audição prévia do arguido, nos termos do art. 495º nº2 do CPP, portanto já em momento posterior ao trânsito em julgado da sentença final condenatória, pelo que se justifica algum esforço interpretativo acrescido, com vista a apurarmos se deve interpretar-se o art. 119º, corpo, do CPP, de modo a abranger os atos processuais relativos à fase posterior ao trânsito em julgado da sentença final condenatória.
2.3.3.1. Esta delimitação da questão a apreciar e decidir não significa que nos pareça encontrar-se amadurecido entendimento doutrinário ou jurisprudencial sobre o momento preciso até ao qual podem ser conhecidas (mesmo oficiosamente, recordemo-lo) as nulidades insanáveis verificadas na fase «declarativa do processo penal», nomeadamente se tal momento coincide sempre com o trânsito em julgado da sentença condenatória independentemente de as nulidades ocorrerem durante o Inquérito, a Instrução ou a fase de julgamento.
Significa antes que procuraremos apenas definir, por via interpretativa, a questão processual essencial à decisão do presente recurso, ou seja, como aludido, a questão de saber se a nulidade insanável em causa nos autos deve ser conhecida, oficiosamente ou após arguição, mesmo depois de transitar em julgado o despacho que revogou a substituição da prisão principal pela pena de PTFC como, em substância, pretende o recorrente. Não procuraremos, pois, resposta mais ampla sobre o momento ou momentos precisos do procedimento (art. 119º CPP) até ao qual deve conhecer-se das nulidades insanáveis nas diversas situações configuráveis, apesar de nos parecer, como deixámos dito, que não se encontram na doutrina e jurisprudência respostas claras e amadurecidas a essa questão mais ampla.
Pode afirmar-se seguramente, porém, ser entendimento doutrinário e jurisprudencial firmes que pelo menos após o trânsito em julgado da sentença final condenatória, não é mais possível conhecer e declarar nulidade insanável ocorrida até esse momento.
2.3.3.2. – Vejamos agora, antes de prosseguir, quais as conclusões que podemos enunciar com interesse para a decisão da questão, concretamente colocada nos autos, de saber se eventual nulidade insanável por falta de audição prévia do arguido nos termos do art. 495º nº3 do CPP, implica a inexistência dos atos subsequentes, impedindo a formação de caso julgado sobre o despacho revogatório proferido em 28.06.2013.
Em primeiro lugar, contrariamente ao que resultaria do referido entendimento do arguido e recorrente, que parece equiparar o regime das nulidades insanáveis ao regime reconhecido na doutrina e jurisprudência relativamente ao vício de inexistência, também nas hipóteses, como a presente, de nulidade insanável ocorrida depois do trânsito em julgado da sentença condenatória, o ato praticado ou omitido e os atos subsequentes que deles dependam e que puderem ser afetados pela nulidade, têm existência e/ou relevância jurídica, pelo que subsistem enquanto – e se - a nulidade não for declarada, pois valem aqui integralmente as razões avançadas na doutrina e jurisprudência invocadas.
Em segundo lugar, a nulidade insanável por falta de audição do arguido nos termos do art. 495º nº2 do CPP, pode ser invocada perante o tribunal competente para a execução e deve ser oficiosamente conhecida por aquele, antes de proferida decisão sobre a revogação da suspensão da pena ou da PTFC, sendo certo que é para assegurar o contraditório e os direitos de defesa do arguido na prolação da decisão de revogação ou similar, que o art. 495º nº2 impõe a audição do arguido. Na verdade, contrariamente ao regime legal das nulidade dependentes de arguição previstas no art. 120º do CPP e noutras disposições legais, as chamadas nulidades insanáveis devem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal em qualquer fase do procedimento, de acordo com a estatuição expressa do art. 119º do CPP, conforme vimos.
Significa isto que em casos como o presente, a nulidade pode ser invocada ou simplesmente sugerida (independentemente do respetivo nomen juris) por qualquer sujeito processual e deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal competente enquanto não for proferida decisão de revogação ou modificação da suspensão da pena ou da PTFC e mesmo depois de proferida tal decisão, enquanto a mesma não transitar em julgado. A nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119º do CPP, por falta de audição prévia do arguido nos termos do art. 495º nº2 do CPP, não constitui vício próprio da decisão de revogação, pelo que não se coloca sequer a questão de saber se o tribunal esgotara o poder jurisdicional respetivo ao proferir a decisão revogatória. A nulidade em causa é exterior e prévia àquele despacho (assim Ac RL de 17.10.2007, relator Carlos Almeida, embora qualificando o vício como mera irregularidade na vigência da anterior redação do art. 495º nº2 CPP) e a invalidade da decisão revogatória constitui antes efeito da declaração de nulidade nos termos do art. 122º do CPP, na medida em que é inequivocamente afetada pela omissão da audição prévia do arguido que, como referido, visa precisamente assegurar o contraditório e os direitos de defesa do arguido antes de ser proferida decisão sobre a revogação da PTFC.
Uma vez que a decisão revogatória, notificada ao arguido em 15. 10.2013, não transitara em julgado no momento em que aquele apresentou o seu requerimento de 21.10.2013 (fls 13), a defesa podia ter arguido expressamente a nulidade insanável por alta de audição prévia obrigatória do arguido nos termos do art. 495º nº 2 do CPP naquela ocasião, tal como o tribunal a quo devia ter conhecido oficiosamente da mesma nulidade na medida em que entendesse que o requerimento do arguido suscitava, em substância, a questão da nulidade insanável por considerar ter sido possível a notificação para ouvir previamente o arguido.
2.3.3.3. - A questão processual verdadeiramente por decidir no caso sub judice é pois, como referido supra, a de saber se o trânsito em julgado da decisão revogatória impede a declaração da nulidade insanável por falta de audição (possível) do arguido, tal como se tem considerado que pelo menos o trânsito em julgado da sentença final condenatória impede a apreciação e declaração das chamadas nulidades insanáveis praticadas até àquele momento.
Antecipando conclusões, a nossa resposta a esta questão não pode deixar de ser positiva, assente sobretudo em dois tipos de considerações.
Por um lado, tanto do ponto de vista gramatical, como sistemático e teleológico, não há nenhuma razão para que a referência do art. 119º do CPP a qualquer fase do procedimento deva ser entendida como reportando-se unicamente às fases preliminares (Inquérito e Instrução) e à fase de julgamento do processo penal. As disposições reguladoras do efeito executivo da sentença penal que se encontram no Livro X do CPP, “Das execuções”, nomeadamente as do Título II que disciplinam a execução das penas não privativas da liberdade, constituem a fase de execução do processo penal que, assim, se encontra abrangida, por direito próprio, pela referência genérica ao procedimento, diferentemente do que deve entender-se quanto ao chamado direito penitenciário ou direito da execução das penas e medidas privativas da liberdade, cuja autonomia face ao processo penal parece hoje indiscutível face ao art. 42º nº2 do C.Penal e ao Código homónimo aprovado pela Lei 115/2009 de 12 de outubro[4]. Noutra perspetiva, quiçá de maior relevância, tanto o Código Penal como o C.P.P., refletem a crescente complexidade e densidade do regime jurídico substantivo e processual das penas e medidas não privativas da liberdade, de tal sorte que não faria hoje qualquer sentido um entendimento das coisas que reduzisse o direito processual penal (o procedimento) à sua «fase declarativa»[5]. Uma decisão executiva que determina a revogação da substituição da pena principal de prisão por PTFC (ou de revogação da suspensão da pena), na prática, tem, muitas vezes, consequências mais negativas e irreparáveis para o condenado do que as resultantes da própria condenação.
Por outro lado, a sanação do vício, ou melhor, a insusceptibilidade de apreciação e declaração da nulidade insanável após o trânsito em julgado da decisão revogatória, mais do que uma consequência do princípio da conservação dos atos inválidos é fruto da irrevogabilidade do caso julgado, ditada por razões de segurança e certeza das decisões judiciais, bem diferentes das que sustentam aquele princípio. A conservação dos atos processuais inválidos visa, fundamentalmente, permitir a sua utilização no curto espaço de vida que constitui o processo penal. O caso julgado, impede a eternização dos conflitos judiciais” – Cfr João Conde Correia, Contributo…,pp. 123-4.
Verificada a nulidade insanável sem que o tribunal tenha declarado oficiosamente a mesma ou sem que qualquer sujeito processual, máxime o arguido, a tenha arguido ou, em alternativa, sem que tenha sido impugnada decisão judicial que eventualmente a tenha julgado impertinente e proferida decisão final revogatória - que não foi igualmente objeto de recurso por qualquer dos sujeitos processuais, máxime o arguido -, são razões de segurança e certeza jurídicas que impõem a insusceptibilidade de vir a discutir-se então o que apenas por inconsideração ou inércia dos sujeitos processuais, incluindo o arguido, não foi discutido.
2.3.4. Interpretado o art. 119º do CPP no sentido de não poder ser apreciada e declarada eventual nulidade insanável por falta de audição presencial do arguido nos termos do art. 495º nº2 do CPP, após o trânsito em julgado do despacho judicial que revogou a substituição da pena principal de prisão pela PTFC., impõe-se concluir, em termos finais, que não há lugar à apreciação da nulidade insanável invocada pelo arguido e recorrente, porquanto o despacho judicial de 28.06.2013 que revogou a substituição da pena principal de prisão pela pena de substituição de PTFC transitara em julgado há muito quando, pelo requerimento de 05.06.2014 (vd. Fls 33) , o arguido procurou reabrir a questão, invocando, para além do mais, que o arguido nunca foi ouvido sobre a revogação da PTFC.
Na verdade, sumariando a cronologia dos atos processuais relevantes, o despacho revogatório de 28.06.2013 foi pessoalmente notificado ao arguido em 15.10.2013 (cfr fls 18 vº) e ao seu defensor, que não interpôs recurso daquele mesmo despacho, tal como não interpôs recurso do despacho judicial de 16.12.2013 (fls 20) que não conheceu do seu requerimento de 21.10.2013 (no sentido da suspensão da pena de prisão), pelo que a decisão revogatória era há muito insuscetível de recurso ordinário, quando em 05.06.2014 o arguido e recorrente apresentou o requerimento de fls 33 em que requer a suspensão da execução da prisão invocando, para além do mais, que o arguido nunca foi ouvido sobre a revogação da PTFC.
Nesse momento, porém – concluímos -, já não era possível a reabertura do procedimento para apreciação de eventual nulidade insanável decorrente de falta de audição prévia do arguido nos termos do art. 495º nº2 do CPP, fora dos quadros do recurso extraordinário de revisão - Cfr o Acórdão do STJ de 24.02.3013 (relator, Rodrigues da Costa) e outras decisões ai citadas, que julgou que a decisão revogatória de pena suspensa constitui decisão que põe termo ao processo para efeitos do art. 449º nº2 do CPP.
2.3.5. Aliás, sempre se diga, por último, não ser verdadeira a afirmação de que nunca foi ouvido sobre a revogação da PTFC, uma vez que o arguido não foi ouvido previamente mas foi-o posteriormente, a tempo de invocar a nulidade insanável em causa e/ou de interpor recurso daquela mesma decisão, ainda antes do trânsito em julgado da decisão revogatória, o que não fez, permitindo que bem ou mal o procedimento com vista à revogação da pena de substituição tenha conhecido o seu termo com o trânsito em julgado do despacho revogatório, como referido.
2.4. Concluído o procedimento conducente à apreciação e decisão da promovida revogação da substituição da pena principal de prisão por PTFC com o trânsito em julgado da decisão revogatória, mostra-se definitivamente encerrado o respetivo procedimento, pelo que não pode apreciar-se e decidir-se no presente recurso a invocada nulidade insanável prevista no art. 119º al. c) do CPP, por alegada falta de audição, possível, do arguido nos termos do art. 495º nº2 do CPP, como referido supra (2.3.4.), improcede totalmente o recurso interposto pelo arguido.

III. - Dispositivo

Nesta conformidade, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, A, mantendo integralmente o despacho judicial de 11.06.2014, ora recorrido.
Custas pelo arguido, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça devida – cfr arts. 513º nº1 do CPP, na atual versão e o art 8º nº5 do Regulamento das Custas Processuais (RCP) aprovado pelo citado Dec-lei 34/2008, conjugado com a tabela III a que se refere este último preceito.
Évora, 30 de setembro de 2014
(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas
Carlos Jorge Berguete

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[1] Acessível em, www.dgsi.pt.
[2] Igualmente no sentido da nulidade insanável pode ver-se, entre outros, o Ac RC de 16.01.2008 (relator, Jorge Gonçalves), de que se transcreve o seguinte trecho:
«Afigura-se-nos que seria gravemente atentatório das garantias de defesa que a revogação da suspensão se pudesse processar completamente à revelia do condenado, ou seja, sem que este se pudesse pronunciar nos termos do artigo 495.º. n.2, do C.P.P., situação que constitui a nulidade insanável cominada no artigo 119.º, alínea c), do C.P.Penal.»
[3] “Para que se configure uma relação processual penal será necessário existir antes de mais um facto-crime. Depois, é preciso que haja um tribunal e um arguido.Mas porque o nosso proceeso penal tem estrutura acusatória, a relação processual será triangular, ao integrar um acusador, como entidade diferente do tribunal.Não há processo quando não há relação processual, e não há relação processual quando falha um objeto para o processo, ou o sujeito tribunal, ou o sujeito arguido, ou um sujeito que protagonizer a acusação” – Cfr Souto Moura, Inexistência e Nulidades Absolutas em processo Penal in Textos, Centro de Estudos Judiciários, 1990-91, p. 121.
[4] Vd, sobre a questão, Anabela Rodrigues, A Fase de Execução das Penas e Medidas de Segurança no Direito Português in BMJ 380, p. 5 e sgs. e Novo Olhar Sobre A Questão penitenciária, 2ª ed., Coimbra Editora-2002, especialmente de pp 7 a 25.
[5] Não obstante vd com interesse Anabela Rodrigues, Novo Olhar…, p. 8.