Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
145/09.1T2ODM.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS
Data do Acordão: 04/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
A responsabilidade do novo TOC pelo pagamento de créditos de um seu colega que antes tinha a seu cargo uma dada contabilidade que passou para o novo técnico, estabelecida no art.º 56.º, do Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de Outubro) é independente da boa ou má execução do contrato anterior.

Despacho do relator
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora
C..., Lda. propôs a presente acção contra M..., Lda. pedindo que a R. fosse condenada a ser condenada no pagamento da quantia de €14.594,93, acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
Alegou, em suma, que a autora é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a prestação de serviços no âmbito da contabilidade e fiscalidade e como T.O.C. Luís… e que, desde a década de 90 do século passado, a autora prestou serviços na área contabilística e fiscal a três clientes até Dezembro de 2007.
Em Janeiro de 2008, a R. passou a tratar da contabilidade dos três clientes e contactou a autora para saber de havia montantes por pagar. Não obstante os três clientes se encontrarem com dívidas perante a autora, a ré nunca diligenciou pela obtenção do pagamento para aquela, pelo contrário, dificultou e obstou, com o seu comportamento, o ressarcimento dos créditos da autora.
Assim, a autora violou as suas obrigações profissionais e deontológicas, ao aceitar a realização de trabalhos de contabilidade aos clientes em causa, negligenciando o pagamento dos serviços anteriores e que se encontrariam em dívida, pelo que deverá ser condenada no pagamento da quantia em dívida (que ascendia a €14.594,93), acrescida de juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
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A ré veio apresentar contestação defendendo que um cliente pode mudar de T.O.C. sempre que entenda que há razões muito fortes para tal. E, no caso sub judice, a autora não prestou os serviços constantes dos artigos 1º a 10º, como está demonstrada pelas inspecções da Direcção de Finanças de Beja, lavadas a cabo em Agosto de 2008. Considera a ré que a autora não cumpriu as suas obrigações profissionais, prejudicando os clientes, pelo que não teria direito a receber os honorários reclamados.
Pede a condenação da A. como litigante de má fé.
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Foi elaborada a base instrutória de que a R. reclamou; esta reclamação não foi atendida.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou a R. no pedido.
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Desta sentença vem interposto o presente recurso pela R. concluindo as suas alegações desta forma:
1. A elaboração da Base Instrutória foi tendenciosa por não incluir a solução plausível de direito representada pela versão da ré, por excluir a ideia de que um TOC que não cumpra com as suas obrigações está protegido pelo artigo 17.º, n.º 1 e 2 do Código Deontológico, como viria a ser decretado na sentença.
2. Assim, a reclamação contra a Base Instrutória deveria ter sido atendida e atendida devia ser o requerimento probatório que tinha como objeto o articulado da ré nos artigos 5 e 8 da contestação.
3. A douta sentença recorrida foi, por isso, inquinada à partida pela errada jurisprudência com base na qual se fixou a Base Instrutória, ao indeferir a reclamação referida na conclusão 2ª e o requerimento probatório na mesma conclusão referido.
4. A falta de forma para o contrato de prestação de serviços entre a autora e as clientes sub judice da ré não teve consequências quando deveria tê-las quer ao nível da prova, quer por consubstanciar uma nulidade de conhecimento oficioso.
5. Foram violadas todas as normas Estatutárias, Deontológicas e Fiscais, referidas ao longo das alegações.
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A A. contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos.
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Conforme se alcança da leitura das alegações, o cerne da discordância com a sentença prende-se com o facto de a reclamação apresentada pela recorrente contra a base instrutória não ter sido atendida.
Daqui resultou, segundo a recorrente, a omissão de uma plausível solução de direito que lhe daria razão.
Para apreciar esta questão devemos ter em mente o objecto da acção, bem como o respectivo fundamento jurídico. Para sua melhor compreensão, expõe-se já a matéria de facto provada; depois se verá o que tem ou não de ser alterado.
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Ela é a seguinte:
A) A autora tem por objecto a prestação de serviços no âmbito da contabilidade e fiscalidade.
B) No âmbito da sua actividade a autora manteve com “F…, Lda.” contribuinte fiscal n.º…, “G…, Lda.”, contribuinte n.º… desde pelo menos 1997 e A…, contribuinte n.º…, desde 1997, acordos de prestação de serviços na área contabilística e fiscal, mediante uma retribuição mensal.
C) Em 31/10/2007, por carta dirigida ao T.O.C. Luís…, as empresas supra referidas solicitaram a apresentação da conta-corrente e declararam prescindir dos serviços da autora.
D) A autora remeteu às aludidas empresas, por carta datada de 13 de Dezembro de 2007 a conta-corrente solicitada.
E) Em Janeiro de 2008 as aludidas empresas acordaram com a ora ré a prestação de serviços como Técnica Oficial de Contas, através de M…
F) A ora ré, por carta de 14/01/2008, com “assunto: pedido de informação deontológica”, solicitou à autora informação sobre a existência de dívidas dos clientes já referidos.
G) Por carta registada com A.R. de 17 de Janeiro de 2008 a autora informou a ora ré que a cliente “G…, Lda.” tinha em dívida a quantia de €2.709,36 até 12.12.2007.
H) Por carta datada 17 de Janeiro de 2008 a autora informou a ré de que a firma “A…”, tinha para com a autora a dívida de €9.676,32 até 12.12.2007.
I) Por carta datada de 18 de Janeiro de 2008 a autora informou a ré que a dívida de “F…, Lda” até 31/12/2007 era de €1.750,95, a que acresceria a quantia de €1.000,00 e encargos devidos pela devolução de um cheque por falta de provisão no valor de € 17,00.
J) Até à data as quantias reclamadas pela autora não foram pagas.
L) No âmbito do acordado com os clientes referidos em B), a autora obrigou-se a prestar serviços correntes de contabilidade, a processar os salários dos trabalhadores, a preparar os elementos necessários à análise e fecho do balanço e ao encerramento de contas anuais, e a elaborar as declarações fiscais e estatísticas.
M) Assim acordou com a “F…, Lda.”, a partir de Janeiro de 2006, a prestação dos referidos serviços mediante a retribuição de €200,00 mensais para a contabilidade organizada, €27,35 para o processamento de salários e €30,00 para a análise e fecho de balanço.
N) A autora acordou com a firma “G…, Lda.” a prestação dos referidos serviços mediante a retribuição de €250,00 mensais para a contabilidade, €26,35 mensais para o processamento de salários; €58,03 de IVA; €184,53 referentes aos serviços prestados anualmente com contabilidade, salários e I.V.A..
O) A autora acordou com A…, a prestação dos referidos serviços, mediante a retribuição de €328,94 mensais, sendo €235,00 pela prestação de serviços de contabilidade corrente, €36,85 pela prestação de serviços de processamento de salários e € 57,09 a título de I.V.A..
P) A desorganização e entrega tardia dos elementos contabilísticos necessários à prestação dos serviços por parte da autora aos supra referidos clientes, por parte destes, fez com que a autora optasse por não cumprir as obrigações declarativas a cargo da autora.
Q) A autora tinha a seu serviço como Técnico Oficial de Contas Luís…, inscrito na Câmara de Técnicos Oficiais de Contas sob o n.º...
R) A “F… Lda.” não procedeu ao pagamento das quantias acordadas com a autora, no montante global de €2.767,95.
S) A “G…, Lda.” não procedeu ao pagamento das quantias acordadas com a autora, no montante global de €2.425,01.
T) A… não procedeu ao pagamento das quantias acordadas com a autora, no montante global de €9.391,97.
U) A autora remeteu às supra referidas empresas planos de pagamentos das referidas quantias sem que as mesmas tivessem cumprido aqueles.
V) A ré contactou os clientes em referência para que os mesmos saldassem a divida para com a autora, ou negociassem a mesma com aquele.
X) E contactou a autora, por telefone e por carta, para que a mesma aceitasse negociar a divida por esta alegada, referente aos clientes em causa.
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No início, devemos ter em conta que o regime aplicável a esta situação foi sendo alterado ao longo do tempo.
Uma vez que as alegações parecem não ter em conta o disposto no art.º 12.º, Cód. Civil, convirá fazer um resumo daquela evolução.
O Decreto-Lei n.º 265/95, de 17 de Outubro, criou o Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas. Este diploma foi depois revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de Novembro (art.º 10.º). Por seu turno, em 2009, foi publicado o Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de Outubro, que alterou diversas disposições do anterior Estatuto.
O diploma de 1999 não continha nenhum Código Deontológico; este apenas surgiu com o diploma de 2009 (é o seu Anexo II).
Considerando isto, temos de concluir que ao litígio se aplica o diploma de 1999 tal como ele foi originalmente publicado. Ou seja, não se aplica o Decreto-Lei n.º 265/95. Já o Decreto-Lei n.º 310/2009 e respectivos anexos podem ser aplicados mas não a tudo.
Nas alegações faz-se referência ao art.º 9.º, n.º 1, do Código Deontológico, para fundamentar a impugnação da matéria de facto; alega-se que não se poderia ter dado por provado o montante dos honorários, dado o disposto no n.º 1 do art.º 364.º, Cód. Civil.
No entanto, a norma que definiu a forma escrita do contrato apenas surge em 2009, bem depois de os contratos dos autos (primeiro, com a A. e, a seguir, com a R.) terem surgido; assim, considerando o disposto no art.º 12.º, n.º 2, citado, temos que à validade do contrato e demais consequências (designadamente, a nível probatório) se aplica tão-só o diploma de 1999 e que era omisso sobre este tema.
Por isso, a questão da forma escrita do contrato, dado o momento em que ocorreram os factos que integram o objecto da acção, não se coloca; queremos dizer, antes de Outubro de 2009, o contrato não tinha forma legal.
Diferentemente, entendemos ser aplicável o disposto no art.º 56.º do Estatuto, com a redacção que lhe foi conferida pelo diploma de 2001. Aqui já não se trata de verificar condições de validade de um negócio mas sim de verificar os efeitos de uma dada situação já ocorrida ou, como diz o citado art.º 12.º, n.º 2, verificar o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem.
Posto isto, cumpre conhecer do mérito do recurso, propriamente dito.
De acordo com o art.º 511.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil, a base instrutória deve ser fixada «segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito». De acordo com a recorrente, uma dessas soluções terá na sua base o facto de a A. não ter cumprido devidamente as suas obrigações para com os clientes que, depois, vieram a ser da R.; entende que este incumprimento a exonera da responsabilidade perante a A..
O problema de que se trata aqui é da responsabilização que decorre da aplicação do art.º 56.º do Estatuto da Ordem, antes Câmara, dos T.O.C. (anexo ao Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de Novembro, e com a redacção mais recente constante do Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de Outubro) que estipula:
«1 — Nas suas relações recíprocas, constituem deveres dos técnicos oficiais de contas colaborar com o técnico oficial de contas a quem sejam cometidas as funções anteriormente seu cargo, facultando-lhe todos os elementos inerentes e prestando-lhe todos os esclarecimentos por ele solicitados.
«2 — Os técnicos oficiais de contas, quando sejam contactados para assumir a responsabilidade por contabilidades que estivessem, anteriormente, a cargo de outro técnico oficial de contas, devem, previamente à assunção da responsabilidade, contactar, por escrito, o técnico oficial de contas cessante e certificar-se de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos.
«3 — A inobservância dos deveres referidos no número anterior constitui o técnico oficial de contas, a sociedade profissional de técnicos oficiais de contas ou a sociedade de contabilidade na obrigação de pagamento dos valores em falta, desde que líquidos e exigíveis.
«4 — Sempre que um técnico oficial de contas tenha conhecimento da existência de dívidas ao técnico oficial de contas anterior, ou de situação de reiterado incumprimento, pela entidade que o contratou, das normas legais aplicáveis, não deve assumir a responsabilidade pela contabilidade».
Embora a redacção mais recente deste estatuto não traga enormes diferenças, convém, até por causa do momento a que se reporta a causa de pedir, transcrever o texto original então vigente:
«1 — Nas suas relações recíprocas, constituem deveres dos técnicos oficiais de contas colaborar com o técnico oficial de contas a quem sejam cometidas as funções anteriormente a seu cargo, facultando-lhe todos os elementos inerentes e prestando-lhe todos os esclarecimentos por ele solicitados.
«2 — Os técnicos oficiais de contas quando assumam a responsabilidade por contabilidades anteriormente a cargo de outro técnico oficial de contas, devem certificar-se que os valores provenientes da sua execução estão inteiramente satisfeitos ao técnico oficial de contas cessante, sob pena de se assumirem perante este pelos montantes em falta».
É perante estes normativos e a causa de pedir delineada pela A. que devemos considerar a reclamação da R., agora recorrente.
E deles resulta não existir qualquer causa de exoneração da obrigação de pagar os honorários em falta ao anterior técnico de contas quando o cliente devedor contrate outro técnico.
Os termos em que a lei define esta obrigação são de tal ordem categóricos que não suscitam grandes dúvidas de interpretação. Não se certificando que os valores devidos ao anterior técnico de contas estão pagos, o novo assume perante ele a obrigação de efectuar esse pagamento; tanto assim que tem a obrigação de não assumir a responsabilidade pela contabilidade enquanto o seu colega não estiver pago.
Isto independentemente do modo como se executou o primeiro contrato. Ou seja, esta consequência não tem ligação com o facto de o primeiro técnico ter cumprido bem ou mal a sua parte no contrato. Tem só ligação com o facto de haver honorários ao anterior TOC que não estão pagos.
Em suma, e é isto o que pretendemos frisar, a solução avançada pela recorrente não é nenhuma das plausíveis para julgar a causa; por isso, a base instrutória não tinha que ser alterada no sentido pretendido pela recorrente.
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Entende a recorrente, em todo o caso, ainda o seguinte:
«Decretar que um TOC para cumprir a regra do artigo 17 nº 1 e 2 do Código Deontológico na parte em que sujeita a aceitação do serviço a “uma prévia solicitação de esclarecimentos sobre a existência das quantias em dívida, não devendo aceitar funções enquanto não estiverem pagos os créditos a que aqueles tenham direito, desde que líquidos e exigíveis”, implica que o TOC a quem é solicitado o serviço deva estar à espera de uma sentença que decrete que os créditos não existem ou não são líquidos e exigíveis é de todo contrário aos princípios gerais de direito, nos termos dos quais o desconhecimento da lei não aproveita ninguém. Isto é, quando está à vista, como é o caso dos autos, argumentar que se está à espera de uma sentença judicial que reconheça que os créditos não existem ou não são líquidos e exigíveis, como fundamento para condenar a ré, no caso sub judice, como acontece na douta sentença de que se recorre é aplicar norma inconstitucional – a do artigo 17 nº 1 e 2 do Código Deontológico, com uma interpretação como aquela que é dimensionada na douta sentença, por violação do artigo 13 nº 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, na medida em que essa interpretação decretada na sentença privilegia o TOC prestador de serviços em relação aos seus clientes. É aliás uma interpretação que admite a coação para que o indevido seja pago a um TOC para evitar prejuízos maiores. Surge assim o TOC quase como um “intocável”…
«A dita interpretação com que se extrai a norma do artigo 17 nº 1 e 2 do Código Deontológico dos TOC viola ainda o artigo 26 nº 1, 60 nº 1 da Constituição da República Portuguesa».
Não estamos a aplicar a norma do art.º 17.º, n.º 2 do Anexo II ao Decreto-Lei n.º 310/2009; estamos, outrossim, a aplicar a norma do art.º 56.º, n.º 3, do Estatuto.
Não vemos que este preceito legal viole o art.º 13.º da Constituição. Afirmar que a interpretação que foi feita «privilegia o TOC prestador de serviços em relação aos seus clientes» esquece que ela privilegia todos os TOC’s e não só este ou aquele. Trata-se de uma medida que pretende proteger todos os TOC’s de forma a garantir o recebimento de dinheiro que lhes é devido por anteriores clientes.
Claro que se pode discordar da solução legislativa, seja quanto à obrigação de o novo técnico não aceitar o serviço, seja quanto à consequência, no caso de aceitar, de se responsabilizar por créditos anteriores. Mas este é um problema de política legislativa, de escolhas feitas pelo legislador; o tribunal não pode recusar essas escolhas porque existiriam outras melhores. Esta liberdade legislativa não é sindicável com base em motivos de mérito.
Em relação aos artigos 26.º, n.º 1, e 60.º, n.º 1, também da Constituição, apenas se pode dizer que não se vê como seja possível tal conflito de normas. O primeiro artigo refere-se aos direitos pessoais, tais como, a «identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação». O segundo refere-se aos direitos dos consumidores — o que, manifestamente, nada tem que ver com o caso.
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A sentença recorrida, pelo exposto, não merece censura.
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela apelante.
Évora, 18 de Abril de 2013
Paulo Amaral
Rosa Barroso
José Lúcio