Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
86/22.7GAFZZ.E1
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: ANTERIORES CONDENAÇÕES
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Pese embora na sentença do processo sumário a enunciação dos factos provados e não provados se baste com a sua indicação “sumária”, a narração factual acolhida na decisão recorrida é manifestamente insuficiente, desde logo por não revelar se as condenações em causa (que provadas foram dadas com alicerce no certificado do registo criminal do arguido junto aos autos) deveriam ou não deste certificado constar, mormente por legalmente se impor o seu cancelamento (nos termos do artigo 11º, da Lei nº 37/2015, de 05/05) e, neste caso, estar vedado terem influência na determinação da medida da pena, não se podendo delas retirar qualquer efeito – cfr., por todos, o Ac. R. de Évora de 27/09/2022, Proc. nº 570/20.7GBLLE.E1, que pode ser lido em www.dgsi.pt.
Importa em relação a cada condenação a menção dos elementos relativos ao crime ou crimes, data de cometimento, pena aplicada, datas da respetiva condenação e do trânsito em julgado da sentença ou acórdão, por fundamental para a dosimetria da pena.

Porém, a não descrição destes elementos não implica a nulidade da pena acessória aplicada, como almeja o recorrente, mas a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a), in fine, cumprindo ao julgador da 1ª instância a reparação desta enfermidade.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 86/22.7GAFZZ, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de …, em Processo Especial Sumário, foi o arguido AA condenado, por sentença de 29/06/2022, como autor material de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e bem assim na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 12 meses.

2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

A) A sentença não contém a fundamentação exigida pelo art. 389º-A, nº 1, al. a) do CPP, uma vez que mais não é do que uma mera enumeração dos meios probatórios, sem qualquer exame crítico sucinto dos mesmos.

B) Não houve qualquer análise crítica feita pelo Tribunal quanto à matéria probatória produzida em sede de audiência de julgamento e a sentença que se recorre não respeitou o dever de fundamentação, previsto no artigo 389º-A, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Penal, pelo que é nula, de acordo com o art. 379º, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Penal.

C) A pena acessória aplicada ao arguido (proibição de condução de veículos motorizados) é nula, porquanto o Tribunal ad quo baseou a medida da pena na existência de antecedentes criminais, sendo que, os mesmos não constam da matéria de facto.

D) A indicação de que o arguido foi condenado quatro vezes pelo mesmo crime, sem constar o número do processo, o tribunal e a data das condenações, não cumpre os requisitos para que os antecedentes criminais do arguido constem da matéria de facto.

E) O art. 65º, nº 1 do Cód. Penal estipula o princípio do carácter não automático dos efeitos das penas, pelo que, para que se justifique a aplicação de uma pena acessória é necessário “que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória”.

F) No caso concreto, o grau de ilicitude do facto e a censurabilidade da conduta do arguido foram moderados e o arguido confessou os factos e demonstrou arrependimento, encontrando-se inserido profissional e socialmente.

G) O arguido deverá ser absolvido da pena acessória aplicada, uma vez que, a prevenção especial ficará acautelada apenas com a pena de prisão aplicada.

H) Sem prescindir, e por mera cautela processual, sempre se dirá que o período de 6 meses é manifestamente excessivo, já que a determinação da pena acessória deve ter por base as circunstâncias do caso concreto, a culpa do agente e as exigências de prevenção.

I) O arguido sempre trabalhou como motorista, sendo que, com a pena aplicada, certamente, será despedido, já que não terá mais nenhuma função que possa desempenhar na empresa, e, será impossível ao arguido encontrar um trabalho, e, assim, este prejuízo é manifestamente excessivo face à finalidade da norma, porquanto irá impedir o arguido de desempenhar a sua atividade profissional habitual.

J) A Constituição da República Portuguesa consagra o direito ao trabalho no art. 56º, e o interesse punitivo do estado não poderá limitar, para além do estritamente necessário, os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados (arts., 18º e 30º, nº 5 da CRP).

K) Por outro lado, o arguido aufere parcos rendimentos e tem diversas despesas, não tendo qualquer possibilidade de contratar um motorista, e a pena aplicada causar-lhe-á inúmeros prejuízos que podem colocá-lo numa situação de absoluta carência económica.

L) Os fundamentos em que assentou a medida de sanção acessória não tiveram em atenção a ilicitude do facto (moderada), as condições pessoais do arguido e a sua situação económica e profissional.

M) Face a todo o exposto, a medida da pena acessória deve ser reduzida para o seu limite mínimo (3 meses).

N) Em suma, foi violado o disposto no art. 65º, nº 1 do Código Penal, o art. 389º-A, nº 1, al. a) do Cód. Proc. Penal e os arts. 56º, 18º e 30º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Assim, e revogando-se a mui douta decisão em recurso, far-se-á a costumada Justiça.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. O Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pelo seu não provimento.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Nulidade da sentença por falta de fundamentação/omissão do exame crítico das provas/nulidade da pena acessória aplicada por não especificação dos antecedentes criminais.

Pressupostos da aplicação da pena acessória/dosimetria da pena acessória/violação do direito ao trabalho.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

1- No dia 13 de Junho de 2022, pelas 12:22 horas, na Rua …, em …, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,877 g/l (correspondendo à TAS registada de 2,04 grama/litro, deduzida a margem de erro).

2- Fê-lo depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, como bem sabia,

3- Quis, assim, conduzir o referido veículo na aludida via pública naquelas circunstâncias,

4- Agiu, assim, de forma livre, consciente e deliberada,

5- Sabia que a sua conduta era proibida e proibida por lei penal.

6- O arguido já foi quatro vezes condenado pela prática deste crime.

Quanto aos factos não provados, considerou inexistirem.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

Para a formação da convicção do Tribunal no tocante aos factos praticados pela arguida foi determinante a confissão integral e sem reservas do arguido em conjugação com a prova documental: - Auto de noticia de fls. 4; - Talão do teste fls. 5; - Notificação art. 153, nº 2 do Cód. Estrada fls. 13; - Certificado do Registo Criminal de fls. 18 a 29.

Apreciemos.

Nulidade da sentença por falta de fundamentação/omissão do exame crítico das provas/nulidade da pena acessória aplicada por não especificação dos antecedentes criminais

Sustenta o arguido que a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, convocando o estabelecido nos artigos 389º-A, nº 1, alínea a) e 379º, nº 1, alínea a), do CPP e aduzindo que é omissa quanto ao exame crítico das provas.

Conforme estabelecido no artigo 389º-A, nº 1, do CPP, a estrutura da sentença do Processo Especial Sumário comporta, entre o mais que agora não releva: a indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas – alínea a); a exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão - alínea b).

Quando tal não suceda, a sentença está ferida de nulidade, por força do preceituado no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP.

Ora, percorrendo a motivação da decisão recorrida, verifica-se constar que para a formação da convicção do tribunal no que tange aos factos dados como provados foi determinante a confissão integral e sem reservas do arguido em conjugação com a prova documental: - Auto de noticia de fls. 4; - Talão do teste fls. 5; - Notificação art. 153, nº 2 do Cód. Estrada fls. 13; - Certificado do Registo Criminal de fls. 18 a 29.

Como é sabido, a exigência de fundamentação não constitui uma finalidade em si mesma, justificando-se essencialmente para permitir aos sujeitos processuais a percepção fácil do sentido da decisão e para que, em caso de recurso (caso seja admissível) o tribunal superior avalie convenientemente a razão do sentido da decisão.

E, basta a simples leitura, sem grande esforço interpretativo, para concluir que foi feita a explicitação detalhada dos elementos probatórios tidos em conta, sendo que é manifesto que o raciocínio lógico-dedutivo que culminou no entendimento que os factos tinham de considerar-se como provados, nos termos em que o foram está implícito e resulta cabalmente da circunstância de o recorrente ter confessado os factos imputados integralmente e sem reservas, conjugada com o valor do registo do resultado do teste de alcoolemia efectuado, que consta do talão mencionado e que nem sequer o arguido colocou então ou coloca em causa.

Não se podendo deixar de reafirmar que, como se disse, a “indicação e exame crítico das provas deve ser “sucinto”, vero é, também, que a nulidade da sentença por falta ou deficiência de fundamentação, mormente por falta de exame crítico das provas, no fundo por não ter explicitado o processo racional que permitiu ao julgador extrair de determinada prova a convicção da verdade histórica dos factos por que foi condenado, apenas se verifica quando inexistem ou são ininteligíveis as razões do tribunal a quo, o que não é o caso.

Face ao exposto, a decisão recorrida não padece de nulidade, por omissão do exame crítico das provas, considerando o disposto no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP.

Refere ainda o arguido que a pena acessória aplicada é nula porque teve em conta antecedentes criminais que não constam da matéria de facto provada, pois não se indicam o número do processo, o tribunal e a data das condenações.

Na verdade, quanto a antecedentes criminais, a sentença tão só descreve: o arguido já foi quatro vezes condenado pela prática deste crime e sem dúvida que foram estas condenações (também) ponderadas para apurar a medida da pena acessória concreta.

Ora, pese embora na sentença do processo sumário a enunciação dos factos provados e não provados se baste com a sua indicação “sumária”, a narração factual acolhida na decisão recorrida é manifestamente insuficiente, desde logo por não revelar se as condenações em causa (que provadas foram dadas com alicerce no certificado do registo criminal do arguido junto aos autos) deveriam ou não deste certificado constar, mormente por legalmente se impor o seu cancelamento (nos termos do artigo 11º, da Lei nº 37/2015, de 05/05) e, neste caso, estar vedado terem influência na determinação da medida da pena, não se podendo delas retirar qualquer efeito – cfr., por todos, o Ac. R. de Évora de 27/09/2022, Proc. nº 570/20.7GBLLE.E1, que pode ser lido em www.dgsi.pt.

Importa em relação a cada condenação a menção dos elementos relativos ao crime ou crimes, data de cometimento, pena aplicada, datas da respetiva condenação e do trânsito em julgado da sentença ou acórdão, por fundamental para a dosimetria da pena.

Porém, a não descrição destes elementos não implica a nulidade da pena acessória aplicada, como almeja o recorrente, mas a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, nº 1, alínea a), in fine, cumprindo ao julgador da 1ª instância a reparação desta enfermidade.

Acresce que, percorrida a sentença, resulta que o tribunal recorrido não cuidou de apurar as condições pessoais, personalidade e situação económica do arguido, nada constando da factualidade que provada se encontra, para além da menção às condenações criminais sofridas.

E, tais factos são essenciais para a determinação da medida concreta da pena acessória objecto de censura.

Não tendo o Tribunal de 1ª instância procedido à indagação necessária à determinação da personalidade e situação pessoal, económica e social do arguido, a sentença enferma, nesta parte, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 06/11/2003, Proc. nº 03P3370; Ac. R. de Lisboa de 10/02/2010, Proc. nº 372/07.6GTALQ.L1-3; Acs. R. de Guimarães de 05/06/2006, Proc. nº 765/05-1 e de 11/06/2012, Proc. nº 317/11.9GTVCT.G1; Acs. R. de Coimbra de 05/11/2008, Proc. nº 268/08.4GELSB.C1 e de 23/02/2011, Proc. nº 83/09.8PTCTB.C1; Acs. R. do Porto de 18/11/2009, Proc. nº 12/08.6GDMTS.P1 e de 02/12/2010, Proc. nº 397/10.4PBVRL.P1; Ac. R. de Évora de 20/11/2012, Proc. nº 186/09.9GELL.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Vício que este Tribunal da Relação pode conhecer oficiosamente, mas não pode suprir por falta de elementos que constem dos autos.

Constatada a existência deste vício, é entendimento maioritário na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que importa determinar o reenvio do processo para novo julgamento, cingido à investigação dos factos relativos à situação pessoal e económica do arguido, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, do CPP.

Salvaguardando o devido respeito por tal entendimento, que obviamente é muito, perfilhamos porém a posição sustentada pelo Conselheiro Simas Santos expressa na declaração de voto lavrada no Ac. do STJ de 29/04/2003, Proc. nº 03P756, disponível em www.dgsi.pt, em que se afirma “a meu ver impunha-se a anulação do acórdão e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (art. 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal. O reenvio tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida. Ora, no caso, trata-se de prova suplementar, ainda não produzida e em relação à qual o tribunal recorrido ainda não assumiu posição” – perfilando-se também com esta os Acórdãos da Relação de Guimarães supra mencionados e bem assim o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10/09/2013, Proc. nº 58/12.0PJSNT.L1-5 consultável no mesmo sítio.

Assim sendo, cumpre declarar verificado esse vício e o seu suprimento pelo tribunal a quo.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:

A) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA quanto à questão da nulidade da sentença por omissão do exame crítico das provas produzidas;

B) Declarar nula a sentença recorrida, por inobservância do disposto no artigo 389º-A, nº 1, alínea a), atento o estabelecido no artigo 379º, nº 1, alínea a), in fine, ambos do CPP, a qual deve ser reformulada pelo mesmo tribunal, sendo proferida nova decisão onde se supra o apontado vício de falta de fundamentação no que tange à mencionada factualidade descrita no ponto 6 dos factos provados;

C) Declarar verificado o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e anular parcialmente a sentença, ordenando a remessa do processo ao Tribunal a quo, a fim de aí, com intervenção do mesmo Tribunal, se reabrir a audiência para apurar apenas dos factos em falta relativos às condições pessoais, personalidade e situação económica do arguido e, posteriormente, em face deles, novamente determinar a medida da pena acessória aplicável.

D) Não conhecer das demais questões suscitadas pelo recorrente, por se mostrarem prejudicadas, sendo que, proferida que se mostre a nova sentença, pretendendo o arguido que tais questões (e/ou outras relativas a esta nova peça) sejam apreciadas, terá de ser interposto o pertinente recurso.

Sem tributação.

Évora, 10 de Janeiro de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário).

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso)