Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
26/21.0GBNIS.E1
Relator: MOREIRA DAS NEVES
Descritores: CRIME DE INJÚRIA
EXPRESSÃO OFENSIVA
RELEVÂNCIA PENAL
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
CONTROLO JUDICIAL
Data do Acordão: 01/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Nem todas as expressões ofensivas têm relevância jurídico-penal. Os factos puros não interessam ao direito penal. Pois é no desvalor da ação que se acentua a tónica do direito penal, sendo na valoração dos factos concretos, praticados no seu exato contexto, que se revela (ou não), o ilícito típico.
II. Só as expressões proferidas de um certo modo e num dado contexto, que atinjam a dignidade subjetiva das pessoas, a sua reputação ou autoestima, têm relevância jurídico-penal.

III. Se o facto narrado na acusação não constituir crime, aquela é manifestamente infundada, e por isso não poderá seguir para julgamento.

IV. O princípio do acusatório não dispensa – antes exige - o controlo judicial da acusação, de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes.

V. Sendo atípica a conduta descrita na acusação, não poderá mobilizar-se incidente da alteração não substancial dos factos para suprir tal deficiência. Qualquer alteração dos factos subsequente nunca poderá, nessa parte, ser inovadora, sob pena de insuportável vulneração dos princípios do acusatório e do contraditório.

Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO
I – Relatório

a. No Juízo Local de …, do Tribunal Judicial da comarca de … foi o presente distribuído como processo comum, da competência do tribunal singular.

A acusação do Ministério Público imputava ao arguido AA, com os demais sinais dos autos, a prática de um crime de injúria agravada, previsto nos artigos 181.º, § 1.º e 184.º, por referência ao artigo 132.º, § 2.º, al. l), todos do Código Penal (CP).

No controlo liminar do processo, efetuado nos termos previstos no artigo 311.º do Código de Processo Penal (CPP), a Mm.a Juíza considerou que a acusação era manifestamente infundada, por os factos nela imputados ao arguido não constituírem crime, pelo que a rejeitou (artigo 311.º, § 2.º, al. a) e § 3.º, al. d) CPP).

b. Inconformado com essa decisão dela vem o Ministério Público recorrer, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«(…)

2. A Mm.ª Juiz ao receber a acusação pública, decidiu rejeitá-la ao abrigo do art. 311.º, n.ºs 2 alínea a) e n.º 3 alínea d), por tais expressões não consubstanciarem crime na sua opinião, e além do mais, pois tais expressões foram deduzidas plural ao organismo e não ao militar da Guarda Nacional Republicana em concreto, apesar de este último naquele momento, estar no exercício das suas funções e pertencer ao referido organismo.

3. A rejeição da acusação pela aplicação do art. 311.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal está reservada a vícios graves da acusação, ou seja, “tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível e discutida por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência. (…) Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.” – vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10.07.2018, Relator: Isabel Valongo, Processo n.º 282/16.6GAACB.C1, disponível em www.dgsi.pt

4. O uso de tais expressões é matéria controvertida, e que continua a ser discutida na jurisprudência, em especial a expressão “vão para o caralho/vai para o caralho”, tanto que o Supremo Tribunal de Justiça já foi chamado a intervir no âmbito de um Acórdão de Fixação de Jurisprudência, exatamente pela divergência de opinião sobre se a referida expressão constituía ou não crime, uma vez que uns Tribunais a consideravam como crime e outros não.

5. Sempre se diga que, não basta a mera análise da expressão em si, sem qualquer contexto, para a considerar ou não como crime, antes sendo necessário a análise da situação fáctica em concreto, não podendo bastar-se com os factos descritos na acusação, sendo necessário produzir prova relativamente à mesma, para averiguar os exactos contornos em que tal injúria ocorreu, e só depois tomar uma decisão ponderada e fundamentada sobre a mesma.

6. Aliás, os factos descritos na acusação não são ipsis verbis o que constam das sentenças e/ou da prova produzida em julgamento, tanto que a lei confere a possibilidade de ocorrerem alterações substanciais ou não substanciais aos factos, e que no domínio das injúrias – que contende com bens jurídicos eminentemente pessoais – poderá sempre ocorrer.

7. Com a introdução do art. 311.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal não foi intenção do legislador a rejeição de acusações cujos factos fossem motivo de discórdia, permitindo assim ao Mm.º Juiz a formulação de um pré-juízo, tanto que até na esteira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência, de 16.03.2013, Relator: Pires da Graça, Processo n.º 788/10.0GEBRG.G1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, até foi vedado ao Mm.º Juiz proceder a uma alteração da qualificação jurídica, sem que fosse produzida prova.

8. Rejeitando a acusação, o douto despacho recorrido fez uma incorrecta interpretação e errónea aplicação do art. 311.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal, e do art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa, por violação daqueles normativos legais, e do princípio do acusatório, pelo que, deve ser o mesmo revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos, e consequentemente notifique o arguido para contestar, e designe dia para audiência de discussão e julgamento.»

c) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância emitiu entendimento no sentido da procedência do recurso.

d) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, o arguido nada acrescentou.

e) Efetuado exame preliminar e nada obstando ao prosseguimento do recurso foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

Objeto do recurso

1.O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (1). De acordo com as conclusões do recorrente, verificamos que a única questão aportada ao conhecimento desta instância de recurso é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público não é manifestamente infundada.

2. O despacho recorrido

A Mm.a Juíza a quem os autos foram distribuídos para julgamento na 1.º instância proferiu o seguinte despacho liminar (311.º CPP):

«O Ministério Público deduziu acusação contra AA pelos factos descritos em ref. …, de 18-05-2022, imputando ao arguido a prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal.

O artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, dita que «quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias», e o artigo 184.º, do mesmo diploma, que «as penas previstas nos artigos 180.º, 181.º e 183.º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade», o que, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), se reporta a «praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas».

O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra.

A honra é um bem jurídico multidimensional no qual se pode identificar uma faceta interna ou subjectiva, e uma faceta externa ou objectiva, variando a denominação consoante a perspectiva que se tenha sobre a natureza da honra. Vide, FARIA COSTA, José, Comentário ao artigo 187.º in Comentário Conimbricense do Código Penal Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2012, pp. 906 a911.

A dimensão subjectiva respeita à forma como o indivíduo se vê a si próprio, à sua auto-estima, enquanto que a objectiva concerne ao modo como este é visto pelos outros, i.e., pela sociedade.

Se a vertente subjectiva está intimamente dependente de um suporte biopsicológico—ser capaz de juízos de valor sobre si mesmo e de ter uma resposta somática quando esses sejam negativos—, a vertente objectiva está inteiramente dependente da consideração que terceiros tenham sobre uma determinada pessoa.

Mesmo que as considerações que os outros teçam sobre um indivíduo possam afectar o modo como este se vê a si mesmo, as duas vertentes são autónomas e não se confundem. Um indivíduo pode ver lesada a sua auto-estima sem que se registe qualquer lesão à sua consideração social, e a reputação de uma pessoa pode ser lesada sem que tal tenha qualquer consequência sobre a ideia que o indivíduo tenha de si mesmo—e se o conhecimento da afectação à faceta externa tiver impacto na faceta interna, esse é exclusivamente um problema desta última.

É um crime de mera actividade, i.e., o tipo legal basta-se com a mera conduta não exigindo um resultado, ou seja, uma alteração no mundo exterior além da própria acção; de execução livre, podendo o tipo preencher-se sem que o agente siga um iter legalmente previsto; de dano, uma vez que o tipo pressupõe a efectiva lesão do bem jurídico; de realização instantânea, consumando-se imediatamente com uma só ofensa ao bem jurídico; comum, uma vez que não se exigem ao agente qualidades especiais, podendo, por isso, ser cometido por qualquer pessoa; e é um crime particular, i.e., a existência de um procedimento criminal depende de uma acusação particular do ofendido/assistente, salvo nos casos de agravação, do artigo 184.º, em que assume natureza semi-pública, dependendo, por isso, a legitimidade do Ministério Público da existência de queixa ou de participação, como in casu.

No que concerne ao elemento objectivo, o tipo legal é preenchido com a injúria de outra pessoa, que deve estar presente (1), por via da imputação de factos injuriosos, mesmo que sob a forma de suspeita (2), ou com a direcção de palavras ofensivas da honra ou consideração (3).

No caso dos autos, o Ministério Público preconiza que o arguido, no dia 06-05-2021, pelas 20:44 horas, através do seu telemóvel com o número …, contactou telefonicamente o Posto Territorial de …, a fim de saber sobre o paradeiro do veículo de matrícula …, tendo atendido a chamada, BB, militar da Guarda Nacional Republicana, que se encontrava no atendimento.

Logo de seguida, e após ter sido questionado por aquele militar, se o veículo tinha sido interveniente em acidente de viação, o arguido terá dito «vão para o caralho. Puta que vos pariu».

Nesse momento, e após ter sido alertado que estava a falar com agente de autoridade, o arguido proferiu diversas gargalhadas, desligando a chamada.

Ora, em primeiro lugar cumpre salientar que as expressões imputadas ao arguido, e dirigidas ao ofendido, terão sido formuladas pelo próprio no plural—«vão para (…)» e «(…) vos pariu»—, nunca em momento algum pessoalizando relativamente ao militar BB, que atendeu a chamada, nem se dirigindo a ele em concreto.

É inegável que o que o arguido poderá ter dito, viesse a provar-se o teor da acusação pública, poderia ser qualificado de rude ou socialmente reprovável, por ser desrespeitoso, mas tal não tem, necessariamente, de ter relevo criminal, o que, neste caso concreto, não se apura ter. Vejamos.

O Ministério Público não diz que o arguido terá dito a BB algo como «vai para o caralho, para a puta que te pariu» ou «és um filho da puta», o que seria susceptível de outra consideração jurídico-penal, mas ao invés imputa-lhe o proferimento de frases direccionadas a uma generalidade de pessoas (podendo inferir-se que se dirigia ao corpo da Guarda Nacional Republicana, ou do Posto Territorial, mas que nem é claro, nem é nesses termos imputado na acusação), que mais se assemelham a expressões de descontentamento ou desabafo, que a intentos injuriosos para o interlocutor.

A expressão «vão para o caralho» é uma interjeição comummente associada a uma intenção de manifestar não querer ser incomodado ou para alguém se afastar, e a expressão «puta que vos pariu» é, de igual modo, uma interjeição de desagrado ou espanto. Vide, ALMEIDA, José João, Dicionário Aberto de Calão e Expressões Idiomáticas, actualizado em 28 de Fevereiro de 2022, p. 132 e p. 205 (disponível in: https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf, e consultado pela última vez em 12-07-2022).

Dita o artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, que «a acusação contém, sob pena de nulidade (…) b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».

Nessa senda, e nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do mesmo diploma, «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada».

Considera-se manifestamente infundada uma acusação se, ao abrigo do artigo 311.º, n.º 3, alínea d), os factos não constituírem crime.

Nenhuma das expressões tem carácter atributivo, qualificativo ou depreciativo de BB, pelo que, independentemente da prova que pudesse vir a ser feita em julgamento, não se pode, em abstracto, considerar que alguma vez estas frases pudessem ser injuriosas, ou ofensivas da honra de BB, nem lhe foram as mesmas tão pouco pessoalmente dirigidas, directa ou implicitamente, mas a uma pluralidade não identificada, pelo que não se verificam qualquer elementos do tipo objectivo de crime de que o arguido vem acusado, não se prefigurando qualquer crime.

Assim, atento o arrazoado supra, rejeita-se, nesta sede, a acusação, ao abrigo do previsto nos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, deduzida pelo Ministério Público, contra AA pelos factos descritos em ref. …, de 18-05-2022, que imputou ao arguido a prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal.

(…)»

4. Apreciando

4.1 Do vício estrutural da acusação (manifestamente infundada)

O teor da acusação rejeitada é o seguinte:

«1. No dia 06.05.2021, pelas 20 horas e 44 minutos, o arguido AA, através do seu telemóvel com o n.º …, contactou telefonicamente o Posto Territorial de …, a fim de saber sobre o paradeiro do veículo de matrícula …, tendo atendido a chamada, BB, militar da Guarda Nacional Republicana, que se encontrava no atendimento.

2. Logo de seguida, e após ter sido questionado por aquele, se o veículo tinha sido interveniente em acidente de viação, o arguido disse: “Vão para o caralho. Puta que vos pariu”.

3. Nesse momento, o arguido foi alertado que estava a falar com agente de autoridade ao serviço da autoridade, tento aquele proferido diversas gargalhadas, desligando a chamada.

4. O arguido, ao agir da forma descrita, sabia que se encontrava a telefonar para um Posto da Guarda Nacional Republicana, e que o militar que atendeu a sua chamada se encontrava no exercício das suas funções.

5. Ao proferir a expressão supra mencionada quis o arguido atingir o militar na sua honra, brio profissional e consideração, o que logrou.

6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por lei penal.»

Sustenta o recorrente que esta acusação não é manifestamente infundada, porquanto:

a) A rejeição da acusação está reservada a vícios graves da acusação;

b) A utilização das expressões dirigidas a terceiro “vão para o caralho/vai para o caralho” são objeto de controvérsia na jurisprudência;

c) Na produção da prova em audiência poderão ocorrer alterações aos factos.

Reage o Ministério Público pelo presente recurso à decisão judicial que, no essencial, considerou que dado o modo e contexto em que se inserem «nenhuma das expressões que o arguido proferiu - «Vão para o caralho. Puta que vos pariu» - integra o tipo de ilícito que se lhe imputa.

Vejamos, então.

O tipo de ilícito de injúria consta do artigo 181.º do Código Penal, onde se prevê que:

«1. Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

2. Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.»

O bem jurídico tutelado é aqui, consabidamente, a honra e a consideração social, valores que correspondem àquele mínimo de condições que razoavelmente são consideradas essenciais para que uma pessoa possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale (honra subjetiva). Constituindo, na verdade um valor da dimensão social e pessoal de cada um com referência à comunidade histórico-social em que se integra.

Referem Leal-Henriques e Simas Santos (2), que a injúria corresponde à «manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado.»

Na componente objetiva do tipo de ilícito, o acento tónico está tanto na imputação de factos que possam ser ofensivos (ainda que meramente sob suspeita); como na formulação de juízos sobre uma pessoa. E no plano subjetivo basta o dolo genérico, i. e., a consciência por parte do agente de que a sua conduta pode ofender a honra e consideração de outrem. Podendo os meios de execução ser os mais diversos (através da palavra falada, por escrito, por gestos, etc.).

Importará ter presente que nem todas as expressões ofensivas têm relevância jurídico-penal. Só aquelas que pelo seu modo e no seu contexto atinjam a dignidade subjetiva das pessoas, a sua reputação ou autoestima, preencherão relevantemente o tipo de ilícito.

Conforme assinala Oliveira Mendes, «ao Direito Penal não cabe proteger as pessoas face a comportamentos indelicados ou mesmo boçais ou perante meras impertinências.» (3) Em cristalino alinhavo de aresto deste mesmo Tribunal da Relação de Évora, refere-se que neste tipo de casos «tem de reconhecer-se a relatividade que envolve a ação típica, pois que, (…) o caráter injurioso de determinada palavra, frase ou ato, está fortemente dependente do lugar, do ambiente em que ocorre, das pessoas entre as quais ocorre, do modo como ocorre; está dependente, até, da classe social do arguido e do ofendido, do respetivo grau de educação e de instrução, do seu relacionamento, dos seus hábitos de linguagem.» (4) É esse também o entendimento que subjaz ao argumentário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12jan2017, citado pelo Ministério Público no seu recurso. Nele enfaticamente se refere, que «não há expressões ofensivas independentemente do condicionalismo». Com isso sublinhando a ideia de que as expressões proferidas têm sempre de ser analisadas no exato contexto em que foram proferidas.

No presente caso, considerou o Tribunal recorrido – e considerou bem – que as expressões do arguido, no âmbito do telefonema que fez para o posto da GNR e na sequência da pergunta que lhe foi devolvida pelo militar do atendimento (por sua vez sequente à que ele previamente havia efetuado), o terá deixado de tal modo desalentado, que proferiu as citadas imprecações. As quais, contudo, não foram dirigidas ao militar que o atendera.

A descrição objetiva dos acontecimentos evidencia que ao proferir tais imprecações, o arguido notoriamente não tencionava depreciar o militar BB, que estava do outro lado da linha. Tanto assim que as palavras proferidas o terão sido no plural («vão para o caralho. Puta que vos pariu»).

Do que se terá tratado, como parece bom de ver, foi a expressão (à distância, via telefónica) de um desabafo desalentado, brejeiro, grosseiro e deseducado (com certeza). Mas seguramente não dirigido à pessoa que atendeu a chamada. Foi como que um modo verbal de aliviar de um estado de tensão, decorrente do que terá sido entendido como uma contrariedade.

Isso é o bastante para tornar a expressão insuscetível de preencher qualquer elemento constitutivo do tipo objetivo do ilícito em referência.

E apesar de o libelo incluir a fórmula tabelar (pontos 5. e 6.) respeitante ao elemento subjetivo, a mesma mostra-se incongruente com a materialidade do feito descrito.

O fulcro da questão não está (não deve estar), pois, nas concretas expressões produzidas, mas no seu modo e no seu contexto. Porquanto

os factos puros não interessam ao direito penal. Na análise empírica dos que ocorrem intervém a especifica valoração jurídico-penal, através da qual se verifica se deles emerge uma atitude de contrariedade ou indiferença face ao dever-ser jurídico-criminal.

É no desvalor da ação que se acentua a tónica do direito penal, sendo a valoração dos factos concretos, praticados no seu exato contexto, que se revela (ou não), o ilícito típico.

Sem prejuízo do que vem dito, importa não perder de vista o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal. (5)

Dada a sua vocação de proteção e de garantia, que tem por escopo a tutela subsidiária dos bens jurídicos reputados essenciais à vida pacífica em comunidade, o direito penal giza a promoção do máximo de liberdade aos destinatários dos seus comandos, expressando-se, pois, numa intervenção mínima. Sem admitir, contudo, que seja posta em causa a sobrevivência da própria comunidade, limiar a partir do qual faz emergir a sua vertente sancionatória.

A mesma ideia emerge do princípio da insignificância, a que alude Claus Roxin, que exclui da tutela penal os danos de pequena importância ou amplitude (crimes bagatelares), lá quando «a imagem global do facto é uma tal que, em função de exigências preventivas, o facto concreto fica aquém do limiar mínimo da dignidade penal».(6)

Volvamos mais uma vez ao acontecido.

Fossem as imprecações do arguido produzidas de modo diverso e em contexto distinto e as mesmas (ou outras congéneres) poderiam até ter-se como típicas, ilícitas, culposas e por isso merecedoras de tutela penal. Mas no quadro em que o foram não o são. E são essas distinções valorativas que a jurisprudência expressa, com referência a cada caso concreto. (7)

Em suma: os factos alegados no libelo, tal como – bem - refere o despacho recorrido, não são integradores do crime de injúria, previsto no artigo 181.º do Código Penal.

Vejamos agora a dimensão processual, também posta em crise no recurso.

O vício que o despacho recorrido aponta à acusação é o mais grave que se lhe pode assacar: os factos narrados não constituem crime.

Importará ter bem presente que o modelo basicamente acusatório do processo penal português, pressupõe que o objeto do processo (o «acontecimento histórico à luz da sua relevância jurídica» (8); ou o «pedaço de vida» (9) juridicamente relevante) é delimitado pela factualidade vertida no libelo (sendo este da competência de entidade diversa do tribunal).

«A densificação semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjetiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjetivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador.» (10)

Sendo o objeto do processo delimitado pela acusação, nela se deverá conter a descrição dos factos (sobre os quais incidirá a prova) necessários à integração dos elementos constitutivos do ilícito em referência (artigo 283.º, § 3.º CPP), sem o que não poderá seguir para julgamento.

O mesmo devendo suceder, logicamente, se os factos não constituírem crime, talqualmente expressa a al. d) do § 3.º do artigo 311.º CPP.

Ora, o direito processual penal é «verdadeiro direito constitucional aplicado, e numa dupla dimensão: os fundamentos do direito processual penal são, simultaneamente, os alicerces constitucionais do Estado; e a concreta regulamentação de singulares problemas processuais deve ser conformada jurídico-constitucionalmente» (11). Sendo esse, justamente, o substrato e o contexto do controlo liminar do processo, previsto no artigo 311.º, § 2.º CPP.

E o princípio do acusatório não dispensa – antes exige - o controlo judicial da acusação, de modo a evitar acusações gratuitas, manifestamente inconsistentes, visto que a sujeição a julgamento penal é, só por si, um incómodo, muitas vezes oneroso, e não raras vezes um vexame.

Acresce que os incidentes que a lei prevê para a fase de julgamento, nomeadamente de alteração substancial ou não substancial da factologia, a que alude o recorrente, não contrariam o que fica dito, porquanto o libelo não tem os mínimos legalmente exigíveis (artigo 311.º, § 3.º, al. d) CPP).

Com efeito, tais institutos pressupõem que a conduta descrita na acusação integra todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança, tal como se prevê no artigo 283.º, § 3.º CPP, bem assim que a conduta descrita seja típica.

Mas sendo a conduta descrita atípica, como demonstrado, a alteração dos factos constantes da acusação nunca poderia, nessa parte, ser inovadora.

Em matéria que à partida pareceria distante mas que em verdade é irmã gémea da que aqui se nos coloca, já o Supremo Tribunal de Justiça assumiu posição qualificada há meia dúzia de anos (12), em caso que para o efeito consideramos análogo, quando entendeu que: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal».

Neste caso não sabemos bem se o recorrente tem em vista factos relativos aos elementos objetivos ou subjetivo do tipo de ilícito, por isso nos referimos à analogia dos argumentos (e não à questão concreta que foi objeto daquele aresto). Mas as razões alinhavadas pelo Supremo, sustentadoras da conclusão tirada de insusceptibilidade da mobilização do artigo 358.º para suprir deficiência da acusação quanto ao elemento constitutivo do tipo de ilícito (sob pena de insuportável vulneração dos princípios do acusatório e do contraditório), podem integralmente ser transpostas para o caso presente.

Nos mesmos termos a alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação pressupõe que o Ministério Público narrou todos os factos que constituem um crime.

Nessa conformidade, a falta de descrição na acusação dos factos que sejam integradores dos elementos objetivos e subjetivos constitutivos do crime, não pode ser integrada, por recurso aos assinalados institutos procedimentais.

E é daqui que emerge a inconsistência da questão processual levantada pelo recorrente: a de que o Tribunal não poderia impedir a acusação de seguir para julgamento!

Como visto, a decisão recorrida não assenta em doutrina ou corrente jurisprudencial mais ou menos marginais. Do que nela se tratou foi de interpretar, aliás proficientemente, as normas pertinentes (todas indicadas na decisão recorrida) e mobilizar os princípios gerais da ciência jurídica.

E como assim:

- a acusação remetida a juízo reporta-se inequivocamente a factos que não têm relevância criminal, o que constitui vício estrutural da mesma: sendo por isso «manifestamente infundada» (artigo 311.º, § 3.º, al. d) CPP).

Termos em que deverá manter-se integralmente o douto despacho recorrido.

III - Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.

b) Sem custas, por o recorrente estar delas isento (artigo 522.º, § 1.º CPP).

Évora, 10 de janeiro de 2023

J. F. Moreira das Neves

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

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1 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

2 Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, vol. II, 2015, Rei dos Livros, p. 37.

3 António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, 1996, Almedina, p. 39.

4 Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 13jul2017, proc. 1779/14.8TAPTM.E1, Des. Clemente Lima. Vd. tb., por todos, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Évora, de 19fev2019, proc. 3803/16.0T9FAR.E1, Des. João Amaro; de 23fev2022, proc. 416/19.9VRS.E1, Des. Laura Goulart Maurício. E na doutrina Cf. Augusto Silva Dias, Alguns Aspetos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e de Injúrias», 1989, pp. 17/18; António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal», 1996, Almedina; Jorge de Figueiredo Dias, Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal de Imprensa Português», RLJ, ano 115.º, pp. 100 e ss.; José de Faria e Costa, A Informação, a Honra, a Crítica e a Pós-Modernidade (ou os equilíbrios instáveis do nosso desassossego), RPCC, ano 11.º, fasc. 1.º, pp. 144 ss. e no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 1999, pp. 629 e ss. (citado no acórdão de 13jul2017, supra referido).

5 Jorge de Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, Coimbra Editora, p. 43

6 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2019 (3.º ed), Gestlegal, pp. 325.

7 Veja-se p. ex. acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 9fev2021, Desemb. Beatriz Marques Borges.

8 Assim, Henrique Salinas, Os limites Objetivos do ne bis in idem e a Estrutura Acusatória do Processo penal Português, Universidade Católica Portuguesa Editora, 2014, pp. 221.

9 Jorge de Figueiredo Dias, Extradição e non bis in idem», Parecer, DJ, 1995, tomo I, pp. 219; e. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 1992, pp. 96 e 144.

10 Acórdão do T. Constitucional n.ºs 219/89 e 124/90), cit. por J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição revista, p. 522.

11 Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, München, 1987, pp. 9, apud Maria João Antunes, Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito da Execução das Sanções Privativas da Liberdade e Jurisprudência Constitucional, JULGAR, n.º 21, 2013, pp, 103.

12 Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 1/2015, Cons. Rodrigues da Costa, DR, I-A, de 27jan2015.