Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
169/14.7T8ABT.E1
Relator: JOSÉ MANUEL GALO TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ALÇADA
ARRENDAMENTO RURAL
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário:
Nos termos do n.º 3 do artigo 35.º do Regime do Arrendamento Rural, se a acção for de valor inferior à alçada do tribunal de 1.ª instância o recurso da sentença é apenas admissível quanto à matéria de direito.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
AA veio interpor recurso da sentença proferida nos presentes autos intentados por si contra BB e CC.
*
O Autor deduziu os seguintes pedidos:
i)Julgar-se a acção procedente, por assistir ao Autor o direito de preferência invocado, reconhecendo-lhe o direito de haver para si, pelo preço referência, o prédio descrito no artigo 1º, por substituição do adquirente pelo Autor, adjudicando-se-lhe.
ii) Ordenar o cancelamento da inscrição na Conservatória do Registo Predial do prédio referido a favor da segunda Ré, substituindo-a pelo Autor.
*
Os Réus contestaram, invocando a caducidade do direito de preferência e a circunstância da segunda Ré ser arrendatária do prédio.
Foi ainda apresentado pedido reconvencional, com a seguinte configuração:
a) O direito de preferência da segunda Ré, com base no arrendamento rural prevalecer sobre o direito de preferência do artigo 1380º do Código Civil, reconhecendo-se esse direito à segunda Ré e, em consequência, manter-se a escritura de compra e venda outorgada entre os Réus, como válida, não se procedendo ao depósito do valor da escritura e despesas, uma vez que já foram liquidadas pela segunda Ré.
b) Se assim não se entender, serem reconhecidos e constituídos a favor dos prédios urbanos da segunda Ré, os direitos de servidão de passagem para aproveitamento de águas, servidão de presa e servidão de aqueduto sobre o artigo 276º da secção AB.
c) Condenar o Autor no pagamento de €500 (quinhentos euros), a título de benfeitorias.
*
O Autor apresentou terceiro articulado.
*
A sentença recorrida decidiu:
a) Julgar improcedente a presente acção, absolvendo os Réus do pedido.
b) Julgar parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, reconhecer que a ré CC, na qualidade de arrendatária rural, goza do direito de preferência em relação à venda do prédio rústico, com a área de 360 m2, composto de horta, citrinos, macieiras e leito de curso de água, descrito na Conservatória do Registo Predial com o nº3263 e inscrito na matriz sob o artigo 276º da Secção AB. Direito de preferência este que prevalece sobre o direito de preferência do Autor na aquisição do mesmo prédio e, em consequência, que se mantém válida a escritura de compra e venda outorgada entre ambos os Réus, não se procedendo ao depósito do valor da escritura e das despesas, uma vez que já foram pagas pela Ré CC, mais condenado o Autor nesse reconhecimento.
c) Não conhecer dos demais pedidos formulados pela segunda Ré, em sede reconvencional, por serem pedidos subsidiários em relação ao pedido principal da reconvenção que foi julgado procedente.
*
O recorrente não se conformou com a referida decisão e na peça de recurso apresentou as seguintes conclusões:
1) A matéria constante da alínea J) dos factos assente deve ser eliminada por se encontrar em contradição directa com o mencionado na cláusula 4° do Contrato de Arrendamento junto aos autos.
2) Nesta cláusula foi mencionado que na data da celebração do contrato de arrendamento, em 6/6/2009, já há mais de vinte anos que existia no prédio supostamente dado em arrendamento equipamentos pré-existentes, tais como bomba de água, a casa que a protege, e todo o equipamento tubagem e respectivas peças que servem para elevar a água e conduzi-la à casa de habitação, arrecadação e garagem da locatária.
3) Assim sendo o teor da alínea J) entra em contradição com o aí constante, ao se dar como assente que foi o 2° R. que procedeu às obras necessárias para o represamento e derivação da água, bem como para a construção de uma casa para a bomba eléctrica de água, motivo pelo qual deve ser eliminada e passar a fazer parte dos factos não provados.
4) A decisão errou ao considerar que existe um obstáculo legal ao reconhecimento do direito de preferência do Recorrente que é a existência do contrato de arrendamento de 6/6/2009.
5) Isto porque os outorgantes nesse contrato classificaram o mesmo como contrato de arrendamento rural a agricultor autónomo, o que implica um verdadeiro dever de amanhar a terra e de possuir uma exploração agrícola de tipo familiar para uso permanente da terra.
6) Só que no caso concreto a matéria dada como provada não preenche os requisitos necessários para que se aceite a existência de contrato de arrendamento a agricultor autónomo, face ao que consta das alíneas L) M) e N) dos factos assentes na medida em que ficou por provar a existência de exploração agrícola de tipo familiar com uso permanente e regular.
7) Apenas se provou a plantação de oliveiras, nespereiras e damasqueiros como actos isolados, e o mero "corte de ervas que ali cresceram", o que é o oposto da exploração agrícola, pelo que nada se provou que ateste culturas regulares de qualquer espécie.
8) Por outro lado o facto da Recorrida residir em X e se deslocar ao local do prédio, apenas alguns fins-de-semana e em férias é incompatível com o contrato de arrendamento a agricultor autónomo, que pressupõe e obriga a uma ligação efectiva à terra no dia-a-dia.
9) Por outro lado a circunstância de inexistir nos autos a junção de documentos comprovativos da participação do arrendamento ao Serviço de Finanças ou ao Ministério da Agricultura, ou dos recibos de renda, ou da colecta da Recorrida ou da declaração de IRS comprovativa da existência de rendimentos de natureza agrícola, leva a concluir de acordo com as regras da experiência comum, que tal contrato não passou do papel, e que não teve correspondência com qualquer exploração credível de propriedade rústica.
10) Para além disso, a Recorrida não invocou e como tal também não provou o cultivo regular do prédio, a existência de exploração agrícola do tipo familiar.
11) Como tal o contrato não preenche os requisitos do artigo 1º do DL 385/88, de 25 de Outubro, em vigor na data da celebração do mesmo, devendo ser declarada a nulidade do mesmo.
12) Mas mesmo que assim, não se entenda, o que se admite como mera hipótese, deve ainda referir-se que incumbia à Recorrida invocar o intuito de continuar como a exploração do prédio, durante os próximos cinco anos, isto porque nunca existiu trabalho da própria recorrida ou do seu agregado familiar na exploração regular e efectiva do imóvel.
13) Como tal, não sendo a exploração agrícola de natureza familiar uma realidade efectiva no momento da venda, a preferência não poderia operar por banda do suposto rendeiro.
14) Além disso a Jurisprudência entende que neste caso o preferente arrendatário tem que demonstrar que durante o tal período de cinco anos pretende explorar o prédio, o que não foi invocado sequer.
15) Assim, estando o direito de preferência essencialmente ligado à pessoa e ao modo de vida e actividade económica do preferente incumbia à preferente demonstrar que daquele prédio retirava meios de subsistência, enquadrar a realidade no terreno com o tipo de contrato assinado, o que não logrou provar.
16) Assim sendo, a decisão deve ser revogada e substituída por outra que defira a pretensão do Recorrente, conferindo-lhe o direito de preferência, como é de inteira justiça.
17) Mostra-se violado o contido nos artigos 1380 nº1 e 1381° do Código Civil, artigo 1°, 28° do DL nº385/88 de 25 de Outubro e art.° 615 nº1, alíneas c) e d) do CPC.
A finalizar ainda se impetra o douto suprimento para as deficiências do nosso patrocínio, clamando-se ... JUSTIÇA!!!»
*
A parte contrária alegou, dizendo, em resumo, que não é passível o recurso sobre matéria de facto e questiona o pedido de nulidade do contrato de arrendamento.
*
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
*
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº4 e 639º, nº1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº2, ex vi do artigo 663º, nº2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
1) Existência de erro na apreciação da matéria de facto.
2) Existência de erro na apreciação do direito, quer pela ausência de requisitos no exercício do direito de preferência por parte do arrendatário, quer por via de nulidade do contrato de arrendamento por não preenchimento do disposto no artigo 1º do DL nº385/88, de 25 de Outubro.
.
*
III – Matéria de facto:
3.1 – Factos provados:
A) Por escritura pública celebrada em 24/4/2013, no Cartório Notarial, e exarada de fls. 66 a fls. 67 do Livro 200-A, o ora primeiro Réu vendeu, à ora segunda Ré, pelo preço de €500,00, o prédio rústico, com a área de 360 m2, composto de horta, citrinos, macieiras e leito de curso de água, descrito na Conservatória do Registo Predial com o n°3263 e inscrito na matriz sob o art°276 da Secção AB.
B) O registo da escritura, com preço incluído, foi de €302,75, tendo o I.M.T. ascendido ao montante de €25,00 e existiu isenção de imposto de selo.
C) O Autor é proprietário do prédio rústico, composto de pomar de macieiras e leito de curso de água, com a área de 960 m2, sendo que este prédio confronta do lado sul/nascente com o prédio transmitido e aludido na al. A) da factualidade provada.
D) Confrontação esta que ocorre numa extensão de, aproximadamente, 4 metros.
E) A 2ª Ré, não era titular, em data anterior à da supra referida compra e venda, de qualquer prédio que confrontasse com o prédio identificado na al. A) da factualidade provada.
F) O 1° Réu, enquanto vendedor, não comunicou, ao Autor, em data anterior à da realização da escritura de compra e venda aludida na al. A) da factualidade provada, através de carta ao Autor dirigida, o projecto da venda, incluindo cláusulas projectadas para o negócio, designadamente as referentes ao preço e às condições de pagamento.
G) O Autor só teve conhecimento de que o prédio havia sido vendido, em Setembro de 2014, através de uma conversa de café ouvida pelo seu pai e ocorrida na freguesia onde o prédio se situa.
H) O Autor, após saber pelo pai que o prédio havia sido vendido, diligenciou para saber as condições do negócio, só tendo tido conhecimento das mesmas em 27/11/2014, quando obteve a certidão da escritura de compra e venda.
I) No dia 06/06/2009, foi celebrado, entre o ora primeiro Réu, enquanto senhorio, e a ora segunda Ré, enquanto arrendatária, um contrato de arrendamento rural a agricultor autónomo, tendo por objecto o prédio identificado na al. A) da factualidade provada, nos termos do qual o primeiro deu de arrendamento, à segunda, pelo prazo de sete anos, considerando-se sucessivamente renovado pelo prazo de cinco anos, pela renda anual de €100,00, destinando-se o prédio arrendado exclusivamente à exploração agrícola da arrendatária, sendo que o prédio se destinava essencialmente a horta e/ou plantação de árvores de fruto, para uso doméstico, devendo o terreno ser mantido limpo e usado para os referidos fins e de acordo com as técnicas necessárias à sua racional exploração.
J) A 2ª Ré e o seu marido têm vindo a tirar água do prédio aludido na al. A) da factualidade provada, para aproveitamento da sua casa de habitação, através de uma canalização subterrânea, que atravessa a estrada, entre o prédio e a casa da 2ª Ré e do marido, tendo os mesmos procedido às obras necessárias para o represamento e derivação da respectiva água, através da construção de uma casa para a bomba eléctrica da água, e da colocação e soterramento dos canos destinados à condução da água para a sua casa de habitação, obras estas efectuadas em data não concretamente apurada.
L) Para além disso, a 2ª Ré, por si, ou através do marido, procedeu, em data não concretamente apurada, à plantação de oliveiras, em número não concretamente apurado, de uma nespereira e de damasqueiros, em número não concretamente apurado, no prédio aludido na al. A) da factualidade provada.
M) Com alguma frequência, a 2ª Ré, por si, ou através do marido, mandam proceder à limpeza do terreno do prédio aludido na al. A) da factualidade provada, a fim de serem cortadas as ervas que ali crescem.
N) A 2ª Ré e o marido deslocam-se frequentemente ao mesmo prédio, uma vez que, nas imediações têm uma casa de habitação, onde passam bastantes fins-de-semana e épocas de férias.
*
3.2 – Factos não provados[1]:
A) que o Autor tivesse tido conhecimento da venda e das condições do negócio em data anterior às que foram dadas como provadas.
B) que o negócio tivesse sido falado e comentado na aldeia onde se situa o prédio, e no café da aldeia, ainda durante o Verão de 2013, e que o Autor tivesse sabido, nessa ocasião, que o prédio havia sido vendido.
C) que a 2ª Ré nada tenha plantado no prédio aludido na al. A) da factualidade provada e que nunca mande limpar o terreno.
D) que todos os anos a 2ª Ré mande limpar o terreno do aludido prédio (provou-se apenas que manda limpar com alguma frequência).
E) que o número de oliveiras plantadas, no prédio, fosse concretamente de três e que os damasqueiros plantados fosse concretamente de dois.
F) que o contrato que titula o contrato de arrendamento rural não tivesse sido celebrado entre os ora Réus.
G) que a 2ª Ré nunca tivesse exercido qualquer actividade agrícola no prédio que foi vendido e que nunca dele tivesse tirado rendimentos.
*
IV – Fundamentação:
4.1 – Recurso sobre a matéria de facto:
Como regra base do sistema de impugnações vigora a regra que «o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa» (artigo 629º, nº1, do Novo Código de Processo Civil).
A propósito da admissão dos recursos ordinários, Alberto dos Reis[2] sublinha que «é condição primária que o recurso seja interposto de decisão proferida em causa que, pelo seu valor, exceda a alçada do tribunal respectivo, isto é, do tribunal de cujo despacho ou sentença se pretende recorrer».
Dispõe o artigo 24º, nº1, da Lei de Organização e Funcionamentos dos Tribunais Judiciais que «em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de €30 000 e a dos tribunais de 1.ª instância é de €5000».
A alçada é precisamente o limite do valor até ao qual o tribunal julga definitivamente, não sendo admitido recurso das decisões proferidas em causas cujo valor se contenha dentro desse limite[3].
No entanto, está salvaguarda a recorribilidade em situações decorrente de normas avulsas. Tendo em atenção a natureza da acção e o disposto especificamente na legislação do Arrendamento Rural, «é sempre possível recurso para o Tribunal da Relação quanto à matéria de direito, sem prejuízo dos recursos ordinários, consoante o valor, tendo sempre efeito suspensivo o recurso interposto da sentença que decrete a restituição do prédio».
Em sede de despacho saneador foi fixado o valor à causa em €1.827,75 (mil oitocentos e vinte e sete euros e setenta e cinco cêntimos). E, por isso, atendendo ao valor da alçada, na senda de jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores, à luz do nº3 do artigo 35º do Regime do Arrendamento Rural, o recurso da sentença impugnada é apenas admissível quanto à matéria de direito.
Desta forma, a matéria impugnada relativamente à matéria de facto não será apreciada.
*
4.2 – Do erro de direito – Apreciação das questões jurídicas associadas ao exercício do direito de preferência:
Para além da preferência de origem negocial, a lei concede a certos titulares de direitos reais ou pessoais de gozo sobre determinada coisa a preferência na venda ou dação em cumprimento da coisa objecto desse direito.
Na visão de Carlos Lima[4] «estamos, nessa situação, perante o que se denomina de preferências legais, as quais se caracterizam por terem sempre eficácia real, permitindo aos que dela disfrutam exercer o seu direito de preferência, mesmo perante o terceiro adquirente».
Os direitos legais de preferência destinam-se, na maioria dos casos, a facilitar a extinção de situações que não são as mais consentâneas com a desejável exploração dos bens, como sejam a comunhão de direitos (artigos 1409º e 2130º do Código Civil), a propriedade onerada com direitos reais limitados de gozo (artigos 1535º e 1555º, nº1) e a existência de terrenos agrícolas com área inferior à unidade de cultura (artigo 1380º), bem como a proporcionar o acesso à propriedade de quem está a fruir os bens ao abrigo de um direito de gozo tendencialmente duradouro (artigo 1117º, nº 1).
Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente de direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante (artigo 1380º, nº1, do Código Civil).
É aplicável ao direito de preferência conferido neste artigo o disposto nos artigos 416º a 418º e 1410º, com as necessárias adaptações (artigo 1280º, nº4, do Código Civil).
Ultrapassada uma fase em que no domínio da legislação anterior se entendia que a preferência era um direito meramente obrigacional[5], este direito é actualmente encarado pela maioria dos doutrinadores como um direito real de aquisição [6] [7] [8] [9] [10] [11] [12] [13] [14].
Neste domínio, por entender que não se está no domínio dos direitos reais de aquisição, Henrique Mesquita avança que a preferência consiste numa faculdade complexa (integrada por direitos de crédito), conferida ao titular, que se assume como um verdadeiro potestativo dotado de eficácia erga omnes[15].
O titular do direito de opção, verificada que esteja uma violação da sua posição privilegiada, fundada na omissão ou no cumprimento defeituoso do dever de informação, pode intentar uma acção judicial tendente a ocupar, numa relação intersubjectiva, a posição jurídica do adquirente, substituindo-se a este na titularidade do bem alienado.
Buscando conforto na lição de Galvão Teles[16] a preferência supõe que o obrigado a ela ajustou com terceiro fazer-lhe a venda em determinadas condições e se propõe vender ao titular nas mesmas condições (tanto por tanto).
Independentemente da natureza obrigacional ou real do direito de preferência, o exercício do direito de prelação por via da acção tem como escopo primordial a substituição do adquirente pelo preferente numa determinada relação jurídica, justificando-se esta alteração na titularidade de uma posição privilegiada concedida por lei ou contrato e na violação da preferência por acto do anterior proprietário.
Por força do disposto no artigo 416º do Código Civil, dispositivo que é aplicável quer às vinculações de preferência negociais, quer a casos de obrigações legais de preferência, a comunicação para o exercício da preferência pode ser efectuada por via judicial ou por meio extrajudicial.
Sempre que se trate de preferência legal, a obrigação de notificar o projecto de alienação ao preferente reveste a natureza de uma obrigação propter rem, pois tem a sua fonte ou matriz no estatuto de um direito real.
O aviso para preferir deve conter todos os elementos que, face ao interesse objectivo e subjectivo do titular do direito de preferência, sejam necessários para uma correcta formação da vontade de exercer ou não a opção de preferência.
De acordo com a jurisprudência dominante, a comunicação deve conter a indicação da data prevista para a outorga do contrato[17], o preço e demais cláusulas do contrato que revista conteúdo patrimonial, o prazo para o exercício da preferência, a menção das condições de pagamento [18] e nalguns casos, quando haja um interesse relevante e objectivamente cognoscível pelo obrigado à preferência, o nome do terceiro[19].
Estas preferências legais proporcionam ao respectivo titular um direito oponível erga omnes, ou seja, que pode ser exercido no confronto com terceiro que tenha adquirido direito com elas incompatível[20].
Está assente que não foi cumprido o dever de informação relativamente ao proprietário do prédio confinante, o qual gozava de direito de preferência.
Por escritura pública celebrada em 24/04/2013, no Cartório Notarial, e exarada de fls. 66 a fls. 67 do Livro 200-A, o ora primeiro Réu vendeu, à ora segunda Ré, pelo preço de €500,00, o prédio rústico, com a área de 360 m2, composto de horta, citrinos, macieiras e leito de curso de água, descrito na Conservatória do Registo Predial com o n°3263 e inscrito na matriz sob o art°276 da Secção AB.
O Autor é proprietário do prédio rústico, composto de pomar de macieiras e leito de curso de água, com a área de 960 m2, sendo que este prédio confronta do lado sul/nascente com o prédio transmitido, descrito na Conservatória do Registo Predial com o n°2011/10/17.
O 1° Réu, enquanto vendedor, não comunicou, ao Autor, em data anterior à da realização da escritura de compra e venda aludida na al. A) da factualidade provada, através de carta ao Autor dirigida, o projecto da venda, incluindo cláusulas projectadas para o negócio, designadamente as referentes ao preço e às condições de pagamento.
*
O arrendamento rural é o contrato pelo qual se permite a outrem o gozo de todo ou de parte de um prédio rústico para fins agrícolas, florestais, ou outras actividades de produção de bens ou serviços associadas à agricultura, à pecuária ou à floresta, tendo como contrapartida o pagamento de uma renda [artigo 1º, nº1, do Regime do Arrendamento Rural (RAR), aprovado pelo DL nº 385/88, de 25/10, e 2º, nº1, do Novo Regime do Arrendamento Rural (NRAR), aprovado pelo DL nº294/2009, de 13/10][21].
Efectivamente, no dia 06/06/2009, foi celebrado, entre o ora primeiro Réu, enquanto senhorio, e a ora segunda Ré, enquanto arrendatária, um contrato de arrendamento rural a agricultor autónomo, tendo por objecto o prédio identificado na al. A) da factualidade provada, nos termos do qual o primeiro deu de arrendamento, à segunda, pelo prazo de sete anos, considerando-se sucessivamente renovado pelo prazo de cinco anos, pela renda anual de € 100,00, destinando-se o prédio arrendado exclusivamente à exploração agrícola da arrendatária, sendo que o prédio se destinava essencialmente a horta e/ou plantação de árvores de fruto, para uso doméstico, devendo o terreno ser mantido limpo e usado para os referidos fins e de acordo com as técnicas necessárias à sua racional exploração.
Em caso de venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado, aos respectivos arrendatários com, pelo menos, três anos de vigência do contrato assiste o direito de preferirem na transmissão (artigo 31º, nº2, da Lei do Arrendamento Rural)[22].
O direito de opção do rendeiro na compra do prédio que explora, é hoje corrente em quase todo o mundo[23]. Deste modo, no momento da venda, já o contrato de arrendamento vigorava há mais de 3 anos e estava assim perfectibilizada a hipótese de exercer a preferência na venda.
Quanto a isto, o apelante invoca que a segunda Ré não é agricultora autónoma[24] e, como tal, não gozava do direito de preferência.
Aquilo que ficou demonstrado é que a segunda Ré e o seu marido procederam à plantação de oliveiras e árvores de fruto (nespereira e damasqueiros), procedem à limpeza do terreno e aproveitam a água existente no mesmo [factos provados alíneas J), L) e M)].
E, pelo contrário, a parte activa não conseguiu demonstrar que a segunda Ré nunca tivesse exercido qualquer actividade agrícola no prédio que foi vendido [facto não provado alínea g)].
Os elementos fornecidos pelos autos não permitem caracterizar a segunda Ré como agricultora autónoma e assim estamos perante um arrendamento rural em sentido estrito.
No entanto, a preferência na aquisição não é confiada apenas aos agricultores autónomos e podem aceder a essa preferência legal todos aqueles que beneficiam de um contrato de arrendamento válido, em vigor e com a duração estipulada na lei.
Adicionalmente, o apelante invoca que o contrato de arrendamento é nulo por não preenchimento do disposto no artigo 1º do DL nº385/88, de 25 de Outubro. Em primeiro lugar, do ponto de vista formal esta é uma questão nova[25], na medida em que a mesma apenas foi dardejada na presente acção, em sede de terceiro articulado, a título de impugnação dos factos alegados no pedido reconvencional, como decorre da análise do alegado nos artigos 10º a 20º da denominada réplica. Desta forma, para obter o efeito agora pretendido, o Autor deveria então ter suscitado o competente pedido de declaração de nulidade do contrato enquanto petitório autónomo tendente a impedir ou extinguir a pretensão reconvencional apresentada pela segunda Ré.
No entanto, mesmo que entendesse que estava ultrapassada essa questão metodológico-formal, não assistiria razão ao apelante no plano da validade do contrato, remetendo-se aqui para a construção jurídica enunciada pelo Tribunal a quo.
Pode ler-se na sentença recorrida que: «alegou, também, o Autor, que as assinaturas do contrato não se encontram reconhecidas; que o contrato é omisso quanto à data de emissão dos bilhetes de identidade e respectivos prazos de validade, bem como quanto ao pagamento do imposto de selo e à participação ao Serviço de Finanças, bem como aos serviços regionais do Ministério da Agricultura, tendo pugnado pela nulidade do contrato de arrendamento rural.
No entanto, a falta de alguma destas menções no contrato não constitui fundamento de invalidade formal do contrato de arrendamento.
O art°6°, n°1, do R.A.R. dispõe, tão só, que o contrato deve ser reduzido a escrito, constando dos mesmos a identificação completa das partes contratantes, a indicação do número de identificação fiscal, a morada (ou sede social) e a identificação completa do prédio, ou dos prédios, objecto do arrendamento, o que sucede com o contrato dos autos, constante de fls. 56, à excepção da indicação do número de identificação fiscal das partes contratantes que, efectivamente, não consta do contrato».
Relativamente à falta da menção ao número de identificação fiscal a consequência jurídica não é a invalidade do contrato. Na realidade, como sublinha a decisão recorrida, ao abrigo do preceituado nos números 4 e 7 do artigo 6º do RAR, «o contrato está isento do pagamento do imposto de selo, bem como de qualquer imposto ou taxa, com excepção dos emolumentos registais e notariais» e a falta de entrega do original do contrato nos serviços de finanças «apenas dá lugar à aplicação de uma coima».
Deste modo, é válida a conclusão que o comportamento omitido não afecta a validade do contrato e, face ao tempo de duração do acordo locatício (superior a 3 anos), faculta ao arrendatário a possibilidade de exercer o direito de preferência relativamente a terceiros não detentores de título habilitante de grau superior.
A terminar, o apelante invoca que a anterior arrendatária deveria alegar e demonstrar que pretenderia explorar o prédio no quinquénio seguinte ao do exercício do direito de preferente. Todavia, não lhe assiste razão. O preceituado funciona nos casos em que o arrendatário exerce a preferência relativamente a uma transacção efectuada entre o proprietário e um terceiro e onde, por via da prelecção, passa a assumir a posição de dominus da terra negociada. Nesse enquadramento é concedido um feixe de direitos ao anterior dono do terreno que lhe permite exercer o direito de reversão em caso da não utilização da terra para os fins económico-sociais inerentes ao seu objecto. E neste caso estamos perante um negócio directamente celebrado entre o anterior proprietário e o arrendatário e assim aquela regra não tem aqui aplicação.
Em jeito de síntese, no presente espectro existencial o direito de preferência do arrendatário rural prevalece sobre os direitos de preferência concedidos pela lei geral[26], que só cede perante o direito do co-herdeiro ou comproprietário[27] [28] [29] [30] [31].
Desta sorte, não obstante não haver sido cumprida a obrigação de informação dos traços essenciais do negócio, o direito invocado pela segunda Ré é prevalecente no confronto com o direito legal de preferência atribuído ao proprietário de prédio confinante, posto que se mantém perfeita e eficaz a escritura pública de compra e venda outorgada entre os Réus.
*
V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se manter a decisão recorrida, negando provimento ao recurso interposto.
Custas a cargo do apelante, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº5, do Código de Processo Civil).
*
Évora, 03/11/2016

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho

Isabel Matos Peixoto Imaginário

__________________________________________________
[1] Ficou exarado na sentença que «existem factos alegados pelos Réus que não têm interesse para a decisão da causa, seja por não serem factos essenciais, nem instrumentais, nem serem complemento ou concretização de factos essenciais ou instrumentais, segundo as várias soluções de direito possíveis para a resolução do litígio, como se explicitará em sede de fundamentação de direito, por isso não se incluíram nos factos provados e/ou nos factos não provados».

[2] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra 1946, pág. 583.
[3] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra 2003, pág. 9.
[4] Direitos Legais de Preferência, Revista ad Ordem dos Advogados, ano 65º (2005), vol. III, págs. 599 a 624.

[5] Pinto Loureiro, Manual dos Direitos de Preferência.
[6] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 53.
[7] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 387.
[8] Vaz Serra, “Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/06/69”, RLJ 103-471.
[9] Mota Pinto, Direitos Reais, pág. 138.
[10] Oliveira Ascensão, Reais, pág. 582.
[11] Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pág. 774.
[12] Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. I, pág. 283.
[13] Orlando Carvalho, Direito das Coisas, pág. 18-19.
[14] Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, pág. 149.
[15] Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 189 e seguintes.
[16] Direito das Obrigações, vol. I, 9ª edição, pág. 162.
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06\01\87, BMJ 365-677.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31\05\84, BMJ 337-353.
[19] Carlos Barata, Da obrigação de preferência, Coimbra Editora, pág. 121-124.
[20] João Redinha, Natureza Jurídica da Obrigação de Preferência e as Consequências do seu Incumprimento, Estudos em Homenagem a cunha Rodrigues, vol. II, pág. 605.
[21] Este último diploma apenas se aplica, aos contratos de arrendamento rural existentes à data da sua entrada em vigor (13 de Janeiro de 2010), a partir do fim do prazo do contrato, ou da sua renovação, nos termos do disposto no artigo 39º, nº 2, a).
[22] A que correspondia o artigo 28º, nº1, da anterior Lei do Arrendamento Rural.
[23] Lopes Cardoso, Subsídios para a Regulamentação do Arrendamento Rústico, pág. 200 e segs.
[24] Agricultor autónomo é o titular de uma exploração agrícola de tipo familiar, quando esta empresa agrícola é constituída por uma pessoa singular que permanente e predominantemente utiliza a actividade própria ou de pessoa do seu agregado doméstico sem recurso ou com recurso excepcional ao trabalho assalariado, conforme dita o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/04/2000, in www.dgsi.pt.
[25] Segue-se a posição do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010 (in www.dgsi.pt) que se pronunciou no sentido de que «os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas, não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso. Despistam erros in judicando, ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. Assim, o julgamento do recurso não é o da causa, mas sim do concreto recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa. Não pode, pois, o Tribunal Superior conhecer de questões que não tenham sido colocadas ao Tribunal de que se recorre».
[26] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2009, in www.dgsi.pt.
[27] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/06/2003, em www.dgsi.pt
[28] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01/06/2006, in www.dgsi.pt.
[29] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/07/2016, in www.dgsi.pt.
[30] Agostinho Cardoso Guedes, O Exercício do Direito de Preferência, Universidade Católica Portuguesa, Porto 2006, págs. 196-197.
[31] J. Aragão Seia, M. Costa Calvão e C. Aragão Seia, Arrendamento Rural, 4.ª edição, Coimbra, 2003, págs. 189-190.