Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1620/21.5T8STB.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
EXAME PERICIAL
PROCURAÇÃO FORENSE
SIMULAÇÃO PROCESSUAL
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Constatando o tribunal a existência do fundamento legal da antecipação da produção de prova, pode aquele, ao abrigo do dever de gestão processual conjugado com o disposto no artigo 547.º do CPC, ordenar oficiosamente a realização antecipada de determinado meio de prova indicado pela parte, nomeadamente antes da prolação do despacho saneador ou até de despacho pré-saneador, se aquela antecipação for a forma de assegurar a satisfação do fim do processo.
2 - Tratando-se da prova pericial o artigo 476.º, n.º 1, do CPC permite ao juiz indeferir a perícia se a mesma for impertinente ou tiver fins dilatórios. No caso o autor requereu a realização de perícia, através da colheita de ADN de ambas as partes (autor e réu), sendo este um meio de prova expressamente admitido nas ações relativas a filiação (artigo 1801.º do Código Civil) pelo que dúvidas não há que se trata de um meio de prova pertinente para aquilatar se o réu é efetivamente filho do autor.
3 - O artigo 612.º do CPC trata da questão da simulação de um litígio mediante prévio acordo entre as partes processuais, pressupondo, por conseguinte, um conluio entre elas para obterem um resultado proibido por lei. No caso, não se tratará de um caso de uso indevido do processo previsto naquele preceito legal na medida em que resulta das próprias alegações de recurso que não existe qualquer conluio entre autor e réu. Na verdade, o que o apelante invoca é uma (suposta) má-fé processual do autor (artigo 542.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d), do CPC), ou seja, que o autor visa obter um objetivo ilegal com a propositura da presente ação, um fim não tutelado pela lei. Na medida em que a paternidade jurídica não resulta diretamente da fecundação, sendo aquela determinada por meios indiretos, e assentando a paternidade estabelecida em relação ao marido da mãe numa presunção de fidelidade da primeira relativamente ao segundo com quem teve relacionamento sexual na época da conceção, surgindo dúvidas sobre a exclusividade das relações de sexo – e na sua petição inicial o autor invoca essa dúvida – não se vislumbra como pode defender-se que a instauração da presente ação de impugnação da paternidade presumida em relação ao marido da mãe deve ser considerada um ato de má-fé processual.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1620/21.5T8STB.E1
(1.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), réu na ação de impugnação de paternidade que lhe foi movida por (…), interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Família e Menores de Setúbal, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, em 26 de setembro de 2021, no segmento em que foi determinada a realização de exame pericial de ADN ao autor e ao réu.

A decisão sob recurso tem o seguinte teor:
«[…]
Entretanto, e atenta a idade do autor – e porque a questão da invocada caducidade do direito de impugnação da paternidade sempre implicará produção de prova, nunca se podendo, portanto, decidir no despacho saneador –, o Tribunal determina, desde já, também ao abrigo do artigo 6.°/1 do Código de Processo Civil, a realização de exame pericial de ADN ao autor (…) e ao réu (...) com o seguinte quesito:
O autor (…) é pai biológico do réu (…)?
Notifique e D.N.»

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1- Vem o Recorrente inconformado com o despacho de 26-09-2021 que, sem saneador e sem qualquer prova produzida em audiência de julgamento e subsequentemente, apenas com a versão nos autos de cada um dos articulados do autor e réu, respetivamente da petição inicial, da contestação e das respostas, ordenou, "ao abrigo do artigo 6.°/1 do Código de Processo Civil a realização de exame pericial de AD N ao autor (…) e ao réu (…) com o seguinte quesito: O autor (…) é pai biológico do réu (…)?".
2- Ora, discordando do despacho de 26-09-2021, salienta-se, desde logo, que o Tribunal a quo proferiu o despacho que determinou a realização de exame pericial às partes sem que tivesse sido aferida da validade da procuração do autor para a ação de investigação da paternidade e/ou realizada qualquer diligência para apuramento da regularidade do mandato e, consequente, validade da causa de pedir e do pedido formulado, a qual não está cristalizada na ação, o que importa na nulidade do decidido, que desde já se invoca para os legais efeitos.
3- Por outro lado também, discordando do decidido, o Tribunal a quo proferiu o aresto ora recorrido determinando a realização de exame pericial de ADN às partes, fazendo-o sem que tenha apreciado as invocadas exceções de caducidade do direito de ação e de ineptição da petição inicial ou de falta de factualidade material concreta alegada para uma ação (anormal e extemporânea) de "investigação da paternidade"; pelo que decidiu, também, sem valorar, ponderar e decidir as questões (exceções) invocadas pelo réu que obstam e impedem o prosseguimento da ação.
4- Mais, o Tribunal a quo, com o despacho recorrido, desvalorizou e não valorou a declaração de parte ou confissão do réu vertida na contestação que, contrariamente ao alegado abstrata e vagamente pelo autor na p.i com fundamento em ouvir dizer, assume, de forma cristalinamente e inequívoca, reconhece e aceita ser filho do autor.
5- Vejamos, os presentes autos limitam-se, nesta fase, a ter meramente as versões trazidas pelo autor e réu nos seus articulados de petição inicial e contestação / reconvenção ou respostas.
6- Na petição inicial, o autor limitou-se a alegar da necessidade de investigação da paternidade com base em pretensa informação de "ouvir dizer" que o réu refere que o autor não é seu pai, o que o réu repudia e refuta, categoricamente na contestação, declarando, de forma clara, cristalinamente e inequívoca, em declarações de parte ou confissão, que o autor é o seu pai.
7 - Neste sentido, como sustentou o recorrente na contestação, o autor limitou-se a alegar nos factos abstratos, genéricos e sem qualquer concretiza da petição inicial para a anormal (e extemporânea) ação de investigação de paternidade contra o filho maior, ora réu, de 57 anos de idade referindo que "é voz corrente na localidade de (…) que o A. não é o progenitor do Réu" e que "o Autor veio agora a ter conhecimento que a sua mulher, terá tido um relacionamento extra conjugal com um tal (…), comerciante em (…) e entretanto falecido", sem que nada alegar sobre a data de tal relacionamento amoroso, se ocorreu no período de gestação e como tomou "agora" tal pretenso conhecimento.
8- Como invocou o réu na contestação sustentando a anormalidade e extemporaneidade da ação de investigação da paternidade a filho maior, de 57 anos de idade, o autor tem 90 anos de idade, tendo a mãe do réu e cônjuge do autor falecido em 01-01-2021, nascendo, vivendo e coabitando as partes até à interposição da presente ação sem que estes nunca tivessem, em vida da mãe e cônjuge (também como testemunha relevante que a mesma podia ser), requerido judicialmente qualquer investigação de paternidade.
9- Mais, como alegou o R./Recorrente na sua contestação, a presente ação é intentada em juízo quando o A/Recorrido passou a viver com uma enteada e sobrinho que passaram a ocupar a habitação deste em julho de 2020 (pois estes sempre residiram em Coimbra até julho de 2020), e o R/Recorrente ter deduzido queixa crime contra a dita enteada e sobrinho do autor por apropriação ilegítima, indevida e não autorizada ou consentida por estes do património conjugal dos pais do réu/recorrido, sendo que o réu é o único filho do autor e, portanto, legitimo herdeiro.
10- Acresce que, em sede de contestação, o réu invocou, especificadamente, a exceção da ineptidão da petição inicial ou de falta de alegação de factualidade para a presente ação de investigação de paternidade, atenta a finalidade deste tipo de ação, dirigida ao "ato gerador" do filho ou ao "período da conceção", cujo circunstancialismo ou enquadramento fáctico concreto, no tempo e local, o autor omite, em absoluto, na presente ação.
11- A falta de alegação de factualidade material concreta na ação e de circunstancialismo ou enquadramento fáctico concreto, no tempo e local, sobre o "ato gerador" do filho ou ao "período da conceção" do filho – que o autor omite, em absoluto, na presente ação – consubstancia exceção dilatória e importa na nulidade da ação – exceção que o Tribunal a quo não valorou previamente ao despacho que ordena a realização de prova, o que importa na nulidade do despacho recorrido.
12- Nos termos dos artigos 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e as exceções, sendo, pois, na petição inicial que devem constar os concretos e reais factos que preenchem a previsão da norma jurídica na qual a parte funda o seu direito.
13- A ineptidão da petição inicial é uma exceção dilatória que conduz à abstenção do conhecimento do mérito da causa e à absolvição dos Réus da instância e que tal exceção é de conhecimento oficioso pelo tribunal, conforme os artigos 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil.
14- Ora, como alegou o recorrente na sua contestação, a pretensão da investigação de paternidade fundada em "ouvir dizer" deve ser ponderada e valorada em eventual despacho pré-saneador (ao abrigo do disposto no artigo 590.°, n.ºs 2 a 6, do CPC ou, caso assim não entenda, no despacho saneador, devendo logo ser indeferida e não admitida, por manifesta desnecessidade, inutilidade superveniente da lide ou por não ser relevante atenta a impugnação especifica e as declarações da parte ou confissão do réu na contestação de que tais boatos ou alegação de ouvir dizer é impugnada por falsidade pois, como sustentou, categoricamente, considera e reconhece o autor como seu pai – confissão do réu que o Tribunal a quo não valorou e que importa na inutilidade superveniente da lide (artigo 576.° do Código de Processo Civil).
15- Mais, no caso, não foi apurado, na dita ação de investigação de paternidade, que a mãe do autor manteve relacionamento sexual com terceiro no período legal de conceção do R., nem qualquer relacionamento amoroso outro que não fosse com o pai do réu ou que a mãe do réu, agora com mais de 55 anos, manteve qualquer relacionamento afetivo duradouro com outro homem, o qual viesse a ser ou pudesse ser, designadamente ainda em vida da mãe (falecida em 01.01.2021), reputado, seriamente, como pai do réu/recorrente, a fim deste ser judicialmente excluído da paternidade do autor aos noventa anos deste.
16- Por outro lado, sendo a mãe a única testemunha com conhecimento do relacionamento com tal pretenso terceiro, não havendo outra forma de demonstrar o nexo de causalidade de qualquer relacionamento sexual, é, com manifesto despudor e ofensa para o réu, que o autor se apresenta agora (salienta-se, com noventa anos e após a ação crime ter sido deduzida contra a enteada e o sobrinho com quem este passou a viver em julho de 2021 sobre a apropriação por estes do património dos pais do A.) a requerer uma pretensa "investigação" da paternidade.
17- Acresce que, opondo-se e recusando perentoriamente o réu, filho maior, a sujeição a quaisquer exames, invocando a desnecessidade e a irrelevância dessa prova (atenta a parca alegação do autor na sua petição inicial que pretende obrigar o réu a uma "investigação" de paternidade com mero fundamento em boatos e/ou em ouvir dizer, quando o réu confessa e declara, cristalinamente, na contestação, que é filho do autor) e, ainda, a violação da sua integridade física e da reserva da sua vida privada, entende o Recorrente que tais exames médico-periciais não podem ser determinados, designadamente sem ponderar os interesses opostos em presença, sendo que, no caso, atento o enquadramento fáctico alegado pelas partes, entende o Recorrente não estar demonstrado, nem poder prevalecer, um interesse próprio e/ou real do recorrido em instaurar uma ação para "investigação" da paternidade (salienta-se, aos noventa anos deste, e como se o filho fosse um "boneco")!
18- De facto, como pugna e sustenta o recorrente na sua contestação, também o filho, aqui réu, maior, tem direito à determinação da sua identidade tal como ela foi pelos pais declarada no seu nascimento, e estatuída na sua infância, na sua juventude, na sua maioridade e na idade madura, mesmo que com os pretensos incómodos para o autor provindos de alegados boatos ou comentários indiretos, maldosos ou oportunistas, de "ouvir dizer".
19- Destarte, como ora pugna o réu/recorrente, a proteção do direito deste à sua, sempre afirmada e declarada, identidade pessoal, familiar e patrimonial, nos termos do disposto no artigo 26.º da Constituição, e dos seus direitos de personalidade, não cedem perante uma deficientemente alegada (invasiva e abusiva) pretensão de "investigar", designadamente quando, contrariamente ao alegado na petição inicial o Réu refuta colocar em causa a paternidade, que aceita, reconhece e declara perentoriamente – que nunca impugnou judicialmente –, e se mostram decorridos mais de cinquenta anos do nascimento e da vida de ambos, em normal exercício dessa mesma paternidade.
20- O réu/recorrente sustentou e invocou, na contestação, razão ou justificação atendível para não aceitar e se recusar em submeter-se a quaisquer exames, os quais considera violentarem e ofenderem a sua integridade física, a sua memória e identidade pessoal e familiar, a sua personalidade, e o seu bom nome, consideração e imagem pessoal e pública, recusa que sequer foi valorada, ponderada ou apreciada no despacho ora em crise, designadamente atentos os interesses e os direitos concreta e objetivamente invocados pelo Recorrente e/ou em presença destes.
21- Dispõe o n.º 3 do artigo 417.º do CPC (com a epígrafe "Dever de cooperação para a descoberta da verdade''), que qualquer pessoa ou parte pode opor-se à realização de determinada diligência, sendo a recusa legitima, se a obediência importar, nomeadamente, na Violação da integridade física ou moral das pessoas; ou na Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
22- O Recorrente além de afirmar, como parte, em sede da contestação, que se considera e é filho do Recorrido, sendo pois desnecessário qualquer exame, recusou e recusa submeter-se a exames médicos e/ ou, consequentemente, a "exame pericial de ADN" pelas razões e motivos que, concreta e objetivamente, sustentou nos seus articulados de defesa, reputando a conduta do autor na ação e tais exames como ofensivos e atentatórios da sua integridade física mas também e, particularmente, da sua personalidade, da sua história familiar, da sua identidade pessoal e da sua honra, consideração imagem e bom nome, que reputa devidos, nos mais de 55 anos de vida do réu.
23- Deste modo, salvo o devido respeito, não pode o Tribunal a quo, no despacho ora recorrido, olvidar-se da estatuição e/ ou declaração fundamentada de recusa perentória a submeter-se a exame (ao abrigo do disposto nos artigos 417.º, n.º 3, do CPC e 25.º, n.º 1, e 26.º da CRP), razões que igualmente invoca e mantém no presente recurso do despacho de 26-09¬2021 que determina a realização de exame pericial de ADN ao réu.
24-Assim, entende o R/Recorrente que é manifesta a falta de fundamentação do despacho recorrido, na parte em que determinou, sem mais, a realização de exame pericial de ADN ao autor e ao réu, atentos os interesses e os direitos concreta e objetivamente invocados na contestação, nomeadamente face à mera alegação da petição inicial para a investigação da paternidade assente em meros boatos ou conhecimento indireto e de ouvir dizer, sem qualquer fundamento sério, designadamente inerente á conduta da mãe do Réu, (...), quanto à gravidez de outro ou à maternidade, conforme resulta da deficiente, obscura e mal fundamentada petição inicial, para a imposição e determinação da realização de exame pericial de ADN ao réu, nomeadamente previamente à elaboração do despacho saneador e à produção de qualquer prova em julgamento.
25- Houve irregularidade no procedimento adotado nos autos para determinação da realização da prova pericial ao não ter ponderado e/ou sopesado a factualidade material concreta alegada pelo Réu/Recorrido, nomeadamente a sua recusa e oposição à sujeição a exames, nomeadamente a exame pericial de ADN, tanto mais que o Recorrente, na qualidade de parte e contrariamente ao alegado na petição inicial, declara que o autor é o seu pai, como afirma e sustenta na ação (designadamente, nunca tendo impugnado tal relacionamento e qualidade judicialmente), pelo que tal determinação de exames periciais assim ordenada como foi, ofende, atinge e afeta os interesses e os direitos de personalidade, direitos à identidade pessoal, familiar e patrimonial, invocados na defesa do Réu (contestação), que o despacho em crise sequer valorou, ponderou ou sopesou.
26- Por outro lado, entende o Recorrente que o Tribunal a quo não podia, nem pode, previamente à prolação do despacho saneador ou ao saneador sentença, designadamente atentas as invocadas exceções, e ao despacho em que ordena o prosseguimento dos autos para julgamento, ordenar, sem mais, a produção da prova pericial de exame de ADN, mais quando o réu, maior, a ela se opõe.
27- O despacho em crise, ao contender com a imposição e determinação da realização de um meio de prova (sem que se mostre proferido o despacho saneador ou saneador sentença e sem que tenha sido ordenado o prosseguimento dos autos para julgamento), decidiu com notório erro de julgamento, designadamente ao se ter antecipado à necessária e exigível ponderação dos factos alegados nos articulados que podem determinar, inclusive, a invocada caducidade da ação e/ou o seu desfecho, em saneador sentença.
28- O despacho em crise, ao determinar nesta fase (prévia ao saneador), a realização do exame pericial de ADN ao réu sem ter apreciado, valorado e sopesado a factualidade material alegada pelas partes, designadamente atenta a invocada exceção de caducidade da ação de investigação da paternidade, com os fundamentos que constam da contestação, contribui, permite que o autor se sirva do processo para praticar um ato ou ação simulada ou para conseguir um fim proibido por lei, pelo que a decisão prévia a proferir deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelo A/Recorrido.
29- Mais, o despacho recorrido viola o disposto no artigo 612.º do CPC, porquanto as circunstâncias da causa, como foram invocadas pelas partes nos articulados (e atenta a confissão e o reconhecimento feito pelo réu na sua contestação de que é filho do autor e como tal se considera), são aptas a produzir a convicção segura de que o autor/recorrido "se serve do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei", pelo que, contrariamente ao decidido que admitiu e ordenou a realização de prova pericial, e em substituição do despacho em crise, a decisão a proferir deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelo autor, tanto mais que o réu/recorrente reputou e reputada a ação de investigação da paternidade, com os fundamentos nela invocados, e consequentemente a prova ordenada, ofensiva, vexatória, humilhante e atentatória da sua dignidade e dos direitos de personalidade constitucionalmente consagrados, os quais se mostram assim violados pelo despacho recorrido.
30- De facto, como invocou expressamente o R./Recorrente na sua contestação (o que deve ser valorado como confissão), sempre foi tido pelas partes, nomeadamente em vida da mãe do réu e ao longo da sua vida, e considera-se e reconhece que é filho do autor/recorrido, recusando, por isso, perentoriamente qualquer exame médico ou pericial em face do circunstancialismo factual material concreto alegado pelo autor na petição inicial, o qual não é sério, suficiente, bastante e ponderoso para impor ao réu o prosseguimento da pretensa investigação de paternidade e, consequentemente, a realização do meio de prova pericial determinado no despacho ora em crise.
31- Assim, em suma, a conduta do Tribunal a quo ao preterir a valoração e apreciação imediata da factualidade material concreta alegada pelas partes em sede de despacho pré-saneador (atenta, também, a invocada falta de factos na petição inicial para a presente ação de investigação de paternidade como sustentou o réu na contestação) ou em despacho saneador e ao determinar a realização de um meio de prova pericial que o réu/recorrente repudia, constituindo recusa perentória invocada na contestação, por sustentar razões e motivos atendíveis, nomeadamente de que a factualidade alegada na petição inicial não é suficiente, bastante, ponderosa, nem decorre de suspeita ou dúvida séria e/ou do próprio, devidamente fundamentada e delimitada no tempo e espaço sobre o "ato gerador" de outro progenitor "no período legal de conceção”, viola a lei processual e é atentatória dos mais elementares direitos à integridade física e direitos de personalidade do filho (maior), aqui recorrente, consagrados nos artigos 25.°, n.º 1, e 26.° da Constituição da República Portuguesa.
32- Se o réu apresentou recusa perentória a sujeitar-se a esses exames, invocando a irrelevância de tal prova e violação da sua integridade física e da reserva da sua vida privada, importava e importa ponderar os interesses opostos em presença, prevalecendo o interesse e o direito do filho à determinação da sua identidade, mesmo que com incómodos para o visado (a proteção do direito deste cede perante o direito à identidade pessoal e genética, nos termos do disposto no artigo 26.° da Constituição).
33- Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º e 577.º, alíneas b) e h), 591.º, alíneas b) e d) e 595.º e 596.º, todos do CPC, e ainda, em violação do disposto nos artigos 417.º, n.º 3, 608.º, n.º 1 e n.º 2, 1.ª parte e 612.º do CPC e, bem assim, os artigos 25.º, n.º 1 e 26.º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, com a revogação do decidido na 2ª parte do despacho de 26-09-2021 que determinou a realização de exame pericial de ADN ao ora recorrente na ação de investigação de paternidade intentada com os fundamentos invocados na petição inicial e atenta a concreta factualidade material invocada pelo réu na contestação e a invocada exceção de caducidade, designadamente por manifesta violação dos artigos 576.º e 577.º, alíneas b) e h), 591.º, alíneas b) e d) e 595.º e 596.º do CPC, e ainda, em violação do disposto nos artigos 417.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, 1.ª parte, 612.º do CPC e 25.º, n.º 1 e 26.º da CRP, substituindo o despacho recorrido por outro que decida a invocada caducidade ou do não prosseguimento da ação porquanto é manifesto do alegado que as circunstâncias da causa, atenta também a confissão e o reconhecimento feito pelo réu que é filho do autor e como tal se considera, são aptas a produzir a convicção segura de que o autor/recorrido "se serve do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei”, ou caso assim não entenda, valore, aprecie e decida previamente da factualidade material invocada em despacho saneador ou em saneador sentença, ordenando a produção de prova caso entenda, fundamentadamente, que a ação deve prosseguir os termos, tudo com as legais consequências.
Assim decidindo, revogando o despacho recorrido e substituindo-o por outro, com as razões ora invocadas e o direito aplicável, farão Vossas Excelências, acostumada Justiça!»

I.3.
Na sua resposta às de recurso, o apelado formula as seguintes conclusões:
«1 - Deve o despacho de 26-09-2021 que ordenou a realização de exame pericial de ADN ao A. e ao R, manter-se intocável por ser esse o objeto da presente ação, sem quaisquer outras provas e sem qualquer saneador, por inútil processualmente e "de jure".
2- O Réu/recorrente interpõe o presente recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, quando o Tribunal de 2° instância competente em razão do território é o Tribunal da Relação de Évora.
3- O Réu/recorrente atribui ao presente recurso efeito suspensivo, argumentando a violação do direito à integridade física (!!!) nome, consideração e vida privada, bem como à sua recusa em se submeter ao teste hematológico.
4- Sendo de carácter cumulativo a exigência descrita, bastará a não materialização de um dos requisitos para não ser necessário nem devido entrar na análise do remanescente por inutilidade manifesta de tal atividade processual.
5- O efeito do recurso deve, pois, ter efeito meramente devolutivo, por ausência manifesta dos pressupostos para outro tipo de efeito.
6- O presente recurso, mais não é que um expediente dilatório, devendo para o efeito ser o recorrente condenado como litigante de má fé.
7- Não existe qualquer falta de fundamentação para a determinação da realização do exame pericial de ADN, antes pelo contrário.
8 - O Apelante é filho do Apelado?
9- O Apelado é pai do Apelante?
10- Só a prova pericial de ADN o poderá demonstrar, daí o despacho judicial recorrido se deve e impõe manter-se.
11- O tribunal a quo não violou qualquer norma.
12- O presente recurso deve ater-se apenas sobre o despacho já referido, não estando em causa (nem poderiam estar) qualquer outra questão, tal como a caducidade, uma vez que o Tribunal Constitucional sobre esta ultima questão, já se pronunciou há muito pela inexistência de qualquer prazo de caducidade por estarem em causa direitos de personalidade».

I.4.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

II.2.
As questões a decidir são as seguintes:
1 – Nulidade do despacho recorrido.
2 – Erro de julgamento.

II.3.
FACTOS
Resulta dos autos a seguinte factualidade:
1 – Na petição inicial, onde o apelado pede a procedência da ação no sentido de ser declarado/reconhecido que o réu não é seu filho, aquele requereu a realização de exames de ADN às partes com vista à «demonstração cabal do vínculo de paternidade».
2 – Na contestação, e como questão prévia, o apelante impugnou a autoria da assinatura aposta na procuração anexa à petição inicial, alegando que aquela não foi feita pelo punho e mão do autor, invocou as exceções de caducidade do direito de ação e ineptidão da petição inicial (por insuficiência da factualidade alegada) e deduziu pedido reconvencional.
3 – O apelante nunca manifestou a sua oposição à realização de exames de ADN, antes da prolação do despacho recorrido, nomeadamente na sua contestação.
4 – Em 08-07-2021, o juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Tendo sido invocada a falsidade da assinatura do autor que consta da procuração, antes de mais proceda o autor à junção do seu cartão de cidadão aos autos»;
5 – Em 26-09-2021, o juiz a quo proferiu despacho com o seguinte teor:
«Invoca o réu que o autor não assinou pelo seu punho a procuração junta com a petição inicial, invocando a sua falsidade.
Ora, importa começar por dizer que não estamos perante uma discussão relativa a um documento que vise provar os factos constitutivos da causa de pedir ou das exceções. O que está em causa é, simplesmente, saber se o Ilustre Advogado que surge nestes autos como mandatário forense do autor, o faz por vontade deste.
Efetivamente, afirmando o autor que atribui poderes ao seu Ilustre Advogado e que ratifica o processado, fica a situação sanada (veja-se o que dispõe o artigo 48.º do Código de Processo Civil).
Assim, ao abrigo do artigo 6.º/1 do Código de Processo Civil, e para que dúvida não subsistam, o Tribunal determina a audição do autor, nos termos e para os efeitos do artigo 43.º-b), do Código de Processo Civil.
Para tal, designa-se o próximo dia 06-10-2021, pelas 15:00.
Consigna-se que se trata apenas de uma diligência marcada com o objetivo de, perante o Tribunal, e caso seja essa a real vontade do autor, ser conferido mandato judicial pelo autor ao Ilustre advogado subscritor das peças processuais em seu nome (nos termos e para os efeitos do artigo 43.º-b) do Código de Processo Civil), que terá a duração previsível de 5 minutos.
Notifique».
6 – A diligência supra referida veio a ser adiada para o dia 20 de outubro de 2021.
7 – Após a tomada de declarações ao autor, ficou consignado em ata que o autor declarou que «deu todas os poderes ao advogado, Dr. (…) para o representar neste processo e noutros que possam vir».
8 – Na sequência da tomada de declarações ao autor, em 20 de outubro de 2021, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Nos termos do artigo 43.º do Código de Processo Civil o mandato judicial pode ser conferido por declaração verbal da parte no auto de qualquer diligência que se pratique no processo.
Atentas as declarações proferidas perante o signatário pelo autor, dúvidas não há de que o mesmo pretende e pretendeu, de forma livre e esclarecida, conferir mandato judicial ao ilustre advogado que o representa nestes autos tem poderes judiciais para o fazer».

II.4.
Mérito do recurso
II.4.1.
Nulidade do despacho
O apelante defende que o tribunal a quo proferiu despacho que determinou a realização de exame pericial às partes «sem que tivesse sido aferida da validade da procuração do autor para a ação de investigação da paternidade e/ou realizada qualquer diligência para apuramento da regularidade do mandato e, consequente, validade da causa de pedir e do pedido formulado (…)», o que, no seu entender, «importa a nulidade do decidido».
Ou seja, a nulidade do despacho sob recurso.
Julgamos, todavia, que não lhe assiste razão, como veremos.
O artigo 195.º, n.º 1, do CPC, epigrafado de Regras gerais sobre a nulidade dos autos, dispõe o seguinte:
«Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa».
E o n.º 2 daquele normativo legal preceitua que «quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes».
A nulidade do despacho recorrido que é invocada pelo apelante prende-se, como dissemos supra, com uma suposta falta de aferição, pelo tribunal a quo, da validade da procuração que se encontra anexa à petição inicial emitida em nome do subscritor da petição inicial, concretamente com uma alegada falta de verificação da autoria da declaração nela contida.
Não é controvertido que no caso sub judice é obrigatória a constituição de advogado (artigo 40.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
A petição inicial foi subscrita pelo exmo. sr. advogado, Dr. (…), encontrando-se anexa à petição inicial uma procuração que lhe concede «totais e amplos poderes forenses permitidos em direito, podendo substabelecer, ratificar todo e qualquer processado, transigir, acordar e desistir».
Na referida procuração encontra-se aposta uma assinatura atribuída ao autor mas que foi impugnada pelo réu na respetiva contestação[1].
A procuração em causa é um documento particular (art.º 363.º, n.º 2, do Código Civil).
A sua força probatória material depende da prova da sua autoria, isto é, depende do estabelecimento de que o documento provém efetivamente da pessoa a quem é atribuída a autoria.
Na falta de intervenção notarial, como sucede no caso em análise[2], a prova da autoria do documento particular faz-se pelo reconhecimento, expresso ou tácito, pela parte contra a qual o documento é apresentado (artigo 374.º, n.º 1, do Código Civil): se a parte contra a qual o documento é apresentado impugnar a autoria da assinatura aposta no documento (ou da letra e da assinatura), é o apresentante do documento que tem o ónus de provar a autoria do documento (vide artigo 374.º, n.º 2, do Código Civil).
O regime processual aplicável à impugnação da genuinidade de documento particular consta dos artigos 444.º e seguintes do Código de Processo Civil.
No caso, perante a impugnação, pelo réu, da assinatura aposta na procuração anexa à petição inicial, o autor requereu que lhe fossem tomadas declarações de parte relativamente «ao facto alegado no item 2 da contestação uma vez que dele tem conhecimento direto e porque interveio diretamente na outorga da procuração forense conferida ao seu mandatário judicial» (cfr. parte final da Réplica).
Consta da ata de fls. 34 e seguintes, que, em 20.10.2021, o tribunal procedeu à audição do autor, conforme este havia requerido, e fez exarar em ata que após ter prestado juramento o autor declarou que «deu todos os poderes ao advogado, Dr. (…), para o representar neste processo e noutros que possam vir»; na mesma ata ficou exarado o seguinte despacho:
«Nos termos do artigo 43.º do Código de Processo Civil o mandato judicial pode ser conferido por declaração verbal da parte no auto de qualquer diligência que se pratique no processo.
Atentas as declarações proferidas perante o signatário pelo autor, dúvidas não há de que o mesmo pretende e pretendeu, de forma livre e esclarecida, conferir mandato judicial ao ilustre advogado que o representa nestes autos tem poderes judiciais para o fazer».
Pese embora o meio de prova mais adequado ao estabelecimento da autoria do documento particular seja a prova pericial, não está excluída a utilização de outros meios de prova e, no caso, o tribunal contentou-se com a tomada de declarações ao autor que confirmou ter concedido poderes forenses ao signatário da petição inicial para intentar a presente ação.
Não estando em causa no presente recurso o acerto daquela decisão proferida pelo tribunal a quo – a qual equivale a julgar que o patrocínio judiciário do autor foi constituído de forma válida e regular pois o autor assumiu a paternidade do documento – resulta do exposto que o apelante não tem razão quando afirma que «o tribunal a quo proferiu despacho que determinou a realização de exame pericial às partes sem que tivesse sido aferida da validade da procuração do autor para a ação» e, muito menos, que não tivesse sido realizada qualquer diligência para apuramento da regularidade do mandato.
Donde, haverá que concluir que não se verifica a nulidade do despacho recorrido com o fundamento que ora se apreciou, improcedendo, por conseguinte, este segmento do recurso.
II.4.2.
Erro de julgamento
O apelante defende que o despacho recorrido é ilegal porquanto:
(i) foi determinada a realização de exame pericial de ADN às partes sem que tenham sido previamente apreciadas as exceções de caducidade do direito de ação e de ineptidão da petição ou falta de factualidade material concreta alegada invocadas na contestação;
(ii) foi desvalorizada e não valorada a declaração de parte / confissão do réu vertida na contestação, a qual, caso tivesse sido valorada determinaria a inutilidade superveniente da lide e, consequentemente, a desnecessidade da prova pericial cuja realização foi ordenada;
(iii) foi ignorada a recusa fundamentada e perentória do réu em submeter-se ao exame pericial, sendo a realização de exame pericial ao réu/apelante ofensiva dos seus direitos de personalidade, identidade pessoal, familiar e patrimonial, os quais foram invocados pelo réu/apelante na contestação;
(iv) permite que o autor se sirva do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei.
Apreciando.
Invocando a violação dos artigos 591.º, alíneas b) e d), 595.º e 596.º, todos do CPC, o apelante defende que o tribunal de primeira instância não podia ordenar a realização de exames periciais sem antes conhecer das exceções invocadas por ele na respetiva contestação, nomeadamente a caducidade do direito de ação e a ineptidão da petição inicial. Ou seja, na perspetiva do apelante só após a prolação do despacho saneador, onde o tribunal teria de conhecer das exceções por si invocadas e acima referidas, e apenas se a ação houvesse de prosseguir, poderia o tribunal a quo ordenar a realização de exame pericial às partes.
Porém, desde já se adianta que o apelante carece de razão.
Está em causa a realização (antecipada) de exame pericial às partes através da colheita do respetivo ADN.
Exame pericial que foi, de facto, ordenado pelo tribunal a quo antes da prolação do despacho saneador, sede própria para o conhecimento das exceções invocadas pelo réu (cfr. artigos 595.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
A produção antecipada da prova está expressamente contemplada no artigo 419.º, do Código de Processo Civil, o qual dispõe o seguinte:
«Havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspeção, pode o depoimento, a perícia ou a inspeção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a ação».
Tal preceito legal permite a produção dos meios probatórios nele referidos antes do momento processual em que normalmente seriam produzidos desde que estiver em risco a conservação da fonte de prova (impossibilidade) ou a facilidade de a produzir (grande dificuldade) – assim, Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, 2017, p. 231.
Já Alberto dos Reis[3] ensinava que «os princípios de orientação a que o Código obedeceu nesta matéria foram dois:
1.º Tratando-se de prova por depoimento de parte ou de testemunhas, o momento oportuno ou desejável para a produção é a audiência de discussão e julgamento;
2.º Tratando-se de prova por inspeção (exames, vistorias, avaliações, inspeção judicial), o período normal de produção começa com a abertura da instrução propriamente dita (…).
Pode, porém, suceder que a produção de determinada prova apresente caráter de urgência, incompatível com a espera do momento normal ou oportuno; pode dar-se o caso de haver risco de perda de prova, se houver de aguardar-se o momento próprio para a sua produção.
A lei provê a este perigo, permitindo a produção antecipada. (…) O fundamento legal da antecipação está assim designado: justo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de inspeção ocular» (negritos nossos).
A partir de uma primeira leitura das disposições conjugadas dos artigos 419.º (o qual prevê o fundamento da produção antecipada de prova) e 420.º (o qual estatui a forma da antecipação da prova), ambos do CPC, poderia resultar a conclusão de que a antecipação da produção dos meios de prova ali previstos teria de ser requerida pela(s) parte(s).
Julgamos, porém, que a antecipação da produção de prova pode ser oficiosamente determinada pelo tribunal desde que, na pendência da causa, aquele constate que existe um justo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a produção de determinado meio probatório, no período normal da instrução do processo.
É que se o tribunal pode determinar oficiosamente qualquer diligência que às partes seja lícito requerer, como se depreende do disposto no artigo 411.º do Código de Processo Civil, parece-nos que também poderá determinar oficiosamente a antecipação de produção de um meio probatório que aquelas hajam indicado, verificado o respetivo fundamento legal. E julgamos, até, que o próprio dever de gestão processual consagrado no artigo 6.º do Código de Processo Civil – e que foi invocado pelo tribunal a quo no despacho recorrido – o exigirá.
O dever de gestão processual implica uma direção ativa e dinâmica do processo com vista a alcançar quer uma rápida e justa composição do litígio quer uma melhor organização do trabalho do tribunal. Como referem João Correia / Paulo Pimenta / Sérgio Castanheira, Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2013, p. 23, «a satisfação do dever de gestão processual destina-se a garantir uma mais eficiente tramitação da causa, a satisfação do fim do processo ou a satisfação do fim do ato processual» (negrito nosso).
Também Paulo Ramos / Ana Luísa Loureiro[4] referem que a norma do artigo 6.º, n.º 1, do CPC é uma norma habilitadora de caráter abrangente concebida para permitir ao juiz temperar ou mitigar o formalismo processual, autorizando a modificação da tramitação processual normal através de uma adequação formal (esta consagrada no artigo 547.º do CPC[5]), desde que sejam respeitado os princípios processuais.
Assim, constatando o tribunal a existência do fundamento legal da antecipação da produção de prova, pode aquele, ao abrigo do dever de gestão processual conjugado com o disposto no artigo 547.º do CPC, ordenar oficiosamente a realização antecipada de determinado meio de prova, nomeadamente antes da prolação do despacho saneador ou até de despacho pré-saneador, se essa for a forma de assegurar a satisfação do fim do processo.
*
O apelante defende que o reconhecimento assumido na contestação de que o autor é seu pai biológico, bem como a falta de concretização, na petição inicial, do circunstancialismo de tempo e de lugar quanto ao “ato gerador” do filho ou ao “período legal da conceção” geram a inutilidade superveniente da lide e, consequentemente, a desnecessidade da realização da perícia ordenada no despacho sob recurso.
A presente ação é relativa a filiação, concretamente trata-se de uma ação de impugnação de paternidade presumida cuja finalidade é, como o nome indica, contrariar a filiação paternal baseada na presunção estabelecida no artigo 1826.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, que o marido da mãe é o pai biológico do réu.
Estamos assim perante uma ação em que estão em causa direitos indisponíveis, pelo que não é legalmente admissível a confissão de factos relativos a tais direitos (cfr. artigo 354.º, alínea b), do Código Civil).
De qualquer modo sendo a confissão «o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária» (cfr. artigo 352.º do Código Civil) julgamos ser evidente que na presente ação de impugnação da paternidade presumida a afirmação do apelante de que «reconhece e aceita ser filho do autor» não constitui uma confissão.
Logo, cai por terra o primeiro argumento do apelante para sustentar a suposta «inutilidade» da realização de perícia através da recolha de ADN das partes.
O segundo argumento do apelante consiste numa suposta falta de alegação na petição inicial de factos materiais concretos, concretamente, das circunstâncias de tempo e de lugar em que o “ato gerador” do réu terá ocorrido e do “período de conceção legal”, o que, na perspetiva do apelante (se bem a compreendemos) deveria ter gerado uma decisão do tribunal recorrido de inutilidade superveniente da lide.
O despacho recorrido contém uma decisão de antecipação da produção de prova pericial e, implicitamente, há que reconhecê-lo, uma decisão de admissão de um meio de prova que foi requerido pelo autor.
O direito à prova é uma componente do direito à tutela jurisdicional efetiva proclamado no artigo 20.º da Constituição da República, englobando a possibilidade de a propor e de a produzir.
Os poderes judiciais de controlo na admissão da prova, nomeadamente por força da sua relevância ou repercussão na marcha do processo são limitados no direito processual civil português, não podendo o juiz proceder a juízos valorativos sobre a relevância da prova indicada pelas partes para efeitos de decisão da respetiva admissão.
Tratando-se da prova pericial o artigo 476.º, n.º 1, do CPC dispõe, todavia, que o juiz pode indeferir a perícia se a mesma for impertinente ou tiver fins dilatórios. Isto é, o juiz pode indeferi-la se ela não respeitar aos factos da causa, ou, se respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (cfr. artigo 388.º do Código Civil) – Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Almedina, p. 326.
Ao avaliar a pertinência de um exame o juiz tem presente os deveres de busca da verdade material e de gestão processual. É impertinente, designadamente o exame que não exige conhecimentos especiais, não respeita a factos, concerne a factos provados ou se revela, à partida, manifestamente inviável ou redundante, não trazendo elementos úteis para a boa decisão da questão controvertida no processo» – Ac. RL de 04-06-2014, processo 14509/13.2T2SNT-A.L1-4, consultável em www.dgsi.pt.
No caso sub judicie o autor requereu a realização de perícia, através da colheita de ADN de ambas as partes (autor e réu), sendo este um meio de prova expressamente admitido nas ações relativas a filiação, como resulta do disposto no artigo 1801.º do Código Civil.
A perícia solicitada tem a virtualidade prática de excluir que o réu seja filho do autor ou de provar, pela positiva, com uma probabilidade próxima de 100%, que o autor é pai do réu.
Por conseguinte, dúvidas não há que se trata de um meio de prova pertinente para aquilatar se o réu é efetivamente filho do autor.
Por outro lado, foram alegados na petição inicial factos que revelam que o autor pretende saber se é o pai biológico do réu uma vez que terá tomado conhecimento que a sua mulher, entretanto falecida, terá tido um relacionamento extra-conjugal “com um tal (...)” e que «é voz corrente na localidade de (...) que o autor não é progenitor do réu».
Acresce que nada obsta a que posteriormente à realização (antecipada) da perícia, o tribunal venha a proferir, caso o julgue necessário, um despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, ao abrigo do disposto no artigo 591.º, n.º 1, alínea c), última parte, do Código de Processo Civil.
*
O apelante sustenta que o tribunal a quo ignorou a sua recusa fundamentada e perentória em submeter-se ao exame pericial e não ponderou que a determinação da realização de exame pericial ao réu/apelante ofende os seus direitos de personalidade, à identidade pessoal, familiar e patrimonial, ofensa que o réu invocou na sua contestação.
O autor requereu na sua petição inicial a realização de exames hematológicos ao réu, alegando que se trata dos «únicos meios de prova idóneos e credíveis para a demostração cabal do vínculo de paternidade» e que «a submissão do Réu a exames hematológicos não ofende quaisquer normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem»; o réu, na sua contestação, não se opôs à realização do exame pericial em causa nem, tão pouco, proferiu uma palavra que fosse sobre a admissibilidade daquele meio de prova; não o fez naquele articulado nem, posteriormente, no articulado em que exerceu o contraditório relativamente à réplica[6].
Efetivamente, foi apenas em sede de recurso que o apelante expressou a sua veemente recusa em submeter-se à realização do exame pericial solicitado pelo autor (e admitido pelo tribunal a quo no despacho sob recurso), alegando que a realização daquele exame viola os seus direitos fundamentais previstos pela Constituição da República.
Dito de outro modo, a recusa do réu/apelante em sujeitar-se à realização de uma colheita de ADN, com fundamento no disposto no artigo 417.º, n.º 3, alínea a), do CPC, não foi suscitada perante o tribunal de primeira instância, que, por conseguinte, não se pronunciou (nem podia pronunciar-se) sobre a legitimidade da mesma, constituindo assim questão nova cuja apreciação está vedada a este tribunal de segunda instância.
Como escreveu Abrantes Geraldes[7] «os recursos ordinários destinam-se a permitir que o tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação das decisões recorridas, objetivo que se reflete na delimitação das pretensões que lhe podem ser dirigidas e no leque das competências suscetíveis de serem assumidas.
Na fase de recurso, as partes e o Tribunal Superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do Tribunal Superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de se suscitarem ou de serem apreciadas questões de conhecimento oficioso, como a inconstitucionalidade de normas, a nulidade dos contratos, o abuso de direito ou a caducidade em matéria de direitos indisponíveis, relativamente às quais existam nos autos elementos de facto suficientes».
Em síntese, não tendo o réu/apelante invocado perante a primeira instância a sua recusa à realização do exame pericial solicitado pelo autor, não pode este tribunal de recurso conhecer da legitimidade da recusa agora invocada pelo apelante, por se tratar de questão “nova”, que não é de conhecimento oficioso, e, como tal, está vedada à sua apreciação.
*
Finalmente a questão do alegado uso indevido da presente ação pelo autor.
Afirma o apelante que «o despacho em crise, ao determinar nesta fase (prévia ao saneador) a realização do exame pericial de ADN ao réu «sem ter apreciado, valorado e sopesado a factualidade material alegada pelas partes», designadamente atenta a invocada exceção de caducidade da ação de investigação da paternidade, com os fundamentos que constam da contestação, «contribui e permite que o autor se sirva do processo para praticar um ato ou ação simulada ou para conseguir um fim proibido por lei», pelo que «a decisão prévia a proferir deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelo A/recorrido» e que «o despacho recorrido viola o disposto no artigo 612.º do CPC porquanto as circunstâncias da causa, como foram invocadas pelas partes nos articulados (e atenta a confissão e o reconhecimento feito pelo réu na sua contestação de que é filho do autor e como tal se considera), são aptas a produzir a convicção segura de que o autor/recorrido “se serve do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei”».
Que dizer?
O artigo 612.º do CPC que é invocado pelo apelante trata da questão da simulação de um litígio mediante prévio acordo entre as partes processuais, pressupondo, pois, um conluio entre elas para obterem um resultado proibido por lei, um fim divergente da função do processo civil.
Quando o juiz se percebe da simulação deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes, anulando oficiosamente o processo – Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, 2017, Coimbra Editora, páginas 725 e seguintes.
No caso, porém, não se tratará de um caso de uso indevido do processo previsto no artigo 612.º do CPC na medida em que resulta das próprias alegações de recurso que não existe qualquer conluio entre autor e réu.
Na verdade, o que o apelante invoca é uma (suposta) má-fé processual do autor (cfr. artigo 542.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d), do CPC), ou seja, que o autor visa obter um objetivo ilegal com a propositura da presente ação, um fim não tutelado pela lei.
Ora, na medida em que a paternidade jurídica não resulta diretamente da fecundação, servindo-se o Direito de meios indiretos para determinar a primeira[8], não se vislumbra como pode defender-se que a instauração de uma ação de impugnação da paternidade presumida em relação ao marido da mãe pode ser considerada como um ato de má-fé processual. Com efeito, assentando a paternidade estabelecida em relação ao marido da mãe numa presunção de fidelidade da primeira relativamente ao segundo com quem teve relacionamento sexual na época da conceção, surgindo dúvidas sobre a exclusividade das relações de sexo – e na sua petição inicial o autor invoca essa dúvida – a lei permite, designadamente ao marido da mãe, que impugne a paternidade presumida.
Por conseguinte, não se vê que houvesse fundamento para que o tribunal a quo, designadamente perante o teor dos articulados, pudesse concluir pela existência de má-fé processual do autor, a qual, de qualquer modo, nunca teria a virtualidade de obstar ao prosseguimento da ação, como defende o apelante (cfr. artigo 542.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
De todo o modo, a má-fé processual do autor não foi sequer suscitada perante o tribunal de primeira instância e, como tal, constitui “questão nova” que não pode ser conhecida por este tribunal.
*
Perante todo o exposto, improcede a apelação.

Sumário:
(…)

III. DECISÃO
Em face do exposto, julgam improcedente a Apelação, mantendo o despacho recorrido.
As custas de parte são da responsabilidade do apelante.
Notifique.

Évora, 10 de fevereiro de 2022
Cristina Dá Mesquita
José António Moita (1.º Adjunto)
Mata Ribeiro (2.º Adjunto)



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[1] O réu alegou que «a assinatura da procuração não foi efetuada pelo punho e mão do autor».
[2] Por força do disposto no artigo único do D/L n.º 267/92, de 28-11, as procurações passadas a advogado para a prática de atos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais, não carecem de intervenção notarial.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª Edição, 1950, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, pp. 331 e seguintes.
[4] Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, Volume I, 2014, Almedina, pp. 47 e seguintes.
[5] Este preceito tem o seguinte teor: «O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo».
[6] Neste articulado o réu pugna apenas pela inadmissibilidade do documento n.º 1 anexo à réplica, sustentando que o mesmo foi obtido à custa de violação do sigilo profissional.
[7] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, 2018, Almedina, p. 31.
[8] Brandão Ferreira Pinto, Filiação natural, Livraria Almedina, Coimbra, 1983, pp. 159 e seguintes.