Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
446/22.3T8TVR.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: COOPERATIVA AGRÍCOLA DE PRODUÇÃO
DESTITUIÇÃO
ADMINISTRADOR
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - O Código Cooperativo prevê e regula a destituição dos titulares dos órgãos da cooperativa, atribuindo competência exclusiva para o efeito à assembleia geral, assim não podendo considerar-se que a não previsão da destituição judicial configure uma lacuna desse código, dado que a matéria aí se encontra expressamente regulada de forma diversa;
II - A destituição judicial de administrador com fundamento em justa causa, prevista para as sociedades anónimas no artigo 403.º, n.º 3 e 4, do CSC, não é aplicável às cooperativas.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 446/22.3T8TVR.E1
Tribunal Judicial da Comarca ...
Juízo de Competência Genérica ...


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

AA intentou contra (i) Cooperativa Agrícola dos Produtores de Azeite de S..., C.R.L., (ii) BB, presidente da direção da cooperativa, (iii) CC, presidente da assembleia geral da cooperativa, (iv) DD, vice-presidente da direção da cooperativa, (v) EE, membro da direção da cooperativa, e (vi) FF, cooperador da cooperativa, a presente ação de destituição de titulares de órgãos sociais, com processo especial, invocando o disposto nos artigos 546.º, n.º 2, e 1055.º do Código de Processo Civil, bem como no artigo 403.º, n.ºs 3 e 4, do Código das Sociedades Comerciais, por força do artigo 9.º do Código Cooperativo, e pedindo seja decretada a destituição dos réus com fundamento em justa causa; mais requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 366.º e 1055.º, n.º 2, do CPC, seja decretada de imediato a suspensão das funções de presidente da direção da ré, sem audiência prévia.
Por despacho de 26-09-2022, foi indeferida a requerida dispensa do contraditório prévio dos réus.
Citados, os réus contestaram, invocando, além do mais, a competência exclusiva da assembleia geral para destituir os titulares dos órgãos da cooperativa ré e a inaplicabilidade do artigo 403.º, n.ºs 3 e 4, do CSC, arguindo a ilegitimidade ativa do autor para intentar a presente ação e peticionando a absolvição da instância.
Por despacho de 17-11-2022, foi indeferido liminarmente o pedido de suspensão imediata do exercício de funções formulado nos autos, decisão da qual foi interposto recurso de apelação; por acórdão desta Relação proferido em 16-03-2023, a apelação foi julgada improcedente, tendo-se confirmado a decisão recorrida, aresto do qual foi interposto recurso que se encontra pendente.
O autor, notificado para o efeito, apresentou articulado em que se pronuncia sobre a matéria de exceção deduzida na contestação.
Foi realizada audiência prévia, na qual se fixou o valor à causa e proferiu despacho saneador, tendo-se julgado verificada a exceção de ilegitimidade ativa, em consequência do que se absolveu os réus da instância, condenando-se o autor nas custas.
Inconformado, o autor interpôs recurso do despacho saneador, invocando a nulidade da decisão recorrida e pugnando pela respetiva revogação, formulando as seguintes conclusões:
«1. O Autor ora Recorrente instaurou a presente acção especial de destituição de titular de órgão social ao abrigo do disposto nos artigos 546.º, n.º 2, e 1055.º do CPC, 403.º, n.ºs 3 e 4, do CSC, ex vi do artigo 9.º do Código Cooperativo.
2. Tendo requerido ao abrigo do disposto nos artigos 366.º e 1055.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, que seja decretada de imediato a suspensão das funções dos Réus do exercício de funções.
3. Por decisão datada de 19-04-2023 o tribunal a quo julgou verificada a exceção de ilegitimidade ativa do Autor e, em consequência, absolveu os Réus da instância.
4. O ora Recorrente não se conforma com a decisão recorrida porquanto da mesma não consta qualquer referência ou menção à seleção da matéria de facto, factos provados e factos não provados, tendo o tribunal a quo apenas se pronunciado acerca da verificação da excepção de ilegitimidade activa do Autor, o que faz com que estejamos perante uma omissão de pronúncia, isto é o tribunal a quo deixou de decidir sobre a matéria de facto.
5. Deste modo, com a omissão das formalidades referidas, previstas no artigo 607.º, n.º 4, do CPC, cometeu-se uma nulidade processual prevista no artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
6. Devendo a sentença recorrida ser revogada nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas d), do Código de Processo Civil.
7. Sem prescindir, o tribunal a quo entendeu que o Requerente não tem direito a requerer a destituição judicial dos titulares dos órgãos da Cooperativa, cabendo antes de mais à Assembleia Geral deliberar sobre o assunto e como tal julgou verificada a excepção de ilegitimidade ativa do Autor e, em consequência, absolvo os Réus da instância.
8. Salvo o devido respeito que é muito andou mal o tribunal a quo ao julgar verificada a excepção de ilegitimidade ativa do Autor, tendo violado o disposto no n.º 3 e n.º 4 do artigo 403.º do Código das Sociedades Comerciais ex vi do artigo 9.º do Código Cooperativo.
9. Atendendo a que enquanto não tiver sido convocada a assembleia geral para deliberar sobre o assunto qualquer acionista pode requerer a destituição judicial de um administrador, com fundamento em justa causa.
10. Sendo certo que ao arrepio da decisão recorrida estamos perante uma lacuna do Código Cooperativo uma vez que o Código Cooperativo não consagra a situação em que a assembleia não tenha sido convocada para deliberar sobre a destituição judicial de um administrador com fundamento em justa causa.
11. Face ao supra exposto consideramos que o Autor é parte legítima nos presentes autos, resultando desde logo da petição inicial que o Autor é sócio da Ré desde o ano de 1972, tendo exercido funções em órgão executivo em meados dos anos 80 do século passado e como tal na qualidade de sócio tem legitimidade para apresentar a presente acção.
12. Conforme preceitua o artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
13. Sendo claramente o Autor parte legítima nos presentes autos, porquanto tem manifesto interesse, devido à sua qualidade de sócio da Ré Cooperativa, em demandar os Réus.
14. Andou mal o tribunal a quo ao considerar que é da competência exclusiva da Assembleia Geral a eleger e destituir os membros dos órgãos sociais.
15. O despacho saneador viola assim o disposto nos artigos 546.º, n.º 2 e 1055.º do Código de Processo Civil, e do artigo 403.º, n.º 3 e 4, do Código das Sociedades Comerciais aplicável por força do consagrado no artigo 9.º do Código Cooperativo.
16. Termos em que deverá a decisão recorrida ser revogada e consequentemente deverá o Autor ser julgado parte legítima nos presentes autos e consequentemente deverão os presentes autos seguir os seus ulteriores termos.
17. O despacho saneador recorrido é inconstitucional por violar o disposto no artigo 205.º, n.º 1 e artigo 268.º, n.º 4, da nossa Constituição. E bem assim o Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva, o que desde já expressamente se invoca para efeitos de eventual e futuro recurso para o Tribunal Constitucional.
18. Termos em que deverá o tribunal ad quem declarar a nulidade da sentença recorrida por violação dos princípios constitucionais da extinção do poder jurisdicional, da segurança jurídica e da tutela jurisdicional efetiva, invocando-se desde já a inconstitucionalidade da decisão ora recorrida para efeito de eventual e futuro recurso para o Tribunal Constitucional.»
Os réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações do recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
i) da nulidade da decisão recorrida;
ii) da admissibilidade da destituição judicial de titulares dos órgãos da cooperativa;
iii) da inconstitucionalidade.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Tramitação processual
Os elementos com relevo para a apreciação das questões suscitadas constam do relatório supra.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Nulidade da decisão recorrida
Vem impugnado na apelação o despacho saneador que julgou verificada a exceção de ilegitimidade ativa, absolvendo os réus da instância e condenando o autor nas custas, assim pondo termo à causa.
No recurso interposto, o autor arguiu a nulidade da decisão recorrida, imputando-lhe o vício de omissão de pronúncia, sustentando que o tribunal a quo não decidiu sobre a matéria de facto, sendo a decisão omissa quanto aos factos considerados provados e não provados.
As causas de nulidade da sentença encontram-se previstas no n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil – aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do estatuído no artigo 613.º, n.º 3, do mesmo código –, nos termos do qual é nula a decisão quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
A causa de nulidade invocada pelo recorrente, prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do citado preceito, ocorre quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, assim incumprindo o estatuído no artigo 608.º, n.º 2, 1.ª parte, do mesmo código, nos termos do qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Explicam José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pág. 737) que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artigo 608.º-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (…)”.
O recorrente baseia a invocação de omissão de pronúncia na falta de especificação da matéria de facto tida por provada e não provada.
Não lhe assiste, porém, razão, considerando a fase processual em que se insere a decisão recorrida, que consiste num despacho saneador que pôs termo à causa – absolvendo os réus da instância por se ter considerado verificada uma exceção dilatória – em momento processual anterior ao conhecimento do respetivo mérito, o que torna desnecessária a especificação, tida por omitida, da factualidade considerada provada e não provada.
Definindo as finalidades do despacho saneador, dispõe o n.º 1 do artigo 595.º do CPC que se destina a: a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Está em causa, no caso presente, a hipótese prevista na alínea a), tendo a 1.ª instância conhecido de exceção dilatória suscitada pelos réus, a qual considerou verificada, em consequência do que os absolveu da instância, pondo termo ao processo previamente ao conhecimento do mérito da ação.
Se a ação terminou em momento processual anterior ao conhecimento do mérito da causa, não há lugar à discriminação dos factos considerados provados e não provados, a qual se mostra prejudicada pelo anterior conhecimento de exceção dilatória considerada procedente e consequente absolvição dos réus da instância, o que afasta o vício de omissão de pronúncia invocado pelo apelante.
Improcede, assim, a arguição de nulidade da decisão recorrida.

2.2.2. Admissibilidade da destituição judicial de titulares dos órgãos da cooperativa
O autor, invocando a qualidade de sócio da cooperativa 1.ª ré e o disposto no artigo 1055.º do Código de Processo Civil, bem como no artigo 403.º, n.ºs 3 e 4, do Código das Sociedades Comerciais, por força do artigo 9.º do Código Cooperativo, intentou a presente ação de destituição de titulares de órgãos sociais, com processo especial, contra a aludida cooperativa, o presidente da direção da cooperativa (2.º réu), o presidente da assembleia geral da cooperativa (3.º réu), o vice-presidente da direção da cooperativa (4.º réu), um membro da direção da cooperativa (5.º réu) e um cooperador da cooperativa (6.º réu), pedindo seja decretada a destituição dos réus com fundamento em justa causa.
A 1.ª instância, em despacho saneador proferido na audiência prévia, julgou verificada a exceção de ilegitimidade ativa e, em consequência, absolveu os réus da instância e condenou o autor nas custas.
Consta da motivação de tal decisão, além do mais, o seguinte:
(…)
Dispõe o artigo 1055.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, (…) que “O interessado que pretenda a destituição judicial de titulares de órgãos sociais, ou de representantes comuns de contitulares de participação social, nos casos em que a lei o admite, indica no requerimento os factos que justificam o pedido” (…).
(…)
O artigo 257.º do Código das Sociedades Comerciais, contempla duas modalidades de destituição de gerentes: por deliberação dos sócios e pelo Tribunal, na sequência de requerimento formulado naquele sentido. Vigora, assim, o princípio da destituição dos gerentes por deliberação dos sócios (n.º 1 daquele artigo 257.º), embora se admita que o sócio requeira ao Tribunal a suspensão e destituição de gerente existindo justa causa.
Prevendo, igualmente, a destituição com justa causa encontramos o n.º 3 do artigo 403.º do Código das Sociedades Comerciais, referente às sociedades anónimas (exigindo que a destituição judicial de administrador seja requerida por um ou mais acionistas que detenham, pelo menos 10% do capital social e enquanto não tiver sido convocada a assembleia geral para deliberar sobre o assunto).
Porém, no caso dos autos, estamos face a uma Cooperativa, e não face a uma sociedade comercial.
Preverá a lei, no caso que especificamente nos ocupa, a destituição judicial de órgãos sociais?
Dispõe o artigo 38.º, alíneas a), k), e m), da Lei n.º 119/2015, de 31 de agosto, que aprovou o Código Cooperativo, que é da competência exclusiva da assembleia geral (a) eleger e destituir os titulares dos órgãos da cooperativa, incluindo o revisor oficial de contas, (k) deliberar sobre a exclusão de cooperadores e sobre a destituição dos titulares dos órgãos sociais, e ainda funcionar como instância de recurso, quer quanto à admissão ou recusa de novos membros, quer em relação às sanções aplicadas pelo órgão de administração, e (m) deliberar sobre a proposição de ações da cooperativa contra os administradores e titulares do órgão de fiscalização, bem como a desistência e a transação nessas ações.
No mesmo sentido, o artigo 27.º, alínea a), dos Estatutos da Cooperativa prevê que é da competência exclusiva da Assembleia Geral (a) eleger e destituir os membros dos órgãos sociais.
Daqui decorre que a destituição dos titulares de órgãos sociais das cooperativas, que é o que está em causa nestes autos, é da exclusiva competência da assembleia geral.
(…)
Como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24-01-2008, processo n.º 10849/2007-2, disponível para consulta em jurisprudência.pt, sendo a assembleia geral composta pelo conjunto dos associados, aqui residindo a sua soberania, “surge como natural que lhe caiba decidir sobre os destinos da associação, beneficiando de poderes deliberativos que a colocam acima dos corpos gerentes, sendo a obediência à lei e aos estatutos a única limitação ao seu poder”.
E, de facto, como ali se escreveu, embora por referência a associações, mas aplicável igualmente às cooperativas, “não existe na lei qualquer menção à possibilidade de destituição ou suspensão judicial, mesmo com justa causa, a qual não se encontra prevista – como se encontra prevista, nos casos acima assinalados, em relação às sociedades comerciais por quotas e anónimas”.
Ademais, não é aqui de lançar mão do disposto artigo 403.º do CSC, ex vi do artigo 9.º do Código Cooperativo, onde se dispõe que “para colmatar as lacunas do presente Código, que não o possam ser pelo recurso à legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo, pode recorrer-se, na medida em que se não desrespeitem os princípios cooperativos, ao Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas”, por, no entendimento deste tribunal, não estamos aqui perante qualquer lacuna.
Face ao exposto, entende-se que o Requerente não tem o direito de requerer a destituição judicial dos titulares dos órgãos da Cooperativa, cabendo antes de mais à assembleia geral deliberar sobre o assunto.
Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julgo verificada a exceção de ilegitimidade ativa do Autor e, em consequência, absolvo os Réus da instância.
Custas pelo Autor/Requerente.
Discordando deste entendimento, o apelante sustenta a aplicabilidade ao caso presente do estatuído no artigo 403.º, n.ºs 3 e 4, do CSC, por força do artigo 9.º do CCoop, afirmando que tal decorre da existência de uma lacuna no Código Cooperativo, ao não consagrar a situação em que a assembleia não tenha sido convocada para deliberar sobre a destituição de titulares de órgãos com fundamento em justa causa; mais defende que, na qualidade de sócio da cooperativa 1.ª ré, lhe assiste o direito de intentar a presente ação, visando a destituição de titulares de órgãos da cooperativa.
Cumpre apreciar se o autor não pode intentar ação judicial visando a destituição de titulares de órgãos de uma cooperativa invocando o artigo 403.º, n.º 3 e 4, do CSC, por este preceito não se aplicar às cooperativas, conforme entendeu a 1.ª instância; ou se, conforme defende o apelante, este preceito é aplicável às cooperativas por força do artigo 9.º do CCoop e é de admitir a possibilidade de os cooperadores moverem ação visando tal destituição judicial.
Sob a epígrafe Suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais, dispõe o artigo 1055.º do CPC, o seguinte: 1 - O interessado que pretenda a destituição judicial de titulares de órgãos sociais, ou de representantes comuns de contitulares de participação social, nos casos em que a lei o admite, indica no requerimento os factos que justificam o pedido; 2 - Se for requerida a suspensão do cargo, o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão, após realização das diligências necessárias; 3 - O requerido é citado para contestar, devendo o juiz ouvir, sempre que possível, os restantes sócios ou os administradores da sociedade; 4 - O preceituado nos números anteriores é aplicável à destituição que seja consequência de revogação judicial da cláusula do contrato de sociedade que atribua a algum dos sócios um direito especial à administração; 5 - Quando se trate de destituir quaisquer titulares de órgãos judicialmente designados, a destituição é dependência do processo em que a nomeação teve lugar.
Face ao estatuído no n.º 1 do preceito – nos casos em que a lei o admite –, há que aferir se a lei admite a destituição judicial de titulares dos órgãos de uma cooperativa e, em caso afirmativo, se assiste ao autor o direito de intentar tal ação judicial, sujeita ao processo de jurisdição voluntária previsto no citado artigo.
Estando em causa a destituição de titulares de órgãos de uma cooperativa, impõe-se atender, desde logo, ao Código Cooperativo (aprovado pela Lei n.º 119/2015, de 31-08), em cujo âmbito de aplicação se integram, nos termos do artigo 1.º, as cooperativas de todos os graus.
Sob a epígrafe Direito subsidiário, dispõe o artigo 9.º do CCoop o seguinte: Para colmatar as lacunas do presente Código, que não o possam ser pelo recurso à legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo, pode recorrer-se, na medida em que se não desrespeitem os princípios cooperativos, ao Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente aos preceitos aplicáveis às sociedades anónimas.
Sob a epígrafe Destituição, o invocado artigo 403.º do CSC – integrado no regime aplicável às sociedades anónimas, conforme decorre da respetiva inserção sistemática no Título IV daquele Código – dispõe, além do mais, o seguinte: 3 - Um ou mais accionistas titulares de acções correspondentes, pelo menos, a 10% do capital social podem, enquanto não tiver sido convocada a assembleia geral para deliberar sobre o assunto, requerer a destituição judicial de um administrador, com fundamento em justa causa; 4 - Constituem, designadamente, justa causa de destituição a violação grave dos deveres do administrador e a sua inaptidão para o exercício normal das respectivas funções.
Vejamos se a destituição judicial de administrador com fundamento em justa causa, prevista para as sociedades anónimas no artigo 403.º, n.º 3 e 4, do CSC, é aplicável às cooperativas por força do artigo 9.º do CCoop.
Antes de mais, impõe-se determinar o alcance da previsão deste artigo 9.º, preceito que, nas palavras de Manuel Carneiro da Frada/Diogo Costa Gonçalves [«A acção ut singuli (de responsabilidade civil) e a relação do Direito Cooperativo com o Direito das Sociedades Comerciais», Revista de Direito das Sociedades, I (2009), 4, pág. 897], «consente duas perspetivas possíveis da relação entre o direito cooperativo e o direito das sociedades comerciais».
Afirmam estes autores (loc. cit.) o seguinte: «Segundo uma delas, o intérprete-aplicador, para aplicar uma disposição do CSC, deverá, em primeiro lugar, determinar a existência de uma lacuna, e integrá-la depois por analogia legis (artigo 10.°/1 e 2, do CC), recorrendo para o efeito – como manda o preceito do regime cooperativo – ao CSC. A intervenção do CSC não será, portanto, uma aplicação directa, mas analógica. (…) Segundo outra perspectiva, entre o direito societário e o direito cooperativo existe, essencialmente, uma relação de (mera) especialidade: o direito cooperativo é um direito especial, pelo que o CSC aplicar-se-á, por princípio, directamente às cooperativas; sem requerer nem implicar, portanto, um esforço de detecção e procura de integração de uma lacuna perante um sistema diferente do CSC, em si auto-suficiente para avaliar e, caso possível, integrar uma hipotética lacuna. Nesta interpretação, esse esforço é mesmo vedado, em regra e salvo justificação especial, ao intérprete pelo artigo 9.° do CCoop».
Em anotação ao citado artigo 9.º, afirma J. M. Coutinho de Abreu (Código Cooperativo Anotado, Coord. Deolinda Meira/Maria Elisabete Ramos, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 70) o seguinte: «As cooperativas são entidades com identidade própria, que obedecem, “na sua constituição e funcionamento”, aos princípios cooperativos (artigo 3.º) – princípios jurídicos que fundamentam ou informam normas legais e concretas realizações do direito – e inseridas constitucionalmente em um autónomo sector de propriedade (o sector cooperativo e social, onde quase não entram as sociedades) que compreende um subsector apenas aberto às “cooperativas” (artigo 82.º, 4, a), da CRP). (…) Não vejo, pois, como negar “unidade de sentido interno” a um direito (cooperativo) regulador de entidades com características singulares e alicerçado em princípios que lhe dão coerência de sistema. (…) Sendo assim, o CCoop há de ter lacunas, imperfeições contrárias ao seu próprio plano. (…) Porém, a remissão do artigo 9.º para o CSC não significa que este intervém somente para suprir lacunas do CCoop. Mas também não significa que os casos regulados no CSC são iguais aos que ocorrem no âmbito do CCoop – são casos análogos, e há portanto uma “analogia de remissão”. (…) Por conseguinte, perante uma omissão (involuntária) do CCoop, antes de recorrer ao CSC deve ponderar-se a possibilidade de recorrer a normas do direito cooperativo reguladoras de casos (mais) análogos (porque integrados em sistema autónomo). E o artigo 9.º dá suporte a esta possibilidade logo quando refere o “recurso à legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo”. Por outro lado, apesar do silêncio do artigo 9.º, não pode ser descartada a hipótese do recurso a normas do próprio CCoop – aquele artigo não derroga as regras de direito comum estabelecidas no artigo 10.º do Código Civil»
As cooperativas, conforme noção constante do artigo 2.º, n.º 1, do CCoop, são pessoas coletivas autónomas, de livre constituição, de capital e composição variáveis, que, através da cooperação e entreajuda dos seus membros, com obediência aos princípios cooperativos, visam, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades e aspirações económicas, sociais ou culturais daqueles.
As cooperativas obedecem, na sua constituição e funcionamento, aos princípios cooperativos elencados no artigo 3.º do CCoop, designadamente aos seguintes princípios:
2.º Princípio – Gestão democrática pelos membros As cooperativas são organizações democráticas geridas pelos seus membros, os quais participam ativamente na formulação das suas políticas e na tomada de decisões. Os homens e as mulheres que exerçam funções como representantes eleitos são responsáveis perante o conjunto dos membros que os elegeram. Nas cooperativas do primeiro grau, os membros têm iguais direitos de voto (um membro, um voto), estando as cooperativas de outros graus organizadas também de uma forma democrática;
4.º Princípio – Autonomia e independênciaAs cooperativas são organizações autónomas de entreajuda, controladas pelos seus membros. No caso de entrarem em acordos com outras organizações, incluindo os governos, ou de recorrerem a capitais externos, devem fazê-lo de modo a que fique assegurado o controlo democrático pelos seus membros e se mantenha a sua autonomia como cooperativas.
Sob a epígrafe Competência da assembleia geral, o artigo 38.º do CCoop dispõe, além do mais, que é da competência exclusiva da assembleia geral: a) Eleger e destituir os titulares dos órgãos da cooperativa, incluindo o revisor oficial de contas; k) Deliberar sobre a exclusão de cooperadores e sobre a destituição dos titulares dos órgãos sociais, e ainda funcionar como instância de recurso, quer quanto à admissão ou recusa de novos membros, quer em relação às sanções aplicadas pelo órgão de administração.
O artigo 25.º do CCoop, por seu turno, prevê a aplicação aos cooperadores das sanções elencadas no n.º 1, dispondo no n.º 6 que compete à assembleia geral, além do mais, a aplicação da sanção de perda de mandato.
O artigo 60.º do mesmo Código, relativo à destituição de titulares da comissão de auditoria, dispõe o n.º 1 que a assembleia geral só pode destituir os titulares da comissão de auditoria desde que ocorra justa causa.
O artigo 78.º do aludido Código, relativo a ação de responsabilidade proposta pela cooperativa, prevê no n.º 3 que, na assembleia que aprecie os documentos de prestação de contas, e mesmo que tais assuntos não constem da ordem da convocatória, possam ser tomadas decisões sobre a destituição dos administradores que a assembleia considere responsáveis.
Da análise conjugada destes preceitos decorre que o Código Cooperativo prevê e regula a matéria relativa à destituição de titulares dos órgãos de uma cooperativa. O aludido código atribui à assembleia geral a competência exclusiva para a destituição dos titulares dos órgãos da cooperativa, bem como para deliberação sobre a exclusão de cooperadores e sobre a destituição dos titulares dos órgãos sociais.
Tal competência exclusiva da assembleia geral, imperativamente imposta pelo citado artigo 38.º, encontra-se igualmente plasmada no artigo 27.º, alínea a), dos Estatutos da 1.ª ré (cfr. doc. 1 junto aos autos com a petição inicial).
O Código Cooperativo não prevê a destituição judicial de titulares dos órgãos de uma cooperativa; porém, face ao regime exposto, não pode considerar-se que tal omissão constitua uma lacuna da lei, antes se verificando que a matéria é expressamente regulada naquele código em termos diversos, através da atribuição à assembleia geral da competência exclusiva para a destituição dos titulares dos órgãos da cooperativa.
Se Código Cooperativo prevê e regula a destituição dos titulares dos órgãos da cooperativa, atribuindo competência exclusiva para o efeito à assembleia geral, não pode considerar-se que a não previsão da destituição judicial configure uma lacuna desse código, dado que a matéria aí se encontra expressamente regulada de forma diversa, o que afasta a apontada ausência de regulamentação ou a insuficiência desse regime.
Nesta conformidade, não se encontrando preenchido o aludido pressuposto previsto no artigo 9.º, isto é, a existência de uma lacuna do Código Cooperativo – ao que sempre acresceria a exigência de que, a existir, não pudesse ser colmatada pelo recurso à legislação complementar aplicável aos diversos ramos do sector cooperativo –, afastado se encontra o recurso ao Código das Sociedades Comerciais na matéria em apreciação, concretamente a aplicação às cooperativas do invocado artigo 403.º, n.º 3 e 4.
Verificada a inaplicabilidade às cooperativas do artigo 403.º, n.º 3 e 4, do CSC, impõe-se concluir que a lei não admite a destituição judicial de titulares dos órgãos de uma cooperativa, o que afasta o direito de ação invocado pelo autor, mostrando-se acertada a decisão recorrida, ao considerar que o mesmo não pode intentar a presente ação, visando a destituição judicial de titulares de órgãos de uma cooperativa.
Improcede, assim, também nesta parte, a argumentação do apelante.

2.2.3. Inconstitucionalidade
O apelante invoca a inconstitucionalidade da decisão recorrida, por violação do disposto nos artigos 205.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Porém, analisando as alegações de recurso, verifica-se que não é suscitada, de forma adequada, uma questão de constitucionalidade, considerando que o recorrente não indica, de modo expresso, o critério normativo a apreciar, antes se limitando à enunciação das indicadas normas da Constituição.
Os preceitos constitucionais invocados têm a redação seguinte:
- artigo 205.º, n.º 1 – As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
- artigo 268.º, n.º 4 – É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas.
O recorrente suscita a inconstitucionalidade do despacho saneador recorrido sem especificar o fundamento pelo qual entende que o mesmo viola as invocadas normas constitucionais.
Não especificando o apelante o fundamento em que baseia a inconstitucionalidade que argui, tal impede a apreciação da questão suscitada, por falta de objeto, sendo que não se vislumbra que a decisão proferida pela 1.ª instância viole as aludidas normas constitucionais.
Nesta conformidade, improcede totalmente a apelação.


Em conclusão: (…)


3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Évora, 28-06-2023
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Francisco Matos (1.º Adjunto)
Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta)