Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
218/20.0T8STR.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: SUSPENSÃO DE DELIBERAÇÕES SOCIAIS
PROCEDIMENTO CAUTELAR
LEGITIMIDADE
SÓCIO
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Para a instauração do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, previsto no artigo 380.º do Código de Processo Civil, a lei impõe que o requerente tenha a qualidade de sócio.

II – Quem não detenha essa qualidade e pretenda, ainda assim, impugnar a deliberação prejudicial, terá que recorrer ao procedimento cautelar comum, verificados que sejam os respectivos requisitos (sumário do relator).

Decisão Texto Integral:

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. A…, na qualidade de Fiscal Único da Sociedade D…, S.A., instaurou procedimento cautelar de suspensão de deliberação social, pedindo a suspensão da deliberação tomada na Assembleia Geral de 13 de Dezembro de 2019, que lhe foi comunicada em 16/01/2020, que o destituiu das funções de Fiscal Único e ROC da requerida.

2. O procedimento foi liminarmente indeferido, por despacho de 24 de Janeiro de 2020, com os seguintes fundamentos:
«Nos termos do artigo 226.º, n.º 4, alínea b) do novo Código de Processo Civil (NCPC), nos procedimentos cautelares existe despacho de citação a par de todos os casos em que incumba ao juiz decidir da prévia audiência do requerido. Nesse despacho liminar caberá ao juiz aferir da viabilidade da providência cautelar e da existência de excepções dilatórias.
O procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais tem como pressupostos cumulativos a) a legitimidade do requerente enquanto sócio da sociedade que tomou a deliberação; b) a contrariedade da deliberação à lei e/ou pacto social e c) a existência de dano apreciável em resultado da deliberação – cfr. art.º 380.º, n.º 1 do NCPC.
Pelo exposto, configurando preterição do pressuposto da legitimidade activa cuja apreciação se apresenta evidente e carente de qualquer contraditório face aos termos das alegações do requerimento inicial, considerando que o Requerente não veio arguir a sua qualidade de sócio ou accionista da sociedade D…, S.A., decido indeferir liminarmente o presente procedimento cautelar, interposto pelo Requerente A… contra a Requerida D…, S.A.»

3. Inconformado recorreu o A., pedindo a revogação do despacho de indeferimento, nos termos e com os fundamentos que condensou nas seguintes conclusões:
A. A providência cautelar de suspensão de deliberações sociais, facultada aos sócios da sociedade que provem essa qualidade, é meio processual adequado à decisão de medidas tutelares que se mostrem necessárias, a requerimento do Fiscal Único e Revisor Oficial de Contas da sociedade, para protecção dos interesses subjacentes às acções que a Lei lhe impõe e faculta de impugnação das deliberações sociais, vg. nos artigos 59.º n.º 1 in limine, 57.º, 60.º n.º 3, 69.º n.º 3 e 420.º n.º 1 b) e l) do CSC.
B. Acometendo a Lei o dever e faculdade de controlo de legalidade da actuação da sociedade e impugnação de deliberações na mesma tomadas, necessariamente que deverá atribuir-se a faculdade do exercício dos meios tutelares que previnam e impeçam os prejuízos decorrentes da execução dessas deliberações durante a pendência da acção.
C. Tal interpretação é aliás imposta pelo disposto no art.º 2.º do CPC, pois que a lei ao atribuir legitimidade para a acção tem que assegurar ainda os “procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.
D. Ainda que se entendesse que restaria o uso do procedimento cautelar comum, por força dos poderes de adequação processual, se imporia a prossecução da providência requerida naquela ou outra forma.

4. Citada a requerida para os termos do recurso e do procedimento (cf. artigos 641º, n.º 7, e 629º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil), apresentou contra-alegações, invocando a falta de legitimidade do recorrente para o procedimento em causa e a impossibilidade de convolação e prosseguimento do mesmo como o procedimento cautelar comum, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação do despacho de indeferimento liminar.

5. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito suspensivo da decisão.
Remetidos os autos a esta Relação, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, as questões essenciais a decidir consistem em saber se o requerente tem legitimidade para instaurar o procedimento específico de suspensão de deliberações sociais e, não a tendo, se deve/pode o procedimento ser convolado e prosseguir como procedimento cautelar comum.
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III – Fundamentação Fáctico jurídica
1. A primeira questão que se coloca consiste em saber se o requerente, que não é sócio da requerida sociedade, pode lançar mão do procedimento cautelar especificado de “suspensão de deliberações sociais”, regulado nos artigos 380º a 382º do Código de Processo Civil.
Vejamos:

2. Nos termos do disposto no artigo 380º do Código de Processo Civil (sob a epígrafe “Pressupostos e formalidades):
1 - Se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável.
2 - O sócio instrui o requerimento com cópia da acta em que as deliberações foram tomadas e que a direcção deve fornecer ao requerente dentro de vinte e quatro horas; quando a lei dispense reunião de assembleia, a cópia da acta é substituída por documento comprovativo da deliberação.
3 - O prazo fixado para o requerimento da suspensão conta-se da data da assembleia em que as deliberações foram tomadas ou, se o requerente não tiver sido regularmente convocado para a assembleia, da data em que ele teve conhecimento das deliberações. (destaque nosso)
Como resulta do preceito, o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (1) ser o requerente sócio da sociedade que a tomou; (2) ser essa deliberação contrária à lei ou ao pacto social e (3) resultar da sua execução dano apreciável.
No caso em apreço, interessa-nos o primeiro dos referidos requisitos, porquanto na decisão recorrida se entendeu que, não tendo o requerente a qualidade de sócio, não tinha legitimidade para instaurar o procedimento especificado, e o recorrente discorda deste entendimento, convocando entendimentos doutrinários que, advogando uma interpretação extensiva da expressão “qualquer sócio”, ínsita no n.º 1 do artigo 380º do Código de Processo Civil, ou uma interpretação analógica das normas que prevêem sobre as acções de nulidade e de anulação do C.S.C, que atribuem legitimidade activa a outros órgãos para as acções principais, apontam no sentido de quem tem legitimidade para a acção também tem que ter para o procedimento cautelar especificado.

3. É verdade que quanto a esta questão não há um entendimento unânime na doutrina, como aliás, dá conta o requerente, citando a tese de Ana Rita Nunes de Oliveira (A impugnação das Deliberações dos Sócios pelo Órgão de Fiscalização, 2017, disponível no repositório de teses da Universidade Católica e o link inserido no título da obra), que indica: – em prol da legitimidade activa do órgão de fiscalização para requerer a suspensão de deliberações sociais [“Coutinho de Abreu, defendendo que se deve usar duma interpretação teleológica ou fazer uma aplicação analógica das normas sobre as acções de nulidade e de anulação do C.S.C. que atribuem legitimidade activa a outros órgãos para as acções principais (ABREU, JORGE M. COUTINHO DE, «Impugnação de Deliberações Sociais (Teses e antíteses, sem sínteses)», cit. , p. 209; e ABREU, JORGE M. COUTINHO DE, «Artigo 60.º» in AA.VV., Código das Sociedades Comerciais em comentário, cit., pp.696-697), referindo como autores que acompanham esta posição, Pinto Furtado (FURTADO, J. PINTO, Deliberações de sociedades comerciais , Coimbra, Almedina, 2005, p.793) e Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto (FREITAS, J. LEBRE DE,/MACHADO, A. MONTALVÃO/PINTO, RUI – Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p.90)”], e – no sentido de que os não sócios apenas poderão requerer um procedimento cautelar comum com esse intuito: [Taveira da Fonseca (FONSECA, J. TAVEIRA DA, «Deliberações Sociais - Suspensão e Anulação», em CEJ, Textos (Sociedades comerciais) , 1994/1995, pp.90-91), Abrantes Geraldes (GERALDES, A. ABRANTES, Temas da Reforma do processo civil , IV vol., Coimbra, Almedina, p.80), Soveral Martins (MARTINS, A. SOVERAL, «Suspensão de deliberações sociais de sociedades comerciais: alguns problemas», ROA, 2003, p.360) e Armando Triunfante (TRIUNFANTE, ARMANDO M., A tutela das minorias nas sociedades anónimas – Direitos individuais , Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p.212)].

4. Salvo o devido respeito, discordamos daquele primeiro entendimento, que é sufragado pelo recorrente, no sentido de que os não sócios podem recorrer ao procedimento cautelar especificado, porquanto não se nos afigura viável uma qualquer interpretação normativa que não tenha na letra da lei a mínima correspondência, nem nos parece ter sido aquela a interpretação querida pelo legislador.
Efectivamente, a lei não só apela no n.º 1 do artigo 380º do Código de Processo Civil, à qualidade de sócio, exigindo a prova dessa qualidade, como no n.º 2, diz quais os documentos com os quais o sócio deve instruir o requerimento inicial, donde deriva a intenção do legislador em restringir o procedimento a quem tenha aquela qualidade.
Também a jurisprudência aponta no sentido de que a legitimidade para requerer a providência especificada é restrita ao sócio. [Nesse sentido, inter alia, cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/05/2000 (proc. n.º 00B337), relator FERREIRA DE ALMEIDA; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, 12/07/2012 (proc. n.º 459/12.3TBSLV), relator PAULO AMARAL; e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/10/2012 (proc. n.º 255/12.8TVLSB-A.L1-6), relator TOMÉ RAMIÃO; bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/11/2011 (proc. n.º 158/10.0T2AVR-A.C2), relator CARVALHO MARTINS; e o acórdão Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/06/2018 (proc. n.º 78/18.0T8AGH-A.L1-6), relator ANTÓNIO SANTOS, todos acessíveis, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt, os dois últimos, com o entendimento de que a legitimidade activa para a providência apenas se verifica em relação ao sócio que já o era ao momento da deliberação impugnada e que conserva essa qualidade ao tempo da impugnação].
De facto, como diz Abrantes Geraldes, «… para a instauração do procedimento cautelar de suspensão da deliberação a lei impõe que o requerente tenha a qualidade de sócio (…). Para quem não detenha essa qualidade e pretenda, ainda assim, impugnar a deliberação prejudicial, restará o recurso ao procedimento cautelar comum, verificados que sejam os respectivos requisitos [assim sucederá quando o gerente ou o administrador, que não detenha a qualidade de sócio, pretenda atacar a deliberação da sua destituição, como refere Taveira da Fonseca, Deliberações Sociais – Suspensão e Anulação, em Textos – Sociedades Comerciais, ed. CEJ, 1995/1995, pág. 91]» (Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. IV, 4ª edição revista e actualizada, págs. 89 e 90, com referências doutrinárias).
Deste modo, quem não possa recorrer ao procedimento cautelar especificado, mas tenha legitimidade para intentar a acção de anulação, pode, se nisso tiver interesse, lançar mão do procedimento cautelar comum, alegando e provando os requisitos de que depende este procedimento, previstos no artigo 362º do Código de Processo Civil, pelo que não é correcta a conclusão de que o não sócio fica sem tutela cautelar.

5. Diz ainda o recorrente, na última conclusão do recurso, que, “ainda que se entendesse que restaria o uso do procedimento cautelar comum, por força dos poderes de adequação processual, se imporia a prossecução da providência requerida naquela ou outra forma”.
Na verdade, nos termos previsto do n.º 3 do artigo 376º do Código de Processo Civil, o tribunal não está adstrito à providência concretamente requerida.
Como refere, a propósito, Lopes do Rego, estabelece-se aqui o poder-dever de o juiz convolar da providência concretamente requerida para a que considere legalmente adequada ou mais eficaz à prevenção do receado dano, acrescentando: «Cumpre, pois, ao juiz corrigir, mesmo oficiosamente, o erro na forma de processo, consistente em se requerer procedimento cautelar comum quando a situação é subsumível aos pressupostos de determinado procedimento nominado, ou vice-versa, bem como em ter-se requerido um destes, quando seja legalmente aplicável outro à hipótese “sub juditio”» (Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª edição, 2004, pág. 362)
Porém, a admitir-se a possibilidade de convolação do procedimento especificado no adequado procedimento cautelar, no caso o comum, era necessário que o recorrente tivesse alegado os factos concretos tendentes a demonstrar a verificação dos requisitos de que depende o procedimento cautelar comum, como previsto no artigo 362º, n.º 1, do Código de Processo Civil, concretamente a existência do direito a acautelar e o receio de que outrem cause “lesão grave e dificilmente reparável” ao direito do requerente.
Porém tal não se verifica em relação a este último requisito.
De facto, como se diz no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/04/2019 (proc. n.º 58/19.9T8FVN.C1), com referência ao procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, «[a]o contrário do que ocorre com o procedimento cautelar comum – em cujo art. 362.º/1 do CPC se fala “em lesão grave e dificilmente reparável” – considera-se desnecessário que se evidenciem danos irreparáveis ou de difícil reparação, “apenas” se impondo ao requerente o ónus de demonstrar que a suspensão da deliberação é essencial para impedir a verificação de um “dano apreciável”.»
Ora, no caso, a factualidade alegada pelo requerente a respeito deste requisito, designadamente nos artigos 28º, 29º, 43º e 124º, da petição, ainda que seja susceptível de integrar a previsão normativa do artigo 380º, n.º 1, do Código de Processo Civil – “dano apreciável” – (questão esta que não temos aqui de apreciar), não tem a virtualidade de revelar “lesão grave ou dificilmente reparável” ao direito do recorrente, a que a norma do artigo 362º, n.º 1, daquele código, visa acautelar.

6. Deste modo, improcede a apelação, com a consequente confirmação do despacho recorrido, que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Évora, 21 de Maio de 2020
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro
Florbela Moreira Lança
(documento com assinatura electrónica)