Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
912/22.0T8EVR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
MÚTUO BANCÁRIO LIQUIDÁVEL EM PRESTAÇÕES
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Tendo as partes acordado que a utilização da casa de morada de família pela requerida teria como contrapartida o pagamento por esta da mensalidade do contrato de crédito existente, tal acordo deve ser interpretado, uma vez pago o empréstimo, como devendo a requerida passe a pagar ao requerente uma contrapartida por tal utilização, por ser essa a interpretação que deduziria um declaratário normal, colocado na posição do requerente e da requerida, não sendo razoável conceber que esta continue a utilizar a casa sem qualquer contrapartida, tratando-se, ademais, de um bem comum e inexistindo outra razão que o justifique.
II - A liquidação do empréstimo bancário constitui, por si só, motivo atendível que justifica uma alteração da contrapartida devida pela utilização exclusiva da casa de morada de família pela recorrida até à partilha do bem comum do casal.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA veio instaurar o presente processo de jurisdição voluntária de alteração do regime de utilização da casa de morada da família, contra a ex-mulher BB, alegando, em síntese, que o imóvel que constituiu a casa de morada de família do casal formado pelo requerente e requerida, foi adquirido por ambos em 21.05.1996, sendo que, por decisão proferida em 24.09.2019, no processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória de Registo Civil ..., foi homologado o acordo alcançado entre os então cônjuges, no sentido de a casa de morada de família ficar atribuída ao cônjuge mulher, aqui requerida, até à realização das partilhas dos bens comuns do casal, ficando estabelecido que a requerida assumiria daí em diante todas as despesas inerentes à casa de morada de família, nomeadamente a prestação bancária do crédito à habitação por ambos contraído, no montante de € 268,41.
Mais alegou o requerente que, sendo ele cotitular do aludido crédito bancário, seria mais prático a requerida liquidar a totalidade da mensalidade diretamente ao credor, em vez de lhe entregar uma quantia a título de contrapartida pela utilização do imóvel e ter assim o requerente de pagar a sua parte na mensalidade do crédito.
Defende, por último, que tendo cessado o referido crédito em 24.05.2021, por integral liquidação da quantia em dívida, e mantendo-se a requerida a residir no referido imóvel, deverá a mesma passar a pagar ao requerente, por conta da sua utilização o valor de € 200,00 mensais, pois tendo a mesma deixado de pagar a referida mensalidade, isso acarreta um prejuízo ao requerente, na medida em que beneficiava diretamente do daquele pagamento.
Citada, veio a requerida deduzir oposição alegando, em síntese, que aquando da celebração do acordo de atribuição da utilização da casa de morada de família as partes acordaram, como contrapartida pela sua utilização, no pagamento a seu cargo da prestação do crédito à habitação, do seguro relativo ao imóvel e na quota do condomínio, nada mais acordando acaso cessasse alguma das referidas obrigações, o que antecipadamente sabiam vir a ocorrer com o aludido mútuo. Acaso assim não se entenda, impugna a requerida o valor do montante peticionado pelo requerente como contrapartida pelo uso daquela que foi a casa de morada de família.
Realizada tentativa de conciliação, não foi possível a obtenção de acordo entre as partes e, notificadas para o efeito, apenas a requerida veio apresentar alegações e apresentar prova, reiterando o teor da oposição apresentada.
Nos termos do artigo 8º do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13.10, o processo foi remetido para o Tribunal, tendo sido admitidos os meios de prova apresentados.
Realizada a audiência de julgamento, com inquirição da única testemunha arrolada pela requerida, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nesta conformidade, tudo visto e ponderado, decide-se julgar o presente incidente de alteração do regime de utilização da casa de morada de família homologado por decisão da Conservatória de Registo Civil totalmente improcedente, por não provado, e, consequentemente, absolver BB do pedido formulado por AA.
Custas do incidente a cargo do Requerido, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.».
Inconformado, o requerente apelou do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«Quanto à impugnação da matéria de facto:
1. O facto único da matéria de facto julgada não provada foi incorrectamente julgado.
2. Aquando da celebração do acordo de atribuição da casa de morada de família, a Recorrida assumiu todas as despesas inerentes à casa de morada de família (facto considerado provado em 3).
3. É pratica usual, corrente e comum nas situações em que existe um crédito à habitação ligado à casa de morada de família, que o ex-cônjuge a quem a mesma fique atribuída assuma tais pagamentos, considerando que se torna o único a gozar e fruir do referido bem.
4. O que importa uma compensação da obrigação de pagamento de prestação pecuniária ao ex-cônjuge que sai da casa, por essa mesma fruição.
5. Se assim não fosse, de acordo com as regras de vida e de experiência comum, o ex-cônjuge que fica na casa, jamais assumiria altruisticamente a obrigação de pagar uma dívida que sabe não ser inteiramente da sua responsabilidade.
6. Daí que, naturalmente, por razões de ordem prática, se estipule no acordo de atribuição da casa de morada de família que o ex-cônjuge a quem esta fique atribuída, pague as prestações bancárias.
7. O tribunal a quo acaba por reconhecer que a assunção do pagamento da prestação e demais encargos pela Recorrida é contrapartida devida pela Recorrida pela utilização exclusiva da casa de morada de família.
8. Sendo o pagamento tido como contrapartida, é porque se reconheceu no acordo de atribuição de casa de morada de família que essa utilização exclusiva mereceu ressarcimento à parte que deixou a casa (conforme certidão junto aos autos).
9. Considerando a matéria dada como provada, o teor do acordo de atribuição da casa de morada de família e as regras de vida e experiencia comum nesta matéria, deveria ter sido considerado como provado que “Aquando da celebração do acordo quanto à atribuição da utilização da casa de morada de família, as partes acordaram tacitamente – por se revelar o procedimento mais prático – que a Ré pagaria directamente à Caixa Geral de Depósitos, SA a totalidade da mensalidade do crédito à habitação aí contraído por ambos, em compensação e ao invés de entregar metade de tal montante ao Autor, como contrapartida devida pela sua utilização, e este liquidar a sua parte naquele crédito.”
Quanto à impugnação da matéria de direito
10. Ao assumir as prestações bancárias e demais encargos no acordo, a Recorrida sabia e reconheceu, pelo menos tacitamente, que o Recorrente tem direito a uma contrapartida pelo facto de não poder dispor da casa, sendo compreensível ao destinatário normal, colocado na posição do real destinatário, que essa contraprestação é compensada no referido acordo através da assunção pela Recorrida da parte da obrigação do Recorrente na liquidação do empréstimo.
11. O pagamento integral posterior do empréstimo configura uma alteração superveniente das circunstâncias suficiente para alterar o acordo de atribuição da casa de morada de família.
12. Nos termos do disposto no artigo 1793º, n.º 1 do Código Civil “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.”;
13. Nos termos do artigo 1793º, n.º 3 do Código Civil “O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.”;
14. Nos termos do artigo 987º do Código de Processo Civil, “Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.”;
15. Verificado que está que as partes quiseram ressarcir o Recorrente pela perda de fruição e gozo da casa de morada de família;
16. E que o Recorrente deixou de ter esse benefício com a liquidação integral superveniente do empréstimo junto da entidade bancária;
17. O entendimento acertado deve ser o de que, na sequência do que já vinha acontecendo, reconhecer ao Recorrente o direito a receber directamente essa prestação da Recorrida até à partilha do bem, que é a casa de morada de família.
18. Ao não dar procedência à acção, o tribunal a quo violou o supra referido normativo legal e não tomou a resolução adequada ao caso concreto, com manifesto prejuízo para o Recorrente, que perdeu o benefício que lhe era concedido pela privação da fruição do imóvel.
19. Deveria o tribunal a quo ter determinado a alteração do acordo de atribuição da casa de morada de família, fixando uma prestação a liquidar pela Recorrida como contrapartida pela uso e fruição exclusivo, agora pago directamente ao Recorrente, no valor mensal de €200,00 (duzentos euros) ou, pelo menos, no valor equivalente a metade da prestação bancária devida à data do acordo, ou seja, €134,22 (cento e trinta e quatro euros e vinte e dois cêntimos).
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V/Ex.as doutamente suprirão, devem o presente recurso ser recebido e julgado procedente e, consequentemente, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que declare a total procedência dos autos de alteração de atribuição da casa de morada de família, conforme peticionado, fazendo-se assim a acostumada Justiça!»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consiste em saber se deve ser alterado o acordo de atribuição da utilização da casa de morada de família, condenando-se a requerida a pagar ao requerente a quantia de € 200,00 mensais a título de contrapartida pela utilização da referida habitação, sabendo-se que se encontra já liquidado o contrato de mútuo hipotecário cuja prestação ficou a cargo da Ré como contrapartida pela referida utilização.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Por decisão proferida e transitada em julgado a 24.09.2019, no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 1759/2019 que correu termos na Conservatória de Registo Civil ... foi decretado o divórcio e declarado dissolvido o casamento celebrado entre AA e BB.
2. Tal decisão homologou, entre o mais, o acordo de atribuição da casa de morada de família, nos termos do qual os cônjuges acordaram que a casa de morada de família sita na Rua ..., Bairro ..., em ..., ficaria atribuída à cônjuge mulher, BB.
3. Nos termos do referido acordo os cônjuges estabeleceram que as despesas inerentes ao imóvel, nomeadamente “prestação bancária, seguro de habitação, condomínio, eletricidade, água e gás ou qualquer outra que se mostre necessária” seriam da inteira responsabilidade do cônjuge mulher.
4. Considerou tal decisão, igualmente, válida a relação dos bens e passivo comum do casal apresentada e onde as partes relacionaram com passivo sob a verba n.º 1 uma dívida relativa a um crédito à habitação contraído junto da Caixa Geral de Depósitos, SA, à data no montante de €5.486,50 (cinco mil, quatrocentos e oitenta e seis euros e cinquenta cêntimos) e sob a verba n.º 2 uma dívida de condomínio respeitante ao período compreendido entre Dezembro de 2017 e Dezembro de 2018 no valor de €240,00 (duzentos e quarenta euros).
5. O Crédito à habitação, sem garantia hipotecária, contratado a 21.05.1996 junto da Caixa Geral de Depósitos, SA pelo montante de €49.879,79 e pelo prazo de 300 meses, foi integralmente liquidado a 24.05.2021 mediante a cobrança na Conta Débito ...00 da quantia de € 268,43, que inclui capital, juros, comissão de processamento e imposto de selo.

E foi considerado não provado:
«A. Que, aquando da celebração do acordo quanto à atribuição da utilização da casa de morada de família, as partes tenham acordado – por se revelar o procedimento mais prático – que a Ré pagaria diretamente à Caixa Geral de Depósitos, SA a totalidade da mensalidade do crédito à habitação aí contraído por ambos, ao invés de entregar metade de tal montante ao Autor, como contrapartida devida pela sua utilização, e este liquidar a sua parte naquele crédito.»

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, os quais consistiram exclusivamente na prova documental existente.
Com efeito, escreveu-se na sentença recorrida:
«No que concerne à factualidade inserta nos pontos 1) a 4) o Tribunal considerou o teor da decisão proferida no processo de divórcio por mútuo consentimento n.º 1759/2019 que correu termos na Conservatória de Registo Civil ... e que decretou o divórcio entre os intervenientes processuais e homologou os acordos aí alcançados, entre os quais o da atribuição da casa de morada de família, e considerou válida a relação de bens e passivo comum apresentada (ref. 3287181).
Já a prova do referido no ponto 5) resultou não só da sua admissão por parte da Ré, mas também do teor do extracto global emitido pela Caixa Geral de Depósitos a 31.05.2021 junto aos autos com o requerimento inicial.»
O recorrente não questiona a factualidade dada como provada, impugnando apenas o único facto dado como não provado, ou seja, «que, aquando da celebração do acordo quanto à atribuição da utilização da casa de morada de família, as partes tenham acordado – por se revelar o procedimento mais prático – que a Ré pagaria diretamente à Caixa Geral de Depósitos, SA a totalidade da mensalidade do crédito à habitação aí contraído por ambos, ao invés de entregar metade de tal montante ao Autor, como contrapartida devida pela sua utilização, e este liquidar a sua parte naquele crédito».
O Tribunal a quo fundamento a decisão de dar como não provado este facto do seguinte modo:
«A matéria de facto não provada resultou da ausência de suporte probatório que a sustentasse, senão vejamos.
A única testemunha ouvida em audiência de julgamento, CC, não revelou ter conhecimento de causa sobre a mesma. Por outro lado, a referida factualidade não se extrai, mediante recurso às regras da vida e da experiência comum, dos termos do acordo alcançado quanto à atribuição da casa de morada de família no processo de divórcio por mútuo consentimento, na medida em que nada se fez constar quanto ao motivo pelo qual se acordou nos precisos termos ali constantes, nem se consignou diferente forma de pagamento do valor, que se entendia corresponder à contrapartida devida pela utilização exclusiva da casa por parte da Ré, acaso o crédito à habitação contraído por ambos os cônjuges fosse liquidado, sendo que da relação do passivo resulta expressamente mencionado o valor que à data se encontrava em dívida por conta do referido crédito bancário e que não chegava a totalizar €5.500,00.»
Defende o recorrente que ao assumir as prestações bancárias e demais encargos no acordo de atribuição da casa de morada de família, «a Recorrida sabia e reconheceu, pelo menos tacitamente, que o Recorrente tem direito a uma contrapartida pelo facto de não poder dispor da casa, sendo compreensível ao destinatário normal, colocado na posição do real destinatário, que essa contraprestação é compensada no referido acordo através da assunção pela Recorrida da parte da obrigação do Recorrente na liquidação do empréstimo», acrescentando que «[o] pagamento integral posterior do empréstimo configura uma alteração superveniente das circunstâncias suficiente para alterar o acordo de atribuição da casa de morada de família» [vd. conclusões 10 e 11].
Sem adiantar conceitos que serão desenvolvidos infra na apreciação da questão de direito submetida à apreciação deste Tribunal da Relação, temos como correta a decisão do Tribunal a quo de dar como não provada a matéria de facto em causa.
Com efeito, arredada a possibilidade dessa matéria ser dada como provada com base no depoimento da única testemunha inquirida, a qual «não revelou ter conhecimento de causa sobre a mesma», o que não é questionado pelo recorrente, resta-nos apenas a prova documental, designadamente o acordo de atribuição da causa de morada de família.
Ora, como bem se refere na sentença recorrida, «a referida factualidade não se extrai, mediante recurso às regras da vida e da experiência comum, dos termos do acordo alcançado quanto à atribuição da casa de morada de família no processo de divórcio por mútuo consentimento, na medida em que nada se fez constar quanto ao motivo pelo qual se acordou nos precisos termos ali constantes, nem se consignou diferente forma de pagamento do valor, que se entendia corresponder à contrapartida devida pela utilização exclusiva da casa por parte da Ré, acaso o crédito à habitação contraído por ambos os cônjuges fosse liquidado, (…).»
E porque assim é, aliado ao facto de o recorrente não ter logrado efetuar qualquer prova sobre a factualidade em causa, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo ao dar como não provada a matéria de facto impugnada, a qual, por isso, permanece incólume.

Da alteração acordo de atribuição da causa de morada de família por alteração superveniente das circunstâncias
Cumpre, agora, analisar se estão reunidos os pressupostos para alteração da atribuição da casa de morada de família efetuada por acordo homologado por decisão transitada em julgado a 24.09.2019, no processo de divórcio por mútuo consentimento que correu termos na Conservatória de Registo Civil ..., que decretou o divórcio e declarou dissolvido o casamento celebrado entre o requerente e a requerida.
Escreveu-se no acórdão da Relação de Guimarães de 17.09.2020[1]:
«O critério geral para atribuição da casa de morada da família na sequência de ação de divórcio não pode ser outro senão o de que deve ser atribuído ao ex-cônjuge que mais precise dela, pois o objetivo da lei é proteger o ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio quanto à estabilidade da habitação familiar. A necessidade da casa será, assim, o fator principal a atender, devendo o tribunal ter em conta, tanto a situação patrimonial dos cônjuges, como o interesse dos filhos, para além de outras razões atendíveis como, a idade e o estado de saúde dos ex-cônjuges, a localização da casa, o facto de algum deles dispor de outra casa em que possa viver, etc.
Quando, em face destes elementos, se possa concluir que a necessidade ou premência da necessidade de um dos ex-cônjuges é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal atribuir o direito ao arrendamento da casa de morada da família àquele que mais precise dela.»
Todavia, a atribuição da casa de morada da família é um incidente de jurisdição voluntária, podendo as suas resoluções ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, face ao que dispõe o artigo 1793º, nº 3, do Código Civil[2], resultando do disposto nos artigos 988º e 987º do CPC a possibilidade de se alterar o regime, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adotando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna.
Assim, a nova resolução do tribunal deverá ter em conta a existência ou conhecimento superveniente de circunstâncias que importem um juízo diverso do que foi anteriormente realizado pelas partes ou pelo tribunal no que diz respeito ao uso da casa de morada de família, «sem o que, em vez de estarmos perante uma nova questão, estaríamos perante uma reapreciação extemporânea, desde logo em primeira instância, de uma decisão anteriormente transitada nos termos dos arts. 619º e 628º, do Código de Processo Civil (ex vi, do seu art. 549º, nº 1)»[3].
Não está aqui em causa reapreciar a bondade da solução anterior, mas sim indagar se houve alteração superveniente das circunstâncias que justifiquem a alteração do que então foi acordado.
De acordo com Salter Cid[4], para que ocorra tal alteração é necessário:
«a) Que se tenha produzido uma alteração no conjunto de circunstâncias ou de representações consideradas ao tempo da adopção das medidas, o mesmo é dizer, uma alteração ou transformação do “cenário” contemplado pelos cônjuges ou pelo juiz na convenção, aprovação ou determinação das medidas cuja modificação se postula. (...);
b) Que a alteração seja substancial, quer dizer, importante ou fundamental em relação às circunstâncias contempladas na determinação das medidas judiciais ou acordadas, ainda que em si mesma ou isoladamente considerada a novidade não resulte tão extraordinária ou transcendental. (...);
c) Que a alteração ou mudança evidencie sinais de permanência que permitam distingui-la de uma modificação meramente conjuntural ou transitória das circunstâncias determinantes das medidas em questão e considerá-la, em princípio, como definitiva. (...);
d) E, finalmente, que a alteração ou variação afecte as circunstâncias que foram tidas em conta pelas partes ou pelo juiz na adopção das medidas e influíram essencial e decisivamente no seu conteúdo, constituindo pressuposto fundamental da sua determinação. (...).»
Feitas estas considerações generalistas, foquemo-nos no caso concreto.
Não está em causa alterar a pessoa a quem a casa de morada de família deve ser atribuída, mas tão só alterar a contrapartida fixada pela sua utilização, com fundamento numa alteração subsequente das circunstâncias, decorrente da integral liquidação do empréstimo cuja mensalidade ficou a cargo da requerida.
Antes de mais, diremos que, à semelhança da sentença recorrida, entendemos que estando apenas em causa a alteração da contrapartida devida pela utilização da casa de morada de família, naquilo que se afigura ser o entendimento jurisprudencial maioritário[5], tal alteração revela-se possível quando essa contrapartida tenha sido inicialmente fixada, como é o caso.
Não suscita dúvidas que tendo ocorrido a integral liquidação do empréstimo à habitação contraído junto da Caixa Geral de Depósitos em 24.05.2021, cujo pagamento de mensalidade foi assumido pela ré como contrapartida devida pela utilização daquela que foi a casa de morada de família do ex-casal, estamos perante uma alteração superveniente das circunstâncias.
É certo, como se aduz na sentença recorrida, que a decisão que decretou o divórcio entre requerente e requerida e homologou o acordo quanto à atribuição da casa de morada de família, «constitui um verdadeiro ato jurídico a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos – pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de uma sentença (artigo 295.º do CC)».
A interpretação desse acordo implica, assim, analisar todo o conjunto de direitos e deveres estabelecidos entre as partes, por um lado, e atender a todos os elementos que, coadjuvando a declaração de vontade das partes, auxiliem a descoberta da sua vontade real, por outro lado.
Deve, pois, ter-se em conta o critério previsto no artigo 236º, nº 1 e 2, do CC, que consagra a teoria da impressão do destinatário: o sentido das declarações negociais será aquele que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Tratando-se de negócios formais, a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do CC).
Como elementos essenciais, haverá a considerar na interpretação «a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e costumes por ela recebidos»[6] .
In casu, a interpretação que se extrai do acordo firmado entre as partes quanto à atribuição da casa de morada de família – bem comum do casal -, é a de que as partes quiseram subordinar a utilização da mesma pela requerida a uma contrapartida, que no momento da celebração do acordo, fizeram equivaler à mensalidade do contrato de crédito existente, do seguro do imóvel e do seu condomínio.
Esse acordo deve ser interpretado, à luz do princípio da impressão do destinatário, como prevendo as partes a possibilidade de que, uma vez pago o empréstimo, a requerida passe a pagar ao requerente uma contrapartida pelo uso da casa de morada de família, por ser essa a interpretação que deduziria um declaratário normal, colocado na posição do requerente e da requerida, não sendo razoável conceber que esta continue a utilizar a casa sem qualquer contrapartida, tratando-se, ademais, de um bem comum e inexistindo outra razão que o justifique.
Conclui-se, assim, ao invés do decidido, que a liquidação do empréstimo bancário constitui, por si só, motivo atendível que justifica uma alteração da contrapartida devida pela utilização exclusiva da casa de morada de família pela recorrida até à partilha do bem comum do casal.
Relativamente à contrapartida a pagar pela requerida, diz o recorrente que devia ter sido fixada «uma prestação a liquidar pela Recorrida como contrapartida pela uso e fruição exclusivo, agora pago diretamente ao Recorrente, no valor mensal de € 200,00 (duzentos euros) ou, pelo menos, no valor equivalente a metade da prestação bancária devida à data do acordo, ou seja, € 134,22 (cento e trinta e quatro euros e vinte e dois cêntimos)».
Relativamente ao montante de € 200,00 não foi feita qualquer prova que a ponte nesse sentido, nomeadamente por se tratar do equivalente ao valor de mercado, nem tal seria razoável, considerando que as partes quiseram limitar a metade do valor da prestação a contrapartida a pagar pela requerida, pelo que deve ser o valor de € 134,22 [€ 268,43: 2] o montante da contrapartida a pagar pela requerida.
Por conseguinte, o recurso merece provimento.
Vencida, a recorrida suportaria as respetivas custas, de acordo com o princípio da causalidade vertido nos artigos 527º, nºs 1 e 2, e 529º, nº 1, do CPC, as quais, porém, não lhe são tributadas por beneficiar de apoio judiciário.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, condenando-se a requerida a pagar ao requerente a quantia de € 134,22 pela contrapartida do uso da casa de morada de família, até à efetivação da partilha.
Custas nos termos sobreditos.
*
Évora, 2 de março de 2023
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Francisco Xavier (2º adjunto)

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[1] Proc. 114/14.0TCGMR-A.G1, in www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, inter alia, os acórdãos da Relação do Porto de 25.02.2013, proc. , e de 22.05.2017, proc. , disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] Acórdão da Relação de Guimarães de 17.12.2018, proc. nº 1163/13.0TBPTL-G.G2, in www.dgsi.pt.
[4] A Protecção da Casa de Morada da Família no Direito Português, pp. 314-316, citação extraída do acórdão da Relação do Porto, de 22.05.2017, proc. 395/12.3TBVLC-I.P1, in www.dgsi.pt.
[5] No que se julga ser o entendimento jurisprudencial maioritário [vd. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.2016, proc. 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, e acórdão da Relação de Guimarães 28.09.2017, proc. 1163/13.0TBPTL-G.G1, disponíveis in www.dgsi.pt].
[6] Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 3ª ed., p. 416. Ver também E. Santos Júnior, Sobre a Teoria da Interpretação dos Negócios Jurídicos, pp.146 e ss..