Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3340/22.4T8FAR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FILIAÇÃO BIOLÓGICA
RETROACTIVIDADE DA LEI
DOAÇÃO
NULIDADE
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
HERANÇA
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - A natureza da exigência legal prevista na alínea b) do nº1 do artigo 640º do CPC, que tem por finalidade impedir impugnações carecidas de fundamento probatório objetivo, impõe uma indicação precisa dos meios de prova que deveriam levar à pretensa modificação dos factos concretamente impugnados.
II – Não cumpre tal exigência o recorrente que se limita a afirmar que determinados pontos da matéria de facto foram mal julgados e que por isso devem constar do elenco dos factos dados como não provados na sentença recorrida.
III - O estabelecimento da filiação tem eficácia nos termos do disposto no artigo 1797º, nº 2, do Código Civil.
IV - A retroação dos efeitos da filiação significa que todo o conjunto de consequências jurídicas que são previstas por várias normas - e que não se produziram antes - produzem-se agora como se a filiação tivesse sido estabelecida desde o nascimento.
V - A escritura pública a que se alude no ponto 8 dos factos provados, não consubstancia nenhum contrato de partilha em vida, mas antes mera doação do 2º réu ao 1º réu, a qual foi feita, aliás, assumindo o 2º réu ter como único herdeiro o 1º réu, pelo que não tem aplicação ao caso o disposto no nº 2 do artigo 2029º do CC.
VI – O doador é livre de doar o quinhão que lhe compete, mas não o quinhão de outros herdeiros, in casu o acervo hereditário da autora, uma vez que ao falecer o filho do doador, a parte da herança deste último na herança aberta por óbito de sua mãe, caberia à autora, sua única filha.
VII – Tal doação é nula e não inexistente.
VIII - É admissível a cumulação dos pedidos típicos da petição de herança com o pedido de cancelamento/retificação dos registos relativos à aquisição pelo 1º réu dos bens peticionados.
(Sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Integral:





Proc. nº 3340/22.4T8FAR.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e BB pedindo que seja:
a) Reconhecida à Autora a sua qualidade sucessória como herdeira de CC;
b) Reconhecido que os prédios identificados na clausula 9º e 10º da presente petição inicial fazem parte da herança aberta por óbito de CC;
c) Declarada a nulidade da escritura de doação realizada 26.04.2009, no Cartório Notarial ...;
d) O 1º Réu condenado a restituir à herança os aludidos prédios em 9º e 10º da petição inicial.
Alega, em síntese, que na sequência de ter sido reconhecida filha de CC já depois do óbito deste, deverão os réus, seu tio e avô paternos, restituir os bens à herança deixada por seu pai, tendo já ocorrido uma doação do seu avô ao seu tio.
Os réus contestaram, impugnado a legitimidade da autora, entendendo que o reconhecimento da paternidade não tem efeitos retroativos, devendo ser absolvidos dos pedidos formulados, sustentando ainda ser o 2º réu parte ilegítima.
A Autora respondeu, concluindo pela improcedência das exceções invocadas, concluindo como na petição inicial.
Teve lugar a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que fixou o valor da ação, considerou o 2º réu parte legítima e julgou verificados todos os demais pressupostos processuais, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo;
«Em face do exposto, julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, decide-se:
a) Declarar a Autora AA herdeira legítima de CC, seu pai, sendo a sua herança correspondente à totalidade da herança aberta por óbito da mesma;
b) Declarar que a herança aberta por óbito de CC é composta pelo quinhão hereditário da herança aberta por óbito de DD, a qual é constituído pelo direito indiviso sobre os bens referidos em 9) dos factos provados;
c) Declarar inexistente e de nenhum efeito, na escritura pública de doação de meação e de quinhões hereditários outorgada em 26 de abril de 2019, no Cartório Notarial ..., a doação do quinhão hereditário da herança aberta por óbito de CC efetuada pelo Réu BB ao Réu BB;
d) Determinar que se proceda à retificação dos registos sobre os bens que compõem o quinhão hereditário em conformidade com o decidido;
e) Absolver os Réus do demais peticionado.
Registe e notifique, inclusivamente as partes.
*
Custas a cargo da Autora e dos Réus, na proporção dos respetivos decaimentos, que fixam, respetivamente, em 10% e 90%, nos termos do disposto no artigo 527º, nos 1 e 2 do Código de Processo Civil.
*
Comunique às Conservatórias competentes, com vista a que a aquisição da Autora dos direitos indivisos sobre os bens sujeitos a registo seja incluída no registo, na qualidade de herdeira de CC.
*
Comunique ao Cartório Notarial onde foi celebrada a escritura de doação de meação e de quinhões hereditários referida em 7) dos factos provados, que foi declarada inexistente e de nenhum efeito a doação do quinhão hereditário da herança aberta por óbito de CC feito pelo Réu BB ao Réu BB (não toda a escritura).»
Inconformado, o réu BB (2º réu) apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«I. O presente recurso tem como objecto toda a matéria da Sentença recorrida que indevidamente determinou:
II. Sempre com a devida vénia por entendimento diverso, não pode o recorrente, conformar-se com o facto de o Tribunal “a quo”, em última ratio, não ter decidido pelo n.º 2 do art.º 2029.º do CC, legislação que deveria ter sido aplicada, em que só deveria a recorrida exigir que lhe seja composta em dinheiro a parte correspondente do referido quinhão hereditário que tem direito por óbito do seu pai. (nosso sublinhado e negrito)
III. E, inevitavelmente, não pode nem deve anular-se a doação 26 de abril de 2019, que quando muito, se declare inexistente e de nenhum efeito, na escritura pública de doação de meação e de quinhões hereditários outorgada em 26 de abril de 2019, no Cartório Notarial ..., mas tão somente a doação do quinhão hereditário da herança aberta por óbito de CC efetuada pelo Réu BB ao Réu BB;
IV. Por outro lado, é do entendimento do recorrente, que foi descurado a vontade dos “de cujus” nos momentos dos seus óbitos, (com a ressalva de só posteriormente ter sido reconhecida a paternidade (pai da recorrida que nunca a reconheceu em vida como filha e muito menos como herdeira) e sem um concreto conhecimento (avó da recorrida) da existência desta), na douta sentença recorrida.
V. E, por conseguinte, não pode o ora recorrente conformar-se, com a decisão proferida pelo Tribunal "a quo", uma vez que, não se respeita a vontade dos que já partiram, nem dos que podiam livremente dispor dos seus bens; e não tendo ocorrido, quer na abertura da sucessão aos herdeiros por óbito da avó da recorrida quer na abertura da sucessão aos herdeiros por óbito do pai da recorrida, naqueles concretos momentos, repúdio ou aceitação, expressa ou tácita, das heranças, pela agora suposta herdeira sucessível, a aqui recorrida;
VI. Não basta pois evocar a douta sentença recorrida, que o estabelecimento da filiação tem eficácia nos termos do disposto no artigo 1797º, n.º 2 do Código Civil.
E que assim, esse reconhecimento retroage ao momento do nascimento da Autora, sendo a mesma herdeira de seu pai relativamente a todos os bens que compunham o património à data do seu óbito.
VII. Pois que não é essa a ilação que se retira do disposto no n.º 2 do art.º 1796.º do CC, quanto ao Estabelecimento da filiação, porquanto o que ali dispõe é que (…)
” A paternidade presume-se em relação ao marido da mãe e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se pelo reconhecimento.” (…) não se afere qual o momento para se aplicar tal reconhecimento, apesar de se admitir que o estabelecimento da filiação tem, todavia, eficácia retroativa.
VIII. Mas, sim a aceitação por todos os legítimos sucessíveis das heranças, volta-se a repetir, naqueles concretos momentos, as heranças, ademais com constituição de doações entre si, encontram-se decididamente findos os devidos formalismos sucessórios e não em estado de jacência, ou seja, encontram-se fechados e já definitivamente aceites por quem à data tinha legitimidade para o efeito, de aceitar as referidas heranças.
IX. Não olvidando que é com a “Partilha” da herança, art.º 2101.º do CC – tipicamente, e verdadeiramente que termina o fenómeno sucessório.
X. Resulta ainda evidente que no momento em que foram outorgadas as escrituras de doação, como actos/negócios jurídicos visados, e, ademais, foram todos os referidos actos queridos e justificados pela dedicação prestada pelo donatário à falecida DD, logo, pretendeu realmente a falecida em vida transferir a propriedade do seu património a favor do seu filho.
XI. Ora, como pode vir a recorrida peticionar que seja declarada a nulidade da escritura de doação realizada 26.04.2019, no Cartório Notarial ..., inexistindo qualquer fundamento legal para o efeito.
XII. O doador, pai do donatário, era absolutamente livre de determinar, como muito bem lhe aprouvesse, o destino dos bens de que era legítimo proprietário, encaminhando-os para o filho.
XIII. Não é pois verdade, pelo que desde logo se impugna, que direito da recorrida sobre tais bens deva ser restituído à herança, nos moldes peticionados pela recorrida, apesar desta se considerar herdeira do quinhão hereditário que adveio ao pai, da sua avó que constitui a herança de seu pai.
XIV. Aliás, é o próprio Tribunal “a quo” que refere, que relativamente à sua meação e quinhão hereditário da herança aberto por óbito de DD, o Recorrente BB pode dispor da mesma como entender, sem prejuízo de eventuais ofensas da legítima da herança da Recorrida;
XV. Não podendo o recorrente concordar e conformar-se com a finalização do ali infirmado (…) “ de que tal só após o seu óbito é que poderá ser apreciado, nos termos do disposto no artigo 2104º do Código Civil,” (…) pois que sempre o mesmo poderá dispor em vida dos seus bens, cfr. dispõe o n.º 1 do art.º 2029.º do CC, legislação que deveria ter sido aplicada, indo essa concreta matéria impugnada por no nosso entendimento se tratar de matéria controversa e mal interpretada pelo Tribunal “a quo”.
XVI. Primeiro, porque a recorrida, naquele concreto momento em que se abriu a sucessão, não era legitima herdeira da então “de cujus”, segundo porque na linha sucessória tão pouco era herdeira, nem se podia decifrar-se que o viria a ser, e que só sucederia com o óbito do seu pai;
XVII. Mas que, não obstante, não nos podemos olvidar, o reconhecimento da paternidade não tinha sequer sucedido, sendo que, a herança existente, sempre transitaria por aceitação tácita para os sucessíveis que ora se apresentaram.
Destarte, não se conforma o recorrente com a sentença recorrida quando igualmente vem inferir que: (…) “O mesmo não sucede com o quinhão hereditário da herança aberta por óbito de CC.” (…)
XVIII. E ainda, (…) “Desde logo, é contraditório sem o mesmo dispor de um quinhão hereditário da herança quando refere na própria escritura que o filho não tem descendentes nem cônjuge sobrevivo e que é o único herdeiro, pelo que o que poderia ceder era a herança como um todo e não um quinhão hereditário que nem se descortina o que compõe.” (..)
XIX. É deveras incongruente alegar ser contraditório, o mesmo não dispor de um quinhão hereditário da herança quando é consabido que com o óbito da cônjuge do recorrente, à partida existe desde logo esse quinhão hereditário da herança a favor do posteriormente “de cujus” seu filho, e que efetivamente este nessa concreta data, não deixou nem descendentes nem cônjuge sobrevivo, e obviamente sendo seu único herdeiro o sucessível ascendente.
XX. Que a referida doação é feita por sua livre e espontânea vontade, de todos os seus bens que pode dispor integralmente em vida, independentemente de ceder como um todo o que na nossa perspetiva, tão pouco faria sentido, mas sim da forma que foi concebida a doação, porquanto assim sempre seria possível valorar e descortinar de como era composto esse concreto quinhão hereditário, ademais tendo o recorrente à data um único herdeiro o filho que única e exclusivamente beneficiou da herança que lhe era devida.
XXI. Igualmente, se tem essa matéria por impugnada, sempre com a devida vénia por entendimento diverso, em tudo por se tratar de factos incorretamente julgados e consequentemente mal interpretados, dando azo a decisões que prejudicam gravemente o recorrente, pelo que se requer a V. Exas. seja a sentença revista, neste concreto segmento.
XXII. Logo, e seguindo a mesma linha de pensamento, pelo facto da recorrida AA ter sido declarada filha biológica de CC, facto que se viria a constatar só quando foi reconhecida como legitima herdeira a partir da sentença transitada em julgado em 06-05-2021, e independentemente de o estabelecimento da filiação ter, todavia, eficácia retroativa, tão pouco seria causa para anular qualquer escritura de doação uma vez que segundo dispõe o n.º 2 do art.º 2029.º do CC, legislação que deveria ter sido aplicada, só deveria esta exigir que lhe seja composta em dinheiro a parte correspondente, atento o preceito e da forma como ele versa: “ Se sobrevier ou se tornar conhecido outro presumido herdeiro legitimário, pode este exigir que lhe seja composta em dinheiro a parte correspondente.”
XXIII. Ou seja, atribuindo um valor ao quinhão hereditário sempre a recorrida é compensada pelo direito a que se arroga, sem ser necessário socorrer-se do peticionando para a nulidade da referida doação, o que desde logo se impugna face ao objeto da referida doação, e da peticionada declaração de inexistência do sobredito quinhão hereditário e sobretudo face a tudo o acima referido e ao prescrito na nossa legislação substantiva.
XXIV. E, como tal, sempre com a devida vénia por opinião diversa, não pode nem deve vir o tribunal “a quo” decidir a inexistência da cedência a título gratuito do Réu BB o Réu BB do quinhão hereditário na herança de CC, sob o fundamento de não existir qualquer quinhão hereditário da mesma, quando a sentença recorrida refere por diversas vezes que a recorrida tem direito a herdar o referido quinhão hereditário na herança de CC seu pai.
XXV. Do mesmo modo, não é percetível nem inteligível, o constante na sentença recorrida ao evocar-se que (…) “ Por outro lado, face ao reconhecimento da Autora como filha de CC, o Réu BB deixou de ser herdeiro do filho, pelo que não podia dispor da sua herança (o que aliás o mesmo saberia, uma vez que só cede um quinhão que não existe).” (…)
XXVI. Primeiro, porque a interpretação adotada pelo Tribunal “a quo” confunde os momentos em que ocorre o reconhecimento da recorrida como filha de CC, com o facto de invalidar a disposição da herança por parte do recorrente em momento para o qual a recorrida não estava habilitada para o efeito.
XXVII. Não faz, pois sentido, a interpretação aduzida pelo Tribunal “a quo” quando menciona: sendo a mesma um todo que só pode ser atribuída a um herdeiro (o pai ou a filha, artigo 1133º do Código Civil).
XXVIII. Face ao acima exposto, tão pouco assiste razão à recorrida ao pretender ainda, que seja declarada a nulidade da escritura pública de doação feita pelo recorrente BB a BB outorgada em 26 de abril de 2019, com base na sua agora existência como herdeira legitima.
XXIX. Posto isto, e, centrando-nos no que se delineou pelo “Objeto do Litígio” visível na douta sentença recorrida, convém aflorar algo que embora implícito não está claro nas expressões utilizadas pelo Tribunal “a quo”, porquanto:
XXX. Entende o recorrente que não pode nem deve ser reconhecido o pretendido pela recorrida, que os prédios identificados na sentença recorrida, fazem parte da herança aberta por óbito de CC;
XXXI. Porquanto e em boa verdade, CC ao falecer nada tinha em seu nome, atento o facto de o pai da recorrida, CC, no momento do seu óbito, apenas deixou como património o seu quinhão na herança não partilhada aberta por óbito da sua mãe DD.
XXXII. Segundo prescreve a nossa Lei substantiva, mormente no que concerne ao disposto no n.º 1 do art.º 2029.º do Código Civil (adiante designado por CC) no que respeita à Partilha em vida, dúvidas não subsistem que:
XXXIII. (…)“ Não é havido por sucessório o contrato pelo qual alguém faz doação entre vivos, com ou sem reserva de usufruto, de todos os seus bens ou de parte deles a algum ou alguns dos presumidos herdeiros legitimários, com o consentimento dos outros, e os donatários pagam ou se obrigam a pagar a estes o valor das partes que proporcionalmente lhes tocariam nos bens doados.”(…)
XXXIV. Segundo refere a sentença recorrida, o recorrente fundamenta a sua pretensão, na qual impugna a legitimidade da Autora, entendendo que o reconhecimento da paternidade não tem “defeitos” (deve tratar-se de erro de escrita e deve querer dizer efeitos) e retroativos, devendo ser absolvido dos pedidos.
XXXV. Na realidade não é bem assim que o recorrente fundamenta a sua pretensão, ele impugna a legitimidade da recorrida essencialmente quanto à anulação da doação para que deste modo seja feita a restituição à herança dos aludidos prédios.
XXXVI. A recorrida poderá, quando muito, reclamar sim no entendimento do recorrente o disposto no n.º 2 do art.º 2029.º do CC que é exigir que lhe seja composta em dinheiro a parte correspondente ao quinhão hereditário deixado pelo pai aquando do seu óbito, por se ter conhecido outro presumido herdeiro legitimário, in casu, ela.
XXXVII. O recorrente não se conforma nem consegue vislumbrar um motivo que valide a pretensão, para que tenha sido dado como provado o concreto facto de assistir razão à recorrida em ter requerido no processo de inventário, com a cumulação do inventário, por óbito da sua avó paterna, DD falecida em .../.../2003, no estado de casada com o recorrente BB, no regime da comunhão geral de bens, tendo deixado como herdeiros o cônjuge o referido Réu BB, o seu filho CC já falecido e o seu filho e Réu BB, não aceitando os termos dessa eventual decisão nesse sentido concretamente, pois que os efeitos sucessórios não deviam retroagir dessa forma, mas sim como supra referido.
XXXVIII. Estando bem provado o facto do ponto 6) dos factos dados como provados, porquanto o Recorrente BB, no processo de inventário referido em 4), opôs-se à cumulação por considerar que à data do óbito da sua falecida esposa, a requerente não era herdeira legitima da sua avó paterna.
XXXIX. Logo, no processo de inventário referido em 4) da sentença recorrida com vista a intentar ação autónoma para reconhecimento judicial da sua qualidade sucessória, apenas se deve considerar a partilha da herança por óbito de seu pai e a restituição do equivalente ao quinhão hereditário do mesmo e não de todos os bens, que inclusive pretende que se considere os doados pelo seu avô ao seu tio, para acervo hereditário. Afinal note-se que é dado como provado no ponto 10) dos factos assentes, que o pai da recorrida, CC, no momento do seu óbito, apenas deixou como património o seu quinhão na herança não partilhada aberta por óbito da sua mãe DD.
XL. Face ao exposto e por não existir nenhuma coincidência entre os factos dados por provados em 5, 6, 7 e 8 dos factos assentes e dados por provados na douta Sentença recorrida vai tal matéria impugnada por mal julgada, devendo esses concretos factos, estarem inscritos nos factos dados como não provados na sentença recorrida. Que, sempre com a devida vénia por opinião diversa, não deveria ter sido dado como provado o constante no 8) da sentença recorrida, por efetivamente não ser verdade o ali constante.
XLI. Ora, concomitantemente não pode o recorrente, conformar-se com o facto de o Tribunal “a quo” não ter tido o discernimento de entender todos os factos evocados pelo recorrente e consequentemente ter consignado que: (…) “ Não é conhecido que o falecido CC, para além da Autora tenha deixado outro herdeiro, dado que faleceu no estado de solteiro e não lhe é conhecido outro descendente, não sendo herdeiros os ascendentes quando há descendentes” (…) Pois que à data a recorrida não era reconhecida como sucessível nem descendente e a herança tinha sido aceite pelos então herdeiros.
XLII. Entende pois o recorrente que não é admissível a cumulação dos pedidos típicos da petição de herança com o pedido de cancelamento dos registos relativos à aquisição pelo recorrente dos bens peticionados.
XLIII. Pois que é consabido que relativamente à sua meação e quinhão hereditário da herança aberto por óbito de DD, o recorrente BB pode dispor da mesma como entender, sem prejuízo de eventuais ofensas da legítima da herança da recorrida.
XLIV. Ainda que se entenda que o mesmo não sucede com o quinhão hereditário da herança aberta por óbito de CC.
XLV. Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada, no âmbito do art.º 639.º do CPC: art.º 2029.º, 2060.º 2061.º e art.º 2101.º do CC
XLVI. E aplicou-se de forma desajustada o previsto no art.º 2024º, 2030º, 2078.º, 1133.º do CC.
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado e considerado procedente e consequentemente ser revogada a sentença recorrida que decretou julgar-se procedente a inexistência da doação tal como ali decido.
E, por conseguinte desconsiderar a inexistência da doação, seja pelo direito à herança da recorrida poder ser composta em dinheiro da parte correspondente ao referido quinhão hereditário que tem direito por óbito do seu pai, seja pelo objeto que a própria doação comporta.»

A autora contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
- se assiste à autora legitimidade para peticionar a anulação da doação feita pelo 1º réu ao 2º réu, considerando que a autora só foi reconhecida como filha do seu falecido pai [filho e irmão do 2º e 1º réu, respetivamente], após o decesso deste.
- se pode cumular-se o pedido de petição da herança com o pedido de cancelamento dos registos relativos à aquisição pelo 1º réu dos bens doados.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1) No dia .../.../2016 faleceu CC, maior, no estado civil de solteiro, sem doação, testamento ou escrito de última vontade (artigo 1º da petição inicial).
2) Em 2016 deu entrada uma ação de investigação de paternidade contra CC, processo que correu termos no Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., sob o n.º 1097/16.... (artigo 2º da petição inicial).
3) No âmbito do processo n.º 1097/16.... referido em 2), no dia 16 de julho de 2020, a Autora AA foi declarada filha biológica de CC, tendo sido também condenado BB a reconhecê-la, tendo como consequência sido determinado o averbamento dos registos respeitantes à paternidade e avoenga paterna no respetivo assento de nascimento da Autora, tendo tal sentença transitada em julgado em 06-05-2021 (artigos 3º e 4º da petição inicial).
4) Encontra-se a decorrer no Juízo de competência Genérica de ..., Juiz ..., um processo de inventário sob o nº ...2..., por óbito do pai da Autora, CC (artigo 5º da petição inicial).
5) A Autora requereu no processo de inventário referido em 4) a cumulação do inventário por óbito da sua avó paterna, DD falecida em .../.../2003, no estado de casada com o Réu BB, no regime da comunhão geral de bens, tendo deixado como herdeiros o cônjuge o referido Réu BB, o seu filho CC já falecido e o seu filho e Réu BB (artigo 6º da petição inicial).
6) Notificado o cabeça de casal, o Réu BB, no processo de inventário referido em 4), o mesmo opôs-se à cumulação por considerar que à data do óbito da sua falecida esposa, a requerente não era herdeira legitima da sua avó paterna (artigo 7º da petição inicial).
7) Foi solicitado pela Autora a suspensão do processo de inventário referido em 4) com vista a intentar ação autónoma para reconhecimento judicial da sua qualidade sucessória na partilha da herança por óbito de seu pai e a restituição de todos os bens, inclusive os doados pelo seu avô ao seu tio, para acervo hereditário, o que foi deferido (artigos 13º e 14º da petição inicial).
8) Por escritura pública outorgada em 26 de abril de 2019, no Cartório Notarial ..., o Réu BB cedeu, a título gratuito, a BB, “seu único filho e presuntivo herdeiro legitimário, por conta da sua quota disponível, a meação que possui nos bens comuns do património do dissolvido casal e ainda os quinhões hereditários que lhe pertencem nas heranças indivisas aberta por óbito da sua referida mulher, DD e do seu filho CC”, compreendendo as mencionadas heranças três imóveis:
a) prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial com o artigo ...95º;
b) prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial com o artigo ...86º, com o valor patrimonial de 100.485,00€ e
c) prédio rústico sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial com o artigo ...4º Secção AS, com o valor patrimonial de € 80,76, tal como resulta de fls. 14-vº a 17, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 8º e 9º da petição inicial).
9) Da herança aberta por óbito de DD fazem parte:
i. direito indiviso sobre o prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial com o artigo ...95º e omisso na Conservatória do Registo Predial;
ii. Direito indiviso sobre o prédio urbano sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial com o artigo ...86º, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...25, inscrito a favor do Réu BB, pelas Ap. ... e ... de 05-01-2000, com o valor patrimonial de 100.485,00€;
iii. Direito indiviso sobre o prédio rústico sito na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz predial com o artigo ...4º Secção AS e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...21, inscrito a favor do Réu BB pela Ap. ... de 21-09-1987, com o valor patrimonial de 27,47€;
iv. Direito indiviso sobre o prédio urbano sito na freguesia ..., omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição n.º ...21, inscrito a favor do Réu BB, pela Ap. ... de 21-09-1987, tal como resulta de fls. 17-vº a 22, 26, 131-v, 132, 152 a 154, 157, 158, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 9º-parte, 10º e 11º da petição inicial).
10) Os prédios referidos em 9) são utlizados pelos Réus e o Réu BB fez obras de valor e conteúdo não concretamente apurado (artigo 12º da petição inicial).
11) O pai da Autora, CC, no momento do seu óbito, apenas deixou como património o seu quinhão na herança não partilhada aberta por óbito da sua mãe DD (artigo 15º da petição inicial).

Consignou-se na sentença que «[n]ão se provaram quaisquer outros factos que se não compaginam com a factualidade apurada», e ainda «que a matéria e/ou documento não selecionada dos articulados é mera repetição, conclusiva, de direito, de mera impugnação, meras suposições, não incumbe o ónus da prova da mesma a quem a alega e não se seleciona o facto na negativa ou não assume qualquer relevância para a decisão da causa».

Da impugnação da matéria de facto
Diz o recorrente, na conclusão XL, que «por não existir nenhuma coincidência entre os factos dados por provados em 5, 6, 7 e 8 dos factos assentes e dados por provados na douta Sentença recorrida vai tal matéria impugnada por mal julgada, devendo esses concretos factos, estarem inscritos nos factos dados como não provados na sentença recorrida. Que, sempre com a devida vénia por opinião diversa, não deveria ter sido dado como provado o constante no 8) da sentença recorrida, por efetivamente não ser verdade o ali constante».
Sucede que na conclusão XXXVIII afirma o recorrente: «[e]stando bem provado o facto do ponto 6) dos factos dados como provados, porquanto o Recorrente BB, no processo de inventário referido em 4), opôs-se à cumulação por considerar que à data do óbito da sua falecida esposa, a requerente não era herdeira legitima da sua avó paterna
Parece, pois, que o recorrente, pelo menos no que respeita ao ponto 6 dos factos provados, considera corretamente julgada a respetiva factualidade, nem de outra forma poderia ser, pois o facto em causa está documentalmente provado pelo “Doc. 3” junto com a petição inicial, e que não foi impugnado pelos réus.
Antes, porém, de apreciar a “impugnação” da matéria de facto do recorrente, é mister tecer algumas considerações de ordem geral sobre a matéria.
O exercício efetivo pelo Tribunal da Relação do duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, incluindo a eventual reapreciação de depoimentos gravados, prestados oralmente na audiência de discussão e julgamento, à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607º, nº 5, ex vi do artigo 663º, nº 2, do CPC, tem como contrapartida a imposição aos recorrentes de um rigoroso ónus de impugnação por forma a impedir que «a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo»[1].
Daí dispor o art.º 640º do CPC que:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
(…)».
Neste regime, é possível distinguir dois tipos de ónus, como tem vindo a entender a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[2] e está bem explícito no acórdão de 29.10.2015[3], a saber:
- «um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes» e consta do transcrito n.º 1 do art. 640º; e
- «um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes» , previsto no nº 2 do mesmo preceito.
O ónus primário refere-se à exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, conforme previsto nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do citado artigo 640º, visa fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto e tem por função delimitar o objeto do recurso.
O ónus secundário consiste na exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo, e visa possibilitar um acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.
Os requisitos formais, impostos para a admissibilidade da impugnação da decisão de facto, têm em vista, no essencial, garantir uma adequada inteligibilidade do objeto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso[4].
Escreveu-se no acórdão do STJ de 02.02.2022[5]:
«Relativamente ao ónus primário, nem sequer é possível recorrer às alegações para suprir deficiências das conclusões, uma vez que são estas que enumeram as questões a decidir e delimitam o objecto do recurso, devendo, quanto à impugnação da decisão de facto, identificar os concretos pontos de facto impugnados e a decisão pretendida sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal decisão.
Daí que, quando falte a especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, deva ser rejeitado o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, o mesmo sucedendo quanto aos restantes dois requisitos, nomeadamente a falta de indicação da decisão pretendida sobre esses mesmos factos».
O não cumprimento dos aludidos ónus acarreta a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, de acordo com o estatuído no citado art. 640º, nºs 1 e 2, do CPC, não havendo, nestes casos, lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento.
É o que resulta do disposto naquele preceito e no art. 652º, nº 1, al. a), do CPC, que limita os poderes do relator ao despacho de aperfeiçoamento «das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º», o qual não contempla a inobservância dos mencionados ónus.
Assim tem entendido a melhor doutrina[6], e assim vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça[7].
No caso dos autos, considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode afirmar-se que os recorrentes não cumpriram integralmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nºs 1 e 2, do CPC. Senão vejamos.
Tendo os recorrentes indicado os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados[8], não sofre dúvida que os mesmos cumpriram o ónus imposto na alínea a) do nº 1 do artigo 640º.
E o mesmo se diga quanto à alínea c) do mesmo preceito legal, ou seja, quanto à decisão que no entender dos recorrentes deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, ou seja, deveria a respetiva factualidade ser julgada não provada.
Já o mesmo, porém, não sucedeu quanto aos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa [alínea b), do nº 1, do referido artigo 640º].
A exigência, imposta por este normativo, de especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso.
É certo que quando o conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente sejam comuns a esses factos, a impugnação dos mesmos em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar, pelo que deve ser admitida a impugnação[9].
Mas não cumpre aquele ónus o recorrente que, nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou de gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, limitando-se a transcrever as declarações, a mencionar documentos, tomando como referência determinados tópicos que elencou[10].
Ora, in casu, nem esta última situação – já de si insuficiente – se verifica, pois quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, não diz o recorrente quais os concretos meios de prova que impunham decisão diversa quanto aos pontos 5, 7 e 8, limitando-se a afirmar «não existir nenhuma coincidência entre os factos dados por provados em 5, 6, 7 e 8 dos factos assentes e dados por provados na douta Sentença recorrida vai tal matéria impugnada por mal julgada, devendo esses concretos factos, estarem inscritos nos factos dados como não provados na sentença recorrida».
Ora, a natureza da exigência legal prevista na alínea b) do nº1 do artigo 640º do CPC (enquanto meio que dá suporte ao erro de julgamento da matéria de facto impugnada), que tem por finalidade impedir impugnações carecidas de fundamento probatório objetivo, impõe uma indicação precisa dos meios de prova que deveriam levar à pretensa modificação dos factos concretamente impugnados, pelo que não se compadece com a enunciação genérica e lacónica em termos de reescrutínio indiscriminado e global da factualidade subjacente à causa .
Em suma, a inobservância, por parte do recorrente, dos aludidos ónus determina a imediata rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita à decisão sobre tal matéria proferida pela 1ª instância.
Sem prejuízo, e porque se trata de questão de manifesta simplicidade, sempre se dirá que a matéria vertida nos pontos 5, 7 e 8, à semelhança do que se disse a respeito do ponto 6, está corretamente julgada e assenta na prova documental junta com a petição inicial, carecendo de total fundamento a impugnação do recorrente.
Com efeito, os factos constantes dos pontos 5 e 7 estão devidamente comprovados pelo já mencionado “Doc. 3” junto com a petição inicial, consubstanciado em despacho judicial, do qual resulta que está a decorrer no Juízo de competência Genérica de ..., Juiz ..., um processo de inventário sob o nº ...2..., por óbito do pai da autora.
A matéria fáctica do ponto 8 tem, por sua vez, o devido respaldo na escritura pública outorgada em 26 de abril de 2019, no Cartório Notarial ..., a qual constitui o “Doc. 4” junto com a petição inicial.
Assim, ainda que não fosse caso de rejeição da impugnação da matéria de facto – o que não se concede -, sempre teria de concluir-se que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, a qual, por isso, sempre permaneceria intacta.

Da legitimidade da autora para peticionar a anulação da doação feita pelo 2º réu ao 1º réu
Está provado que no dia .../.../2016 faleceu CC, maior, no estado civil de solteiro, sem doação, testamento ou escrito de última vontade [ponto 1 dos factos provados].
Provou-se, outrossim, que no âmbito do proc. n.º 1097/16.... do Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., por sentença proferida no dia 16 de julho de 2020, a autora AA foi declarada filha biológica de CC, tendo sido também condenado BB a reconhecê-la, tendo como consequência sido determinado o averbamento dos registos respeitantes à paternidade e avoenga paterna no respetivo assento de nascimento da autora, sendo que tal sentença transitou em julgado em 06.05.2021 [pontos 2 e 3 dos factos provados].
Daqui resulta que a autora é herdeira legítima do seu falecido pai, nos termos dos arts. 2131º a 2133º, nº 1, al. a) do Código Civil[11].
Por sua vez, dispõe o artigo 2075º, do CC:
«1 - O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título.
2 - A ação pode ser intentada a todo o tempo, sem prejuízo da aplicação das regras da usucapião relativamente a cada uma das coisas possuídas e do disposto no artigo 2059º do mesmo Código.»
A herança aberta por óbito de CC é constituída pelos bens enunciados no ponto 5 dos factos provados, tendo aquele falecido no estado de solteiro, sem que lhe seja conhecido outro descendente para além da autora, única, portanto, a integrar a primeira classe de sucessíveis (artigo 2133º, nº 1, al. a) do CC).
Assim, havendo um descendente como único herdeiro legitimo, sem testamento ou disposição e última vontade, a herança do referido CC cabe na totalidade à autora, tal como resulta dos artigos 2131º, 2133º, 2134º e 2139º, do CC.
Está apurado nos autos que a herança do dito CC é constituída apenas pelo quinhão hereditário da herança aberta por óbito da sua mãe, DD, falecida em .../.../2003, a qual não foi ainda partilhada.
O recorrente insurge-se contra o facto de o reconhecimento da paternidade da autora ter efeitos retroativos, entendendo que, uma vez que na data do óbito do seu pai, a autora ainda não tinha sido reconhecida como herdeira, não tem qualquer direito sobre a herança da sua avó.
Ora, importa salientar que o estabelecimento da filiação tem eficácia nos termos do disposto no artigo 1797º, nº 2, do CC.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[12], «[o]s filhos, quer nascidos dentro, quer fora do casamento, adquirem os direitos sucessórios que lhes competiriam, como descendentes dos seus progenitores, desde o momento do seu nascimento (com vida), qualquer que seja a data (contemporânea da abertura da herança ou posterior a ela) do estabelecimento da filiação, devido à eficácia retroactiva, sem restrições, a este atribuída pelo n.º 2 do artigo 1797.º».
Em sentido idêntico se pronunciou Guilherme de Oliveira[13]:
«Em primeiro lugar, a retroação diz respeito a efeitos jurídicos, e não a situações de facto. Na verdade, ninguém, nem uma lei, pode “fazer com que não aconteça o acontecido”, ou vice-versa. “O tempo não é reversível (...) Como foi, assim tem de ficar”.
A retroação dos efeitos da filiação significa que todo o conjunto de consequências jurídicas que são previstas por várias normas - e que não se produziram antes - produzem-se agora como se a filiação tivesse sido estabelecida desde o nascimento. (…).»
Significa isto, como bem se observou na sentença recorrida, que a autora é herdeira de seu pai relativamente a todos os bens que compunham o património à data do respetivo óbito, improcedendo todas as conclusões dos recorrentes em sentido contrário.
Não tem qualquer fundamento o vertido pelo recorrente na conclusão IV de «que foi descurado a vontade dos “de cujus” nos momentos dos seus óbitos, (com a ressalva de só posteriormente ter sido reconhecida a paternidade (pai da recorrida que nunca a reconheceu em vida como filha e muito menos como herdeira) e sem um concreto conhecimento (avó da recorrida) da existência desta».
Ora, a única pessoa que dispôs dos seus bens foi o 2º réu, ora recorrente, que se encontra vivo, não correspondendo à verdade o alegado em 6 e 7 do corpo das alegações, porquanto, tal como resulta dos pontos 6 a 10 dos factos provados da sentença que declarou a autora filha biológica de CC, este sempre soube da existência da filha e convivia com a mesma.
O doador é livre de doar o quinhão que lhe compete, mas não o quinhão de outros herdeiros, in casu o acervo hereditário da autora, uma vez que ao falecer o filho do recorrente, CC, a parte da herança deste último na herança aberta por óbito de sua mãe, DD, cabe à autora, sua única filha.
Ademais, tendo a ação de investigação de paternidade sido instaurada em 2016 e sendo a autora declarada filha biológica de CC em 16.07.2020, é lícito presumir que a doação em causa, feita em 26.04.2019, teve como único objetivo prejudicar a autora, como bem aduz a mesma na resposta ao recurso, considerando, ademais, que o recorrente foi réu naquela ação.
Defende também o recorrente a aplicação ao caso do disposto no nº 2 do art. 2029º do CC, mas sem razão, como veremos de seguida.
Escreveu-se no Acórdão do STJ de 16.04.2013[14]:
«(…), quanto ao negócio da partilha, cabe referir que a doutrina e a jurisprudência são praticamente unânimes, ao que sabemos, no que toca à sua qualificação como um contrato de doação e, portanto, como um negócio gratuito, ou seja, um negócio em que não existe nenhuma contrapartida pecuniária em relação à transmissão dos bens, já que importa sacrifícios económicos apenas para uma das uma das partes - o doador. Negócio gratuito, dito doutra forma, porque, como ensinam António Pinto Monteiro-Paulo Mota Pinto, nele se cria, e há acordo das partes quanto a isso, «uma vantagem patrimonial para um dos sujeitos sem nenhum equivalente».” [1]. Como claramente resulta do artº 2029º a partilha em vida é efectivamente uma doação, tal como definida no artº 940º, nº 1, muito embora com um regime particular, específico, que lhe advém de ser feita a presumidos herdeiros legitimários e com encargos a favor dos outros presumidos herdeiros legitimários [2]. Não há na partilha em vida, (…), atribuições patrimoniais entre os réus que devam ser tidas como prestações correspectivas fazendo dela um negócio oneroso, ou seja, um negócio em que cada uma das atribuições é, segundo a vontade das partes, a contrapartida da outra; e a existência de tornas em nada influencia a gratuitidade do negócio, já que as tornas a que haja lugar funcionam como meio de composição dos quinhões dos herdeiros legitimários, tendo por finalidade propiciar a igualação da partilha que se efectuou através da doação efectuada (neste sentido cfr. o acórdão do STJ de 8.11.07 - Pº 07B3586, acessível em www.stj.pt).»
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela[15], «[n]o fundo, não há, neste caso, senão uma doação (entre vivos) feita pelo ascendente a todos os herdeiros legitimários. Apenas sucede que alguns recebem bens, enquanto outros só percebem verdadeiras tornas – o valor da quota (em bens) que caberia a cada um deles, se os bens doados tivessem sido atribuídos a todos eles, na proporção em que a lei fixa os seus quinhões legitimários. Mas todos ficam, afora isso, em igualdade de condições, no próprio momento em que é feita a doação».
Ora, a escritura pública a que se alude no ponto 8 dos factos provados, não consubstancia nenhum contrato de partilha em vida, mas antes mera doação do 2º réu ao 1º réu, a qual foi feita, aliás, assumindo o 2º réu ter como único herdeiro o 1º réu, como decorre inequivocamente do teor da escritura.
Não tem, pois, aplicação ao caso dos autos, o disposto no nº 2 do art. 2029º do CC.
Na sentença recorrida considerou-se inexistente, não produzindo nenhum efeito, a cedência a título gratuito do 2º réu ao 1º réu do quinhão hereditário na herança de CC, pai da autora, por não existir qualquer quinhão hereditário da herança, «sendo a mesma um todo que só pode ser atribuída a um herdeiro (o pai ou a filha - artigo 1133º do Código Civil)».
Independentemente dos efeitos práticos que num ou noutro caso a qualificação do vício possa ter, neste concreto ponto específico divergimos do entendimento acolhido na sentença, entendendo que estamos perante um caso de nulidade da doação e não de inexistência da mesma.
Como explica o Prof. Mota Pinto[16], «[q]uanto à inexistência, afirma-se estarmos perante esta figura, quando nem sequer aparentemente se verifica o “corpus” de certo negócio jurídico (a materialidade correspondente à noção de tal negócio) ou, existindo embora essa aparência, a realidade não corresponde a tal noção. Pelo contrário, a valoração de um negócio, como nulo ou anulável, pressupõe, pelo menos, que o negócio exista, isto é, que se verifiquem os elementos correspondentes ao seu tipo, sem embargo de ocorrer, nesses elementos, alguma anormalidade».

Nesse mesmo sentido escreve Manuel de Andrade[17] que «a inexistência pressupõe que um negócio jurídico nem sequer chegou a ser concluído; a nulidade pressupõe que ele foi concluído, sim, mas sem os requisitos que legalmente é necessário observar na sua conclusão para que daí se sigam os efeitos jurídicos pretendidos».
In casu, o doador, ora recorrente, tinha legitimidade para fazer a doação, reunindo o negócio jurídico os requisitos essenciais para que pudesse ter a inerente eficácia jurídica, sendo que a doação adquiriria essa eficácia se a autora, parte interessada, não reagisse contra o respetivo vício.
Estamos, pois, perante um caso de nulidade e não de inexistência da doação, com a consequente nulidade da mesma na parte atinente ao quinhão hereditário da herança aberta por óbito de CC.

Da cumulação do pedido de petição da herança com o pedido de cancelamento/retificação dos registos relativos à aquisição pelo 2º réu dos bens doados
Finalmente, diz o recorrente que não é admissível a cumulação dos pedidos típicos da petição de herança com o pedido de cancelamento dos registos relativos à aquisição pelo recorrente dos bens peticionados (conclusão XLII).
Sem razão, porém.
Desde logo, não está em causa o cancelamento, mas a retificação dos registos sobre os bens que compõem o quinhão hereditário em conformidade com o decidido, o que se afigura de todo correto. Senão vejamos.
Em primeiro lugar, porque a titularidade do 1º réu sobre os direitos indivisos sobre os imóveis identificados no ponto 9 dos factos provados se consubstanciou no ato de registo de tais direitos a favor do 1º réu. Assim, a “restituição” desses direitos à autora pressupõe a retificação dos atos de “apropriação” dos mesmos por parte do 1º réu, incluindo este ato jurídico de registo.
Em segundo lugar, porque o referido registo pressupõe um direito que não existe, e é manifestamente incompatível com o direito da autora, na medida em que a consequência natural do reconhecimento do seu direito será o registo da aquisição dos referidos direitos a seu favor, o que a autora só poderá fazer se e quando tiver lugar a retificação do registo de que o 1º réu é indevidamente titular[18].
Também aqui falece razão ao recorrente.
Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas jurídicas invocadas ou quaisquer outras.
Vencido no recurso, suportará o recorrente as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
*
Évora, 25 de janeiro de 2024
Manuel Bargado (relator)
Maria José Cortes (1ª adjunta)
José António Moita (2º adjunto)
(documento com assinaturas eletrónicas)






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[1] Neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2018, 5ª edição, p. 169.
[2] Cfr., inter alia, o acórdão de 03.10.2019, proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2, disponível, como os demais adiante citados sem outra indicação, in www.dgsi.pt.
[3] Proc. 233/09.4TBVNC.G1.S1.
[4] Cfr. acórdãos do STJ de 22.03.2018, proc. 290/12.6TCFUN.L1.S1 e de 18.01.2022, proc. 243/18.0T8PFR.P1.S1
[5] Proc. 1786/17.9T8PVZ.P1.S1 que aqui seguimos de perto.
[6] Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 167.
[7] Como se pode constatar, entre outros, no citado acórdão de 02.02.2022, no qual se transcrevem os sumários de vários arestos do Supremo nesse sentido.
[8] Trata-se dos pontos 5, 7 e 8, pois quanto ao ponto 6, como vimos, os recorrentes entendem que a respetiva factualidade está correta.
[9] Acórdão do STJ de 19.05.2021, proc. 4925/17.6T80AZ.P1.S1.
[10] Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 11.04.2018, proc. 789/16.5T8VRL.G1.S1.
[11] Doravante abreviadamente designado CC.
[12] Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, p. 11.
[13] Estabelecimento da Filiação: Retroatividades e seus limites, acessível in https://www.guilhermedeoliveira.pt/resources/Estabelecimento-da-filiacao-retroatividade.pdf.
[14] Proc. 1744/05.6TBAMT.P1 S1.
[15] Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 20.
[16] In Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Ed., p. 608.
[17] In Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 1992, p. 414.
[18] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 11.12.2018, proc. 5262/17.1T8FNC.L1-7.