Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1025/10.3TTSTB.E1
Relator: JOÃO LUÍS NUNES
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ÓNUS DA PROVA
JORNALISTA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 05/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: TRIBUNAL DO TRABALHO DE SETÚBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
I - Estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdurou desde 1 de Janeiro de 1987 (ou desde 1 de Agosto de 2001) até final de Outubro de 2010, e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, seja a partir de 1 de Dezembro de 2003 (com a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003), seja a partir de 2006 (com a alteração operada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março), seja a partir de 17 de Fevereiro de 2009 (com a Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), os termos em que, na prática, se executava essa relação jurídica, à sua qualificação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24-11-1969.
II - Alegando o autor a existência de um contrato de trabalho com a ré, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, sobre ele recai o ónus de provar factos dos quais se possa concluir, com segurança, a existência do referido contrato.
III - Por isso, havendo, no mínimo, dúvidas sobre se a actividade desenvolvida pelo autor se insere, como ele alega e peticiona, num contrato de trabalho, ou num contrato de prestação de serviços, a dúvida resolve-se em desfavor do autor.
IV – Não se demonstra a existência de um contrato de trabalho entre o autor e a ré no circunstancialismo em que se apura que entre eles foi celebrado um acordo escrito que denominaram “contrato de prestação de serviços”, nos termos do qual o autor, jornalista, se obrigou a prestar colaboração à ré, na sua publicação “...”, apresentando diariamente um artigo inédito da sua autoria, sendo para esse efeito pela ré indicados os eventos desportivos que o autor tinha que acompanhar e designando-o como seu correspondente, constatando-se ainda que o autor auferia uma contrapartida certa pelo trabalho prestado, em regime de exclusividade, não recebia subsídios de férias e de Natal e a ré não efectuou descontos por conta daquele para a segurança social.

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I. Relatório
M… intentou, no Tribunal do Trabalho de Setúbal, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, contra E…, S.A., , pedindo que seja declarado que a relação que vigorou entre as partes configurava um contrato de trabalho, que seja considerado ilícito o (seu) despedimento promovido pela ré em 31 de Outubro de 2010, e esta condenada a pagar-lhe:
(i) uma indemnização de antiguidade, em substituição da reintegração, de 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade;
(ii) as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença;
(iii) a quantia de € 66.901,42, referente a diferenças salariais, subsídios de Natal e férias, compensação pelo dia de descanso semanal não gozado relativos aos anos em que durou o contrato (de 1992 a 2010), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;
(iv) a quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais;
(v) indemnização a apurar em liquidação pelos prejuízos relacionados com a não realização de descontos devidos à segurança social, quer respeitantes à entidade patronal, quer ao trabalhador.
Alegou para o efeito, em síntese, que é jornalista e em 1 de Janeiro de 1987 foi admitido no jornal desportivo “…” para prestar essa actividade; em 1992 o referido jornal foi adquirido pela ora ré e em Agosto de 2001 celebrou com a mesma um acordo escrito, denominado “contrato de prestação de serviços”: não obstante a denominação do contrato, a relação que manteve com a ré foi de trabalho subordinado, pelo que deve o contrato ser qualificado como de trabalho.
Acrescenta que a ré pôs termo ao contrato, sem precedência de processo disciplinar, verificando-se, assim, um despedimento sem justa causa, reclamando os direitos decorrentes de tal acto ilícito, bem como da vigência do contrato como de trabalho.
*
Tendo-se procedido à audiência de partes e não se tendo logrado obter o acordo das mesmas, contestou a ré, sustentando, muito em resumo, que a relação que manteve com o autor deve ser qualificada, como o foi pelas partes, como “contrato de prestação de serviços”, pugnando, por consequência, pela improcedência da acção.
*
Os autos prosseguiram os seus termos, tendo-se dispensado a realização da audiência preliminar, proferido despacho saneador stricto sensu, dispensado a selecção da matéria de facto assente, bem como da base instrutória.
Seguidamente procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, respondeu-se à matéria de facto, que não foi objecto de reclamação, após o que foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré dos pedidos.
*
Inconformado com a decisão, o autor dela interpôs recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«1. Os factos dados como provados revelam que um jornalista prestou a sua actividade durante 24 anos a uma empresa jornalística, realizando obrigatoriamente um artigo por dia, e mais do que foi convencionado por escrito, realizando reportagens e cobrindo os acontecimentos desportivos a solicitação da recorrida.
2. O recorrente recebeu sempre uma contrapartida pela sua actividade profissional de 140.000$00 em cada mês (cláusula contratual);
3. Era tratado em pé de igualdade com os demais profissionais da recorrida, definindo o jornal as tarefas de um e outros e transmitindo-as, via mail (vide documentos juntos);
4. A concretização pela recorrida da actividade a exercer pelo recorrente é uma das manifestações do poder de direcção que caracteriza o contrato de trabalho;
5. Foram provados, pelo recorrente, índices que constituem presunção legal da existência de contrato de trabalho (artigo 12º, nº 2 do Código do Trabalho)
6. E mais do que isso, foi provado que a actividade exercida estava sujeita a directrizes da recorrida.
7. Pelo que a cessação unilateral do contrato, por iniciativa da recorrida e sem invocação de justa causa, constitui despedimento ilícito, gerando o direito a indemnização;
9. (certamente por lapso, não consta o n.º 8 e respectiva conclusão) A douta sentença violou, por erro de interpretação os artigos 11º, 12º, 389º, 390º e 391º do Código do Trabalho)».
E remata as conclusões nos seguintes termos:
«Deve o recurso ser julgado procedente, revogar-se a douta sentença proferida e declarar-se que o recorrente foi despedido ilicitamente, pelo que tem direito:
A) À indemnização por antiguidade, no valor de 16.759,44€, acrescida de juros, à taxa legal em vigor, desde 19 de Outubro de 2011 até integral pagamento;
B) À quantia de 27.932,40€ a título de subsídios de Natal e férias, desde 1992 até Dezembro de 2011, com juros, às taxas legais em vigor, a partir da data de vencimento de cada prestação, até integral pagamento.
C) Às remunerações vencidas e vincendas, até Dezembro de 2011 no valor de 9.776,34€, acrescidas de juros à taxa legal em vigor, desde a data de vencimento de cada uma das prestações até integral pagamento;
D) À quantia de 5.000,00€ a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal em vigor, desde a data da citação até integral pagamento».
*
A recorrida respondeu ao recurso, a pugnar pela sua improcedência.
*
O recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
*
Neste tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, não objecto de resposta, no sentido da improcedência do recurso.
*
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II. Objecto do recurso
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, como resulta do disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.
Assim, tendo em conta as conclusões do recorrente a questão essencial a decidir centra-se em saber se o contrato que vigorou entre as partes deve ser qualificado como de trabalho, com as consequências daí decorrentes.
*
III. Factos
A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade, que se aceita por não se vislumbrar fundamento legal para a sua alteração:
1. O autor é jornalista com a carteira profissional n.º…, renovada pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista até Dezembro de 2011 (art. 1.º da petição inicial);
2. O autor iniciou em 01/01/1987 a sua colaboração como jornalista no jornal desportivo … (art. 2.º da petição inicial);
3. O jornal desportivo … pertenceu, sucessivamente, a várias sociedades e foi adquirido pela E… no ano de 1992 (art. 5.º da petição inicial);
4. Em 1 de Agosto de 2001, a ré e o autor celebraram entre si acordo escrito denominado “contrato de prestação de serviços”, no essencial do seguinte teor:
“1.º O 2.º Outorgante, pelo presente, compromete-se a prestar colaboração ao 1.º Outorgante, na sua publicação …, apresentando diariamente um artigo inédito de sua autoria.
2.º Caberá ao 1.º Outorgante definir o dia da publicação da colaboração do 2.º Outorgante, a respectiva localização e a antecedência com que a mesma deverá ser entregue ou recebida por fax ou via electrónica.
3.º O 1.º Outorgante poderá não publicar a colaboração do 2.º Outorgante, sem necessidade de qualquer justificação, bem como alterar a respectiva periodicidade.
4.º A colaboração do 2.º Outorgante será sempre identificada com o seu nome e, no caso de o 1.º Outorgante assim o entender, com a respectiva imagem.
5.º O 1.º Outorgante poderá publicar a colaboração do 2.º Outorgante no … mais de uma vez, dela utilizar extractos, bem como reproduzi-la nas edições on-line do jornal.
6.º O 2.º Outorgante não está sujeito a qualquer dever de comparência ou assiduidade nas instalações do 1.º Outorgante.
7.º Em contrapartida da colaboração do 2.º Outorgante, o 1.º Outorgante pagará a importância de 140.000 Esc. (cento e quarenta mil escudos), sendo a mesma liquidada mensalmente em função das colaborações efectivamente publicadas.
8.º O presente contrato tem duração trimestral, sendo renovável por igual período, se nenhuma das partes o denunciar, por escrito, com antecedência não inferior a 15 (quinze) dias.
9.º Sobre os montantes pagos pelo 1.º Outorgante ao 2.º Outorgante incide IVA à taxa legal, estando os mesmos sujeitos às retenções determinadas por lei.(…)” (arts. 6.º a 9.º da petição inicial);
5. O autor esteve, sem descontinuidade, ao serviço das sociedades que detinham a publicação ... (art. 10.º da petição inicial);
6. Durante o período de tempo em que o autor, como jornalista, prestou serviço à ré, esteve em exclusivo dedicado ao Vitória de Setúbal, que acompanhava a par e passo, quer presenciando os treinos, quer assistindo a todos os jogos do Vitória Futebol Clube no Estádio do Bonfim, oficiais ou particulares, quer assistindo aos jogos da II Honra e da II Divisão B, Juniores do Sport Lisboa Benfica no Seixal e do Sporting Clube de Portugal em Alcochete, e presente nas Assembleias Gerais do Vitória de Setúbal, Sessões Solenes, Reuniões da Direcção do VFC e do Conselho Vitoriano (art. 12.º da petição inicial);
7. A agenda dos serviços que o autor tinha de prestar era definida pelos responsáveis do ..., figurando o seu nome e as respectivas tarefas no mesmo documento em que eram definidas tarefas variadas para outros jornalistas da mesma publicação (art. 13.º da petição inicial);
8. Os serviços eram distribuídos através de mail enviado ao autor (art. 14.º da petição inicial);
9. Além das tarefas supra referidas, o autor colaborava no jornal on-line, ditando por telefone os artigos que redigia (art. 15.º da petição inicial);
10. Sempre que o autor se deslocava para fora da cidade de Setúbal, para cobrir acontecimentos desportivos ocorridos no Distrito, a ré pagava-lhe os quilómetros percorridos e as refeições que o autor tivesse que tomar por causa do serviço (art. 16.º da petição inicial);
11. Acatando instruções da ré, o autor todos os meses elaborava e enviava à ré um mapa das despesas efectuadas (quilómetros percorridos, refeições e telecomunicações) que, em média, somavam € 250, que a ré pagava ao autor (art. 17.º da petição inicial);
12. O autor não tinha outra profissão e exercia a sua actividade em exclusividade, executando os serviços que lhe eram distribuídos (art. 18.º da petição inicial);
13. O ... designava o autor como correspondente, atribuindo-lhe o cartão de identidade n.º 252 (art. 19.º da petição inicial);
14. Por iniciativa da publicação, o autor tinha um livre-trânsito, enquanto colaborador do ..., atribuído pela Federação Portuguesa de Futebol, que lhe dava acesso aos recintos desportivos (art. 20.º da petição inicial);
15. Por carta datada de 30/07/2010, a ré informou o A. de que “não pretende dar continuidade à colaboração estabelecida por avença com V. Exa., terminando o contrato no próximo dia 31 de Outubro de 2010” (art. 23.º da petição inicial);
16. Desde 1992 a 31/12/2010, o autor não recebeu subsídios de férias e de Natal (arts. 28.º e 29.º da petição inicial);
17. Durante o período de tempo que durou o acordo entre autor e ré, esta não efectuou descontos para a Segurança Social por conta do autor (art. 32.º da petição inicial);
18. O autor tem 65 anos de idade e não tem outra profissão (art. 38.º da petição inicial);
19. A cessação do acordo entre as partes causou tristeza e um sentimento de inutilidade ao autor (art. 39.º da petição inicial).
*
IV. Enquadramento Jurídico
Como se afirmou supra (sob o n.º II) a questão essencial a decidir centra-se em saber se entre as partes vigorou um contrato de trabalho, com as consequências daí decorrentes.
Analisemos, então, a referida questão.
O autor sustenta que a relação que vigorou entre as partes, desde 1 de Janeiro de 1987 até 31 de Outubro de 2010 (data do alegado despedimento) ou, ao menos, desde 1 de Agosto de 2001 (data da celebração do acordo escrito) até 31 de Outubro de 2010, deve ser qualificada como de trabalho subordinado.
Seja à data de 1-1-1987, seja à data de 1-08-2001, encontrava-se em vigor o regime jurídico do contrato de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24-11-1969 (LCT); posteriormente, em 1 de Dezembro de 2003, entrou em vigor o regime jurídico do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, e em 17 de Fevereiro de 2009, o regime provado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou a revisão do Código do Trabalho.
Estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdurou desde 1 de Janeiro de 1987 ou, ao menos, desde 1Agosto de 2001 até final de Outubro de 2010, e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, seja a partir de 1 de Dezembro de 2003 (com a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2003), seja a partir de 2006 (com a alteração operada pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março), seja a partir de 17 de Fevereiro de 2009 (com a Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro), os termos em que, na prática, se executava essa relação jurídica, à sua qualificação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24-11-1969, atento o disposto no art. 8.º, n.º 1, da Lei Preambular que aprovou o Código do Trabalho de 2003, e no artigo 7.º da Lei Preambular que aprovou a Lei n.º 7/2009 (revisão do Código do Trabalho).
Com efeito, e ao contrário do que parece sustentar o recorrente, a relação jurídica em causa foi constituída antes da entrada em vigor do Código do Trabalho do 2003 e de 2009 e, embora se tenha mantido na vigência destes diplomas, nenhum facto ocorreu determinante de qualquer mudança na sua configuração ou natureza, designadamente no que toca aos contornos ou modo da sua execução.
Assim, porque o Código do Trabalho/2003 e de 2009 não se aplicam aos efeitos (direitos e obrigações) emergentes de factos totalmente passados, antes do início da sua vigência, a qualificação de tal relação jurídica, que pressupõe um juízo de valoração sobre o facto que lhe deu origem, há-de operar-se à luz do regime anterior, que é o do regime jurídico do contrato de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408 [neste sentido, por todos, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010, de 03-03-2010 e de 09-02-2012 (disponíveis em www.dgsi.pt, sob Recursos 462/06.2TTMTS.S1, 486/06.7TTPRT.S1 e 2178/07.3TTLSB.L1.S1, respectivamente).
Daí que diversamente ao que parece sustentar o apelante, designadamente tendo em conta as presunções de laboralidade que invoca em seu favor, entende-se ser aplicável à qualificação jurídica do contrato o regime que decorre do Decreto-Lei n.º 49 408.
Na análise da questão essencial, importa também ter presente que alegando o autor a existência de um contrato de trabalho com a ré, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, sobre ele recai o ónus de provar factos dos quais se possa concluir, com segurança, a existência do referido contrato [cfr., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16-03-2005 (Recurso n.º 4754/07), de 10-10-2007 (Recurso n.º 1800/07) e de 09-04-2008 (Recurso n.º 4387/07), todos da 4.ª Secção].
Por isso, havendo, no mínimo, dúvidas sobre se a actividade desenvolvida pelo autor se inseria, como ele alega e peticiona, num contrato de trabalho, ou num contrato de prestação de serviços, a dúvida resolve-se em desfavor do autor (cf. art. 516.º, do Código de Processo Civil).
*
Contrato de trabalho é aquele mediante o qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta (artigo 1.º da LCT e artigo 1152.º do Código Civil).
Por seu turno, contrato de prestação de serviços é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar a outra um certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (artigo 1154.º, do Código Civil).
Avulta, pois, na definição de contrato de trabalho que a pessoa obriga-se a prestar a sua actividade a outra, mediante retribuição e sob a autoridade e direcção dessa outra pessoa que a pode orientar e dar-lhe ordens: a subordinação jurídica do trabalhador à sua entidade patronal é o elemento essencialmente caracterizador e diferenciador da existência de um contrato de trabalho em relação a outros afins, como seja o contrato de prestação de serviços.
Como afirma Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 131), «[p]ara que se reconheça a existência de um contrato de trabalho, é fundamental que, na situação concreta, ocorram as características da subordinação jurídica por parte do trabalhador (...) A subordinação jurídica consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem».
Todavia, embora a lei distinga claramente o contrato de trabalho de outros contratos, como o de prestação de serviços, no plano concreto nem sempre são fáceis de verificar os elementos caracterizadores de cada um deles.
Por isso, para a qualificação do contrato, maxime para apurar da existência de subordinação jurídica, a doutrina e jurisprudência têm-se socorrido da existência ou não de diversos indícios, a apreciar em concreto e interdependentes entre si.
De acordo com Monteiro Fernandes, constituem indícios de subordinação (obra citada, pág. 143) «...a vinculação a horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa – tudo elementos retirados da situação típica de integração numa organização técnico-laboral predisposta e gerida por outrem. Acrescem elementos relativos à modalidade de retribuição (em função do tempo, em regra), à propriedade dos instrumentos de trabalho e, em geral, à disponibilidade dos meios complementares da prestação. São ainda referidos indícios de carácter formal e externo, como a observância dos regimes fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem».
Também Pedro Romano Martinez (Direito do Trabalho, Almedina, 2002, passim a pág. 306 a 311), referindo que o critério base para a qualificação de um contrato como de trabalho é o da subordinação jurídica – bastando, para tanto, a possibilidade de quem recebe o trabalho dar ordens -, dada a necessidade de recorrer a métodos indiciários negociais internos e externos para qualificar o contrato, considera que se está perante um contrato de trabalho se a actividade for desenvolvida na empresa, junto do empregador ou em local por este indicado, se existe um horário de trabalho fixo, se os bens e utensílios são fornecidos pelo destinatário da actividade, se a remuneração for determinada por tempo de trabalho ( embora, relacionado com este indício seja também de atender que sendo pagos os subsídios de férias e de Natal é de pressupor a existência de um contrato de trabalho), se quem for contratado exerce a actividade apenas por si e não por intermédio de outras pessoas, se o risco do exercício da actividade corre por conta do empregador (caso, por exemplo, o trabalhador não desenvolva o a actividade por qualquer razão que não lhe seja imputável mantém o direito à retribuição) e, finalmente, se o prestador da actividade está inserido numa organização produtiva.
E, para além de indícios negociais, o mesmo Autor acrescenta como elementos eventualmente relevantes na qualificação do contrato, os “índices externos”, consistentes no facto de o prestador de serviço desenvolver a mesma ou idêntica actividade para diferentes beneficiários - o que indicia uma independência não enquadrável na subordinação da relação laboral -, a inscrição na Repartição de Finanças como trabalhador dependente ou independente e a declaração de rendimentos, a inscrição do prestador de actividade na Segurança Social e ainda o facto do mesmo prestador de trabalho se encontrar sindicalizado, caso que poderá indiciar que o contrato é de trabalho.
Fernando Ribeiro Lopes (Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXIX, n.º 1, Janeiro-Março de 1987, passim a pág. 57 a 80), conclui que a subordinação jurídica se concretiza na dependência do trabalhador perante vários direitos ou poderes da entidade patronal, entre os quais avultam: (i) o poder determinativo da função, consistente na faculdade conferida à entidade patronal de escolher, dentro do género de trabalho em que consiste a categoria do trabalhador, a actividade ou função de que necessita. A tal poder corresponde, na esfera do trabalhador, um dever de conduta de realizar a função escolhida pela entidade patronal; (ii) O poder conformativo da prestação, consistente na possibilidade da entidade patronal especificar os termos em que deve ser prestado o trabalho, projectando-se na esfera do trabalhador, através de um dever de obediência; (iii) O poder-dever de elaborar um horário de trabalho, a que corresponde o dever do trabalhador ser assíduo e pontual na comparência ao serviço.
E acrescenta que o modelo usual da relação de trabalho oferece ainda outros aspectos característicos cujo fundamento já não integram a subordinação jurídica do trabalhador, como sejam a propriedade dos instrumentos de trabalho, a pertença do local de trabalho ou a modalidade de retribuição.
Em jeito de síntese, pode-se afirmar que a subordinação jurídica, como elemento constitutivo do contrato de trabalho, terá que se deduzir a partir de vários indícios – globalmente considerados e não de forma atomística –, como sejam a organização do trabalho (se é do “trabalhador” indicia-se que estamos perante trabalho autónomo; se é de outrem, trabalho subordinado), o resultado do trabalho (se tem em vista o resultado, indicia-se trabalho autónomo, se tem em vista a actividade em si mesmo, trabalho subordinado), a propriedade dos instrumentos de trabalho (se pertencem ao trabalhador indicia-se trabalho autónomo, se não, trabalho subordinado), o lugar de trabalho (se pertence ao trabalhador indicia-se trabalho autónomo), o horário de trabalho (se existe horário definido pela pessoa a quem a actividade é prestada, indicia-se subordinação), a retribuição (a existência de uma retribuição certa, à hora, ao dia, à semana, indicia a existência de subordinação), a prestação de trabalho a um único empresário (indicia subordinação), a existência de ajudantes do prestador do trabalho e por ele pagos (o que indicia trabalho autónomo) e os descontos efectuados para a Segurança Social e IRS como trabalhador dependente ou independente.
Tendo o contrato sido reduzido a escrito – como sucedeu no caso em apreço – assume também relevância o nomem juris que as partes atribuíram ao contrato, assim como as próprias cláusulas do mesmo, pois embora sem serem decisivos para a qualificação deste – uma vez que o que releva, para esse efeito, não é a designação escolhida pelas partes nem os termos em que foi redigido, mas sim os termos em que o mesmo foi executado -, assumem importância para ajuizar da vontade das partes no que toca ao regime jurídico que elegeram para regular a relação, sobretudo se os outorgantes forem pessoas instruídas e esclarecidas.
*
No caso em apreço, tendo em vista a qualificação do contrato, resulta da matéria de facto que:
- o autor iniciou em 01-01-1987 a sua colaboração como jornalista no jornal desportivo “...”;
- em 1 de Agosto de 2001, as partes celebraram um acordo que denominaram de “contrato de prestação de serviços”;
- nos termos do referido acordo, o autor/recorrente comprometeu-se a prestar colaboração à ré/recorrida, apresentando diariamente um artigo inédito da sua autoria;
- o autor esteve em exclusivo dedicado ao Clube Vitória de Setúbal, acompanhando os treinos e jogos, assembleias gerais, sessões solenes, reuniões da direcção e do “Conselho Vitoriano”; assistia também aos jogos da II Honra e da II Divisão B, Juniores do Sport Lisboa e Benfica no seixal e do Sporting Clube de Portugal em Alcochete;
- cabia à ré definir o dia da publicação da colaboração do autor, a localização e a antecedência com que deveria ser entregue ou recebida por fax ou via electrónica, podendo contudo não publicar o artigo do autor, sem que tivesse que justificar o acto;
- o autor não estava obrigado a comparecer ou a respeitar o dever de assiduidade perante a ré;
- em contrapartida da colaboração, a ré pagava ao autor, mensalmente, 140.000$00;
- durante o período em que prestou serviços à ré, o autor fê-lo em regime de exclusividade, não tendo outra profissão;
- os serviços que o autor prestava à ré (tendo em vista a elaboração de “artigos”) eram definidos por esta;
- durante o período que desempenhou funções para a ré, o autor não recebeu subsídio de férias e de Natal, assim como esta não efectuou descontos para a segurança social por conta do autor.
*
Numa análise meramente perfunctória, a referida factualidade parece indiciar a existência de alguns elementos próprios de um contrato de trabalho: assim, a circunstância do autor ter uma agenda de serviços a prestar que lhe era definida pelos responsáveis da ré, figurando o seu nome e as respectivas tarefas no mesmo documento em que eram definidas tarefas variadas para outros jornalistas da mesma publicação, apontam no sentido da existência de um contrato de trabalho, na medida em que indiciam que o autor se encontrava integrado na estrutura organizativa da ré.
Também a remuneração, certa, de 140.000$00 mensais constitui indício da existência de um contrato de trabalho.
Extrai-se ainda da factualidade apurada que o autor não tinha um local de trabalho definido: maioritariamente ele deslocava-se às instalações do clube Vitória de Setúbal, para acompanhar a “vida” do clube; mas deslocava-se também a outros locais, designadamente no Seixal e em Alcochete, para acompanhar outros clubes.
Essas deslocações prendiam-se, se bem se interpreta da matéria de facto, com os serviços (de cobertura noticiosa) que a ré lhe distribuía.
Tal circunstancialismo apresenta-se mais conforme a um contrato de trabalho, embora não seja incompatível com a existência de um contrato de prestação de serviços.
Todavia, uma análise mais atenta retira não só relevância a tais índices, como a existência de outra factualidade, ou ainda a não prova de factualidade essencial, afastam a conclusão que existisse subordinação jurídica do autor/recorrente em relação à ré/recorrida.
Desde logo, não existia qualquer controlo sobre o tempo de trabalho e a assiduidade do autor: e embora o autor ao acompanhar, por exemplo, os jogos tivesse necessariamente que cumprir um determinado horário, este não lhe era imposto pela entidade patronal, mas antes decorria do tipo e natureza do trabalho a realizar.
Isto é, se um jogo se iniciava, por exemplo, às 20.00 horas de um determinado dia, o autor tinha que se deslocar ao estádio e acompanhar o jogo nesse horário: não era a ré que lhe impunha esse horário.
Mas o trabalho/artigo que tinha que escrever, podia não o ser de imediato ou, ao menos, podia não ser logo concluído: tudo dependia da conciliação temporal do trabalho a realizar com a publicação do mesmo no jornal da ré.
Assim, para a conclusão do trabalho/artigo o autor podia escolher o período que melhor lhe conviesse.
Além disso, a obrigação do autor era apresentar diariamente um artigo inédito da sua autoria: mas, como bem se assinala na sentença recorrida, para além da independência técnica que, como é bom de ver, o autor tinha, ficava na sua disponibilidade a natureza/tipo de artigo a realizar.
E se é certo que o autor trabalhava em exclusividade para a ré, não o é menos que tal não lhe era imposto por esta: decorria de mera opção do autor, de não encontrar outra actividade, ou de factores alheios à ré, pelo que nada impedia que se aquele pretendesse e encontrasse outro trabalho o pudesse realizar.
Quanto aos instrumentos de trabalho, eles assume escassa relevância atenta a actividade exercida: o autor escrevia os artigos que remetia à ré por e-mail e/ou telefone.
Refira-se que da circunstância da ré pagar ao autor as despesas de deslocação não retiramos o indício da existência de contrato de trabalho: tal circunstância é compatível quer com um contrato de trabalho quer com um contrato de prestação de serviços (pense-se em diversas situações de prestação de serviços, como por exemplo deslocações de quem presta o serviço à residência de quem o solicita, em que tais deslocações têm que ser suportadas pelo cliente).
Ainda outros elementos existentes nos autos (embora, reconhece-se, de menor relevo) apontam para a inexistência de contrato de trabalho, como sejam o facto da ré não pagar ao autor subsídio de férias e de Natal e de não ter feito descontos para a segurança social por conta do autor.
O próprio contrato que as partes celebraram, que denominaram de “contrato de prestação de serviços”, indicia que a vontade das partes não era a celebração de um contrato de trabalho: e, atente-se, embora não resulte dos autos que o autor tivesse conhecimentos jurídicos que lhe permitissem logo aquando da celebração do acordo escrito qualificar juridicamente este, face à actividade exercida para a ré e o período em que a exerceu, certamente que se não concordasse com os termos e consequências do acordo que celebrou – designadamente tendo em conta que não lhe eram pagos subsídios de férias e de Natal e a ré não lhe efectuava descontos para a segurança social –, já teria reagido anteriormente contra o mesmo, e não apenas quando a ré pôs termo a tal acordo.
Como se deixou assinalado supra, sobre o autor recaía o ónus de alegar e provar factos dos quais se pudesse concluir, com segurança, a existência de um contrato de trabalho, sendo que a dúvida sobre a caracterização ou não do contrato como de trabalho, se resolve em desfavor do autor.
Ora, a matéria de facto que assente ficou é omissa quanto a alguns elementos essenciais caracterizadores de uma relação de trabalho subordinado.
Assim, se é certo que o autor realizava os trabalhos indicados, (ao que se julga) nos períodos que também para o efeito lhe eram indicados, nada se apurou sobre se o autor podia recusar (por motivos de ordem pessoal ou outros) a realização de algum trabalho e, em caso afirmativo, quais as consequências; ou seja, não se provou que se o autor não cumprisse o que lhe era determinado pela ré pudesse incorrer em responsabilidade disciplinar.
Também não se demonstra que o autor estivesse sujeito a qualquer regime de faltas da ré: e apenas tinha que realizar os artigos sobre os “eventos desportivos”, o que parece legitimar a conclusão que à ré apenas interessava o resultado do trabalho.
Por isso, pese embora, como se aludiu supra, se reconheça a presença de alguns indícios caracterizadores de um contrato de trabalho, uma análise global dos diversos indícios/factos apurados não permite concluir, com um mínimo de segurança e certeza jurídica, pela caracterização do contrato como de contrato.
Nesta sequência, não resultando dos autos a existência de um contrato de trabalho, terão forçosamente que improceder os diversos pedidos formulados pelo autor e que pressupunham a existência daquele, designadamente, em relação ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais, pois o direito à indemnização dependia, antes de mais, da ilicitude da conduta da ré: inexistindo esta, terá forçosamente que soçobrar o pedido.
Uma vez aqui chegados, só nos resta concluir pela improcedência das conclusões das alegações de recurso e, por consequência, também pela improcedência do recurso.
*
Vencido no recurso, deverá o autor/apelante suportar o pagamento das custas respectivas, em ambas as instâncias (artigo 446.º, do Código de Processo Civil).
*
IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por M… e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo autor/apelante em ambas as instâncias.
Évora, 08 de Maio de 2012
(João Luís Nunes)
(Acácio André Proença)
(Joaquim Manuel Correia Pinto)