Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1257/10.4TBOLH-A.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: LIVRANÇA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I- A lei admite a livrança em branco, necessário é que contenha, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária.
II - Se o acordo de preenchimento ficar por definir, isto é, se ele próprio for em branco, então é de presumir que o adquirente é autorizado a preencher a livrança segundo a relação subjacente e os costumes do tráfico.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1257/10.4TBOLH-A.E1
Olhão

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório.
1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, em que é exequente (…) – Instituição Financeira de Crédito, S.A. e são executados (…) e (…), veio a executada opor-se à execução.
Em síntese, alegou que o requerimento executivo é inepto por falta de indicação da causa de pedir, que a livrança dada à execução foi assinada em branco, sem a convenção de qualquer pacto de preenchimento e que a quantia aposta na livrança é superior ao montante das prestações do empréstimo que, à data do seu preenchimento, se encontravam em dívida.

Conclui pedindo a extinção da execução ou, sem prescindir, a redução da quantia exequenda para € 3.527,57.

Contestou a Exequente defendendo, em síntese, que constam da livrança os factos constitutivos da obrigação exequenda, que preencheu a livrança de acordo com a autorização expressa dos executados, apondo nela as prestações e demais quantias em dívida, à data do seu preenchimento, decorrentes do incumprimento pelos executados do contrato de mútuo com estes celebrado.

Concluiu pela improcedência da oposição.

A Executada respondeu à contestação e a Exequente requereu o desentranhamento da resposta.


2. Foi proferido despacho saneador que afirmou a validade e regularidade da instância e condensado o processo com factos provados e base instrutória.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição e determinou o prosseguimento da execução.

3. O recurso.
É desta sentença que a Executada recorre, exarando as seguintes conclusões que se reproduzem:
“A) A douta decisão revidenda enferma de nulidade, por omissão de pronúncia, porquanto, o Mmº Juiz a quo deixou de se pronunciar sobre a questão de direito suscitada pela Oponente e que se prendia com a exclusão das condições gerais inseridas, após a sua assinatura, no contrato de mútuo subjacente à emissão do título executivo, com violação dos deveres legais de informação e comunicação que, como proponente, impendiam sobre a exequente.

B) Encontrando-nos no domínio das relações imediatas, é lícito à executada/oponente, opor à exequente, todas as excepções de direito material, decorrentes ou fundadas na relação subjacente à emissão do título cambiário.

C) Não resultando da matéria de facto apurada que a exequente tenha dado conhecimento aos executados das condições gerais e particulares inseridas no contrato de mútuo, ou que tenha sido entregue aos executados cópia do contrato de mútuo, ou ainda que a livrança em causa tenha sido tenha sido entregue pela Oponente à Exequente, para dar cumprimento ao contrato de mútuo, como resulta da resposta aos quesitos 1), 2), 3) e 4), terá que concluir-se que a exequente não deu cumprimento, como lhe competia, aos deveres de informação e comunicação ínsitos nos arts. 5º e 6º do DL 446/85 e cujo ónus da prova cabia exclusivamente à exequente.

D) A violação daqueles deveres legais de informação e comunicação, implica que as referidas cláusulas gerais se tenham que considerar excluídas do contrato, de acordo com a sanção prevista no art. 8º al. a), b) e d) do regime geral das cláusulas contratuais gerais.

C) Face ao exposto, teria que considerar-se excluída do contrato, a cláusula 10º das condições gerais, tudo se passando como se aquela não existisse, designadamente, resultando da sua exclusão, a inexistência, in casu, de qualquer pacto de preenchimento da livrança assinada em branco pela Oponente;

D) Não havendo pacto ou autorização de preenchimento da livrança entregue em branco, a livrança em causa está incompleta, por falta dos requisitos previstos no art. 76º, dando consequentemente origem a um título nulo, ou não podendo ser considerada como título cambiário, pelo que,

E) o preenchimento da livrança pela exequente, desalicerçado em qualquer pacto de preenchimento ou autorização da oponente, terá forçosamente que qualificar-se como abusivo, resultando assim ilidido o valor probatório do título que serve de base à presente execução.

F) Face ao regime legal aplicável à relação subjacente à emissão do título executivo - Regime Geral das Cláusulas Contratuais Gerais – não poderia o Mmº Juiz considerar que a cláusula geral 10º do contrato de mútuo, não havia sido objeto de adequada comunicação e informação à Oponente e, simultaneamente, invocar tal cláusula para fundamentar juridicamente a existência de pacto de preenchimento e consequente validade do título executivo.

G) Ao considerar válido o título que serve de base à execução, com base num pretenso pacto de preenchimento, que se afigura não poder ser invocável na relação subjacente, o Mmº Juiz fez uma errada subsunção dos factos ao direito e errada interpretação e aplicação do direito, violando o disposto nos arts. 8º do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais e os arts. 75º, 77º e art 10º da LULL aplicável ex vi do art. 77º às livranças.

Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Exas, deverá a presente Apelação ser julgada procedente, revogando-se consequentemente a douta sentença recorrida, como é de lídima justiça.”

Respondeu a Exequente defendendo a confirmação da decisão recorrida.

Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objecto do recurso.
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, exceptuadas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artºs. 635º, nº 3, 639º, nº 1 e 608º, nº 2, todos do Código de Processo Civil).

Vistas as conclusões da motivação do recurso, importa decidir:
- se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia;
- se o preenchimento da livrança pela exequente é abusivo, por ausência de pacto de preenchimento.

III. Fundamentação.
1. Factos.
Na ausência de impugnação, importa considerar os seguintes factos julgados provados pela decisão recorrida:
1.º Na execução a que o presente incidente declarativo de oposição à execução se encontra apenso foi apresentado como título executivo um instrumento de onde consta data local e data de emissão “Faro” e “2010-04-21”, importância “5.173,84”, vencimento “2010-05-20”, valor “relativo ao contrato de mútuo n.º (…)” e a expressão “no seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança à (…) ou à sua ordem a quantia de cinco mil, cento e setenta e três euros e oitenta e quatro cêntimos” e as assinaturas de “(…)” e “(…)”.
2.º Por escrito particular assinado pela Oponente e por “(…)”, com a epígrafe “contrato de mútuo n.º (…)”, datado de 21 de Outubro de 2005, declarou a Exequente conceder àqueles um empréstimo no montante de € 5.500,00 acrescido de “plano protecção (…)”, no montante de € 266,31; de “Encargos Administrativos e Fiscais”, no montante de € 34,60, num total de “financiamento e encargos” de € 9.196,00, com vista a financiar a aquisição do veículo automóvel de marca e modelo “Renault”, modelo “Kangoo 1.9”, com a matrícula (…).
3.º Mais estipularam os contraentes que aquele montante, acrescido de juros à taxa fixa de 21,90 % ao ano, seria restituído em 60 prestações mensais, no montante de € 152,69, cada uma, vencendo-se a primeira em 27 de Novembro de 2005 e as restantes no correspondente dia dos meses seguintes.
4.º Na cláusula 6.ª das “Condições Gerais” constantes do verso do instrumento referido em 2.º consta, sob a epígrafe “Mora”, consta “1 – No caso de mora no pagamento da prestação de capital e/ou juros, incidirá sobre o montante dessa prestação, e durante o tempo em que a mora se verificar, a taxa de juro fixada neste contrato, acrescida de uma sobretaxa de mora de 4 % (quatro por cento) ao ano, ou de outra que estiver legalmente em vigor. 2 – Os juros em mora poderão ser capitalizados nos termos da lei.”
5.º Na cláusula 10.ª consta, sob a epígrafe “Garantias”, sub-epígrafe “Livrança”, “Os Mutuário(s) obriga(m)-se a entregar à (…), a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas devidamente subscrita pelo(s) Mutuário(s) e assinada pelo(s) Avalista(s), que poderá ser livremente preenchida pela (…), designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento a (…)seja titular por força do presente contrato ou de encargos e despesas dele decorrentes. A (…) poderá também descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos. (…)”
6.º Na cláusula 14.ª, com a epígrafe “Alterações”, consta “O(s) Mutuário(s) fica(m) igualmente obrigados a informar a (…) de qualquer alteração dos elementos pessoais indicados para este Contrato, que venham a decorrer durante o curso do empréstimo, nomeadamente, a eventual alteração da morada, entre outros.”
7.º Na cláusula 15.º, com a epígrafe “Encargos” consta “Nos termos e de acordo com o preçário em vigor, correrão por conta do(s) Mutuário(s) os encargos com a abertura, alteração e modificação do presente contrato, nomeadamente, os relativos a impostos em vigor à data da operação. Serão também da conta do(s) Mutuário(s) todas as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogado e solicitador que a (…) haja de fazer para garantia e cobrança de tudo quanto constituir o seu crédito, fixando-se as mesmas no máximo em 12 % do montante em dívida.”
8.º Na cláusula 16.ª, sob a epígrafe “Incumprimento” consta “O não cumprimento do(s) Mutuário(s) de todas as obrigações aqui assumidas, tanto de natureza pecuniária, como de outra espécie, facultará à (…) – Instituição Financeira de Crédito, S. A., o direito de resolver o contrato por simples declaração escrita da sua parte e, em consequência, a exigibilidade de tudo quanto constituir o seu crédito.”
9.º Os Executados não pagaram a prestação com o n.º 35.º que se venceu em 27 de Setembro de 2008, nem nenhuma das prestações subsequentes.
10.º A Exequente remeteu aos Executados, dirigida para a morada “Rua da (…), Lote 1, 3-esq., Olhão / 8700-395 OLHÃO”, carta registada com aviso de recepção, datada de 21 de Abril de 2010, com o assunto: “Resolução do Contrato por Incumprimento/Contrato de Crédito n.º (…)/ Veículo: Renault Kangoo 1.9 / Matrícula (…)” e o seguinte teor: “Na sequência do não cumprimento das obrigações estabelecidas no contrato acima identificado, celebrado em 21-10-2005, nos termos e ao abrigo do disposto nas respectivas condições gerais, informamos que o consideramos resolvido por incumprimento. / Deste modo, toda a dívida resultante das obrigações estipuladas encontra-se automaticamente vencida. / Face ao exposto, cumpre-nos referir que iremos proceder ao preenchimento da livrança, pelo valor em dívida à data de 20-05-2010, acrescido dos juros contratualmente estabelecidos, cujo montante global ascende a 5.173,84 €, conforme discriminado no extracto de conta no verso. / A livrança terá o seu vencimento em 20-05-2010, pelo que V. Exa. poderá proceder ao seu pagamento nas instalações da (…), S. A., sitas à Rua (…), n.º 150, no Porto. (…)”
11.º Do instrumento referido em 2.º consta, sob a epígrafe “Declarações do(s) Mutuário(s)” o seguinte: “Declaro: 1. Que tenho entre 18 e 65 anos, estou de boa saúde e que no último ano não estive sujeito a tratamento médico devido a doença ou acidente, estando actualmente a exercer uma normal e regular actividade profissional, no mínimo de 16 horas semanais, sem conhecimento de um possível desemprego. Tenho nesta data recebido o Certificado de Seguro. / 2. Que autorizo(amos) a (…) a obter todas as informações consideradas relevantes para a análise da operação de crédito. / 3. Que tomei(amos) conhecimento e aceitei(amos) plenamente as Condições Gerais (constantes do verso) e Particulares do presente Contrato de Mútuo que subscrevo(emos), tendo nesta data recebido um exemplar do contrato. / 4. Que o bem descrito nas condições particulares me foi entregue e está conforme o presente Contrato de Mútuo assinado e aceite sem restrições nem reservas, autorizando desde já a entrega do montante do empréstimo ao fornecedor do bem financiado. (…)”
12.º O casamento entre o ora Executado (…) e a Opoente (…) foi dissolvido, por divórcio, em 29 de Maio de 2009.
13.º A quantia de Euros 1.646,27 peticionada pela Exequente diz respeito aos encargos e despesas referidos em 7.º, no montante de Euros 645,20 e a prestações vencidas e não pagas, no montante de Euros 1.001,07.

2. Direito.

2.1. Se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia.
A sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (artº 615º, nº1, al. d), 1ª parte, do CPC).
O juiz deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras – artº 608º, nº 2, do CPC.
No respeito por estas regras, o juiz deve conhecer na sentença, sob pena de nulidade desta, dos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, das causas de pedir por estes invocadas e das excepções deduzidas.
Existirá, omissão de pronúncia quando o juiz deixe de conhecer de pedidos, de causas de pedir ou de excepções, invocadas pelas partes ou que lhe cumpra oficiosamente conhecer[1], por violação do princípio da correspondência entre a acção e a sentença[2]. Tudo isto sem prejuízo do conhecimento de algumas questões ficar prejudicado pelo julgamento de outras, caso em que também não ocorrerá qualquer omissão de pronúncia.
A Recorrente considera que a sentença é nula, por não se haver pronunciado sobre a “exclusão das condições gerais inseridas, após a sua assinatura, no contrato de mútuo subjacente à emissão do título executivo, com violação dos deveres legais de informação e comunicação que, como proponente, impendiam sobre a exequente.

A sentença, de facto, não se pronunciou sobre esta questão importando agora averiguar se a mesma foi submetida a apreciação na 1ª instância e, assim, se se trata de questão de pronúncia obrigatória, como é próprio das questões cuja omissão de conhecimento determinam a nulidade da sentença.

A Recorrente opôs-se à execução com fundamento na falta de indicação da causa de pedir, com a consequente ineptidão do requerimento executivo, na ausência de pacto de preenchimento da livrança, no preenchimento abusivo desta e na desconformidade entre a quantia exequenda e as prestações contratuais em dívida.

A Exequente contestou e a Recorrente respondeu a esta contestação, suscitando então a questão da exclusão das cláusulas contratuais, referidas no contrato como “condições gerais”, porque inseridas em formulário posterior à assinatura dos contraentes e por violação dos deveres legais de comunicação e informação, designadamente a exclusão da cláusula 10ª que previa o livre preenchimento da livrança pela Exequente quanto às datas de emissão e vencimento, local de pagamento e montante do crédito.

Na consideração que não havia suscitado qualquer excepção, a Exequente requereu o desentranhamento desta resposta e com razão.

A oposição à execução foi deduzida em 25/11/2010 (cfr. fls. 61 dos autos) e nesta data encontrava-se em vigor o CPC de 1961, com as alterações resultantes do D.L. nº 38/2003, de 8/3, cujo artº 817º, nº 2, previa:

“Se for recebida a oposição, o exequente é notificado para contestar, dentro do prazo de 20 dias, seguindo-se, sem mais articulados, os termos do processo sumário de declaração.”

Tal como a lei anterior previa para os embargos à execução e a lei vigente prevê para a oposição à execução (cfr. artº 817º, nº 2, do CPC de 1961, na sua versão original e artº 732º, nº 2, do CPC vigente) o procedimento da oposição à execução apenas comporta como articulados o requerimento inicial do executado e a contestação do exequente e depois destes, a oposição segue os termos do processo sumário de declaração, sem mais articulados.

Os fundamentos de defesa do executado devem, assim, ser expostos na petição de embargos sob pena de preclusão da sua dedução, uma vez que a lei não permite a existência de qualquer outro articulado para o efeito; trata-se da uma manifestação do princípio da eventualidade ou da preclusão que enforma a lei processual civil, visando obstar a que os litigantes deixem (…) de reserva os seus melhores argumentos, para só se saírem com eles quando crêem que o adversário já não tem a possibilidade de lhe contrapor uma réplica exauriente.”[3]

Razão tinha, pois, a exequente em requerer o desentranhamento dum articulado que a lei não admite; não obstante, o requerimento da exequente não só não foi apreciado, como esta não suscitou, a propósito, qualquer nulidade e a questão da exclusão da cláusula 10ª do contrato, suscitada pela executada em articulado inadmissível, foi introduzida nos autos como objecto do litígio, como claramente resulta dos pontos 1) a 3) da base instrutória.

Assim, e não podendo agora conhecer-se da nulidade que traduziu a prática de um ato que a lei não admite (a resposta à contestação), por não ser de conhecimento oficioso (artºs 201º, nº 1 e 202º, do CPC de 1961, vigente à data da omissão do acto), a nulidade mostra-se sanada, restando apreciar os efeitos que dela resultam para o procedimento.

Não tendo a 1ª instância determinado o desentranhamento da resposta à contestação apresentada pela executada e havendo, pelo contrário, levado à base instrutória os factos relevantes para o conhecimento da questão suscitada neste articulado – a violação dos deveres de comunicação e informação das condições gerais e particulares anexas ao contrato de mútuo – tornou esta questão de conhecimento obrigatório nos autos; porque de duas uma, ou julgava o articulado inadmissível e não conhecia da questão nele suscitada, ou considerava admissível o articulado e conhecia da questão, o que não se afigura defensável é a ausência de pronuncia sobre a admissibilidade do articulado, a introdução no âmbito do litígio dos factos relevantes para o conhecimento da questão suscitada no articulado inadmissível e a final a omissão do conhecimento da questão, como é o caso.

A recorrente tem razão, a sentença é nula por omissão de pronúncia.

Assim, declara-se nula a sentença na parte em que omitiu o conhecimento da questão da exclusão do contrato das cláusulas contratuais gerais, dela se conhecendo agora no recurso (artº 665º, nº 1, do CPC).

2.2. Se deve ser excluída do contrato de mútuo a clausula 10º do contrato, por violação dos deveres de comunicação e informação.

As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo D.L. nº 446/85, de 25/10, sucessivamente alterado pelos Decs.- Leis nº 220/95, de 31/8, 249/99, de 7/7 e 323/2001, de 17/12 (cfr. artº 1º, do diploma em referência e a que pertencerão os demais artºs indicados sem qualquer menção de origem).

São cláusulas contratuais gerais, “(…) as cláusulas elaboradas, sem prévia negociação individual, como elementos de um projeto de contrato de adesão, destinadas a tornar-se vinculativas quando proponentes ou destinatários indeterminados se limitem a subscrever ou aceitar esse projeto”[4]

As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las (artº 5º nº 1), o contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique (artº 6º, nº 1), consideram-se excluídas dos contratos singulares, as cláusulas que não tenham sido comunicadas, bem como as cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo [als. a) e b) do artº 8º] e o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais (artº 5º, nº 3).

Porque elaborada, sem prévia negociação individual, como elementos de um projecto de contrato de adesão, destinada a tornar-se vinculativa quando aceite pelos mutuários (cfr. doc. de fls. 73 e 74), a cláusula 10ª das condições gerais do contrato – “os Mutuário(s) obriga(m)-se a entregar à (…), a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas devidamente subscrita pelo(s) Mutuário(s) e assinada pelo(s) Avalista(s), que poderá ser livremente preenchida pela (…), designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos de que em cada momento a (…) seja titular por força do presente contrato ou de encargos e despesas dele decorrentes. A (…) poderá também descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos. (…)” – é uma cláusula contratual geral.
Incumbia, pois, à Exequente a prova da sua adequada e efectiva comunicação à Recorrente; a Executada não fez esta prova (cfr. respostas aos pontos 1) e 2) da base instrutória a fls. 307 dos autos) e, assim, esta cláusula não pode ser considerada.
Por ser assim, caí pela raiz a fundamentação da decisão recorrida na parte em que considerou que esta cláusula 10ª consagrava o acordo havido entre as partes para o preenchimento da livrança, a que a executada apenas havia aposta a sua assinatura.
Também aqui, a recorrente tem razão.

2.3. Se o preenchimento da livrança pela exequente é abusivo, por ausência de pacto de preenchimento.

Tal não significa, porém, como defende, que inexista pacto de preenchimento e menos ainda que se mostre abusivo o preenchimento da livrança pela executada.

A questão, aliás, tal como colocada, apresenta uma inicial dificuldade; resultando o preenchimento abusivo da livrança da desconformidade entre o que nela consta e o que nela devia constar, não é configurável quando, como é o caso, apenas se demonstra um dos pressupostos, ou seja, o que nela consta e, assim, caso não existisse pacto para o uso da livrança, como defende a Recorrente, não vemos como defender o abuso.

Deixando, porém, as razões lógicas e indo às razões jurídicas, tanto quanto possível, uma vez que a lógica não é estranha ao direito e muito menos à sentença que o declara [artº 615º, nº 1, al. d), do CPC], a livrança é um título formal, um escrito, para valer como livrança, deverá conter os requisitos enumerados no artº 75º e 76º da LU. Mas a lei admite a livrança em branco, ou seja, a livrança a que faltem requisitos essenciais, necessário é que contenha, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária.
Para usar as autorizadas palavras de Ferrer Correia: “Pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efectivar-se desde que no momento do vencimento o título se encontre preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra (…)”[5].
Emitida uma letra ou livrança em branco a pessoa à ordem de quem deve ser paga tem o direito de a preencher nos termos acordados, ou seja, de acordo com o pacto de preenchimento e é com o preenchimento que nasce a obrigação cambiária ou, pelo menos, é neste momento que se torna eficaz[6].

O pacto de preenchimento é o ato pelo qual as partes ajustam os termos da obrigação cambiária, designadamente, no caso da livrança, as que se reportam à fixação do seu montante, época do pagamento, lugar de pagamento ou a data e lugar onde é passada (artº 75º, da LU).

Preenchida a letra ou a livrança com inobservância do acordo de preenchimento, o preenchimento diz-se abusivo e constitui uma excepção oponível, designadamente, ao seu primeiro adquirente.

“Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido falta grave” (artº 10º, aplicável às livranças ex vi do artº 77º, ambos da LU). O portador aqui em vista é um terceiro que recebe a livrança já preenchida ou um terceiro que preenche a livrança de boa fé que recebeu por endosso e reclama o seu pagamento, quanto a estes não é oponível a excepção do preenchimento abusivo, mas já o será ao primeiro adquirente que preencheu a livrança ou ao terceiro que preencheu a livrança que recebeu por tradição ou sucessão “mortis causa”[7].
Feita a assinatura com a intenção de contrair uma obrigação cambiária e entregue o título, no caso, a livrança, ao tomador, o subscritor transfere para este, na qualidade eventual de último portador da livrança no vencimento, o direito de a completar e este acordo ou autorização não precisa de ser expressa, pode ser tácita. Se o acordo de preenchimento ficar por definir, isto é, se ele próprio for em branco, então é de presumir que o adquirente é autorizado a preencher a livrança segundo a relação subjacente e os costumes do tráfico[8]; ou, na lição de Ferrer Correia, quem “emite a letra em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos. Ninguém subscreve um documento em branco para que a pessoa a quem o transmite faça dele o uso que lhe aprouver”[9].
Excluídos ficarão naturalmente os casos de desapossamento do título incompleto do seu subscritor ou a existência de vícios na formação da vontade de contrair a obrigação cambiária, fora estes, que não estão no caso em causa, passada a livrança em branco e assim posta na circulação cambiária por vontade do seu subscritor, transfere-se para o tomador, expressa ou tacitamente, a legitimidade para ulteriormente a completar.
Aliás, se assim não fora, ou seja, se a inexistência expressa de acordo de preenchimento constituísse facto impeditivo do direito de accionar o título, a relevância do impedimento só se justificaria no momento da constituição da obrigação cambiária – assinatura e entrega ao tomador - e não, como é o caso, no momento do incumprimento de tal obrigação, por comportar agora uma clara violação de legitimas expectativas criadas ao tomador, com a assinatura e entrega do título e, assim, um exercício do direito pelo subscritor com manifesto excesso dos limites impostos pela boa-fé, a que lei obsta (artº 334º, do CC).
Assim, e conformando-se a recorrente com o segmento da decisão recorrida que concluiu pela correspondência da quantia inscrita na livrança com o montante da divida decorrente da relação jurídica a ela subjacente, o preenchimento da livrança mostra-se em conformidade com o acordo tácito do seu preenchimento e, como tal, não ocorre o apontado preenchimento abusivo.
Termos em que improcede o recurso, restando confirmar a sentença recorrida.

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto:
a) em anular parcialmente a sentença recorrida, por omissão de pronuncia e conhecendo da questão omitida, em considerar excluída do contrato de mútuo a clausula 10º das condições gerais do contrato, por violação dos deveres de comunicação e informação.
b) em julgar improcedente o recurso e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida com diferente fundamentação.
Custas pela Recorrente.
Évora, 09/03/2017
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho

__________________________________________________
[1] Cfr. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2ª ed., vol. 2º, pág. 704
[2] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 1952, vol. V, pág. 52.
[3] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 383.
[4] Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª ed. pág. 318
[5] Lições de Direito Comercial, 1975, vol. III, Letra de Câmbio, pág. 134.
[6] Cfr, Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, 5ª ed., págs. 86 e 86 e doutrina aí citada.
[7] Cfr. Ferrer Correia e Abel Delgado, in loc. cit. respectivamente a págs. 137 e 83.
[8] Cfr. doutrina cit. por Paulo Melero Sendin, Letra de Câmbio, vol. 1º, pág. 190.
[9] Ob. cit. pág 136.