Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
54/22.9PAENT.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
CRIME PÚBLICO
MINISTÉRIO PÚBLICO
ACUSAÇÃO
LEGITIMIDADE
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, do Código Penal, tem natureza pública, não estando este crime dependente da vontade do ofendido e da respetiva apresentação de queixa, e, por conseguinte, o Ministério Público tem legitimidade para acusar.
Assim, o tribunal a quo não poderia dar por verificada a nulidade insanável por falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação, por falta de queixa, e, por conseguinte, também não poderia ter declarado a nulidade parcial da acusação no que concerne ao crime de ameaça agravado, e extinguir, quanto a este crime, o procedimento criminal instaurado contra o arguido.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

No Juízo de Competência Genérica do … (J…) do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 54/22.9PAENT, no qual, realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo (transcrição da parte que interessa à decisão a proferir nos presentes autos):

“Em face do exposto, o Tribunal (…) decide:

1) Declarar a nulidade insanável da acusação por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar pelo crime de ameaça agravada, extinguindo, quanto a este crime, o procedimento criminal;

(…).”

*

Inconformado, o MP interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. Por sentença proferida a 29 de Maio de 2023, a Meritíssima Juíza do tribunal a quo decidiu a seguinte questão prévia: “Vem o Arguido acusado, além do mais, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal. (…) Considerando a natureza semipública deste crime [ameaça agravada] (pelas razões supra expostas), ao ter sido deduzida acusação pública por este crime sem que os putativos visados com o crime de ameaça agravada tenham apresentado queixa, agiu o Ministério Público sem legitimidade para tal, nos termos do artigo 49.º do Código de Processo Penal.

Ora, o segmento normativo da parte inicial da alínea b) do artigo 119.º do Código de Processo Penal («A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º») contempla não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o Ministério Público acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido. (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19-02-2014, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 154/11.0GBCVL.C1).

Assim, a falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação por crime semipúblico constituiu nulidade insanável, que deverá ser declarada em qualquer fase do procedimento, de acordo com o disposto no proémio do artigo 119.º, pelo que se declara a nulidade parcial da acusação no que concerne ao crime de ameaça agravada, extinguindo-se, quando a este crime, o procedimento criminal encetado contra o Arguido”.

2. Ora, o Ministério Público não pode conformar-se com tal decisão por ser a mesma contrária à correcta interpretação das normas invocadas que, contrariamente à interpretação do tribunal a quo, determina que o crime de ameaça agravado é um crime público e, dessa forma, o Ministério Público tem legitimidade para acusar.

3. Consideramos, com o devido respeito, que a Mm.ª Juíza do tribunal a quo violou o disposto nos artigos 48.º, 49.º e 52.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, pelo que o presente recurso se limitará a questões de direito em conformidade com o disposto no artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

4. Nos presentes autos, o arguido Frederico José Correia Martins foi acusado pela prática, entre outro, como autor material e na forma consumada, de um crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 14.º, 26.º, 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

5. Sucede que, o crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, do Código Penal, tem natureza pública, não estando este crime dependente da vontade do ofendido e da respectiva apresentação de queixa, e, por conseguinte, o Ministério Público tem legitimidade para acusar.

6. A inúmera e maioritária jurisprudência considera que o crime de ameaça agravado tem natureza pública – neste sentido e a título exemplificativo: acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26-10-2019, Fátima Bernardes, processo n.º 538/17.0PBELV.E1, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04-12-2018, Maria de Fátima Bernardes, processo n.º 1377/15.9PBFAR.E1, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-05-2021, Elsa Paixão, processo n.º 775/18.0GBVFR.P1, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-05-2012, Coelho Vieira, processo n.º 284/10.6GBPRD.P1, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-07-2016, Vasques Osório, processo n.º 467/13.7GASEI-A.C1, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-07-2020, José Eduardo Martins, processo n.º 667/18.3PCCBR.C1, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-05-2011, Tomé Branco, processo n.º 1028/09.0GBGMR.G1, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-10-2020, Maria Leonor Botelho, processo n.º 223/19.9PCRGR.L1-9, todos in www.dgsi.pt.

7. Assim, o tribunal a quo não poderia ter verificado a nulidade insanável por falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação, por falta de queixa, e, por conseguinte, também não poderia ter declarado a nulidade parcial da acusação no que concerne ao crime de ameaça agravado, e extinguir, quanto a este crime, o procedimento criminal encetado contra o arguido.

Pugnando pelo seguinte:

“Termos em que, e nos mais que doutamente se suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogada a sentença recorrida na parte em que considerou o crime de ameaça agravado, previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, como um crime de natureza semipública, constituindo uma nulidade insanável por falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação, e declarou a nulidade parcial da acusação no que concerne ao crime de ameaça agravado, extinguindo-se, quanto a este crime, o procedimento criminal encetado contra o arguido, a qual viola o disposto nos artigos 48.º, 49.º e 52.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e nos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, e ser substituída, nesta parte, por outra decisão que julgue inválida a sentença proferida pelo tribunal a quo, por inexistir nulidade insanável por falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação, e que determine o prosseguimento dos autos para apreciação, julgamento e decisão quanto a tal ilícito criminal.”

O recurso foi admitido.

O arguido não respondeu ao recurso.

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de “que o recurso deve obter provimento.”

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“QUESTÃO PRÉVIA – DA FALTA DE LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA O PROCEDIMENTO CRIMINAL QUANTO AO CRIME DE AMEAÇA AGRAVADO

Vem o Arguido acusado, além do mais, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal.

Pese embora, no despacho a que alude o artigo 311.º do Código de Processo Penal, de 03-02-2023, o Tribunal haja declarado que «o Ministério Público tem legitimidade para acusar», tal despacho foi meramente tabelar, não tendo o Tribunal apreciado especificamente tal questão.

Todavia, melhor compulsados os autos, e revista, no ínterim, a posição da Signatária acerca da natureza do crime de ameaça agravada, conclui-se que, no caso concreto, por não ter sido apresentada queixa pelo(s) agente(s) visado(s) com as palavras que, na acusação, são imputadas ao Arguido (agentes esses que, de resto, não se mostram concretamente identificados no libelo acusatório), não tinha o Ministério Público legitimidade para acusar.

Vejamos porquê.

Para o tipo-base do crime de ameaça (com assento legal no artigo 153.º do Código Penal), prevê-se, no respetivo n.º 3, a necessidade de queixa para instauração e prosseguimento do procedimento criminal, sendo certo que no artigo 155.º do mesmo diploma não se reitera a exigência da queixa como condição de procedibilidade por tais crimes (e isto, independentemente de qual seja a conduta criminosa basilar).

No entanto, e conquanto não se desconheça ser minoritária a corrente jurisprudencial (representada pelos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 13-11-2013, processo 335/11.7GCSTS.P1 e de 06-04-2022, processo n.º 1301/19.0PBAVR.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) que vem concluindo que o crime de ameaça agravada tem natureza semipública (exigindo, por conseguinte, queixa-crime para a instauração e prosseguimento da ação criminal), são relevantes os argumentos aduzidos em abono desta tese, expendidos, não apenas nos mencionados arestos, mas também no artigo de PEDRO DANIEL DOS ANJOS FRIAS, na Revista Julgar n.º 10, denominado «Por quem dobram os sinos? A perseguição pelo crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido? Um silêncio ruidoso» (Coimbra Editora, 2010, páginas 39 a 57).

Entendem os que adotam esta posição que, conquanto o elemento literal da interpretação possa apontar no sentido de todos os crimes englobados no artigo 155.º do Código Penal terem natureza pública, mesmo sendo semipúblicos os tipos fundamentais respetivos (por não se repetir a referência à necessidade de queixa plasmada na norma incriminadora base), teleologicamente não há razão para que o crime de ameaça agravada seja considerado público.

Perfilhamos tal entendimento.

De um modo geral, a Jurisprudência (maioritária) que defende a natureza pública de todos os crimes englobados no artigo 155.º do Código Penal, considera que a transposição do tipo agravado de ameaça que, antes da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, se encontrava no n.º 2 do artigo 153.º, (estando, por conseguinte, incontestavelmente abrangido pela exigência de queixa plasmada no n.º 3 da aludida disposição legal) para o artigo 155.º do mesmo diploma, onde não se inscreveu a aludida exigência para nenhum dos tipos abrangidos pela agravação, foi intencional e reflete a vontade do legislador de fazer corresponder ao acréscimo da ilicitude que a agravação representa em relação ao tipo base, não só uma moldura sancionatória mais gravosa, mas também uma garantia de perseguição criminal independente da vontade da vítima.

Consideram, por isso, tais arestos, que o artigo 155.º do Código Penal prevê tipos de crime qualificados, distintos dos tipos fundamentais (como sucede, v.g. com o furto qualificado, com o dano qualificado ou com a ofensa à integridade física grave ou qualificada), e que, como tal, se justifica e compreende que o legislador tenha diferenciado também a natureza do crime e as condições de procedibilidade da ação penal, consoante se verifiquem as circunstâncias qualificativas ou não.

Se bem se logra interpretar a ratio decidendi de tais arestos, o elemento exegético fundamental para alcançarem tal conclusão é o de que a técnica legislativa do legislador criminal consiste em colocar a menção a que «o procedimento criminal depende de queixa» após a definição do tipo base e antes do qualificado, ou, então, em artigo autónomo, quando pretende definir a natureza particular ou semipública de vários crimes da mesma espécie (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15-11-2010, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 343/09.8 GBGMR.G1), nada permitindo concluir que tenha alterado esse procedimento quanto ao artigo 155.º do Código Penal, após o qual inexiste qualquer outra norma a conferir natureza semipública aos crimes nele previstos.

Ora, as regras de interpretação legal, plasmadas no artigo 9.º do Código Civil, e que são aplicáveis a todos os ramos do Direito, demandam do intérprete que não se cinja à letra da lei, antes reconstruindo «a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.» e presumindo, no seu labor hermenêutico, que «o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.»

Dir-se-á, pois, que, sempre que a letra da lei consinta (ou não obste) a que dela se extraia mais do que um sentido, será de optar por aquele sentido que se revele mais conforme com os princípios basilares do sistema jurídico e, em particular, do ramo do Direito em que a norma se insere; que seja mais coerente à luz no contexto político-social em que a lei foi criada, por um lado, e em que a lei será aplicada, por outro, e que, quando comparado com a aplicação de outras normas do mesmo sistema, ramo e visando tutelar o mesmo tipo de interesses jurídicos, não conduza a soluções absurdas e, como tal, incompreensíveis para o cidadão comum, em nome de quem se administra a Justiça num Estado de Direito Democrático.

Como se inscreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06-04-2022 (disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 1301/19.0PBAVR.P1), «Nenhuma interpretação da Lei pode levar a uma aplicação absurda da mesma, esta é uma regra que já nos vem do Direito Romano: “interpretatio facienda est, ut ne sequantur absurdum”.»

Ora, volvendo à apreciação em curso, o enfoque na aposição sistemática da exigência de queixa apenas nos tipos-base que o artigo 155.º do Código Penal agrava para concluir serem estes últimos crimes semipúblicos, conduziria, por extensão ad absurdum e aplicação do mesmo raciocínio, não se admitisse também, por exemplo, a aplicação das penas acessórias previstas no artigo 154.º-A, n.º 3, do Código Penal ao crime de perseguição agravada.

Efetivamente, tais penas (como a necessidade de queixa) estão previstas apenas no tipo base da perseguição, não estando prevista a sua aplicação (ou a necessidade de queixa) no caso da perseguição agravada nem no capítulo do Código Penal dedicado às penas acessórias, nem na norma agravante (artigo 155.º), nem após o artigo 155.º.

Não obstante, decerto ninguém duvidará que quem seja punido pelo crime de perseguição agravada pode ver serem-lhe aplicadas as penas acessórias previstas apenas no tipo base, de onde se extrai, pois, que o argumento sistemático não pode encerrar a discussão quanto à natureza do crime de ameaça agravada.

Ora, como denota PEDRO FRIAS (op. cit., página 53), se entendermos que o artigo 155.º do Código Penal não consagra tipos de crime autónomos, mas apenas define um conjunto de circunstâncias que agravam as penas previstas a uma panóplia de crimes diferenciados e de diferente natureza processual, concluiremos que a letra da lei e a sistemática do Código Penal consentem a interpretação segundo a qual o legislador não fez menção à necessidade ou não de queixa para cada um dos tipos elencados no artigo 155.º, n.º 1, última parte, precisamente porque cada tipo manterá a natureza (pública ou semipública) do tipo base.

Assim, dependerá de queixa o procedimento criminal por crimes de ameaça, perseguição e coação entre os familiares indicados no artigo 154.º, n.º 4, do Código Penal, mesmo na sua forma agravada, por força do disposto nos artigos 153.º, n.º 2, 154.º, n.º 4 e 154.º -A, n.º 5, do mesmo diploma.

Como é consabido, a natureza pública, semipública ou particular dos crimes expressa uma opção político-criminal relativamente a cada uma das condutas que o legislador considerou serem merecedoras de tutela penal, assinalando não só a gravidade da mesma, mas também (simultânea ou alternativamente), a prevalência dos interesses e/ou da proteção da vítima sobre o interesse da comunidade na punição da conduta antijurídica.

Nesta linha, historicamente, desde a redação original do Código Penal (publicado pelo Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de setembro), o crime de coação (com exceção das situações em que intercedam especialíssimas relações entre o agente e a vítima), sempre foi público, ao contrário do crime de ameaça que teve sempre natureza semipública, o que bem se compreende se considerarmos os graus manifestamente diferentes de violação do bem jurídico «liberdade pessoal» que cada um dos ilícitos representa.

Como exemplifica Pedro Frias (op. cit., páginas 50 e 51): « (…) A pode ver a sua liberdade de passear na Av. X tolhida porque B lhe dissera que quando aí o voltasse a encontrar, lhe dava um murro. Mas A também pode ver a sua liberdade de passear impedida porque, quando se abeirava da Av. X, apareceu B que o agarrou à força e não o deixou prosseguir. Diríamos, com base neste comezinho exemplo, que temos, de um lado, o mero anúncio de um evento (futuro) e, do outro, já o próprio constrangimento (o facto actual).»

Até à Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, quer a ameaça simples, quer a agravada, tinham assento legal na mesma norma incriminadora (artigo 153.º, n.º s 1 e 2, do Código Penal, respetivamente), sendo a ameaça considerada grave (tal como hoje), se o fosse com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos. Contudo, e em qualquer dos casos, o procedimento criminal dependia de queixa (como estatuía o artigo 153.º, n.º 3, do Código Penal).

Sem qualquer alteração substantiva nas normas incriminadoras, com a Lei 59/2007, o legislador penal transferiu a previsão da ameaça grave para o preceito onde se previa a coação grave (artigo 155.º do Código Penal), alterou a respetiva epígrafe (de «coação grave» para «agravação»), e, por inerência, passou a punir de forma mais severa a ameaça, não só nas situações já anteriormente subsumíveis ao artigo 153.º, n.º 2, do Código Penal, mas também verificado o circunstancialismo que, até então, apenas agravava a coação.

Nada na materialidade da alteração legislativa, ou sequer na sua exposição de motivos, leva a crer que, para além de concentrar os circunstancialismos de agravamento quer da ameaça, quer da coação, num mesmo normativo, o legislador tenha querido criar um tipo autónomo e dispensar a manifestação de vontade do ofendido para a perseguição do agente da ameaça.

Afigura-se claro que a punição mais severa da ameaça em dadas circunstância não é razão suficiente para se presumir a alteração da intenção politico criminal no sentido de passar a perseguir criminalmente a ameaça, sem mais, mesmo contra a vontade expressa da vítima, até porque o alargamento da «gravidade» da ameaça às circunstâncias elencadas nas alíneas b) a e) do artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal, não implicou um agravamento da pena que já era prevista para a circunstância agora vertida na alínea a), e que, anteriormente, contava com a expressa exigência de queixa para a procedibilidade da ação penal.

Aliás, incluindo o crime fundamental do artigo 153.º, n.º 1, na sua previsão, os casos em que o mal futuro anunciado é a prática de crime contra a vida, a própria lei admite que, nestes casos, o procedimento dependa de queixa, sendo certo que não se vislumbram crimes contra a vida suscetíveis de serem conteúdo de uma ameaça punidos com pena de prisão inferior ou igual a 3 anos, para que se possa dizer que que a queixa só é exigida para estes.

Em suma: a redação do artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal representa arrumação sistemática de um mesmo conjunto de circunstâncias agravantes relativamente a determinados crimes, não constituindo a previsão de crimes autónomos.

Por outro lado, não se poderá esquecer que o princípio da oficialidade (que atribuiu ao Estado a iniciativa e a prossecução processual penal), é consequência da conceção do direito penal como instrumento de controlo social pelo Estado e surgiu em contexto histórico-político de fortalecimento do poder central. Destarte, as suas exceções são reflexo de uma limitação a esse poder, em nome de outros interesses e princípios, um dos quais se encontra diretamente ligado ao caráter de ultima ratio do direito penal e à necessidade de redução da intervenção penal ao mínimo necessário, em obediência ao artigo 18.º, n.º 2, segunda parte, da CRP.

Com efeito, ao estabelecer a necessidade de queixa ou de acusação particular para haver procedimento criminal relativamente a certos ilícitos, o legislador teve em conta, em alguns casos, a menor gravidade das infrações; que não violam de modo direto e imediato bens jurídicos fundamentais da comunidade e que não fazem desencadear, por parte desta, uma reação automática [em termos tais que «se os ofendidos ou quem os represente se desinteressarem da perseguição penal não se justifica a intervenção do Estado, no interesse dos próprios ofendidos» (cf. GERMANO MARQUES DE SOUSA, in «Direito Processual Penal Português», Vol. I, 2.ª edição, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, página 85)], não se justificando, pois, que, em tais casos, o Estado atue sem, ou mesmo contra, a vontade dos ofendidos.

Por último, mas não menos importante, a consideração do crime de ameaça agravada como tendo natureza pública conduziria a resultados absurdos e a incongruências práticas (dificilmente compreensíveis pelo cidadão comum), dando uma indesejável aparência de incoerência sistemática.

Assim, aceitar que o crime de ameaça agravada cometido através de ameaça com a prática de crimes puníveis com pena superior a 3 anos, ao contrário do crime de ameaça simples, não dependeria de queixa para ser criminalmente perseguido e não admitiria desistência de queixa, significaria admitir que:

a) se o agente ameaçar a vítima, maior de idade, e, em concurso efetivo, cometer contra ela um crime coação sexual (p. e p. pelo artigo 163.º do Código Penal), violação (artigo 164.º), abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165.º) ou procriação artificial não consentida (artigo 168.º), o processo não prossegue sem queixa da vítima e esta poderá desistir dela (quer quanto ao crime de perseguição, quer quanto ao crime contra a liberdade sexual - cf. artigos 154.º-A, n.º 5 e 178.º, n.º 1, do Código Penal);

b) já se o agente ameaçar a vítima com a prática de um crime de coação sexual ou violação, ainda que nunca concretize a ameaça, o processo prosseguirá independentemente de queixa, não podendo a vítima desistir da mesma.

Como é bom de ver, sentido algum fará que o anúncio da prática de um outro crime (que, se cometido, assumiria natureza semipública), atribua ao crime agravado por essa circunstância natureza pública.

Deste modo, a interpretação que se afigura mais coerente com o conjunto do sistema jurídico é aquela segundo a qual o crime de ameaça, seja simples ou agravado, carecerá sempre, para a perseguição dos seus agentes, de queixa.

*

Voltando ao caso vertente, e considerando a natureza semipública deste crime (pelas razões supra expostas), ao ter sido deduzida acusação pública por este crime sem que os putativos visados com o crime de ameaça agravada tenham apresentado queixa, agiu o Ministério Público sem legitimidade para tal, nos termos do artigo 49.º do Código de Processo Penal.

Ora, o segmento normativo da parte inicial da alínea b) do artigo 119.º do Código de Processo Penal («A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º») contempla não só situações omissivas do despacho acusatório quando a lei confere àquele legitimidade para o efeito, mas também os casos em que o Ministério Público acusa sem legitimidade, ou seja, fora da previsão do artigo 48.º do compêndio legislativo referido. (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19-02-2014, disponível em www.dgsi.pt, processo n.º 154/11.0GBCVL.C1).

Assim, a falta de legitimidade do Ministério Público para a dedução de acusação por crime semipúblico constituiu nulidade insanável, que deverá ser declarada em qualquer fase do procedimento, de acordo com o disposto no proémio do artigo 119.º, pelo que se declara a nulidade parcial da acusação no que concerne ao crime de ameaça agravada, extinguindo-se, quando a este crime, o procedimento criminal encetado contra o Arguido.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objeto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão (única) a decidir no presente recurso é a seguinte: o crime de ameaça agravado p. e p. p. art.º 153.º, n.º 1 e 155.º do Código Penal tem natureza semipública ou pública.

B. Decidindo.

Questão única

Natureza semipública ou pública do crime de ameaça agravado.

*

Em primeiro lugar e como se refere na própria decisão recorrida, trata-se de questão que tem recebido na doutrina e jurisprudência repostas diversas, sendo certo que, como também ali se menciona, é largamente maioritário o entendimento de que estamos perante um crime público.

Para dirimir de forma sedimentada tais entendimentos, importa, sinteticamente, analisar:

(i) Como distinguir as naturezas diversas (públicas, semipúblicas e particulares) dos crimes;

(ii) Traçar uma breve evolução histórica da evolução normativa do crime;

(iii) Avaliar da consistência das razões invocadas na decisão recorrida para justificar a opção pela natureza semipública e decidir de acordo com essa análise.

Assim:

(i) Como distinguir as naturezas diversas (públicas, semipúblicas e particulares) dos crimes

Devemos seguir o seguinte procedimento: “Há, assim, crimes em que a lei nada diz quanto ao procedimento criminal – são os que a doutrina denomina por crimes públicos -, noutros diz que depende de queixa – e que a doutrina denomina por crimes semipúblicos ou quase públicos -, e ainda noutros diz que o procedimento depende de acusação – são os chamados crimes particulares. Em termos práticos, há que ver se a norma penal estabelece algo sobre a exigência de queixa ou de acusação particular. Se nada estabelecer o crime é público e, consequentemente, o Ministério Público tem legitimidade quanto a esse crime para promover livremente o procedimento (2)”.

Temos, pois, uma técnica legislativa de assinalável simplicidade e que funciona segundo o princípio regra – excepção: se a lei nada disser quanto à natureza de determinado tipo legal de crime, deve o mesmo considerar-se público; se for assinalado que o procedimento criminal quanto a determinado tipo legal de crime depende de queixa ou participação estamos perante crime semipúblico; se a indicação for de necessidade de acusação particular, trata-se de crime particular.

(ii)

O crime em causa estava previsto no Código Penal (CP) de 1982 (aprovado pelo DL n.º 400/82, de 23.09), com a seguinte redacção:

Artigo 155.º (Ameaças) n.º 1 - Quem ameaçar outrem com a prática de um crime, provocando-lhe receio, medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação, será punido com pena de prisão até 1 ano ou com multa até 100 dias.

n.º 2 - No caso de se tratar de ameaça com a prática de crime a que corresponda pena de prisão superior a 3 anos, poderá a prisão elevar-se até 2 anos ou com pena de multa até 180 dias.

3 - O procedimento criminal depende de queixa.

O CP foi revisto em 1995 (DL n.º 48/95, de 15.03) e o crime em questão passou a ter a seguinte configuração textual (para além da mudança de numeração e da singularização da epígrafe):

Artigo 153.º (Ameaça)

1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.

2 - Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.

3 - O procedimento criminal depende de queixa.

Para além das alterações substantivas inerentes às realidades “receio”, “medo” e “inquietação” (nesta sede irrelevantes), o figurino normativo mantém-se inalterado, consagrando o n.º 1 a configuração “simples” do crime e o n.º 2 a configuração “qualificada” do mesmo. O n.º 3 de cada uma das redacções de 82 e de 95 mostra-se intocado, pelo que se mantém, de forma absolutamente inequívoca, a natureza semipública do crime, quer para a configuração “simples”, quer para a configuração “qualificada”. (cfr. art.º 49.º, n.º 1)

Na data da prática dos factos, quanto ao crime em causa, a estrutura normativa tinha, porém, sido substancialmente alterada (3). Assim:

Artigo 153.º Ameaça 1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. 2 - O procedimento criminal depende de queixa.

Artigo 155.º Agravação 1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C (4) forem realizados: a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; c) Contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; d) Por funcionário com grave abuso de autoridade; e) Por determinação da circunstância prevista na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º;o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B. 2 - As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça, da coação, da perseguição ou do casamento forçado, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.

Verifica-se, pois, pelo menos no plano formal, uma alteração substancial da apresentação das configurações simples e agravada do crime em causa: no art.º 153.º, n.º 1 do CP está tipificado o crime “simples”, sendo que, em relação ao mesmo, a natureza semipública é, como sempre foi, inequívoca, dada a manutenção absolutamente inalterada do n.º 2 relativamente às formulações anteriores supra descritas. Já a configuração qualificada, agora expressamente constante da epígrafe como “agravada”, está agora prevista no art.º 155.º, onde se afirma expressamente que, quando os factos previstos no artigo 153.º (só nos interessa, neste contexto, esta referência) forem realizados em determinadas circunstâncias ou tendo por agente ou vítimas determinadas pessoas (5), estamos perante o tipo qualificado, com a agravação sancionatória correspondente.

(iii) Avaliar da consistência das razões invocadas na decisão recorrida para justificar a opção pela natureza semipública e ulterior decisão.

Segundo a decisão recorrida, o MP não tinha legitimidade para acusar o arguido pelo crime de ameaça agravada. Na economia de tal decisão “teleologicamente não há razão para que o crime de ameaça agravada seja considerado público”. Para ilustrar tal elemento teleológico, invoca-se que, caso se considerasse in casu, a aplicação do art.º 155.º do CP, ter-se-ia de afastar, para além da previsão da natureza semipública de alguns dos crimes antecedentes, a aplicação de sanções acessórias também aí previstas (6). Salvo o devido respeito, trata-se de um argumento sem consistência, uma vez que o art.º 155.º, n.º 1 apenas se refere que, quanto aos “factos” previstos nos artigos antecedentes, se forem praticados em determinadas circunstâncias, tendo por agentes ou vítimas determinadas pessoas, ocorre uma agravação do respectivo sancionamento. Nada se menciona quanto a sanções acessórias ali previstas, que, obviamente, mantêm a sua operacionalidade. Não se podem é confundir realidades dogmaticamente diferentes como o sancionamento dos crimes e o seu regime público ou semipúblico. Deste modo, o que seria sistematicamente absurdo é que o tipo simples previsse sanções acessórias e o tipo agravado as não previsse. Ainda dentro da mesma linha de raciocínio, e agora apelando ao elemento histórico da interpretação, afirma-se que nada mudou relativamente às versões do CP de 1982 e de 1995, devendo manter-se o carácter semipúblico do crime de ameaça agravado. De facto, não há uma relação de proporcionalidade directa entre os graus punitivos dos tipos legais de crime e a sua natureza pública ou semipública (7). No entanto, não é menos verdade que, segundo a Proposta de Lei n.º 98/X (https://app.parlamento.pt/ (8)) o crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção. Nestes termos, afigura-se-nos inequívoco, ao invés do que consta da decisão recorrida, que “… houve a clara intenção de aproximar o crime de ameaça agravado ao crime de coação (que sempre foi um crime público) e essa aproximação verifica-se, não só ao nível das circunstâncias agravantes, mas também quanto à natureza pública do crime.” (9) Trata-se, apenas e tão-só, de uma situação semelhante à que ocorre na díade furto simples / qualificado (203.º e 204.º do CP), ofensa à integridade simples e qualificada (143.º/144.º/145.º do CP) e dano simples qualificado (212.º/213.º do CP) (10). Aliás, em face do novo texto legal (e da inexistência de qualquer referência à necessidade de queixa – art.º 155.º) parece-nos, salvo o devido respeito, um exercício de criatividade hermenêutica, pretender atribuir ao crime de ameaça agravada a natureza semipública, que sempre teria de passar por uma interpretação abrogante da norma, sem qualquer justificação: “Mal se compreenderia que o legislador tivesse agregado a agravação dos crimes de ameaça e de coação na mesma disposição legal, e depois não retirasse daí todas as consequências, designadamente as inerentes à desnecessidade de apresentação de queixa para ambos os crimes agravados. Não se vislumbra qualquer razão para o crime de ameaça agravada p. e p. na al. a) do n.º 1 do art.º 155.º ser semipúblico e já não o ser o de coação agravada previsto na mesma disposição legal.” (11) Também consta da decisão recorrida (e do aí mencionado estudo) que “não se vislumbram crimes contra a vida susceptíveis de serem conteúdo de uma ameaça punidos com pena prisão inferior ou igual a 3 anos, para que se possa dizer que a queixa só é exigida para estes.” Sem prejuízo de se reconhecer a respectiva raridade, efectivamente existe o crime previsto no art.º 139.º (integrado no capítulo I do título I do livro II do CP, precisamente intitulado “Dos crimes contra a vida”) do CP, punido com pena até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias. Por último, menciona a decisão recorrida uma desarticulação sistemática entre o entendimento da ameaça agravada como crime público e, por exemplo, os crimes de coacção sexual (163.º do CP), violação (164.º) abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (165.º do CP) ou procriação artificial não consentida (168.º) em que “o processo não prossegue sem queixa da vítima e esta poderá desistir dela (quer quanto ao crime de perseguição, quer quanto ao crime contra a liberdade sexual…).” Quanto a esta objecção, há que averiguar da dogmática “função da queixa” em sede de Direito Penal e Processual Penal. Classicamente, são atribuídas três possíveis funções a esta exigência para o procedimento (12): Assim, ao lado do significado criminal relativamente pequeno do delito criminal e da possível intromissão na esfera das relações pessoais entre o agente e outros participantes processuais, importa referir que “… a exigência de queixa ou (e) de acusação particular pode servir a função de específica protecção da vítima do crime, nomeadamente no caso dos crimes que afectam de maneira profunda a esfera da intimidade daquela. Quem seja vítima de um crime que penetra profundamente em valores de intimidade – nomeadamente, mas não só, da esfera sexual ou familiar […] deve poder, em princípio, decidir se ao mal do crime lhe convém juntar o que pode ser o mal do desvelamento da sua intimidade e da consequente estigmatização processual; sob pena de, de outra forma, de poderem frustrar-se as intenções político-criminais que, nestes casos, se pretenderam alcançar com a criminalização.” As incriminações semipúblicas alegadamente desarticuladas acima mencionadas na decisão recorrida integram, inequivocamente, a mencionada esfera da intimidade das vítimas, (esfera sexual ou familiar), que determinam que o Direito Penal só deva intervir se a vítima assim o entender, uma vez que a sua intervenção até poderá prejudicar a vítima, resultado paradoxal que importa, obviamente, evitar. Essas circunstâncias, em sede de ameaça agravada não têm, também de forma óbvia, diríamos, qualquer relevância. O recurso é, estando em causa, como está, um crime público, consequentemente, procedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que declarou a nulidade insanável da acusação por falta de legitimidade do Ministério Público para acusar pelo crime de ameaça agravada e extinguiu quanto a este crime, o procedimento criminal, devendo os autos prosseguir para julgamento do mesmo, com todas as legais consequências, dada a natureza pública do aludido crime.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator

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1 Diploma a que pertencerão todas as indicações normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.

2 Germano Marques da Silva in Direito Processual Penal Português, 1, Universidade Católica Editora, 2020, página 252.

3 Com a redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04.09.

4 A redacção do n.º 1 e respectiva alínea e), bem como a atinente estatuição, foram introduzidas pela Lei 83/2015, de 05.08, entrada em vigor em 05.09 do mesmo ano.

5 Sublinhando-se o carácter inovatório de certas qualificativas, concretamente as previstas nas alíneas b), c), d) e e) do art.º 155.º, que não estavam previstas no art.º 153.º como agravantes do crime de ameaça antes da alteração de 2007.

6 Especificamente, as sanções acessórias previstas no art.º 154.º-A, n.º 3 do CP.

7 Daí que o exemplo reproduzido na decisão recorrida do estudo de Pedro Frias (páginas 50/1 – graus diferentes da “liberdade de passear” nos crimes de ameaça e de coacção) se nos afigure, salvo o devido respeito, completamente inócuo, porque de uma evidência notória.

8 Que esteve na origem da revisão do CP de 2007.

9 Acórdão da Relação do Porto de 26.05.2021 proferido no processo n.º 775/18.0GBVFR.P1 e disponível, como os demais mencionados sem referência diversa em www.dgsi.pt.

10 Cfr. Acórdão imediatamente supracitado.

11 Acórdão da RC de 03.02.2016 proferido no processo n.º 164/11.8GAPNC.C1.

12 Figueiredo Dias in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Noticias, páginas 666 a 668.