Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2699/15.4T8STR.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESTITUIÇÃO DE BENS
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: REVOGADA
Sumário: Depois de resolvido o contrato de locação financeira, não obsta à restituição do bem, nos termos do artº 21º do citado Decreto-Lei nº 149/95, o facto de as partes estarem em negociações para regularização da situação contratual.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Em procedimento cautelar de entrega judicial de bem locado, a correr termos em Secção Cível da Instância Central, instaurado por «Banco AA, SA» (BCP) contra «BB, Lda.», veio a primeira invocar um contrato de locação financeira imobiliária celebrado entre requerente e requerida, com base no qual aquela locou e entregou a esta prédio misto, denominado por Cabeço, registado em nome da requerente, contra o pagamento de determinadas rendas mensais, e alegar o incumprimento desse contrato por falta de pagamento de rendas por parte da requerida, o que determinou a resolução do contrato por iniciativa da requerente em 30/6/2015, encontrando-se nessa data em dívida a quantia de 150.231,99 €, e sem que até ao presente a requerida tenha restituído à requerente o referido imóvel. Consequentemente, formulou a requerente pedido no sentido de ser ordenada a entrega judicial do bem locado, ao abrigo do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, peticionando, ao mesmo tempo, a antecipação do juízo sobre a causa principal, conforme nº 7 daquela disposição legal.

A requerida deduziu oposição, em que reconhece ter existido uma situação de incumprimento, que determinou a resolução do contrato por parte da requerida, mas alegando também que tem mantido negociações com a requerente com vista à regularização da situação contratual existente entre ambas, no âmbito das quais até depositou a quantia de 10.000,00 € em conta da requerente.
Depois de suscitada possibilidade de acordo entre as partes para a restruturação do crédito, que determinou a suspensão da instância nos presentes autos, verificou-se o insucesso das respectivas negociações, pelo que, retomada a instância, se realizou audiência de julgamento, com produção da prova, na sequência da qual foi proferida decisão que julgou improcedente a providência requerida. Na fundamentação da decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: da matéria de facto indiciariamente provada resultou que a requerida deixou de pagar rendas devidas e, por isso, houve incumprimento do contrato por parte daquela, o que determinou a iniciativa da requerente de resolução do contrato, a qual se consumou efectivamente; porém, e apesar dessa resolução, as partes encetaram negociações com vista à reposição dos termos do contrato, tendo a requerida, na sequência das mesmas, e a solicitação da requerente, efectuado depósito bancário a favor desta, correspondente aparentemente às rendas em dívida até à data do depósito; essa actuação da requerente criou na requerida a convicção de que o contrato prosseguiria os seus termos ou seria renegociado, sem ter de restituir o imóvel; a presente demanda, perante a referida actuação da requerente, configura uma iniciativa abusiva, em abuso de direito, com violação dos princípios da boa fé e da confiança, que determina a improcedência do presente procedimento.

Inconformada com tal decisão, dela apelou a requerente, formulando as seguintes conclusões:

«a) Fundamenta-se a Douta Decisão recorrida na tese de que “… apesar de ter resolvido o contrato, o Requerente criou na Requerida a convicção de que o contrato poderia prosseguir os seus termos ou, pelo menos, que seria renegociado e, em consequência, não teria de restituir o imóvel (…) a situação criada pela Requerente configura uma situação abusiva, pois excede de forma evidente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico visado com as regras invocadas”;

b) Contudo, estão preenchidos todos os requisitos das providências cautelares de entrega judicial previstos no art. 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, para que o presente procedimento cautelar seja decretado;

c) Na verdade, dos factos indiciariamente provados pelo douto Tribunal “a quo” resulta que foi celebrado um contrato de locação financeira entre a ora Apelante e a locatária;

d) Contrato que não foi pontualmente cumprido pela sociedade locatária, pois deixou de liquidar as rendas que se venceram entre 25-02-2015 até 25-06-2015;

e) O contrato de locação financeira foi resolvido, através de carta registada com aviso de recepção, enviada em 30-06-2015, para a morada indicada pela locatária no contrato;

f) O imóvel, objecto do contrato de locação financeira, não foi restituído à ora Apelante;

g) São estes os requisitos necessários para a procedência do procedimento cautelar e que a ora Apelante logrou provar;

h) Acresce que, em data posterior à resolução, e conforme resulta do factos indiciariamente provados pelo douto Tribunal “a quo”, a sociedade locatária e a ora Apelante encetaram negociações em vista à restruturação do crédito;

i) Não tendo a sociedade locatária devolvido o imóvel à ora Apelante;

j) Nem tão-pouco pago a totalidade do montante negociado, após um longo período de negociações que obteve com a ora Apelante, ou diligenciado no sentido da obtenção de licenciamento para o estacionamento, facto que apenas é imputável à locatária, mas que obsta à formalização de um novo contrato de locação financeira;

k) Além de que a sociedade locatária deixou de pagar as rendas previstas contratualmente e, perante a resolução do contrato – que se mantém –, não entregou o imóvel ao Locador, ora Apelante;

l) Logo, não faz sentido que a douta Decisão recorrida mencione que não poderá ser determinada a entrega do bem;

m) Nem pode julgar improcedente o procedimento cautelar, como faz, com tal fundamento;

n) Pois o procedimento normal de uma providência cautelar é ipsis verbis o constante dos autos;

o) De facto, a sociedade locatária não tem qualquer título legítimo para não entregar o bem ao seu proprietário, a ora Apelante;

p) Face a todo o exposto, não nos parece que exista fundamento para a improcedência da presente providência cautelar, pois encontram-se preenchidos todos os pressupostos da mesma;

q) Além de que, dos factos considerados indiciariamente provados pelo douto Tribunal, não resulta nenhum facto que obste ao decretamento do presente procedimento cautelar;

r) Pelo que, e salvo o devido respeito, mal andou o douto Tribunal recorrido, ao decidir como decidiu.»

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações da recorrente resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar – perante o demonstrado incumprimento do contrato de locação em causa por parte da requerida, com a consequente obrigação desta de restituição dos bens locados – se a actuação desenvolvida pela requerente, em subsequentes negociações entre as partes, consubstancia um abuso de direito, obstando à procedência da pretensão de restituição.

Cumpre apreciar e decidir.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou indiciariamente provados os seguintes factos, não sujeitos a impugnação, que aqui se aceitam (cfr. artº 663º, nº 6, do NCPC) e que, para melhor análise, se passam a reproduzir:

«1. Em 31 de Julho de 2014, o Banco, ora Requerente, deu de Locação Financeira Imobiliária nº 450011196 à Requerida o seguinte imóvel:

Prédio Misto, denominado por Cabeço, descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número 979 e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos 2729 e 2703 sendo provenientes, respectivamente, dos artigos 3698 e 3670 da extinta freguesia, e ainda, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 297, secção B da união das freguesias de, sendo proveniente do artigo 297, secção B da extinta freguesia. (artº 1º do requerimento inicial).

2. A A aquisição do imóvel identificado no anterior artigo 1º, a favor do Banco AA, S.A., encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial pela inscrição Ap. 1 de 2005/05/30. (artº 2º do requerimento inicial).

3. E a locação financeira imobiliária, a favor da ora Requerida, encontrava-se devidamente registada, através da inscrição Ap. 1270 de 2014/07/31. (artº 3º do requerimento inicial).

4. O Banco, ora Requerente, requereu, previamente, o cancelamento do registo de locação financeira imobiliária do supra mencionado imóvel. (artº 4º do requerimento inicial).

5. Nos termos do contrato de locação financeira imobiliária a locatária, ora Requerida, estava obrigada a efectuar o pagamento de 276 rendas mensais, da seguinte forma:

a) 1ª renda seria no valor de € 1.234,62, com vencimento a 25/08/2014;

b) 2ª à 48ª renda seria no valor de € 1.234,62, com vencimento a dia 25 de cada mês;

c) Da 49ª à 276ª renda seria no valor de € 2.904,05, com vencimento a dia 25 de cada mês. (artº 5º do requerimento inicial).

6. A locatária, ora Requerida, não efectuou o pagamento das rendas que se venceram em 25-02-2015 até 25-06-2015, inclusive. (artº 9º do requerimento inicial).

7. O Requerente remeteu à Requerida a carta registada com aviso de recepção, datada de 18.05.2015, recebida em 28.05.2015, de que existe cópia a fls. 31-32, com o seguinte teor:

“Assunto: Contrato de Locação Financeira 450011196

Exmºs. Senhores,

Relativamente ao contrato de locação financeira identificado em epígrafe, constituíram-se V.Exªs. em incumprimento por não terem procedido ao pagamento das seguintes rendas:

Nr. Renda: 7; Data de vencimento: 25.02.1015; Valor da Renda: 51,00 Eur;

Nr. Renda: 8; Data de vencimento: 25.03.1015; Valor da Renda: 1.153,17 Eur;

Nr. Renda: 9; Data de vencimento: 25.04.1015; Valor da Renda: 1.153,17 Eur;

Nos termos das Condições Gerais do referido contrato, o incumprimento tornar-se-á definitivo caso V. Exªs. não façam cessar a mora, repondo a situação que se verificaria se não tivesse havido incumprimento, no prazo de 30 dias, a contar da emissão da presente intimação para cumprimento, com as consequências daí resultantes.

Informamos ainda V. Exªs. de que sobre o valor das rendas vencidas e não pagas, incidem os respectivos juros de mora que perfazem o valor de 25,55€, calculados até 17.06.2015. (...)” (artº 9º do requerimento inicial).

8. O Requerente remeteu à Requerida a carta registada com aviso de recepção, datada de 30.06.2015, que foi recebida, de que existe cópia a fls. 33-34, com o seguinte teor:

“Assunto: Contrato de Locação Financeira 450011196

Exmºs. Senhores,

Não tendo V. Exªs. procedido ao pagamento das rendas em débito ao Banco AA, S.A., no valor global de 2.357,34€, apesar de interpelados para o fazer no prazo de 30 dias a contar da data de recepção da carta enviada em 18.05.2015, incorreram, por isso, em incumprimento definitivo, conforme previsto nas Condições Gerais do contrato de locação financeira. (...)” (artº 12º do requerimento inicial).

9. O imóvel identificado no nº 1 não foi restituído ao Requerente. (artº 15º do requerimento inicial).

10. Desde 03.06.2015 que a Requerida tem vindo a manter negociações com o Requerente tendo em vista a regularização da situação contratual existente entre ambos. (artºs 3º e 7º e último artigo da oposição).

11. Em 21 de Outubro de 2015 a Requerida enviou ao Requerente, na sequência dos contactos verbais estabelecidos, um mail, de que existe cópia a fls. 59, do qual consta, nomeadamente:

”(...) No que concerne ao Contrato de Locação Financeira Imobiliária nº 450011196, estão em dívida "Rendas" de Março a Outubro de 2015, no valor de € 9.876,96, a que acresce 1.536,66 de IMI's/2015. (...)

Considerando que os valores não são de grande monta comparados os totais de cada um dos contratos e, considerando também que o tempo do incumprimento de ambas as obrigações também não é exagerado (sendo certo que é de obrigação o seu pagamento mensal), ontem dia 20.10.2015, solicitámos via telefone a possibilidade de serem recuperados de forma faseada os valores em dívida acima identificados, bem assim com a consequente paragem destas duas situações que punham em causa a continuidade da empresa com todas as implicações altamente desagradáveis daí resultantes.

Foi com satisfação que recebemos a notícia que o Banco está sensível a essa situação e que para a poder ultrapassar a BB tem que depositar até 31 de Outubro de 2015 a quantia de 10.000 €. (...)

Assim, muito agradecemos, para além da disponibilidade demonstrada, que nos indiquem o número de conta onde se pode efectuar o depósito, pois o nosso advogado, apesar de tudo isto, deduzir oposição ao pedido de Providência Cautelar interposta, e quer nas alegações poder fazer prova do depósito bancário de acordo com o combinado. (...)”. (artº 4º da oposição).

12. Em resposta a este mail a representante do Requerente indicou o NIB onde o depósito daquela importância deveria ser feito. (artº 5º da oposição).

13. A Requerida efectuou o depósito de € 10.000,00 em 27.10.2015. (artº 6º da oposição).

14. Para além do depósito atrás referido, a Requerida depositou mais € 9.000,00.»


B) DE DIREITO:

Como se evidencia, estamos perante um contrato de locação financeira de bem imóvel, celebrado no âmbito do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho. E está assente, como resulta da matéria de facto julgada indiciariamente provada, o seguinte: a requerida não procedeu ao pagamento de rendas vencidas (ponto 6º da matéria de facto); a requerente enviou à requerida carta contendo declaração resolutiva do contrato com base naquela falta de pagamento de rendas (ponto 8º da matéria de facto); o imóvel em causa não foi restituído à requerente (ponto 9º da matéria de facto).

O contrato foi resolvido pela requerente com fundamento no seu incumprimento pela requerida, por falta de pagamento de rendas, ao abrigo do artº 17º do Decreto-Lei nº 149/95. Não oferece dúvidas que existia fundamento para aquela resolução, atento o não pagamento atempado de rendas vencidas (em falta desde 25/2/2015), e que a comunicação resolutiva operou os seus efeitos – tal como foi reconhecido na decisão recorrida, sem que essas conclusões tenham sido subsequentemente impugnadas por qualquer das partes. Aliás, a própria «oposição» apresentada pela requerida já não continha qualquer negação relativamente ao incumprimento e à resolução: apenas se limitava a anunciar que estavam em curso negociações entre as partes para a «regularização da situação contratual».

Com base nessa resolução, assistia então à requerente o direito de requerer providência cautelar de entrega judicial do bem locado, ao abrigo do artº 21º do citado Decreto-Lei nº 149/95. Nos termos desse preceito basta a probabilidade séria da verificação (para o que aqui interessa) da resolução e do fundamento resolutivo e da não restituição do bem pelo locatário, comprovados pela prova sumária produzida, para se obter a procedência da providência, que consistirá na “entrega imediata ao requerente” do bem locado (cfr. nos 1, 2 e 4 desse artº 21º). Não se exige, pois, em relação a esta providência cautelar de natureza especial, a verificação de um requisito geral das providências cautelares previstas no Código de Processo Civil, qual seja o do periculum in mora – ou seja, o do receio de lesão do direito. E, no caso presente, não oferecerá dúvidas a verificação dos pressupostos legalmente exigidos – pelo que nada pareceria obstar ao decretamento da providência.

Apenas merecerá fazer uma breve referência complementar ao regime legal emergente do Decreto-Lei nº 149/95. Com as alterações introduzidas nesse diploma pelo Decreto-Lei nº 30/2008, de 25 de Fevereiro, foi formulado um novo nº 7 do artº 21º, o qual passou a prever que no âmbito do procedimento cautelar, e caso fosse decretada a respectiva providência, pudesse haver uma “antecipação do juízo sobre a causa principal”. Como se salienta na nota preambular desse segundo diploma, isso traduz-se em permitir “ao juiz decidir a causa principal após decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma acção declarativa”, com o objectivo de assim se evitar “a existência de duas acções judiciais – uma providência cautelar e uma acção principal – que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem locado”. Faz-se notar, ainda, que o actual nº 9 (nº 8 da redacção originária) do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 30/2008, determina que “são subsidiariamente aplicáveis a esta providência as disposições gerais sobre providências cautelares, previstas no Código de processo civil, em tudo o que não estiver especialmente regulado no presente diploma”.

Posto isto, importa então recordar que o tribunal a quo entendeu ocorrer uma situação obstativa da entrega do bem locado, que consistiria precisamente na ocorrência de negociações entre as partes com vista à mencionada «regularização da situação contratual» e que até envolveu a entrega de quantias pela requerida à requerente (aludindo a um concreto depósito, que será o indicado no ponto de facto nº 13, efectuado em 27/10/2015, no valor de 10.000,00 €, que, no seu entender, «corresponde, aparentemente, às rendas em dívida até à data em que foi efectuado o depósito»). Dessas negociações e da entrega dessas quantias extraiu o tribunal a quo a conclusão de que a «Requerente criou na Requerida a convicção de que o contrato poderia prosseguir os seus termos, ou, pelo menos, que seria renegociado e, em consequência, não teria de restituir o imóvel» – e que a manutenção do presente procedimento cautelar (instaurado em 7/10/2015) se traduziria, assim, num abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium.

Comece-se por dizer o seguinte: mesmo admitindo que efectivamente se criou essa convicção na requerida, o certo é que a mesma deixou de ter qualquer fundamento a partir do momento em que essas negociações se goraram – aliás, desenvolvidas sob a alçada tutelar do próprio tribunal, que suspendeu a presente instância por 30 dias para permitir o prosseguimento dessas negociações (cfr. acta de fls. 71-73) e lhe deu seguimento depois de comunicada a frustração das mesmas (cfr. fls. 75). Ora, se as partes não chegaram a qualquer acordo, é porque tudo se mantém na situação previamente verificada: incumprimento do contrato e subsequente resolução. E, perante isto, só haverá que extrair as necessárias consequências legais: decretamento da requerida providência cautelar de entrega judicial do bem locado, ao abrigo do artº 21º do citado Decreto-Lei nº 149/95.

Entende o tribunal a quo que o pagamento de quantia «aparentemente» equivalente às quantias em dívida reforçaria aquela convicção da requerida de que a requerente já não pretenderia a restituição do imóvel. No entanto, convém dizer que essa quantia, se reportada às rendas vencidas, sempre seria devida e até com juros de mora, por serem rendas em dívida, independentemente da resolução do contrato – pelo que não assistia à requerida razão para atribuir a esse pagamento o significado de uma qualquer novação da obrigação originária, como se o contrato de locação financeira, já resolvido, tivesse ressurgido das cinzas

Se não há factualidade que comprove uma qualquer forma de renovação do contrato, que “apagasse” os anteriores incumprimento e resolução, é evidente que a impossibilidade de acordo das partes quanto à «regularização da situação contratual» não pode implicar que fiquem numa espécie de limbo esses incumprimento e resolução – e, consequentemente, o próprio pedido de providência de entrega judicial que naqueles se funda. Extrair dessa frustração de negociações e da subsequente retoma do prosseguimento do processo um abuso de direito, afigura-se, pois, uma solução excessiva, sem aderência à normalidade das coisas.

Se neste caso se entendesse que o prosseguimento do processo constituiria um abuso de direito, então tornar-se-ia lícito extrapolar a seguinte conclusão: em qualquer processo em que houvesse notícia de decorrerem negociações tendentes à celebração de um acordo (com ou sem suspensão da instância), passaria a ter-se por abusivo o seu prosseguimento, ainda que essas negociações se viessem a frustrar. Obviamente, tal extrapolação não teria qualquer razoabilidade, nem fundamento legal.

Sendo assim, somos levados a concluir que nada poderá obstar à procedência da pretensão da requerente – pelo que deve determinar-se a restituição do bem locado. Caberá então ao tribunal recorrido concretizar a realização da diligência de entrega, pelos meios que se mostrem necessários e adequados. Mais deverá o tribunal recorrido, em seguida, dar cumprimento aos trâmites conducentes à antecipação do juízo sobre a causa principal, conforme peticionado, e em conformidade com o disposto no actual nº 7 do artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95 (na redacção do Decreto-Lei nº 30/2008).

Em suma: merece provimento o presente recurso, por se considerar estarem preenchidos os requisitos que fundamentam a entrega judicial de bem locado, nos termos previstos no artº 21º do Decreto-Lei nº 149/95, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida e decretada a providência requerida.

*

III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se conceder provimento à presente apelação e revogar a decisão recorrida, julgando procedente a providência cautelar requerida.

Consequentemente, ordena-se a entrega judicial do bem locado, identificado nos autos, à locadora requerente, ficando a cargo do tribunal recorrido a realização das diligências devidas para cumprimento desta decisão, com uso dos meios que se mostrem necessários e adequados.

Custas pela apelada (artº 527º do NCPC).


Évora, 06/10/2016


Mário António Mendes Serrano


Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes


Mário João Canelas Brás