Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1214/16.7T8STB.E1
Relator: TOMÉ RAMIÃO
Descritores: USUCAPIÃO
FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
UNIDADE DE CULTURA
NULIDADE
Data do Acordão: 05/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1. As normas jurídicas previstas no direito administrativo relativas ao ordenamento do território, por defenderem o interesse público, proíbem fracionamentos e destaques ilegais enquanto resultado, pelo que também proíbem necessariamente todos os meios adequados para o atingir.
2. Se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto no art.º 1376.º e 1379.º do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, de parcela de terreno de área inferior a superfície correspondente á unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a atual redação do n.º1 do art.º 1379.º do C. Civil, na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com a nulidade todos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Évora
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I. Relatório.
O Digno Magistrado do Ministério Público intentou a presente ação declarativa comum contra AA, BB e CC, pedindo a declaração de nulidade da divisão de um prédio rústico, titulada por escrituras de justificação outorgadas pelos réus em 26.09.2013.
Para tanto, alegou, em síntese, que através daquelas escrituras, os réus justificaram a posse de duas parcelas de um prédio misto sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, uma com a área de 2753,17m2 e outra com a área de 2623,92m2, tendo a divisão e desanexação ocorrido nessa data, ou em data próxima, pelo que as declarações constantes das escrituras são falsas. A divisão do prédio primitivo é proibida por Lei, porquanto as parcelas têm área inferior à área de cultura mínima, nos termos do art.º 1376º n.º 1 do Cód. Civil e Portaria 202/70, de 21/04.
Citados, os réus contestaram, alegando que o prédio foi objeto de divisão e doação verbal nos anos 70 e que desde então exerceram o direito de propriedade sobre a respetiva parcela, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, adquirindo tais parcelas por usucapião, pelo que a ação deve ser julgada improcedente.
Foi proferido o despacho saneador, que afirmou a validade e regularidade da instância, identificou o objeto de litígio e enunciou os temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e depois foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e absolveu os réus do pedido.
Inconformado com esta sentença, veio o Digno Magistrado do Ministério Público interpor o presente recurso, apresentando alegações e terminando com as seguintes conclusões:
1. Ainda que se tenha verificado a usucapião, tal instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima;
2. Estas últimas normas constituem a disposição legal em contrário, mencionada no próprio art.º 1287º do Código Civil;
3. Assim, os negócios jurídicos titulados pelas escrituras juntas aos autos são anuláveis, por ofensa do disposto no art.º 1376º do Código Civil.
Pelo que deve ser a douta sentença ser revogada, no que se fará Justiça!

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Contra-alegaram os réus, defendendo a bondade e manutenção integral da decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II – Âmbito do Recurso.
Perante o teor das conclusões formuladas pela recorrente, as quais (excetuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 608.º, nº2, 609º, 620º, 635º, nº3, 639.º/1, todos do C. P. Civil, constata-se que a questão essencial a decidir consiste em saber se as escrituras públicas realizadas pelos réus são nulas, por violarem preceitos legais imperativos que impedem o fracionamento de prédios rústicos nos termos aí concretizados.
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IIIFundamentação.
1. Matéria de facto.
1.1. Na 1.ª instância foi considerada assente a seguinte factualidade, a qual não vem questionada:
1 – No dia 26 de Setembro de 2013, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Licª … em Palmela, o 1º R justificou a posse do prédio misto sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, composto- na sua parte rústica de terreno hortícola de regadio, confrontando de Norte com António ..., de Sul com BB e CC, de Nascente com vala de água, e de Poente com Estrada pública, com a área de 2.753, 17 m2, atualmente inscrito na matriz com o art. … da Secção D.
2 - No dia 26 de Setembro de 2013, por escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Licª … em Palmela, os 2º e 3º RR justificaram a posse do prédio rústico sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, composto de terras de semeadura e árvores de fruto, confrontando de Norte com Filipe … e Maria …, de Sul e poente com estrada pública e de Nascente com vale de água, com a área de 2.623,92 m2, atualmente inscrito na matriz com o art. … da Secção D.
3 – Sendo ambos a destacar do prédio rústico com a área total aproximada de 5.500m2, composto a parte rústica de terreno hortícola de regadio e charco e a parte urbana de casas térreas de habitação, sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, inscrito na matriz sob o art.º …- secção D da Freguesia de Pinhal Novo, e descrito no registo predial de Palmela sob o nº … .
4 – No ano de 1970, o proprietário do prédio identificado em 3., Manuel …, dividiu-o em duas parcelas, a que correspondem os prédios descritos nas escrituras de justificação, e doou verbalmente cada uma delas a cada um dos filhos: o aqui réu AA e António …, pai dos 2º e 3º réus.
5 - Desde os anos 70 que o 1º R habita na casa implantada na parcela de terreno descrita em 1., pagando as respetivas contribuições (IMI) e realizando obras de melhoramento e conservação, designadamente, rebocou paredes, pintou o exterior e interior, colocou janelas novas em madeira e persianas.
6 – E vedou a parcela com rede e portão em chapa.
7 – Bem como lavrou e plantou a terra (com batatas, ervilhas, feijão) procedendo também à sua colheita.
8 – Atuando sempre à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de ser o dono da parcela.
9 – Nos anos 80, o pai dos 2º e 3º réus - Manuel … – doou-lhes verbalmente a parcela de terreno descrita em 2.
10 – Os 2º e 3º réus, e antes deles o seu pai, também vedaram a parcela e colocaram um portão em ferro.
11 – Desde 1970, o pai dos 2º e 3º réus, e depois eles próprios, cuidaram do terreno, mantendo-o limpo, lavrando, plantando e colhendo o produto das sementeiras.
12 – Atuando sempre à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de serem os donos da referida parcela
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2. O direito.
2.1. A questão central a decidir consiste, pois, em saber, se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do C. Civil.
Na decisão recorrida entendeu-se que ficou demonstrada a aquisição, por usucapião, por banda dos réus, das parcelas de terreno em causa e que essa aquisição prevalece sobre a proibição contida no art.º 1376.º/1 do C. Civil, não operando a nulidade do ato de fracionamento previsto no n.º1 do seu art.º 1379.º.
Com efeito, escreveu-se na decisão recorrida:
“(…) Mais se conclui, da factualidade assente, que essa utilização do terreno é conhecida e feita à vista de toda a gente, não havendo notícia de oposição de quer que seja, mantendo-se continuamente e sem interrupções desde 1970 e até à presente data.
Trata-se, pois, do exercício de posse não titulada, não registada, pacífica, pública, de boa-fé e ininterrupta, e que conduziu à aquisição originária do direito de propriedade sobre cada um dos lotes de terreno por usucapião (artigos 1296.º e 1316.º, do Código Civil).
Por tudo o exposto, verifica-se que, por via do instituto da usucapião, o 1º e os 2º e 3º réus adquiriram a propriedade de cada uma das parcelas.
Acresce que o momento da aquisição do direito real de propriedade por usucapião corresponde ao momento do início da posse (art.ºs 1317.º, alínea c) e 1288.º, do Código Civil) – ou seja, no caso concreto os efeitos da usucapião retroagem a 1970, data do início da posse.
Pelo que os réus lograram demonstrar a veracidade das declarações exaradas nas escrituras de justificação.
Ora, “o reconhecimento judicial da mencionada usucapião deve sobrepor-se e prevalecer sobre o fracionamento ilegal do prédio, que, porventura, tenha estado na respetiva génese, já porque em causa está um direito não transmitido, mas constituído ex novo, já porque, esgotado o decurso do tempo necessário à respetiva verificação, com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as conceções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.02.2014, Proc. n.º 314/2000.P1.S1, www.dgsi.pt.
Com efeito, “A jurisprudência tem entendido que sendo a usucapião uma forma de aquisição originária de propriedade, não deve ela ser condicionada por limitações ao direito de propriedade que antes dela e independentemente dela oneravam a propriedade” pois, “como forma originária de aquisição, faz com que a coisa passe para a esfera jurídica do adquirente, com as mesmas características da posse que este, durante certo lapso de tempo, exerceu sobre ela – é essa posse prolongada que justifica a usucapião e não faria sentido que uma disposição genérica de disciplina do fracionamento ou do emparcelamento limite um direito do titular que se constituiu ao longo de 15, 20 ou 30 anos.” – acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.09.2009, proc. n.º 896/2002-8, www.dgsi.pt.
Deste modo, acompanhando-se na íntegra a jurisprudência acima citada, importa concluir que a aquisição originária não está condicionada aos limites previstos para o fracionamento de prédios rústicos, antes se sobrepondo ao normativo do art. 1376º do Cód. Civil”.
Por sua vez, o Digno recorrente, apoiando-se em jurisprudência oposta do STJ, sustenta posição adversa, ou seja, não questiona que os factos assentes permitam confirmar a aquisição da propriedade dessas parcelas de terreno por banda dos réus, tal como consta das escrituras de justificação, mas que “tal instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima”, pois que as normas legais que proíbem o fracionamento “constituem a disposição legal em contrário, mencionada no próprio art.º 1287º do Código Civil”.
2.2. Ora, a questão colocada não tem merecido posição concordante na jurisprudência.
Com efeito, têm-se apontado dois caminhos totalmente opostos.
O primeiro, seguido na decisão recorrida, defende que o fracionamento do prédio rústico em parcela de área inferior a superfície correspondente á unidade de cultura fixada para essa zona do País não obsta à invocação da usucapião, verificados os respetivos pressupostos, prevalecendo sobre o regime prescrito no art.º 1376.º do C. Civil, como se escreveu, a título de exemplo, nos Acórdãos do S. T. J., de 19/10/2014 (Azevedo Ramos), e de 04/02/2014 ( Fernandes do vale), disponíveis em www.dgsi.pt; e de 27/6/2006, CJ/STJ, 2006, 2.º, pág. 133, neste último se afirmando “Porque a usucapião se funda direta e imediatamente na posse, a invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada e a ilegalidade do fracionamento ( falta de escritura pública e área inferior à unidade de cultura), carecem de potencialidade ou idoneidade para interferir na operância daquela forma de aquisição da parcela”.
Esta orientação assenta basicamente no conceito de posse previsto no art.º 1287.º do C. Civil e conteúdo normativo da usucapião, bem como na ausência de norma excecional que estabeleça taxativamente que determinada posse não conduz à usucapião.
Também Castro Mendes, “Teoria Geral”, 1979, Vol. II, pág. 235, defendia que não obsta à aquisição por usucapião de parte de prédio, dividido verbalmente pelos anteriores comproprietários, o facto de a sua superfície ser inferior a meio hectare, tendo em conta o valor da unidade de cultura fixado pela Portaria 202/70, de 21/4, mantida em vigor pelo art.º 53.º do Dec. Lei n.º 103/90, de 23/3.
Esta parece ser igualmente a interpretação de Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, pág. 269, que a este propósito referem o seguinte:
“Se, através de um negócio jurídico nulo (v.g., por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais. Embora as regras sobre fracionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinadas por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no n.º3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for, não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião)".
A segunda orientação defende posição totalmente oposta, sustentado que se as normas relativas ao ordenamento do território defendem o interesse público, “proíbem fracionamentos e destaques ilegais, enquanto resultado, pelo que também proíbem os meios indiretos de lá chegar, pelo que carecendo a usucapião de invocação, e sendo esta um ato jurídico dependente da manifestação de vontade, esse ato jurídico está ferido de nulidade e não poderá, pois, atento o disposto nos artigos 294.º e 295.º do Código Civil, ter por efeito a aquisição da propriedade, se a posse que se invoca contraria disposições legais imperativas como as que disciplinam o loteamento, o destaque ou o fracionamento de prédios”, como se escreveu no Acórdão do STJ de 26/01/2016 (Sebastião Póvoas), disponível em www.dgsi.pt .

Nesta segunda orientação se pronunciaram também os Acórdãos do STJ de 19/10/2004, Proc. n.º04B3293; de 03/12/2009, Proc. n.º 1102/03.7TBILH.C1.S1; de 02-02-2010, Proc. n.º 1816/06.0TBFUN.L1.S1; de 16/03/2010, Proc. n.º 636/09.4YFLSB (CJ – 2010, I, 133); de 01/06/2010, Proc. n.º 133/1994.L1.S1; de 19-04-2012, Proc. n.º 34/09.0T2AVR.C1.S1; de 13/02/2014, Proc. n.º 1508/07.2TCSNT.L1.S1; de 06/03/2014, Proc. n.º 1394/04.4PCAMD.L1.S1; de 20/05/2014, 11430/00.8TVPRT.P1.S1; e de 30/4/2015 (Salazar Casanova), todos disponíveis em www.dgsi.pt, sumariando-se neste último:” II - O reconhecimento da usucapião com base em atos possessórios sobre parcela de prédio rústico com área inferior à unidade de cultura resultante de mera divisão material, conduziria, dada a impossibilidade de ser proposta ação de anulação face a inexistência de negócio constitutivo do fracionamento do prédio que deu origem a essa parcela, a um resultado que a lei possibilita e pretende evitar quando esse ilegal fracionamento resulta de negócio jurídico. III - A lei não permite a divisão da propriedade de terrenos aptos para cultura em unidades, parcelas ou lotes de área inferior a unidade de cultura (art. 1376.º, n.º 1, do CC) salvo, designadamente, se o fracionamento tiver por fim a desintegração do terreno para construção (art. 1377.º, n.º 2, al. c), do CC)”.

Das duas posições em confronto, partilhamos e aderimos à segunda, por nos parecer a mais conforme com as disposições legais em confronto.
Com efeito, o art.º 1376.º/1 do C. Civil, estabelece que “os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do país".
Por sua vez, a Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, classificando para esse efeito os prédios rústicos em terrenos de regadio, arvenses ou hortícolas, bem como de sequeiro, fixava a unidade de cultura – hectares - (unidade física), para as diferentes zonas do País, sendo para a zona que ora nos importa (Setúbal), nos seguintes termos:
Terrenos de regadio: Arvenses - 2,50; Hortícolas de 0,50. Terrenos de sequeiro: 2,00.
Assim, de acordo com este diploma regulamentar, a dimensão da unidade de cultura é fixada em função do tipo de culturas para os terrenos de regadio: arvenses ou hortícolas.
O regime do fracionamento de prédios rústicos rege-se pelo disposto no artigo 1376.º e seguintes do Código Civil, bem como pelo que vinha prescrito nos artigos 19.º, 20.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro (que estabelecia as bases gerais do emparcelamento e fracionamento de prédios rústicos e explorações agrícolas), e o disposto no artigo 44.º, 45.º e 46 do Decreto-Lei n.º 103/90, de 22 de março (que regulamentava as bases gerais do emparcelamento e fracionamento de prédios rústicos e explorações agrícolas.

Nos termos do art.º 19.º/1, do Decreto-Lei n.º 384/88, de 25 de Outubro, ao fracionamento e à troca de terrenos com aptidão agrícola ou florestal aplicavam-se as regras dos artigos 1376.º e 1379.º do C. Civil.

Também o art.º 50.º do Dec. Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação dada pela Lei n.º 60/2007 de 4 de setembro, diploma legal que aprovou o regime jurídico da urbanização e edificação, quanto ao fracionamento de prédios rústicos manda aplicar o disposto nos mencionados diplomas legais.
A este propósito, sublinham Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs, “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado”, 2012, 3.ª edição, pág. 409, citando Menezes Cordeiro, que “as limitações ao fracionamento de prédios rústicos sempre visaram evitar os vários inconvenientes de ordem económica, designadamente pela menor produtividade agrícola dos prédios quando estes se reduzem a proporções muito limitadas”. E foi assim, adiantam, “por motivos estritamente relacionados com a viabilidade económica das explorações agrícolas, que se foram criando dificuldades ou mesmo impedimentos ao fracionamento de prédios rústicos, designadamente de todos aqueles que conduzissem a parcelas inferiores a certos limites”.
Das várias disposições legais aplicáveis, acrescentam as Autoras (págs. 411/412), resulta que “O proprietário de terreno que dele queira dispor em parcelas ou frações só poderá exercer esse direito de disposição se cada uma das unidades fundiárias que se vier a formar tiver área não inferior à unidade de cultura, fixada pela Portaria n.º 202/70, que exerce uma dupla função: de limite ao fracionamento, proibido abaixo da área fixada para aquela; de meta para que tendem certos emparcelamentos, através do direito de preferência e de troca”.
Entretanto, a Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, veio estabelecer o atual Regime Jurídico da Estruturação Fundiária e revogou os Decretos-Leis n.ºs 384/88, de 25 de outubro, e 103/90, de 22 de março, prescrevendo no seu art.º 49.º, n.º1 que “A unidade de cultura é fixada por portaria do membro do Governo responsável pela área do desenvolvimento rural e deve ser atualizada com um intervalo máximo de 10 anos”.
Este diploma legal alterou também o art.º 1379.º do C. Civil, dando-lhe a redação atual, que se reproduz:
«1 — São nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º
2 — São anuláveis os atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º se a construção não for iniciada no prazo de três anos.
3 — Tem legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.
4 — A ação de anulação caduca no fim de três anos, a contar do termo do prazo referido no n.º 2.»
Sendo que esse preceito legal antes desta alteração tinha a seguinte redação:
“1. São anuláveis os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, bem como o fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos.
2. Têm legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.
3. A ação de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do ato ou do termo do prazo referido no nº 1.”
Cotejando os dois textos legais, constata-se que a alteração introduzida consistiu na autonomização e inovação das consequências jurídicas previstas para os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, relativamente aos atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377º, , passando a violação das primeiras a padecer do vício de nulidade e mantendo a segunda a regra anterior da anulabilidade.
Dito de outro modo, o Legislador, em 2015, consagrou expressamente a nulidade para os atos de fracionamento ou troca que sejam contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, ou seja, que consistam no fracionamento do prédio rústico parcelas inferiores à unidade de cultura, quando anteriormente a consequência jurídica prevista para esses atos estava limitada à mera anulabilidade, a arguir no prazo de 3 anos, sob pena de sanação.
E a Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto, publicada ao abrigo do disposto no art.º 4.º/3 e art.º 49.º da mencionada Lei n.º 111/2015, veio fixar a superfície máxima resultante do redimensionamento de explorações agrícolas com vista à melhoria da estruturação fundiária da exploração e a unidade de cultura a que se refere o art.º 1376.º do Código Civil, estabelecendo (para a mesma zona do País) para os terrenos de regadio 2,5 (hectares) e para o terreno de sequeiro 48 (hectares).
Ora, como se afirma no citado Acórdão do STJ de 26/01/2016 “A observância das normas administrativas respeitantes ao ordenamento do território é – na posição que adotamos – não só necessária nos procedimentos de justificação que têm como fundamento a usucapião que correm perante os notários e conservadores, como também quando a mesma é invocada perante os tribunais.
Os tribunais judiciais não podem, pois, manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar o estado de unicidade nas relações entre ambos estes ramos do direito”.
No caso concreto, através da presente ação pretende o Ministério Público que se declarem nulos os negócios celebrados pelos réus no Cartório Notarial de Palmela, que se traduzem na celebração de escrituras públicas de justificação, nas quais justificaram a sua posse e aquisição, por usucapião, respetivamente do prédio misto sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, composto na sua parte rústica de terreno hortícola de regadio, com a área de 2.753, 17 m2, atualmente inscrito na matriz com o art. … da Secção D; e do prédio rústico sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, composto de terras de semeadura e árvores de fruto, com a área de 2.623,92 m2, atualmente inscrito na matriz com o art. … da Secção D; parcelas estas a destacar do prédio rústico com a área total aproximada de 5.500m2, composto a parte rústica de terreno hortícola de regadio e charco e a parte urbana de casas térreas de habitação, sito em C..., Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, inscrito na matriz sob o art.º …- secção D da Freguesia de Pinhal Novo, e descrito no registo predial de Palmela sob o nº ….
Assim, os réus dividiram em duas parcelas o prédio rústico com a área total aproximada de 5.500m2, correspondendo cada uma delas a uma área de 2.753, 17 m2 e 2.623,92 m2, respetivamente, ou seja, bastante inferior à unidade de cultura fixada para esse terreno e zona do País, que no caso era de 0,50 hectares - terreno de regadio hortícola, tendo em conta a Portaria n.º 202/70, de 21 de Abril, já que à data em que foi realizado o ato de fracionamento do prédio rústico (26 de Setembro de 2013), ainda não estava em vigor a Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto, na sequência da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto.
Assim, à invalidade desses atos de fracionamento e respetivas consequências jurídicas será aplicável o regime previsto no citado art.º 1379.º/1e 3 do C. Civil, na sua versão anterior à introduzida pela Lei n.º 111/2015, que prevê expressamente a anulabilidade, o que afasta a aplicação do art.º 294.º, ou seja, são anuláveis (e não nulos, como sucede atualmente), devendo a ação de anulação ser proposta no prazo de três anos, a contar da celebração do ato, sob pena de caducidade.
Sublinha-se que, face ao atual regime vertido no art.º 1379.º/1 do C. Civil, a lei sanciona com a nulidade o ato de fracionamento em desrespeito pelo art.º 1376.º, o que significa a impossibilidade de sanação da invalidade do ato, com todas as consequências daí decorrentes, nomeadamente a sua invocação a todo o tempo e conhecimento oficioso pelo tribunal – art.º 286.º, do C. Civil.
Regime que, apesar de não ser aplicável à data do ato de fracionamento, corrobora e reforça a interpretação que fazemos, aderindo à segunda orientação jurisprudencial, por traduzir a visão do legislador em reforçar a imperatividade das normas de interesse público, consubstanciadas nas regras estabelecidas para o fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos agrícolas ou da estruturação fundiária.
E como se reafirma no citado Acórdão do STJ de 30/04/2015, “A circunstância de, uma vez celebrado o negócio contra disposição imperativa, este ser anulável, não significa que o Tribunal consinta, por exemplo, em proceder à divisão de prédio rústico em parcelas inferiores à unidade de cultura, tratando como divisível o que a lei prescreve ser indivisível; tão pouco significa que se imponha ao oficial público ou outra entidade com poderes para o efeito a outorga de escritura de divisão de imóvel em que declaradamente se desrespeite o mencionado artigo 1376.º/1 do Código Civil”.
Assim, se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto no art.º 1376.º e 1379.º do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, de parcela de terreno de área inferior a superfície correspondente á unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a redação atual do n.º1 do art.º 1379.º do C. Civil, na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com a nulidade os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º.
Ora, quando a lei proíbe obtenção de um determinado resultado, tem de proibir necessariamente todos os meios adequados para o atingir.
Por isso, não faria sentido cominar esses atos de fracionamento contra o disposto no art.º 1376.º, mas permitir o seu fracionamento físico, material e jurídico em consequência da sua aquisição por usucapião, sob pena de, por essa via, estar encontrada a solução para afastar a proibição legal, ou seja, permitia-se a entrada pela janela, já que a porta estava fechada.
Acresce que o próprio art.º 1287.º do C. Civil, admite exceções ao instituto da usucapião, enquanto forma originária de aquisição do direito real de propriedade, ao prever expressamente que “a posse do direito de propriedade ou outro direito real de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito correspondente a sua atuação”.
Repare-se que nesta disposição legal não se estabelece “salvo disposição expressa em contrário”, o que permite afirmar que da conjugação do disposto no art.º 1376.º/1 com o n.º1 do art.º 1379.º, na sua versão atual, fica excluída a aquisição, por usucapião, de parcela de terreno inferior à área correspondente à unidade de cultura.
Acompanhamos, pois, de perto, o que se escreveu no citado Acórdão do STJ de 26/1/2016, “O diálogo entre o direito civil e o direito do urbanismo e o objetivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implicam que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fracionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião.
Os tribunais judiciais não podem manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar este estado “monocromático” das relações entre ambos estes ramos do direito”.
Por essa razão, a decisão recorrida não poderá ser mantida, pelo que procede a apelação.
Porque vencidos, as custas da apelação e da ação serão da responsabilidade dos réus/recorridos – art.º 527.º/1 e 2 do C. P. Civil.

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IV. Sumariando, nos termos do art.º 663.º/7 do C. P. C.
1. As normas jurídicas previstas no direito administrativo relativas ao ordenamento do território, por defenderem o interesse público, proíbem fracionamentos e destaques ilegais enquanto resultado, pelo que também proíbem necessariamente todos os meios adequados para o atingir.
2. Se dúvidas houvesse quanto à prevalência do regime previsto no art.º 1376.º e 1379.º do C. Civil sobre o fracionamento e aquisição, por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, de parcela de terreno de área inferior a superfície correspondente á unidade de cultura, deixaram de subsistir perante a atual redação do n.º1 do art.º 1379.º do C. Civil, na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, ao sancionar expressamente com a nulidade todos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos art.ºs 1376.º e 1378.º.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida, julgando procedente a ação e anulando as escrituras de justificação referidas em 1) e 2) dos factos assentes, comunicando-se ao Cartório Notarial respetivo, nos termos peticionados.
Custas da apelação e na 1.ª instância a cargo dos réus.
Évora, 2017/05/25
Tomé Ramião
Francisco Xavier
Maria João Sousa e Faro