Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
347/17.7T8STB.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A jurisdição administrativa é a competente para conhecer de acção onde é pedida a condenação de uma sociedade anónima, concessionária da exploração e gestão do sistema de abastecimento de água, por danos resultantes da actuação dessa concessionária no âmbito do contrato de concessão.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 347/17.7T8STB.E1 – APELAÇÃO (SETÚBAL)


Acordam os juízes nesta Relação:

A Autora/Apelante (…), residente no Beco do (…), n.º 11, em (…) de Azeitão, vem interpor recurso do douto despacho que foi proferido em 6 de Abril de 2017 (ora a fls. 95 a 98 dos autos), no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial da comarca de Setúbal, na presente acção declarativa de condenação, com processo comum, que havia instaurado contra a Ré/Apelada “Águas do Sado – Concessionária dos Sistemas de Abastecimento de Água e de Saneamento de Setúbal, S.A.”, com sede na Avenida Luísa Todi, n.º 287-3.º, Dto., em Setúbal, e em que pedira a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de € 4.471,87 (quatro mil e quatrocentos e setenta e um euros e oitenta e sete cêntimos), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, que alegadamente sofreu em consequência da actuação da Ré, que lhe veio a cortar o fornecimento de água da rede pública, por um período de dois dias, invocando que a Ré cortou injustificadamente o abastecimento de água à sua residência, cobrando-lhe indevidamente a penalização cujo reembolso peticiona, querendo ainda ser ressarcida pelo montante necessário à execução de obras de reparação do muro e áreas do jardim que foram danificados pelos técnicos da Ré, e pelos danos não patrimoniais sofridos no âmbito do contrato de fornecimento de água celebrado entre as partes, dentro da sua actividade de concessionária do sistema de abastecimento de água aos munícipes – douto despacho aquele que veio a considerar o Tribunal comum incompetente para conhecer e decidir da matéria subjacente ao pagamento dos valores e competente a jurisdição administrativa – intentando ver revogada tal decisão da 1ª instância e que venha a considerar-se o Tribunal comum competente em razão da matéria para conhecer dos pedidos formulados na acção, e culminando com as seguintes Conclusões:

I) A Apelante e a Apelada são entidades de direito Privado que estabeleceram entre si um contrato;
II) A Recorrida é uma sociedade anónima, de capitais exclusivamente privados que se rege pela Lei Comercial e pelos seus Estatutos, sendo, assim, uma sociedade de Direito Privado conforme muito bem admite;
III) O facto da actividade da Recorrida ser regulada por algumas disposições e princípios de direito administrativo, apenas se prende com a relação jurídica entre a Recorrida, enquanto adjudicatária, e a Câmara Municipal de Setúbal, enquanto adjudicante tout court;
IV) Dúvidas não subsistem que a presente acção intentada pela Recorrente não tem como objecto acções ou omissões adoptadas pela Recorrida no exercício de prerrogativas de poder público, ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, pelo que nunca seria de aplicar o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas;
V) A competência dos tribunais em razão da matéria afere-se pelos termos em que a acção é proposta e determina-se pela forma como o autor estrutura o pedido e os respectivos fundamentos;
VI) Aplicando as premissas supra expostas ao caso objecto dos presentes autos, a petição inicial foi proposta pela Recorrente por forma a caracterizar a relação jurídica que se estabelece entre as partes como sendo, e nem o contrário seria legalmente admissível, um contrato de fornecimento de água entre dois entes privados, pelo que basta atender à forma como a acção foi proposta para concluirmos que a competência material para julgar este litígio pertence aos tribunais comuns;
VII) Aliás, não sendo a jurisdição comum, segundo o tribunal a quo, alegadamente competente, e sendo óbvio que a administrativa também o não será, como poderá a aqui Apelante acautelar o seu direito que é constitucionalmente consagrado? Ora, se assim for, estaremos a dar primazia a uma justiça puramente formal, desconsiderando a justiça material de uma forma grosseira;
VIII) Assim, temos que o pedido e a causa de pedir do presente processo decorre da relação contratual de direito privado entre a Recorrente e a Recorrida, pelo que o Tribunal a quo é, sem margem para dúvidas, o competente.

Termos em que deverá, então, o Tribunal a quo vir a ser considerado o competente em razão da matéria para apreciar a causa, assim se revogando o despacho impugnado e se dando provimento ao presente recurso de Apelação.

Não foram deduzidas quaisquer contra-alegações.
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A matéria de facto necessária e suficiente para a decisão do pleito, nesta sede de recurso, é a que consta do relatório supra, para que ora se remete.
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E a questão que demanda a apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se o Tribunal a quo é o materialmente competente para conhecer do pedido de pagamento de determinados montantes que haviam sido peticionados pela Recorrente pela actuação da Recorrida no âmbito do contrato de fornecimento de água celebrado entre ambas, dentro da actividade desta de concessionária do sistema de abastecimento de água aos munícipes – vindo o douto despacho impugnado a atribuir (a requerimento da Ré) a competência aos Tribunais Administrativos. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado.
Vejamos, pois.

Conforme resulta do disposto no artigo 64.º do CPC, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a alguma outra ordem jurisdicional, sendo que são as leis de organização judiciária que determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada (artigo 65.º do CPC).

Ora, olhando para o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro – como olhou o douto despacho – não cremos, salva sempre melhor opinião, que o presente caso se não enquadre em alguma das situações nele previstas para se atribuir a competência aos Tribunais Administrativos, mormente naquelas alíneas em que se funda a decisão recorrida (isto tendo sempre presente, naturalmente, o modo como a Autora configurou a acção, o pedido que formula e os fundamentos com que o acaba por justificarvide, nesse sentido, o que se diz no corpo do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 2010, proferido no processo nº 1450/06.4TBALM-A.S1, publicado no site do ITIJ: “há que atentar nos termos em que a acção é proposta, ou seja, na forma com vêm definidos a causa de pedir e o pedido”).

Pois que nos termos da alínea h) do seu n.º 1, compete aos tribunais dessa jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”; e, nos termos da sua alínea o), as “Demais relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.
[A alínea f) do seu n.º 1 não é aqui aplicável pois, referindo-se também, é certo, à responsabilidade civil extracontratual, reporta-se a pessoas colectivas de direito público, o que não é o caso, em que estamos perante sociedade de direito privado (para ser aplicável tinha sempre que se tratar de algo que se pudesse ter por público ou de direito público, quer fossem os contratos, quer os actores que neles outorgam, quer as normas a que se submeteram).]

Já, porém, a actuação imputada à Ré “Águas do Sado – Concessionária dos Sistemas de Abastecimento de Água e de Saneamento de Setúbal, S.A.” (tal como vem descrita e caracterizada, na acção, pela Autora), não se reconduz a uma simples execução de contrato privado entre duas entidades privadas, como vem defender a Recorrente. Ela emana de verdadeiras prerrogativas de direito público, já que, se assim não fosse, não poderia impor-se ao munícipe, cortando a água, ou fixando unilateralmente quantias que, só depois de pagas, permitem a reabertura desse fornecimento (tudo tendo que ser feito pela Ré de acordo com a lei e os regulamentos aplicáveis e no âmbito da própria concessão, mas que a Autora vem qualificar de ter sido executado ilícita e arbitrariamente).

É perante essa sua impotência face à Ré que a Autora vem alegar que “Na sequência da referida fiscalização, foi a Autora notificada pela Ré da alegada existência de um ramal de água clandestino e com fundamento, apenas e só nessa suspeita, a Ré procedeu à suspensão do abastecimento de água na residência da Autora” (ponto 3º da petição inicial); que “uma vez que a Autora não podia, de forma alguma, continuar com a água cortada, subjugou-se às exigências da Ré, efectuando, de imediato, o pagamento da dita factura”, de € 1.591,87 (ponto 8º); que “apenas poderia ser aplicada à Autora a penalidade contratual do artigo 15.º do Regulamento dos Serviços de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais Urbanas de Setúbal em singelo, e nunca por nunca multiplicada por 3 anos” (ponto 13º); que “não obstante a Autora ter solicitado elementos probatórios da alegada situação invocada à Ré os mesmos não foram fornecidos, pelo que à mesma não restou outra alternativa senão apresentar reclamação expondo toda a situação” (ponto 9º); que “se conclui que não poderia a Ré actuar do modo como fez, exigindo pagamentos à Autora sob a ameaça de procederem ao corte do fornecimento de água” (ponto 26º); e que “a Ré usou da sua posição dominante sobre a Autora, tendo-lhe aplicado as penalidades contratuais, sob pena de corte de água” (no seu ponto 38º).
Há, portanto, aqui, todo um jus imperii que só poderia advir de ter sido a actuação da Ré – enquanto concessionária e de acordo com a concessão de um serviço público de abastecimento de águas e saneamento àquelas populações –, escudada em normas de direito substantivo público-administrativo.

E, por isso, verificando-se que o presente litígio respeita a acto praticado pela referida sociedade privada a coberto de poderes de autoridade, por tal via se transporta para o âmbito do direito administrativo e permitindo a aplicação do chamado regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, a que se reporta a supra citada alínea h).

Assim, escreve, a propósito, o douto despacho recorrido: “No caso e ante a factualidade invocada, estará em causa a alegada actuação ilícita da ré, a apreciar no âmbito de uma relação jurídica sujeita a regras de direito substantivo de direito público, plasmadas no Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto, bem como no Regulamento dos Serviços de Distribuição de Água e Drenagem de Águas Residuais Urbanas de Setúbal, aprovado pela Assembleia Municipal (o que mais não é do que o reflexo do ius imperii, emergente das vestes emprestadas à ré enquanto concessionária)”.

Temos, assim, por verificados, no caso vertente, os requisitos de que tal normativo legal (o mencionado artigo 4º do ETAF) faz depender a atribuição da competência aos Tribunais Administrativos.

Razão por que, nesse enquadramento fáctico e jurídico, ora se apresentem com competência para a apreciação desta acção os Tribunais dessa Jurisdição, pelo que se terá agora que manter, intacta na ordem jurídica, a douta decisão da 1ª instância que desse modo veio a dirimir a situação e improcedendo o presente recurso de Apelação.


E, em conclusão, dir-se-á:

A jurisdição administrativa é a competente para conhecer de acção onde é pedida a condenação de uma sociedade anónima, concessionária da exploração e gestão do sistema de abastecimento de água, por danos resultantes da actuação dessa concessionária no âmbito do contrato de concessão.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar o douto despacho recorrido.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.
Évora, 12 de Outubro de 2017
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral