Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
689/23.2T8ENT.E1
Relator: MARIA JOSÉ CORTES
Descritores: PERSI
COMUNICAÇÃO
PROVA DOCUMENTAL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – No requerimento de uma execução de valores decorrentes do incumprimento de um contrato abrangido pelo artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro (PERSI), o exequente tem de alegar que o executado foi integrado no PERSI, que as obrigações decorrentes deste regime para o credor foram observadas e que comunicou por escrito a extinção do PERSI e tem de fazer um início de prova documental (artigos 12.º a 18.º do citado Decreto-Lei).
II – A falta de prova de que o credor cumpriu estas obrigações implica o preenchimento dos pressupostos de uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso conducente à extinção da execução.
III – Pode haver mais de um PERSI no decurso de um mesmo contrato, mas apenas e tão só no caso de, após um primeiro incumprimento, se verificar que o executado regularizou os montantes em dívida e/ou retomou o pagamento das prestações a que se obrigou em execução do contrato celebrado e voltou a incumprir.
IV – Quando credor e devedor chegam a acordo no âmbito do PERSI, mas o segundo não cumpre com aquilo a que se vinculou, o exequente não está obrigado a integrar o mesmo devedor em PERSI, verificando-se um contínuo, reiterado e permanente incumprimento do acordo estabelecido para a regularização da dívida.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: RECURSO n.º 689/23.2T8ENT.E1
Tribunal recorrido: Juízo de Execução ... – J...
Apelante: Banco 1..., S.A.
Apelados: AA e BB


Sumário (elaborado pela relatora – artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
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Acordam os Juízes que integram a 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO
1.1. Em 27 de fevereiro de 2023, o Banco 1..., S.A. instaurou contra AA e BB a presente ação executiva para pagamento de quantia certa, baseada em livrança, para pagamento coercivo da quantia de € 10.950,24.
Por despacho proferido em 16 de março de 2023, foi o exequente, ora apelante, notificado para esclarecer o que tivesse por conveniente acerca do cumprimento do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) estipulado no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro.
O apelante, por requerimento de 24 de março de 2023, veio aos autos dizer que, em cumprimento do previsto no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, integrou os executados no PERSI; que no decurso das negociações encetadas, as partes chegaram a um compromisso de regularização das responsabilidades vencidas, consubstanciada na celebração de um acordo de pagamento, e que, nessa sequência, o PERSI foi extinto.
O tribunal recorrido ordenou nova notificação ao exequente, concedendo-lhe um prazo adicional de 10 (dez) dias para documentar o cumprimento do PERSI relativamente aos executados tendo por referência o período temporal decorrido desde 21 de março de 2022 e a instauração da execução (27 de fevereiro de 2023).
Por requerimento de 08 de maio de 2023, em resposta ao novo convite que lhe foi dirigido pelo Tribunal a quo, o exequente veio aduzir que não resulta do disposto no Decreto-Lei 227/2012, de 25 de outubro, que o credor está obrigado a integrar o devedor em PERSI sempre haja incumprimento dos acordos de pagamento celebrados na pendência do procedimento, não se verificando a exceção dilatória inominada de não cumprimento do PERSI.
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1.2. Por decisão de 28 de junho de 2023, o tribunal recorrido julgou verificada oficiosamente a exceção dilatória inominada insanável decorrente do desrespeito, pelo exequente, da válida demonstração do cumprimento das obrigações decorrentes do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, instituído pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10, e, em consequência, absolveu os executados da instância executiva, indeferindo liminarmente o requerimento executivo, nos termos dos artigos 573.º, n.º 2, 576.º, n.ºs 1 e 2, 578.º, e 726.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, a qual se transcreve no que para a presente decisão releva:
“(…) Revertendo à situação dos autos, e tal como referimos no despacho plasmado na ref.ª ...00 de 19-04-2023, «as únicas cartas de extinção do PERSI que foram juntas (datadas de 21-03-2022) apontam como fundamento a circunstância de “se ter chegado a acordo para regularização dos montantes em dívida».
Pois bem, o Banco de Portugal, em 10-01-2013, quando publicou os seus entendimentos sobre o então recente quadro normativo da prevenção e gestão do incumprimento de contratos de crédito (cfr. https://www.bportugal.pt/comunicado/banco-de-portugal-publica-entendimentos-sobre-o-novo-quadro-normativo-da-prevencao-e), sublinhou claramente que «as instituições de crédito são obrigadas a integrar o cliente bancário no PERSI sempre que se verifique alguma das circunstâncias previstas no artigo 14.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral», não tendo o legislador estabelecido «qualquer limite à integração no PERSI em função do número de vezes que o cliente bancário incumpre obrigações decorrentes do mesmo contrato de crédito».
No mesmo inequívoco sentido, que perfilhamos, pronunciaram-se os seguintes arestos dos tribunais superiores (todos disponíveis em www.dgsi.pt):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-02-2023 (Processo n.º 1141/21.6T8LLE-B.E1.S1):
«O procedimento PERSI deve ser repetido sempre que ocorra futuro e sucessivo incumprimento: quer a letra da lei, quer o espírito que preside ao DL n.º 272/2012, não dão sustento à interpretação que limita a um único PERSI o incumprimento pelo mutuário num contrato de mútuo em que se convencionou o reembolso do capital e juros em prestações mensais, em contratos em que o mutuário fica vinculado a reembolsar o empréstimo por períodos largos de tempo, que podem atingir as dezenas de anos, como sucede nos casos de empréstimos para a habitação. A diversidade de situações justifica o desencadear de diferentes procedimentos»;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-04-2023 (Processo n.º 7817/20.8T8SNT.L1-2):
É inaceitável a «tese de que não se pode verificar mais do que um incumprimento e um PERSI, o que não tem qualquer base legal»; e
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-05-2023 (Processo n.º 3751/20.0T8MAI.P1):
«[A] circunstância da prévia existência de um PERSI, em relação a um dos contratos, por um prévio incumprimento, não obsta, antes o impõe, novamente, a que o mesmo contrato venha, mais uma vez, a ser integrado em um outro PERSI, não estabelecendo o referido diploma limite a número de vezes em que é admissível o recurso ao procedimento de regularização de dívidas, que pressupõe, apenas, a existência de um incumprimento quanto ao pagamento do crédito».
Nesta conformidade, impunha-se efectivamente ao exequente que documentasse o cumprimento do PERSI relativamente aos executados tendo por referência o período temporal decorrido desde 21-03-2022 (data das cartas de extinção supra citadas) e a instauração da execução (27-02-2023).
Não o tendo feito, verifica-se o impedimento de instauração da presente acção executiva que decorre do artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10.”
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1.3. Não se conformando com esta decisão, dela apela o exequente, pugnando pela sua revogação, tendo formulado as seguintes conclusões (transcrição):
1 – O Exequente instaurou contra os Executados a presente acção executiva para pagamento de quantia certa, alegando, em síntese, que é legítimo portador da livrança nº ...17, emitida em 24.04.2019 e vencida em 27.01.2023, preenchida pelo valor facial de 10.913,04 (dez mil, novecentos e treze euros e quatro cêntimos).
2 – A mencionada livrança, subscrita pelos executados, não foi paga na data do respectivo vencimento.
3 – O Tribunal a quo, por despacho notificado em 21.03.2023, convidou o Exequente a demonstrar, se fosse o caso, que deu cumprimento ao Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, estipulado pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, o que este fez por requerimento de 24.03.2023.
4 - O Tribunal a quo, após ter analisado o requerimento de 24.03.2023 (e a documentação junta pelo Exequente) proferiu um novo despacho a convidar o Exequente a demonstrar que deu cumprimento ao PERSI no período compreendido entre os dias 21.03.2022 e 07.02.2023.
5 – O Exequente respondeu (requerimento de 08.05.2023) e o Tribunal, por sentença notificada em 29.06.2023, julgou oficiosamente verificada a excepção dilatória inominada e insanável decorrente do “desrespeito da válida demonstração do cumprimento das obrigações decorrentes do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento instituído pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro” e, em consequência, absolveu os executados da instância executiva.
6 – O Exequente não concorda com a interpretação do Tribunal a quo, plasmada na sentença recorrida, ao invés, entende que não estava obrigado a integrar os Executados em PERSI no período compreendido entre os dias 21.03.2022 e 07.02.2023.
7 – Com efeito, na óptica do Exequente, o PERSI só deve ser repetido quando, no decurso das negociações previstas nos artigos 12.º, 13.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, as partes chegam a acordo de pagamento que é cumprido pelos devedores, retomando-se o contrato nos moldes iniciais. No futuro, se os devedores deixarem de cumprir as obrigações assumidas, ou seja, se deixarem de pagar as prestações nas datas dos respectivos vencimentos, então sim, o credor é obrigado a integrá-los novamente em PERSI.
8 – No entanto, quando credor e devedor chegam a acordo no âmbito do PERSI, mas o segundo não cumpre com aquilo a que se vinculou, nesta hipótese, entende o Exequente que não está obrigado a integrar o mesmo devedor em PERSI.
9 – Esta é a situação dos presentes autos: os Executados celebraram com o Exequente um contrato de crédito ao consumo a ser liquidado em prestações mensais e sucessivas, mas deixaram de pagar as prestações vencidas desde 02.02.2022. Nessa sequência o exequente promoveu a integração dos executados em PERSI, que terminou com a celebração de um acordo de pagamento das prestações vencidas, que os executados, pura e simplesmente, não cumpriram.
10 – A interpretação referida no ponto 8 destas conclusões é a que melhor se coaduna com o espírito da lei e que confere uma efectiva justiça ao caso.
Termina pedindo (manifestamente por lapso que se deve ao uso de meios informáticos) a procedência do “presente Recurso de Revista (…), revogando-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e mantendo-se na íntegra a sentença proferida pela 1ª instância.”, quando pretende pedir a revogação da decisão do tribunal de primeira instância, in casu, o Juízo de Execução ... (J...).
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1.4. Os executados não contra–alegaram.
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1.5. Por despacho proferido em 26 de setembro de 2023, o recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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1.6. Efetuada a apreciação liminar, colhidos os vistos legais e realizado o julgamento, nos termos do artigo 659.º do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).
Em face das conclusões de recurso, entendemos que a única a decidir é a de saber se o regime jurídico decorrente do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, é ou não aplicável à situação dos autos, daí se retirando as respetivas consequências (não revogação ou revogação da decisão recorrida), ou seja, saber se após a sujeição dos devedores a um PERSI, que se extinguiu por acordo de pagamento, deve haver lugar a nova integração em PERSI, ainda que os devedores não tenham retomado o cumprimento das prestações a que se obrigaram e incumprido o acordo de pagamento a que se vincularam no âmbito do primeiro PERSI.
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2.2. Apreciação do recurso
Entende a apelante que não se encontrava obrigada a desencadear o PERSI, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, relativamente aos executados, dizendo que estes celebraram com o exequente um contrato de crédito ao consumo a ser liquidado em prestações mensais e sucessivas, mas deixaram de pagar as prestações vencidas desde 02.02.2022 e que nessa sequência, o exequente promoveu a integração dos executados em PERSI, que terminou com a celebração de um acordo de pagamento das prestações vencidas, que os executados, pura e simplesmente, não cumpriram.
Na ótica do apelante, o PERSI só deve ser repetido quando, no decurso das negociações previstas nos artigos 12.º, 13.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, as partes chegam a acordo de pagamento que é cumprido pelos devedores, retomando-se o contrato nos moldes iniciais. Já se os devedores deixarem de cumprir as obrigações assumidas, ou seja, se deixarem de pagar as prestações nas datas dos respetivos vencimentos, então sim, o credor é obrigado a integrá-los novamente em PERSI.
Vejamos.
O Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, veio prever acerca do Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI) – entretanto objeto de alteração pelo Decreto-Lei n.º 70-B/2021, de 6 de agosto – estabelecendo “princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações”.
Do preâmbulo deste diploma resulta pretender-se estabelecer “um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas”.
Visa-se proteger especificamente o cliente bancário que seja consumidor, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, que celebra contratos de mútuo com entidades bancárias, nos termos do artigo 3.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro. Ou seja, com o PERSI, pretendeu o legislador estabelecer, mediante normas imperativas, uma ordem pública de proteção do cliente/devedor/consumidor em situação de mora no cumprimento, visto como parte frágil na relação e, por isso, carecido de especial proteção, deixando a cargo da contraparte (uma entidade de crédito) especiais deveres de informação, esclarecimento e proteção.
No art.º 12.º, do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, determina-se que as instituições de crédito promovem as diligências necessárias à implementação do Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI) relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito.
No artigo 13.º determina-se que «[n]o prazo máximo de 15 dias após o vencimento da obrigação em mora, a instituição de crédito informa o cliente bancário do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida e, bem assim, desenvolve diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado».
Resulta do exposto que o PERSI se aplica a casos nos quais não chegou a existir incumprimento definitivo do contrato e procura-se com tal procedimento evitar a resolução do contrato por incumprimento.
Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 15.º (Fase de avaliação e proposta) «[a] instituição de crédito desenvolve as diligências necessárias para apurar se o incumprimento das obrigações decorrentes do contrato de crédito se deve a circunstâncias pontuais e momentâneas ou se, pelo contrário, esse incumprimento reflete a incapacidade do cliente bancário para cumprir, de forma continuada, essas obrigações nos termos previstos no contrato de crédito».
O PERSI termina nos termos previstos no n.º 1 do artigo 17.º, ou seja, «O PERSI extingue-se:
a) Com o pagamento integral dos montantes em mora ou com a extinção, por qualquer outra causa legalmente prevista, da obrigação em causa;
b) Com a obtenção de um acordo entre as partes com vista à regularização integral da situação de incumprimento;
c) No 91.º dia subsequente à data de integração do cliente bancário neste procedimento, salvo se as partes acordarem, por escrito, na respetiva prorrogação; ou
d) Com a declaração de insolvência do cliente bancário».
A que acrescem ainda os casos previstos no n.º 2, deste mesmo artigo 17.º.
Como se lê no acórdão do TRL, de 02.03.2023, no processo n.º 65/22.4T8SNT-A.L1-2, em que é relator Carlos Castelo Branco, “O regime normativo consagra, essencialmente, dois mecanismos: Um, em momento temporal prévio ao incumprimento contratual do mutuário consumidor, previsto e regulado nos artigos 9.º a 11.º, sob a designação elucidativa de “Gestão do risco de incumprimento”; e, outro, para fazer face à mora dos mutuários no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito, previsto nos artigos 12.º a 21.º, onde se regula o denominado “Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI)”.
Traçadas estas linhas gerais, in casu, o que verdadeiramente se equaciona é a possibilidade de afastar a obrigatoriedade de integração dos executados em novo PERSI, na medida em que o mesmo se extinguiu por acordo de pagamento e os devedores não retomaram o cumprimento das prestações a que se obrigaram e incumpriram o acordo de pagamento a que se vincularam no âmbito do primeiro PERSI. Ou melhor dizendo, o que se equaciona, na verdade, é a possibilidade de afastar a obrigatoriedade de implementação dos específicos procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, nos casos em que a instituição bancária e o devedor já desenvolveram negociações - que, aliás, conduziram a acordos de vontades - tendentes, precisamente, a alcançar o desiderato daquele diploma legal.
O PERSI constitui a instituição bancária na obrigação de analisar a situação de incumprimento e a capacidade financeira do devedor, privilegiando a renegociação do contrato e o cumprimento do programa contratual com a alteração que resultar do procedimento.
No caso dos autos, no decurso das negociações encetadas, as partes chegaram a um compromisso de regularização das responsabilidades vencidas, consubstanciada na celebração de um acordo de pagamento, nos termos da carta de 21 de março de 2022, e que consistia no pagamento da quantia em dívida em três prestações, as duas primeiras no valor de € 419,59 e a terceira no valor de € 395,63, vencendo-se a primeira no dia 28.03.2022 e as restantes (2) nos mesmos dias dos meses subsequentes (abril e maio).
Ora, o acordo em causa só pode ser o resultado da atividade de análise da capacidade financeira dos executados face ao contrato e ao incumprimento e de renegociação do mesmo, favorecendo o cumprimento no futuro.
Entendemos, por isso, que a celebração de um novo acordo vertido na carta de 21 de março de 2022, alcança as finalidades visadas pelo PERSI e a materialidade do resultado que o legislador pretendeu com o regime de regularização estabelecido.
A sentença recorrida seguiu a jurisprudência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02.02.2023 (Processo n.º 1141/21.6T8LLE-B.E1.S1): «O procedimento PERSI deve ser repetido sempre que ocorra futuro e sucessivo incumprimento: quer a letra da lei, quer o espírito que preside ao DL nº 272/2012, não dão sustento à interpretação que limita a um único PERSI o incumprimento pelo mutuário num contrato de mútuo em que se convencionou o reembolso do capital e juros em prestações mensais, em contratos em que o mutuário fica vinculado a reembolsar o empréstimo por períodos largos de tempo, que podem atingir as dezenas de anos, como sucede nos casos de empréstimos para a habitação. A diversidade de situações justifica o desencadear de diferentes procedimentos»; e no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-05-2023 (Processo n.º 3751/20.0T8MAI.P1): «[A] circunstância da prévia existência de um PERSI, em relação a um dos contratos, por um prévio incumprimento, não obsta, antes o impõe, novamente, a que o mesmo contrato venha, mais uma vez, a ser integrado em um outro PERSI, não estabelecendo o referido diploma limite a número de vezes em que é admissível o recurso ao procedimento de regularização de dívidas, que pressupõe, apenas, a existência de um incumprimento quanto ao pagamento de um crédito».
Parece-nos, salvo o devido respeito por opinião diversa, que o caso dos autos não tem paralelismo com as situações previstas nos citados acórdãos.
No primeiro acórdão citado (do STJ), lê-se:
“Com efeito, a instituição de crédito Banco 2... já havia anteriormente incluído (em 06.05.2014) o executado no PERSI, tendo “em virtude de expiração” sido extinto tal enquadramento do executado nesse Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (cfr. factos provados nºs 20 e 21).
Porém, o executado encontrava-se de novo em situação de incumprimento, por via da mora, relativamente aos contratos de mútuo com hipoteca celebrados com a “Banco 2...”, desde 20/12/2018 e 02/02/2019. Por isso, o devedor foi interpelado por esta instituição bancária em 25/03/2019 e 21/05/2019 para, em 10 dias, regularizar a situação (cfr. factos provados nºs 10 e 11).
A necessidade de integração de novo, do executado, no PERSI até é, como dito, reconhecida pela decisão recorrida, ao referir ser “indiscutível que a “Banco 2...” estava de novo obrigada a integrar o mutuário (cliente bancário), ora Embargante/executado no PERSI e não o fez. Na verdade, existe a necessidade de repetir o procedimento PERSI, sempre que ocorra futuro e sucessivo incumprimento – destaque nosso.”
Daqui se extrai, com mediana clareza, que o executado naqueles autos incumpriu com o pagamento das prestações no ano de 2014, na sequência do qual foi integrado no PERSI. O novo PERSI a que se faz alusão na decisão refere-se a um incumprimento das prestações em dezembro de 2018, relativamente a um contrato de mútuo, e a um incumprimento em fevereiro de 2019 em relação a outro contrato de mútuo. E nestes casos faz, de facto, sentido a integração num novo PERSI porque há que averiguar da situação económica do incumpridor, das razões porque incumpriu, que alterações ocorreram e tentar alcançar uma resolução extra judicial para o litígio.
Da leitura do segundo acórdão citado na decisão recorrida (TRP) chega-se à mesma conclusão, conforme se extrai da seguinte transcrição:
“Bem sustenta o Tribunal a quoo diploma legal não estabelece qualquer limite quanto ao número de vezes a que é possível recorrer ao procedimento de regularização de dívidas, pressupondo apenas a existência de um incumprimento quanto ao pagamento do crédito.
Acresce que no caso concreto existe uma dilação temporal significativa - de cerca de quatro anos - entre a extinção do primeiro PERSI e a verificação do novo incumprimento contratual.
Nessa medida, não sendo possível afirmar a existência de uma continuidade da situação económica dos réus, nada obsta ao recurso a um novo PERSI.
De facto, o decurso de um prazo de quatro anos indicia a existência de um quadro económico distinto, susceptível de ser objecto de uma nova apreciação e da ponderação de novas medidas para regularizar o incumprimento contratual verificado.
Tal é tão mais evidente quando o primeiro PERSI foi extinto pela regularização do incumprimento, com o pagamento das quantias então em dívida, o que atesta a pertinência, benefício e utilidade do recurso ao procedimento em causa.
Constata-se, pois, que ao contrário do que sucedeu no litígio em apreço no acórdão supra citado, no caso em apreço não se verificou um contínuo, reiterado e permanente incumprimento dos acordos estabelecidos para a regularização da dívida.
(…)
Nessa medida, não existindo um contínuo incumprimento dos acordos estabelecidos e face à dilação temporal verificada, é manifesto que a autora estava obrigada a integrar os réus em novo e distinto PERSI.
A omissão de tal integração configura uma inobservância dos princípios e finalidades que presidiram à consagração do regime legal e do procedimento em apreço, inviabilizando a possibilidade de – tal como sucedeu em 2013 – obter a regularização do incumprimento verificado” – sublinhados nossos.
E no sumário do citado acórdão (TRP de 04/05/2022, proc. 3751/20.0T8MAI.P1) pode ler-se, ainda, o seguinte:
IV - Após sujeição de um cliente bancário a PERSI (por incumprimento), outra integração em PERSI pode ter lugar por um posterior incumprimento do contrato, surgindo, de novo, as razões que justificaram e impuseram o primeiro.” – sublinhado e negrito nossos.
Ora, no caso ora submetido à nossa apreciação, verificou-se um contínuo, reiterado e permanente incumprimento do acordo estabelecido para a regularização da dívida, ao longo de todo o período que medeia, pelo menos, entre 02 de fevereiro de 2022 (data em que o exequente considera vencidas as obrigações do contrato de crédito objeto deste processo) e27 de fevereiro de 2023.
Não negamos (e aceitamos mesmo na esteira, aliás, da vasta jurisprudência nesse sentido) que o diploma legal não estabelece qualquer limite quanto ao número de vezes a que é possível recorrer ao procedimento de regularização de dívidas, pressupondo apenas a existência de um incumprimento quanto ao pagamento do crédito, mas também é certo que, após a extinção do primeiro PERSI, tem que se verificar um novo incumprimento contratual, pressupondo que os devedores retomaram, previamente, o cumprimento do contrato a que se obrigaram.
Concordamos com o que alega o exequente: “Com efeito, (…) o PERSI só deve ser repetido quando, no decurso das negociações previstas nos artigos 12.º, 13.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, as partes chegam a acordo de pagamento que é cumprido pelos devedores, retomando-se o contrato nos moldes iniciais. No futuro, se os devedores deixarem de cumprir as obrigações assumidas, ou seja, se deixarem de pagar as prestações nas datas dos respectivos vencimentos, então sim, o credor é obrigado a integrá-los novamente em PERSI.
No entanto, quando credor e devedor chegam a acordo no âmbito do PERSI, mas o segundo não cumpre com aquilo a que se vinculou, nesta hipótese, entende o Exequente que não está obrigado a integrar o mesmo devedor em PERSI” – conclusões 7 e 8 do requerimento de interposição de recurso.
Acresce que, a ser como é entendido no douto despacho recorrido, o exequente integraria os executados em novo PERSI e de novo estes poderiam tentar um novo acordo de pagamento que voltariam a incumprir, encontrando, assim, uma forma de nunca retomar o pagamento da dívida e manter-se em incumprimento sem que nenhuma consequência adviesse, designadamente, a resolução do contrato por incumprimento (definitivo) e a instauração contra si de uma execução.
Não podemos, por isso, deixar de considerar a situação fáctica demonstrada nos autos e o escopo da norma do art.º 18.º, do Decreto-Lei n.º 272/2012, de 25 de outubro, de que resulta a exceção dilatória de omissão do PERSI e que a impõe prévia consideração das possibilidades de renegociação e cumprimento antes da instauração da execução.
Ora, manifestamente, essa finalidade foi atingida pela materialidade do comportamento da instituição bancária exequente e dos executados que desembocou no acordo de 21 de março de 2022 (igualmente a data de extinção do PERSI), sendo essa materialidade de comportamento o que o legislador visa com a exigência do PERSI prévio à execução.
Desde daí, os executados incumpriram, quer o acordo a que se propuseram de pagar a quantia em dívida em três prestações, bem como não retomaram o pagamento, digamos normal, da prestação decorrente do crédito ao consumo que celebraram com o exequente, verificando-se um incumprimento reiterado e contínuo dos mesmos.
Em suma, terá de concluir-se por uma interpretação do artigo 18.º de exigência de um procedimento de renegociação suficiente e materialmente efetivo e não de exigência de cumprimento de um iter sacramental de atos formais.
De facto, a utilidade do procedimento em causa é levar à regularização das dívidas, ao pagamento das quantias devidas, à regularização do incumprimento.
Se os devedores se mantêm em constante incumprimento, mesmo depois de estarem integrados no PERSI, sem nunca ter manifestado vontade de cumprimento perante o credor, sem retomarem o pagamento das suas responsabilidades ou de cumprirem um acordo de pagamento firmado, que utilidade tem um segundo PERSI? Apenas para cumprimento de um iter sacramental de atos formais, como acima se referiu?
A resposta terá de ser negativa.
Concluímos assim que, no caso, não pode julgar-se verificada a exceção dilatória de omissão do PERSI, oficiosamente conhecida, devendo prosseguir a execução.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Évora, em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, e, em consequência, determinar o prosseguimento da execução.
Sem custas.
Notifique.
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Évora, 25 de janeiro de 2024
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos seus signatários)
Maria José Cortes (Relatora)
Albertina Pedroso (1.ª Adjunta)
Francisco Xavier (2.º Adjunto)