Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
12/20.8YREVR
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
REGULAMENTO COMUNITÁRIO
EXECUTORIEDADE DE DECISÕES DE ESTADO MEMBRO
Data do Acordão: 04/02/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Estando em causa decisão de autorização para disposição de bens dos menores situados em Portugal, decretada na Bélgica, por força do princípio do reconhecimento automático consagrado no artigo 21.º/1 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, consubstancia decisão que é reconhecida em Portugal, Estado-membro da União Europeia, sem qualquer formalidade.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Os presentes autos consistem em processo de revisão de sentença estrangeira intentado por (…), na qualidade de Curador dos Menores (…) e (…), contra o Ministério Público, peticionando que se proceda à revisão e confirmação da sentença proferida pelo Juiz de Paz do 2.º Cantão de Schaerbeek, na Bélgica, em 24/08/2016, já transitada em julgado, que decretou a autorização para venda dos bens imóveis sitos no concelho de (…), em Portugal, da titularidade dos menores, filhos da Requerente, de modo a que esta sentença tenha eficácia em Portugal, nos termos do n.º 1 do artigo 978.º do CPC.
O Ministério Público, reconhecendo nada ter a impugnar, em substância, quanto a tal decisão, que é conforme à lei portuguesa aplicável, invoca que a Requerente carece de interesse em agir porquanto inexiste necessidade de proceder à revisão da sentença; emana de um Estado-Membro da União Europeia e, atento o respetivo objeto, é reconhecida em Portugal sem quaisquer formalidades ou procedimentos e sem qualquer declaração de executoriedade – cfr. Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003 (relativo à competência, para o reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental), ou, caso se entenda não estarmos na presença de medida relacionada com a proteção das crianças (vide ponto 9, dos seus considerandos), Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2012.
Em resposta, a Requerente alega que, até à data, nenhum balcão Casa Pronta ou Cartório Notarial acedeu outorgar a escritura de compra e venda do bem em causa, sem a necessária revisão e confirmação da sentença obtida nos Julgados de Paz belgas, que autorizam a venda do prédio, arriscando-se os menores a perdê-lo, em face do incumprimento das obrigações fiscais, designadamente pagamentos de IMI e limpezas do terreno, que vêm constituindo um pesado encargo.

II – Fundamentos
Os factos provados
A – A Autora apresentou perante o Juiz de Paz do 2.º Cantão de Schaerbeek, na Bélgica, um pedido de autorização para, na qualidade de mãe exercendo a autoridade parental sobre os filhos menores (…), nascida em 01/06/2005 (cfr. Doc. 1), e (…), nascido em 29/09/2006 (cfr. Doc. 2), todos residentes em Rue (…), 8, 1030 Schaerbeek, Bélgica, vender em nome dos seus dois filhos menores, um terreno situado em Portugal, em (…), (…) ou (…), freguesia e concelho de (…), pelo preço mínimo de € 70.000,00 (setenta mil euros).
B - Tal pedido foi autorizado por sentença proferida em 24/08/2016, já transitada em julgado (cfr. Doc. 3).

O Direito

Temos em mãos o processo especial de revisão de sentenças estrangeiras, previsto nos arts. 978.º e ss do CPC.
Confirmar uma sentença estrangeira, após ter procedido à sua revisão, é reconhecer-lhe, no Estado do foro, os efeitos que lhe cabem no Estado de origem, como ato jurisdicional, segundo a lei desse mesmo Estado. Estão em causa os efeitos do caso julgado e de título executivo, embora possam ainda relevar os efeitos constitutivos, efeitos secundários ou laterais e os efeitos da sentença estrangeira como simples meio de prova, os quais, por vezes, se produzem independentemente da necessidade de qualquer reconhecimento.
O reconhecimento das sentenças estrangeiras, no âmbito do regime legal citado, dá-se por via do exequatur, controlo ou revisão, o qual não contende com apreciação de mérito.
Nos termos do disposto no artigo 980.º do CPC, os requisitos necessários para a confirmação da sentença estrangeira são os seguintes:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção da litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Ora, sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada – artigo 978.º/1 CPC.

No caso em apreço, está em causa uma sentença proferida no Estado da Bélgica que tem por objeto a autorização de venda de bem imóvel da titularidade de sujeitos menores de idade.
Por via disso, tem aqui aplicação o regime inserto no Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003 (relativo à competência, para o reconhecimento e execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental. Efetivamente, prescreve o art. 1.º/1 al. b) do citado Regulamento que o mesmo é aplicável, independentemente da natureza do tribunal, às matérias civis relativas à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental, sendo que,
tais
matérias dizem, nomeadamente, respeito às medidas de proteção da criança relacionadas com a administração, conservação ou disposição dos seus bens – cfr. art. 1.º/2 al. e). Tratando-se, como se trata, de decisão de autorização para disposição dos bens dos menores, por força do princípio do reconhecimento automático consagrado no art. 21.º/1 do Reg. (CE) n.º 2201/2003[1], consubstancia decisão que é reconhecida em Portugal, Estado-membro da União Europeia, sem qualquer formalidade.
O que vale por dizer que é dispensável o recurso a qualquer procedimento para que a decisão de autorização para disposição dos bens dos menores seja reconhecida em Portugal. Donde, não tem cabimento o processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira previsto nos arts. 978.º e ss do CPC.
É certo que, nos termos do disposto no art. 21.º/3 do citado Regulamento, a parte interessada pode pedir uma declaração judicial de reconhecimento ou de não reconhecimento, aplicando-se nesse caso o procedimento estabelecido para a declaração de executoriedade mediante a instauração de um processo prévio da competência do tribunal de comarca ou, existindo, do Tribunal de Família e Menores – cfr. arts. 29.º/1 e 68.º do Regulamento. No entanto, uma vez que o objeto do presente processo, conformado pelo concreto pedido deduzido e pela causa de pedir que o suporta, não contende com a declaração de executoriedade, não se verifica a incompetência deste Tribunal para a apreciação e decisão da causa.
Antes ocorre a exceção dilatória da falta de interesse em agir por parte da Requerente, implicando na absolvição do Requerido da instância – arts. 576.º/ 1 e 2 e 577.º do CPC.[2]


III – DECISÃO FINAL

Pelo exposto, julgando-se procedente a exceção dilatória da falta de interesse em agir, decide-se absolver o Requerido da instância.

Custas pela Requerente – artigo 527.º/1 do CPC.

Valor da causa: € 70.000,00 – artigos 296.º e 301.º/1 do CPC.

Consigna-se que os prazos se encontram suspensos nos termos do art. 5.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março.

Évora, 02/04/2020

Isabel de Matos Peixoto Imaginário
(cfr. assinatura eletrónica)

Maria Domingas Simões
(voto em conformidade)

Vítor Sequinho dos Santos
(cfr. assinatura eletrónica)


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[1] Nos termos de tal preceito, as decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem quaisquer formalidades.
[2] Cfr., entre outros, Ac. TRC de 20/11/2008 (Jacinto Meca).