Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
606/21.4GFSTB.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: CRIME DE BURLA
NATUREZA SEMI-PÚBLICA
QUEIXA
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
AÇÃO PENAL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Não se exige que da queixa conste a fórmula sacramental de desejo de procedimento criminal. O seu conteúdo é muito menos exigente e tecnicista, situando-se ao nível da simples descrição fáctica e da lesão do bem jurídico.
Existindo no auto inicial a menção denúncia por particular o qual é assinado pela ofendida, onde declara que foi lesada e relata os factos e termina assinando como denunciante revela nos autos a manifestação inequívoca de vontade de procedimento criminal quanto ao crime denunciado desde o inicio do inquérito pela ofendida, dito de outro modo, pode, portanto, concluir/inferir-se de forma inequívoca o desejo de procedimento criminal ab initio pela ofendida.

Pese embora no auto de notícia elaborado pela Guarda Nacional Republicana que estiveram na origem dos presentes autos não diga explicita e expressamente que "deseja procedimento criminal” contra os Arguidos pelos factos aí referidos, ao confirmar os factos relacionados com o crime sub judice, relatar a existência de prejuízo patrimonial pelo engano astuciosamente provocado, numa apreciação global tal conclusão decorre daí implicitamente.

Daí a legitimidade do Ministério Público para a promoção do procedimento criminal

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
O Digno Magistrado do Ministério Público, inconformado com o despacho 23.10.2023, interpôs do mesmo o presente recurso, rematando as pertinentes motivações com as seguintes conclusões:

“1.O Ministério Público recorre do despacho proferido pela Mma. Juiz de Direito, com referência .. dos autos, que não recebeu a acusação deduzida pelo Ministério Público, por entender existir falta de legitimidade do Ministério Público para promover e prosseguir o procedimento criminal, e determinou, em consequência, o arquivamento dos autos.

2.Fundamentou a Mma. Juiz de Direito o seu despacho no facto de, sendo o crime previsto no artigo 217 ° n.º 1 e 3, do Código Penal um crime de natureza semi -pública e dependendo o procedimento criminal de queixa, AA não apresentou queixa contra a arguida pelos factos constantes da acusação, porquanto “do termo de notificação de fls. 4 de que a foi verbalmente informada sobre o regime do direito de queixa, e as respectivas consequências legais, sendo que, dos autos não se retira que a mesma tenha pretendido procedimento criminal.”

3.Concluiu a Mmª. Juiz de Direito pela falta de um dos pressupostos processuais, na medida em que o Ministério Público carecia de legitimidade para a acção penal, por via da falta de queixa do titular do interesse que a lei quis proteger com a incriminação, considerando que a falta do referido pressuposto obsta à apreciação do mérito da causa e importa o arquivamento dos autos.

4.É deste despacho que recorre o Ministério Público, por, salvo melhor entendimento, não concordar com o mesmo.

5.Nos termos do disposto no artigo 49°, n.°1, do Código de Processo Penal, quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

6.O artigo 113° do Código Penal, sob a epígrafe "Titulares do direito de queixa", nos seus números 1 e 4 do Código Penal estabelece quem tem legitimidade para apresentar queixa, quando o procedimento criminal depender de queixa.

7.A lei não define o conteúdo e a forma da queixa, que não se pode confundir com denúncia (art.ºs 241º e seguintes do Código de Processo Penal ), como aparenta acontecer nos autos.

8.Parafraseando Figueiredo Dias (Direito Penal Português as consequências jurídicas do crime, pg. 665): No que toca à forma da queixa, tanto o Código Penal como o Código de Processo Penal são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto. …. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substracto fáctico que descreve ou mencionada (…).

9.No caso concreto a ofendida, de forma expressa declarou ser lesada do crime de burla e referiu a expressão denunciante e assinou o auto. A ofendida utilizou a expressão denúncia/denunciante em sentido amplo, sem rigor jurídico, de quem não se intromete na interpretação jurídica.

10.No caso concreto exprimiu a ofendida a vontade de instaurar procedimento criminal contra os Arguidos, pedindo ao Ministério Público que abra inquérito para apreciação da referida factualidade, em tudo, expressando linguagem simples e comum.

11.No referido acto foi expresso o vocábulo denunciar equivalendo a delatar, tido pela população em geral como sendo acusar, participar um crime com intenção de haver processo contra o outro cidadão.

12.Com efeito, não se exige que da queixa conste a fórmula sacramental de desejo de procedimento criminal. O seu conteúdo é muito menos exigente e tecnicista, situando-se ao nível da simples descrição fáctica e da lesão do bem jurídico.

13.Existindo no auto inicial a menção denúncia por particular o qual é assinado pela ofendida, onde declara que foi lesada e relata os factos e termina assinando como denunciante revela nos autos a manifestação inequívoca de vontade de procedimento criminal quanto ao crime denunciado desde o inicio do inquérito pela ofendida, dito de outro modo, pode, portanto, concluir/inferir-se de forma inequívoca o desejo de procedimento criminal ab initio pela ofendida.

15.Pese embora no auto de notícia elaborado pela Guarda Nacional Republicana que estiveram na origem dos presentes autos não diga explicita e expressamente que "deseja procedimento criminal” contra os Arguidos pelos factos aí referidos, ao confirmar os factos relacionados com o crime sub judice, relatar a existência de prejuízo patrimonial pelo engano astuciosamente provocado, numa apreciação global tal conclusão decorre daí implicitamente.

16.O que de resto assim se entendeu desde logo com a instauração de inquérito para apuramento dos referidos factos.

17.A Mma Juiz ao rejeitar a presente acusação com fundamento de que a queixa havia sido apresentada para além dos 6 (seis) meses operando a caducidade da mesma, não atentou ao que refere os artigos 48.º, 49.º, 50.º, 115.º e 217.º, n.º 1 e 3 todos do Código Penal e 246.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida e substituindo-se por outra que considere que o Ministério Público tem legitimidade para promover e prosseguir o processo penal, por via do auto de notícia inicial conjugado com a declaração do ofendido a que a Mma Juiz faz referência de 23.10.23, que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público e determine a realização das diligências ulteriores dos autos, por não existir fundamento para rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público farão Vªs Exas, a habitual e costumada Justiça!”

***

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve Vista dos autos, emitindo parecer no sentido da procedência do recurso.

Tendo sido dado cumprimento ao disposto no n° 2 do Art.º 417° do C. P. Penal, só a Arguida BB respondeu pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art. 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

***

A DECISÃO RECORRIDA

“O Tribunal é competente.

*

Questão prévia da legitimidade do Ministério Público para a acção penal

CC, BB e DD vêm acusados da prática, em autoria co-autoria material, e na forma consumada, de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.

Estabelece o referido preceito legal, o seguinte: «Artigo 217.º Burla

1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

2 - A tentativa é punível.

3 - O procedimento criminal depende de queixa.

4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.º e 207.º»

Por seu turno estabelecem os artigos 48.º e 49.º, do Código de Processo Penal, o seguinte:

«Artigo 48.º Legitimidade

O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º

Artigo 49.º

Legitimidade em procedimento dependente de queixa

1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

2 - Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.

3 - A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.

4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.»

Destarte, e analisando os preceitos legais acima descritos, verifica-se que o procedimento legal depende da dedução de queixa.

Ora, compulsados os autos, verifica-se que, dos mesmos nada consta. De facto, e analisado o auto de notícia de fls. 3, do mesmo nada consta quanto à vontade de que seja instaurado e prosseguido procedimento criminal. Ademais, do termo de notificação de fls. 4 de que a foi verbalmente informada sobre o regime do direito de queixa, e as respectivas consequências legais, sendo que, dos autos não se retira que a mesma tenha pretendido procedimento criminal.

Como bem refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 150/10.5PBCBR.P1, de 16.10.2013 (disponível em www.dgsi.pt), «na queixa, não tem que ser identificada a incriminação a que se subsumem os factos, mas não basta a simples descrição fáctica, a mera transmissão do facto com (eventual) relevância criminal a quem tem legitimidade para promover o processo penal: o Ministério Público (…), sendo imperioso que, de alguma forma, o titular do direito (normalmente, o ofendido) manifeste, claramente, o propósito, a vontade de que contra o autor do facto (que não tem que ser logo identificado) seja instaurado e prossiga procedimento criminal».

Também neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, relatora Maria Da Graça Dos Santos Silva, processo n.º 1087/15.7PBFUN.L1-3, de 21.03.2018 (disponível em www.dgsi.pt), «Em resumo: a denúncia corporiza a notícia de um crime enquanto que a queixa corporiza a vontade do exercício da acção penal por esse crime. No primeiro caso estamos perante uma situação de um relato e no segundo de uma manifestação de vontade.

A noção de queixa não se cinge, portanto, à mera transmissão do facto criminosos ao MP, o que tem por contraponto a invalidade dessa simples transmissão como forma de manifestação de vontade de perseguição criminal do agente que o provocou.».

Destarte, e salvo melhor opinião, carece de legitimidade ao Ministério Público para prosseguir criminalmente contra os Arguidos.

Ante o exposto, julga-se verificada a falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção do presente procedimento criminal e, em conformidade, não se recebe a acusação pública, tudo nos termos dos artigos 217.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, bem como artigos 48.º, 49.º, e 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Notifique.”

O OBJECTO DO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Perante os factos considerados provados pela 1ª instância, importa agora curar do mérito do recurso, tendo-se em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer - Cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal” cit., págs. 74 e 93, nota 108; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363).«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal ad quem tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem).

A única questão suscitada pelo Recorrente (nas conclusões da sua motivação) é a seguinte:

1) A legitimidade do Ministério Público para acusar pelo crime de burla p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.

O MÉRITO DO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

1) Da legitimidade do Ministério Público para acusar pelo crime de burla p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.

O recurso de cujo objecto agora cuidamos foi interposto do despacho proferido em 23.10.2023, que julgou verificada a falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção do presente procedimento criminal e, em conformidade, não recebeu a acusação pública, tudo nos termos dos artigos 217.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, bem como artigos 48.º, 49.º, e 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

No caso sub judicio os arguidos CC, BB e DD vinham acusados pelo Ministério Público de terem perpetrado em co-autoria material, e na forma consumada, um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal.

E estando em causa a eventual prática, pelos arguidos, de um crime de burla da previsão do artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, a necessidade de existência de queixa válida e tempestiva para efeitos de legitimidade do Ministério Público para o respectivo procedimento decorre da conjugação dos artigos 217º, nº 3, e 115º, nº 1, do Código Penal e do artigo 49º, nº 1, do C. P. Penal.

Como já referido o crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, tem natureza semipública.

Nos crimes semipúblicos o Ministério Público só pode iniciar a investigação após a apresentação de queixa, como resulta evidenciado do art.49.º do Código de Processo Penal:

«1 – Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

«(…)».

Sem a queixa o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo, instaurando o inquérito.

Dispõe o art.º 113°, n º1 do Código Penal, sob a epigrafe "Titulares do direito de queixa" que: "Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação".

No caso dos autos o verdadeiro titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação prevista no 217.º, n.º 1, do Código Penal, é a ofendida AA.

Compulsados os autos, verificamos que o presente inquérito teve início com a recepção do “auto de notícia” elaborado pela Guarda Nacional Republicana, datado de 21.09.2021, no qual AA na qualidade de lesada vem denunciar um crime de burla tendo para tal referido que “no dia 25 de Junho de 2021, através da aplicação “Facebook, no Marketplace, enviou mensagens para a anunciante EE, questionado se ainda estariam disponíveis uns conjuntos de ténis e malas, ao que a mesma respondeu que sim, então a senhora AA dito que estava interessada em 2 desses conjuntos.

A Sra. EE respondeu a mesma que sendo dois conjuntos que até lhe faria um desconto e que os portes de envio estavam incluídos, acertaram pormenores e a Sra. AA fez então transferência no valor de 40€ (Quarenta Euros), enviado o comprovativo de pagamento e aguardado a entrega da encomenda.

Dia 08 do mês de agosto não tendo recebido a encomenda, a Sra. AA insistiu com a vendedora para que lhe enviasse a encomenda ou que lhe devolvesse a quantia paga ao que a mesma respondeu que se não recebesse a encomenda até a próxima sexta enviaria novamente, a Sra. AA não recebeu a encomenda fazendo novamente contato com a vendedora desta vez já não obtendo qualquer resposta.”

O documento é encerrado com a assinatura de AA onde foi referido ser denunciante.

Entende o Recorrente que “no caso concreto a conjugação da declaração no auto de notícia prestada pela ofendida permite, de forma cristalina, extrair a conclusão que desde o início do presente inquérito a ofendida manifestou o desejo de procedimento criminal contra desconhecidos, posteriormente Arguidos nos autos, quer porque refere que é lesada, quer porque refere que é denunciante (leia-se queixosa) e, portanto, o propósito e o sentido de

tal declaração feito junto de Órgão de Polícia Criminal por parte de AA foi de manifestar o desejo de procedimento criminal.

Atente-se que foi a própria AA ofendida/lesada quem apresentou a queixa e apresentou-a tempestivamente, todavia, com a menção de denunciante onde após a sua assinatura e apresentou-a contra desconhecidos.”

Assiste razão ao Recorrente.

Na verdade, «Como é jurisprudência unânime, a queixa é mais do que o simples dar conhecimento do Ministério Público de um facto com relevância criminal: é a comunicação e a declaração de vontade do titular do direito violado de que seja instaurado um processo por facto susceptível de integrar um crime.

Acresce que a queixa não está sujeita a qualquer formalismo específico, sendo apenas necessário que a comunicação exprima a referida vontade de que seja exercida a acção penal.» (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 05-12-2018, proferido no Proc. nº417/16.9PBCVL.C1 no site htpp//www.dgsi.pt)

É que, «A “queixa” constitui uma declaração de vontade e uma específica forma de comunicação da notícia de um crime no sentido dos artigos 241º e seguintes; para efeitos de procedimento criminal, como condição de integração e pressuposto da legitimidade do Mº Pº para promoção do processo, tem de ser formulada pelo “titular do respetivo direito”, que pode agir por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.»

E, como adverte Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., anot. 30 ao art. 49º, pág. 150, nos casos em que a lei substantiva prevê a existência de uma participação de uma autoridade pública (como sucede no art. 188º, nº1, do CP, em alternativa à queixa), «A esta [participação] aplica-se, correspondentemente, o regime da queixa, quer no que toca às condições do seu exercício quer no que respeita à renúncia e desistência da mesma. Foi esse o sentido da supressão do art. 115º do CP de 1982, na revisão de 1995.»

Conforme tem sido entendido predominante e recorrentemente pela jurisprudência e pela doutrina, o exercício do direito de queixa (ou participação) não impõe particulares formalidades e a utilização de fórmula especial, formal, sacramental, mas exige uma manifestação inequívoca, indubitável da vontade do queixoso ou participante no sentido de que pretende procedimento criminal contra o denunciado (ou contra desconhecidos, no caso de serem incertos os autores dos factos denunciados) – neste sentido, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.06.2012, Processo nº 218/20.0GBVCT.G1, relatado pela Exma. Desembargadora Ana Teixeira; do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.10.2010, Processo nº 1123/08.3TAGRD.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Brízida Martins, de 27.09.2017, Processo nº 780/16.1T9LMG-A.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Orlando Gonçalves, e de 05.12.2018, Processo nº 417/16.9PBCUL.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Luís Ramos; do Tribunal da Relação de Lisboa de 23.04.2013, Processo nº 1034/10.2TAALM-5.L1, relatado pelo Exmo. Desembargador Artur Vasques, todos disponíveis em www.dgsi.pt; e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07.01.2008, in CJ, 2008, TI, p. 294. Na doutrina, vide, a título exemplificativo, para além do supracitado António Henriques Gaspar, Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, págs. 665 e 675, Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado”, 3ª Edição, Almedina, pág. 65 e Germano Marques da Silva, ibidem, pág. 57.» (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-09-2023, proferido no Proc. nº260/22.6GBAVV.G1 no site htpp//www.dgsi.pt).

Efectivamente «A lei não define o conteúdo e a forma da queixa, pelo que, para este efeito, se recorre à doutrina e à jurisprudência.

O Prof. Figueiredo Dias define «queixa» como “o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art.111.º e CPP art.49.º)».[5]

E a propósito da omissão sobre a forma da queixa, tanto do Código Penal, como do Código de Processo Penal, acrescenta o mesmo autor que esta “pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto (…). Tão pouco é relevante que os factos nela referidos sejam corretamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona”». (Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-01-2018, proferido no Proc. nº358/14.4PBVIS.C1 no site htpp//www.dgsi.pt).

Assim sendo, diremos de forma conclusiva que, no caso em apreço, em face dos termos do auto de notícia, (e tendo por assente no que respeita à forma da queixa, não existe, uma fórmula de apresentação) é possível retirar, sem qualquer margem de dúvida, a pretensão inequívoca do seu titular de instauração de procedimento criminal contra o responsável pelos factos que relata.

Destarte, e sem necessidade de mais considerações por despiciendas, consideramos inequívoco que a queixa foi apresentada por quem para tal tinha legitimidade e em termos que claramente demonstram a sua vontade de que fosse instaurado o procedimento criminal, já que, a comunicação que fez na unidade policial constitui uma autêntica manifestação de procedimento criminal.

Eis por que o presente recurso irá proceder.

DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, revogando a decisão recorrida, determina-se a sua substituição por outra que reconheça a legitimidade do Ministério Público para o exercício da presente acção penal.

Sem tributação.

Évora 19/ 03/ 2024