Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
758/11.1TAPTM.E1
Relator: CARLOS JORGE BERGUETE
Descritores: NEGLIGÊNCIA MÉDICA
PERÍCIA
LEGES ARTIS
CAUSALIDADE
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Vigorando, entre nós, um modelo de perícia pública, a mesma tem de ser precedida de despacho da autoridade judiciária que a ordene, contendo, além do mais, indicação sumária do objecto da perícia.
II – Se o parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos foi elaborado na sequência de despacho do Ministério Público no inquérito, dirigido ao Senhor Presidente do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, informando que nos autos se investigava factos susceptíveis de configurar o crime de homicídio por negligência, por violação das leges artis, e solicitando parecer sobre as causas da morte, remetendo, para tanto, certificado do óbito, elementos clínicos da intervenção hospitalar e relatório da autópsia, o mesmo deve ser admitido e valorado como prova pericial.
III - Quer na vertente da entidade que ordenou a elaboração do parecer, quer da regularidade da nomeação da pessoa que o subscreveu, quer da colegialidade inerente à sua aceitação, não se coloca fundamento que venha infirmar a sua validade como prova pericial, pois mostra-se realizada por serviço oficial apropriado à matéria sobre que teria de incidir, ao qual o Ministério Público confiou a tarefa e, tacitamente, deferiu a nomeação dos intervenientes, em sintonia com a circunstância excepcional de versar formação médica especializada e permitida pelo n.º 2 do art. 159.º do Código de Processo Penal (identicamente, no art. 2.º, n.º 2, da Lei n.º 45/2004, de 19.08, que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses), devendo interpretar-se que a alusão, aí, à contratação ou indicação de peritos pelo Instituto Nacional de Medicina Legal deve ser entendida apenas para os casos em que a autoridade judiciária não tenha, ela própria, indicado outra entidade para realização da perícia.
IV – A actividade médica é, por natureza, potenciadora de diversos riscos, impondo aos profissionais um dever jurídico especial, obrigando-os à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, assumindo nesse sentido a posição de garante de evitar a verificação de eventos danosos para a saúde e vida do doente
V - Não tendo a arguida previsto que a hemorragia ocorrida se tratasse dos grandes vasos, incorreu em erro de prognóstico, quanto à evolução da situação, intimamente ligado à averiguação diagnóstica, optando por realizar procedimento que não era adequado - ao invés de imediatamente realizar a laparotomia exploradora por meio de incisão pubo-umbilical, que pode ser rapidamente alargada para a região supra umbilical até ao apêndice xifoideu, se necessário, que seria o procedimento técnico mais indicado, naquele circunstancialismo, para a exposição dos grandes vasos, a arguida levou a cabo, como primeira opção, a laparotomia de Pfannenstiel que não era efectivamente apropriado à necessidade de verificar a causa da hemorragia perante a gravidade que lhe era visível através dos sintomas que a paciente apresentava -, em procedimento cirúrgico de “drilling” do ovário por via laparoscópica, para debelar síndrome do ovário poliquístico e infertilidade primária.
VI - O seu erro foi relevante uma vez que, além de se ter traduzido em violação das leges artis, incrementou o risco permitido, excedendo a margem tolerada aceite na actividade médica.
VII - Ainda que o resultado pudesse vir a ocorrer se outro fosse o procedimento da arguida, os seus conhecimentos e os meios de que dispunha exigiam-lhe diferente atitude e de acordo com as leges artis, que se revelasse consentânea com o obviar a que o resultado se viesse a verificar, sendo para si, dada a gravidade e a emergência da situação, necessariamente previsível que acontecesse, o que, contudo, não valorizou como devia ao tomar a sua opção.
Decisão Texto Integral:

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Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora

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1. RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, perante tribunal singular, com o número em epígrafe, que correu termos no 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de P, sob prévia acusação do Ministério Público, a arguida MYB foi pronunciada pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pela conjugação do disposto nos arts. 15.º, alínea b), e 137.º, n.º 1, do Código Penal (CP).
O assistente, JMSF, deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida e contra Hospital A, SA, peticionando a condenação de ambos, no pagamento, solidário, da quantia total de 410.000 euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da conduta da arguida e do Hospital.
A arguida apresentou contestação à matéria da pronúncia, negando a prática dos factos tal como descritos nos autos, apresentado uma versão diversa dos mesmos. Mais, arrolou testemunhas e requereu a intervenção principal provocada de A P, Companhia de Seguros, SA.
Hospital A, SA, apresentou contestação ao pedido cível e arrolou testemunhas.
A P, Companhia de Seguros, SA, admitida a intervir, apresentou contestação ao pedido cível e arrolou testemunhas.
Realizado o julgamento, decidiu-se:
- julgar a pronúncia parcialmente provada, mas procedente, e o pedido cível parcialmente provado e procedente e, em consequência:
- condenar a arguida pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e. p. pelo art. 137.º, n.º 1, do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa à razão diária de 100 euros, num total de 20.000 euros;
- absolver Hospital A, SA, do pedido cível deduzido pelo demandante;
- condenar a demandada A P, Companhia de Seguros, SA, no pagamento ao demandante JF da quantia total de 295.000 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, calculados à tA P legal aplicável, desde a data do trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se do demais.

Inconformadas com tal decisão, interpuseram recursos, formulando, respectivamente, as conclusões:
1 - a arguida/demandada:
I. Atento o regime a que estão submetidas as perícias no âmbito do processo penal, o parecer assumido pelo Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos, não reúne os requisitos para que seja caracterizado como prova pericial.
II. Do mesmo modo, também a Dr.ª FF não pode ser considerada peR pois não foi nomeada como tal pelo Ministério Público ou pelo Tribunal, não prestou compromisso e, portanto, não lhe pode ser reconhecida a especial qualidade que é inerente à figura do perito em processo penal.
III. Nenhuma das formalidades impostas pela lei para a realização de perícias foi cumprida quanto a estes meios de prova.
IV. Assim, a indicada especialista foi apenas e só uma testemunha que deu as suas opiniões numa área técnico-científica, as quais aliás não tiVm por base factos que o Tribunal tenha apurado, mas tão só, uma parte dos elementos de prova que haviam sido recolhidos, mais concretamente os documentos de fls. 7, 30 a 41 e 71 a 75 dos autos. A própria sentença reconhece que tais pareceres e esclarecimentos não assentaram em factos e dados suficientes.
V. Certo é que em termos processuais penais não se trata de uma perita os seus pareceres e esclarecimentos não adquiriram a qualidade de juízo científico para os efeitos do disposto no artigo 163º do Código de Processo Penal.
VI. A valoração destes meios de prova não deveria ter obedecido ao regime próprio das perícias, plasmado no art.º 163.º do CPP, mas antes à livre apreciação do julgador.
VII. Face aos factos apurados e que resultaram da discussão da causa é incorrecta a decisão relativa ao facto não provado sob o n.º 2, pois tem de se considerar que nada permite afirmar que a arguida suspeitando de uma hemorragia, não previu tratar-se dos grandes vasos.
VIII. Consequentemente, o facto provado sob o n.º 7 deve corresponder ao que ficou demonstrado: A arguida suspeitou de hemorragia e previu como possível tratar-se de lesão do grande epíploon, dos intestinos ou dos vasos de maior ou menor calibre.
IX. Do mesmo modo, o facto provado sob o n.º 8, segundo o qual a arguida não utilizou de imediato a incisão pubo-umbilical, que seria o procedimento mais indicado para a exposição dos grandes vasos deve ser eliminado, porquanto a interpretação que a Mm.ª Juiz a quo fez não tem correspondência com toda a factualidade apurada e com as circunstâncias concretas verificadas.
X. Com efeito, dos esclarecimentos prestados pela peR médico-legal, os grandes vasos localizados na zona anatómica intervencionada são, para além da aorta, a veia cava e as artérias ilíacas, sendo que a incisão de Pfannenstiel é na zona das ilíacas. Ora havendo sinais da existência de uma hemorragia, mas não se sabendo qual a sua origem, o médico-cirurgião deve actuar o mais brevemente possível. E foi essa a atitude da recorrente, tanto mais que tinha também de considerar a inclinação que havia dado ao trocar.
XI. Consequentemente importa modificar o facto provado sob o n.º 9, que deve passar a ser do seguinte teor:
A arguida levou a cabo, como primeira opção, a laparotomia de Pfannenstiel que se revelou insuficiente para determinar a causa da hemorragia tendo, então, iniciado a incisão pubo-umbilical, esta alargada posteriormente até ao xifoideu pelo Dr. GG. As duas incisões - de Pfannenstiel e pubo-umbilical - demoraram cerca de um minuto e meio, no seu conjunto.
XII. A frase que ora se aditou resulta do conjunto da prova produzida, da qual é possível concluir que as duas incisões juntas não demoraram mais de um minuto e meio.
XIII. Desde logo e no que concerne ao facto n.º 10, assinala-se que o mesmo é conclusivo, pois que a afirmação do que alguém deve ou não fazer em certa circunstância não é um facto, mas uma conclusão a tirar de outros factos e até das regras aplicáveis.
XIV. Mas ainda que assim não se entenda, o que só por hipótese de raciocínio se concebe, atento o que acima ficou dito, o que ali está afirmado não corresponde à realidade e é contraditório com os factos provados, tal como constam da sentença. Seguindo o raciocínio da Mm.ª Juiz a quo, a arguida não suspeitou, num primeiro momento, tratar-se de uma lesão dos grandes vasos, pelo que não se vê como pode dar-se como provado algo que parte do pressuposto dessa suspeita ter existido.
XV. O raciocínio a seguir deve, pois, ser referido ao momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado, isto é, um juízo ex ante.
XVI. Também os factos provados n.ºs 11 e 14 da pronúncia não resultam dos meios de prova produzidos em audiência. Ressalta bastamente da prova produzida, que a tA P de mortalidade neste tipo de acidentes é muito elevada.
XVII. Acresce que quando estes acidentes ocorrem não é possível determinar qual o tempo a partir do qual a situação é irreversível. Muitas vezes, sendo tudo feito em tempo e com todas as condições disponíveis, não é possível evitar o decesso do paciente. Assim, não é possível afirmar e dar como assente que foi a circunstância da arguida não ter feito de imediato a incisão pubo-umbilical que não permitiu detectar a causa da hemorragia a tempo de a debelar.
XVIII. Ademais, a arguida e demais equipa mantiVm a paciente viva até à chegada do cirurgião geral que, como se confirmou na audiência, demorou cerca de 25 minutos a chegar ao bloco operatório depois de ter sido chamado.
XIX. Foi também na mesma altura que chegou o sangue que havia sido pedido. Ora se a paciente permaneceu viva apenas com as manobras de compressão realizadas e com os fármacos administrados pelo anestesista, tal só pode significar que os procedimentos adoptados, num primeiro momento pela arguida, quando fez as incisões, e depois ajudada pelos demais intervenientes, foram eficazes, não obstante não ter sido localizada, com precisão a causa da hemorragia.
XX. É que, convém ter presente, que a causa da hemorragia, consubstanciada na lesão da aorta, apenas foi detectada e suturada pelo Dr. GG, aquando da sua intervenção, a qual se iniciou cerca de 30 minutos depois de ter sido descoberta a hemorragia.
XXI. A arguida e o Dr. FR, porque especialistas em Ginecologia/Obstetrícia, não têm os conhecimentos necessários (e não têm de ter) para tratar lesões dos grandes vasos ou mesmo, se fosse o caso, dos intestinos. Pelo que apenas fizeram o que estava ao seu alcance e, por isso, lhes era exigido, ou seja, compressão na zona que parecia estar a sangrar.
XXII. Tais manobras prolongaram-se por cerca de 25 minutos. Sendo que todos os minutos contam numa situação como aquela com que a arguida se deparou, este período de tempo a que todos os médicos intervenientes foram alheios, terá sido muito mais relevante para a hemorragia do que aquele que a arguida demorou a fazer a incisão transversal, como é da lógica das coisas e do senso comum.
XXIII. Face ao que ficou dito e à impossibilidade, atestada pela peR médico-legal, de não ser possível determinar qual o momento a partir do qual a situação causada pela hemorragia é irreversível, não se pode ter considerado como provado o facto n.º 11 da pronúncia, pelo que deve o mesmo ser eliminado.
XXIV. Relativamente ao facto provado n.º 12 e que afirma que a morte de VA sobreveio na sequência da ferida da artéria aorta abdominal, o mesmo deve ser conjugado com o facto (da pronúncia) dado como não provado sob o n.º 3, no qual se diz que “A morte de VA também sobreveio das feridas da artéria ilíaca primitiva direita.
XXV. O relatório da autópsia médico-legal conclui que a morte da paciente foi devida a hematoma retroperitoneal na sequência das feridas da artéria aorta abdominal e da artéria ilíaca primitiva direita. Não obstante, a Mm.ª Juiz a quo afastou as feridas da artéria ilíaca primitiva direita como aptas a terem causado a morte de VA por, segundo fundamenta, “Em esclarecimentos complementares, a PeR esclareceu que atribuiu as feridas na ilíaca por não se mostrar a mesma suturada, ao contrário da aorta. Porém, admite que o maior débito sanguíneo saiu da aorta abdominal pelo que o débito sanguíneo das ilíacas não seria significativo, sendo a principal causa de morte, assim, a ferida na artéria aorta abdominal.”
XXVI. Ora, a peR referiu sempre não poder excluir que tais lesões, por incidirem sobre grandes vasos que são vitais, tivessem concorrido para o resultado morte. Na realidade, do conjunto da prova produzida resulta claro que o óbito ocorreu já depois de suturada a aorta e quando o Dr. GG procurava outra causa para o sangramento que visualizava e que lhe parecia vir de cima.
XXVII. O que nos conduz a considerar como possível que tais lesões tenham, efectivamente concorrido para a morte de VA. Ainda assim, as dúvidas subsistem, pelo que favorecendo a arguida deve dar-se como provado o facto não provado n.º 3 da pronúncia.
XXVIII. Consequentemente deve alterar-se o facto n.º 12 dos factos provados reportados à pronúncia, que passará a ser:
12. Sobrevindo a morte de VA por hematoma retroperitoneal na sequência da ferida da artéria aorta abdominal e das feridas da artéria ilíaca primitiva direita.
XXIX. Também no que concerne ao facto n.º 13 dos provados relativamente à pronúncia e para que fique plasmada a prova feita em audiência, bem como a fundamentação da sentença, é imperioso que lhe sejam introduzidas modificações. Não basta dar como não provado o facto 5 dos não provados da pronúncia, no qual se refere que a arguida podia ter evitado a lesão da bifurcação da aorta abdominal. Foi feita prova de que a actuação da arguida aquando da introdução do trocar foi a correcta.
XXX. Por consequência, o facto provado sob o n.º 13, em face da fundamentação da própria sentença, designadamente dos trechos transcritos supra, deve ser:
A arguida sabia que devia efectuar as manobras cirúrgicas de forma a não atingir qualquer veia, artéria ou órgão de VA, o que devia evitar. A arguida introduziu o trocar de forma correcta e adequada, não logrando, ainda assim, evitar a lesão da artéria aorta abdominal.
XXXI. Por fim e atento tudo o que ficou exposto, devem ser eliminados, do acervo dos factos provados da pronúncia, os n.º 14 e 15. Desde logo porque, ao contrário do que se propala na sentença, não houve nenhum erro de diagnóstico por parte da arguida quanto à causa da hemorragia. A recorrente colocou todas as hipóteses possíveis para a hemorragia, inclusive a de ter tocado um vaso sanguíneo, de maior ou menor calibre.
XXXII. O que a arguida não sabia era qual a localização da lesão que sangrava, sendo que partindo do pressuposto de que a mesma só poderia ter ocorrido aquando da introdução do trocar, teve em conta a inclinação dada a este, fazendo a incisão adequada a tal inclinação.
XXXIII. Todavia a recorrente não previu, nem estava obrigada a fazê-lo, que pudesse haver uma alteração anatómica por via do posicionamento da paciente, associado à sua obesidade corporal.
XXXIV. O aresto recorrido enferma, pois, de erro de Direito, por violação na aplicação do nº 2 do art.º 374.º do CPP, devido a inadequado acatamento do dever de formulação do exame crítico das provas, como supra ficou patente.
XXXV. Face às alterações que necessariamente há que formular relativamente à matéria de facto, forçoso é considerar que o enquadramento jurídico realizado na douta sentença recorrida também carece de modificação.
XXXVI. Sublinhe-se que as atitudes e comportamentos adoptados são os que, de acordo com a leges artis, eram os devidos e exigíveis, considerando a especialidade da recorrente.
XXXVII. Na verdade e como se vê da matéria de facto, a actuação da recorrente não merece qualquer censura. Os raciocínios que seguiu foram os correctos e agiu em conformidade com os mesmos, face aos elementos que conhecia em cada momento.
XXXVIII. Ora, o regime adoptado pelo legislador no artigo 150.º, n.º 1 do CP proclama a atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na direcção dos crimes de ofensas corporais e de homicídio.
XXXIX. A intervenção a que a paciente VA ia ser sujeita era, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, indicada e foi levada a cabo por uma médica, de acordo com as leges artis, com a intenção de debelar ou minorar a doença que a afectava.
XL. Admite-se, por mera hipótese de raciocínio, poder ser considerada controversa a afirmação de que a intervenção foi levada a cabo de acordo com as leges artis, na medida em que, segundo o Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos, a incisão de Pfannenstiel não era a mais indicada, antes devendo ser feita uma incisão pubo-umbilical. Todavia, não ser a mais indicada não é o mesmo que incorrecta, donde não constitui violação das leges artis. A arguida realizou a dita incisão pubo-umbilical imediatamente após aquela, pelo que nenhuma consequência se pode ter como verificada por via da realização da incisão de Pfannenstiel, tanto mais que a paciente foi mantida viva durante todo o tempo que mediou a chegada do cirurgião geral.
XLI. Mas mesmo que assim não se entenda – o que mais uma vez apenas por hipótese de raciocínio se prefigura – o certo é que a produção do resultado não é consequência adequada da mencionada incisão. Ora, “Os comportamentos violadores das leges artis apenas constituem um comportamento típico se a violação das regras criam um perigo proibido de produção do resultado e este corresponde à materialização do perigo (proibido) criado.
XLII. Forçoso é, pois, concluir que está afastada a aplicação à arguida do tipo de ilícito p. e p. pelo art.º 137.º do C.P.
XLIII. É fundamental para a imputação objectiva ao arguido de conduta com relevo penal, em consequência do aumento do risco permitido em que tenha incorrido, saber se esse risco, da forma como se manifestou, era adequado a materializar, a concretizar, o resultado típico. E, neste âmbito, perante a prova recolhida, o resultado que veio a ocorrer era insusceptível de ser afastado face às circunstâncias concretas.
XLIV. Nesta situação a existência de um nexo de causalidade não se estabeleceu, nem é possível estabelecer, face aos factos apurados. O artigo 10º do Código Penal sufraga sem equívocos a teoria da "causalidade adequada", ou seja, para que uma acção se possa dizer causa de um resultado é mister que em abstracto seja adequada a produzi-lo. É preciso que este seja uma consequência normal típica daquela.
XLV. Ao caso é, no mínimo, muito duvidoso que se a primeira incisão fosse a horizontal, a mesma fosse apta a ter qualquer interferência no processo causal da morte. Até porque subsistem dúvidas sobre o modo como as feridas incisas na artéria ilíaca direita concorreram para o evento morte, sendo certo que em face da materialidade apurada, tais feridas não foram provocadas pela arguida.
XLVI. Ou seja, quer pela prova produzida, quer por via da aplicação do princípio “in dubio pro reo” a arguida não pode ser condenada, antes se impondo a sua absolvição.
XLVII. Sem conceder quanto a tudo o que supra ficou dito, releva afirmar que a Mm.ª Juiz a quo violou também o preceituado nos artigos 137.º, nº 1 e 47.º, n.º 1 conjugados com os artigos 71.º e 40.º todos do Código Penal.
XLVIII. Na determinação da pena de multa não foi atendida a prova produzida e, por conseguinte, a pena concreta aplicada é desproporcional e injusta face à moldura abstractamente existente, quer quanto aos dias de multa quer quanto à quantia fixada para cada dia de multa. Os dias de multa devem, no quadro da condenação ora recorrido, ser significativamente atenuados.
XLIX. Isto porque, mais uma vez e em face da prova obtida em audiência, deverá dar-se como provado que os rendimentos líquidos da recorrente são, em média, entre € 3.500,00 a € 4.000,00; que tem, como encargos com a casa e seguro € 2.200,00; que contribui com uma média de € 1.000,00 por mês para os seus pais.
L. Quanto ao montante de cada dia de multa e considerando que o tribunal o fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais, o mesmo é incorrecto pois foram incorrectamente percepcionados uns e outros, donde o montante diário de €100,00 é exagerado face à prova da situação económica e financeira efectivamente produzida.
LI. No que tange à condenação proferida na vertente civil e dando por reproduzido tudo o que ficou dito sobre a conduta da recorrente, obrigatório será considerar que não se verificam os requisitos de que depende a obrigação de indemnizar.
LII. Face ao estabelecido no art.º 483.º do Código Civil, os requisitos de que depende o dever de indemnizar podem resumir-se como sendo a constatação da existência de um acto ilícito, de um dano e do nexo de causalidade entre estes e, por fim, à culpa.
LIII. Sucede que, como se demonstrou, a recorrente não praticou qualquer acto ilícito.
LIV. Sem prescindir, impugna-se concretamente o montante dos danos patrimoniais fixados pela sentença recorrida, já que apenas estes são susceptíveis de ter reflexos na esfera jurídica da recorrente, atentos os termos da franquia fixada na apólice.
LV. A título de danos futuros o Tribunal a quo fixou a indemnização em € 190.000,00, sem contudo terem sido ponderados todos os elementos existentes nos autos.
LVI. Desde logo, o facto do viúvo, demandante cível, não estar absoluta e permanentemente incapacitado para o trabalho. E embora não se saiba exactamente a sua idade, trata-se de pessoa jovem que não iria, seguramente, ficar a viver sem trabalhar nos próximos 38 anos, por muito difícil que seja a conjuntura actual em matéria de emprego.
LVII. Nem é razoável ou do senso comum que a sua mulher o sustentasse o resto da vida.
LVIII. O valor de € 190.000 é, pois inadmissível, porque muito superior ao dano e nem sequer tem em conta a circunstância da indemnização ser paga de uma só vez, o que só por si representa uma vantagem patrimonial muito relevante, que não foi ponderada. Assim, se se verificassem, por mera hipótese de raciocínio, os requisitos para a atribuição de uma indemnização neste âmbito, a mesma não deveria ser superior a € 45.000,00.
LIX. Acresce que este tipo de indemnização não tem por fundamento o dever de prestar alimentos entre cônjuges, pois este pressupõe que estejam separados, só podendo, ao caso, usar-se o fundamento do dever de contribuição para os encargos da vida familiar, que impende sobre ambos.
Deste modo e atento o exposto, deverá ser revogada a sentença proferida, devendo ser a mesma substituída por outra que absolva a arguida do crime de homicídio negligente pelo qual vem, injustamente, condenada.
Deverá, ainda e por consequência, ser proferida decisão que julgue não verificados os pressupostos de que depende a atribuição de uma indemnização.

2 - a demandada A P, Companhia de Seguros, SA:
1. A matéria de facto está redigida de forma conclusiva, devendo ser expurgada da matéria com essa característica.
2. A matéria dos factos 8 e 9 da sentença deve ser expurgada das conclusões, devendo ficar da seguinte forma: A arguida realizou a laparotomia exploradora, por meio do corte de pfannenstil e então iniciou e fez a incisão pubo-umbilical, esta alargada, posteriormente, até ao chifoideu pelo Dr. GG.
3. A matéria do facto 10 da sentença deve ser eliminada por ser totalmente conclusiva.
4. A matéria do facto 11 da sentença deve ser eliminada por ser conclusiva e por incompatibilidade com a matéria do facto 43.
5. A matéria dos factos 14 e 15 deve ser eliminada por ser de natureza totalmente conclusiva.
6. A matéria do facto 16, após a expurgação das conclusões deve ficar da seguinte forma: A arguida procedeu a laparoscopia, dispensando a presença de um cirurgião ajudante.
7. Deve ser aditada a seguinte matéria de facto resultante da discussão da causa (testemunha FF e declarações da arguida): O facto de ter sido feito na V, primeiro um corte transversal (corte pfannenstiel) e depois um corte vertical (corte pubo-umbilical) atrasou as manobras de salvação num minuto.
8. Das condições gerais da apólice da demandada consta, no artigo 5º, a matéria relativa às exclusões e uma das exclusões previstas na respectiva i) é a cobertura de perdas indirectas de qualquer natureza, lucros cessantes e paralisações.
9. A apólice da demandada contém uma franquia, aplicável quando há danos materiais, de dez por cento dos prejuízos indemnizáveis, no mínimo de 125 euros, pelo que mesmo que a apólice cobrisse os danos em que a demandada foi condenada, sempre teria que se deduzir a franquia, o que não foi feito.
10. Os danos morais do demandante Jorge, bem como os seus danos materiais emergentes da perda de rendimentos pela morte da V, não estão cobertos pela apólice da recorrente, por serem danos indirectos e estes estarem excluídos da sua garantia.
11. O dano da morte da VA deve ser reduzido para 50.000 €.
12. O demandante Jorge é parte ilegítima para pedir sozinho o dano morte da V.
13. Nunca o dano morte poderia ser atribuído na totalidade ao demandante Jorge, como o foi.
14. Os danos não patrimoniais sofridos pelo Jorge deverão ser valorados em não mais de 25.000 €.
15. Os danos patrimoniais indirectos sofridos pelo Jorge (perda de rendimentos) não são superiores a 50.000€.
16. A arguida não violou qualquer lei da arte da medicina.
17. A arguida não cometeu qualquer facto ilícito.
18. A arguida não violou qualquer dever de cuidado a que estivesse adstR.
19. Nenhuma culpa pode ser assacada à arguida, pela morte da vítima VA.
20. Não há nexo de causalidade entre o comportamento da arguida e a morte da vítima VA.
21. Não se verificam os requisitos da responsabilidade civil da arguida e consequentemente da recorrente.
22. Não se mostram preenchidos os elementos do tipo legal de crime do artigo 137º nº 1 e 15º b) do Código Penal, pelo qual a arguida foi condenada.
23. A sentença recorrida não se pronunciou sobre questões que lhe foram solicitadas (ilegitimidade do demandante Jorge quanto ao dano da morte, falta de cobertura da apólice quanto aos danos peticionados).
24. A sentença recorrida violou, entre outras, as disposições conjugadas das seguintes disposições:
a) Artigos 483º a contrario, 562º, 496º nº 2 do Código Civil
b) Artº 33º nº 2 e 615º nº 1 d) do CPC.
c) 379º nº 1 c) do CPP.
d) Apólice da demandada.
Termos em que deve o presente recurso ser declarado provido e, em consequência, revogar-se a douta decisão recorrida e substituir-se por outra que absolva a demandada do pedido.

Os recursos foram admitidos.

Apresentaram resposta:
- o Ministério Público (quanto ao recurso da arguida), concluindo:
1- A arguida MYB foi condenada nestes autos pela prática de crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137 nº 1 do C.P. pelo qual se encontrava pronunciada;
2- Alega a recorrente que o parecer assumido pelo Colégio de Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos não reúne os requisitos para ser caracterizado como prova pericial, nem a Dra. FF pode ser considerada peR, nem os seus pareceres e esclarecimentos assumiram a qualidade de juízo- científico, uma vez que nenhuma das formalidades impostas pela lei para a realização de perícias foi observada quanto a estes meios de prova;
3- Ora, analisando o parecer do Colégio de especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos constatamos que o mesmo reúne todos os requisitos de prova pericial e foi como tal considerado pela Mma. Juiz.
4- E mesmo que tal parecer não reunisse todos os requisitos exigidos por lei, tal sempre se trataria, no nosso entender de uma mera irregularidade, que não tendo sido arguida em momento e local próprios, se sanou.
5- Também se refira, no que concerne aos esclarecimentos complementares prestados pela médica ginecologista/obstetra designada pelo Colégio de Especialidade, que tais esclarecimentos prestados em sede de Audiência de Discussão e Julgamento gozam do mesmo valor da perícia (nesse sentido Act. TRC 30.4.20104).
6- Alega o recorrente que devem ser alterados os factos provados na sentença de acordo com a prova produzida, devendo ser eliminados os factos 8;
7- Mais alega que os factos 11, 14 não resultaram da prova produzida;
8- uma vez que resultou da prova que não houve nenhum erro de diagnóstico por parte da arguida quanto à causa da hemorragia, tendo a recorrente colocado todas as hipóteses possíveis para a hemorragia, inclusivé a de ter tocado num vaso sanguíneo, de maior ou menor calibre;
9- A arguida não sabia qual era a localização da lesão que sangrava, sendo que partindo do pressuposto de que a mesma só poderia ter ocorrido aquando da introdução do trocar, tendo em conta a inclinação dada a este, fazendo a incisão adequada a tal inclinação;
10- - Mais refere que a recorrente não previu, nem estava obrigada a fazê-lo, que pudesse haver uma alteração anatómica por via do posicionamento da paciente, associado à sua obesidade corporal;
11- No nosso entender, a douta sentença deu correctamente como provados os factos n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15 dos factos provados e como não provados os factos n.º 12 e 13 dos factos não provados.
12- Diga-se que resultou da prova produzida que os sintomas e alteração dos sinais vitais da paciente transmitidos à arguida pelo anestesista (como resulta dos depoimentos de […]), eram compatíveis com um estado de pré-choque hipovolémico, e também com uma hemorragia significativa e abrupta e não com uma hemorragia de um vaso de menor débito sanguíneo.
13- Logo, a referida hemorragia apenas poderia resultar de lesão dos grandes vasos, complicação mais dramática associada à laparoscopia.
14- A arguida alegou contudo que formulou um conjunto de hipóteses para explicar aqueles sintomas e que com base nesse quadro de possibilidades optou pela realização da incisão de pfannenstiel, limitando-se a deduzir que a hemorragia provinha do grande epiplon ou de um vaso de menor calibre.
15- Ora, tal como concluiu a Mma Juiz, conclusão com a qual concordamos, a arguida desvalorizou a complicação mais grave associada aquela tipo de intervenção e que era perfeitamente compatível com os sintomas apresentados - a lesão dos grandes vasos.
16- A arguida, erradamente, limitou-se a deduzir que a hemorragia provinha de uma vaso de menor calibre, sem que tivesse razões objectivas para assim concluir.
17- Resultou da prova produzida que a primeira incisão realizada pela arguida não permitia nem o acesso aos grandes vasos, que se situam num plano superior, nem ao estancamento da hemorragia, tendo apenas sido possível detectar o coágulo, sem que lograsse ver de onde brotava o mesmo, tendo a arguida decidido depois avançar para a incisão pubo-umbilical. Tal incisão é afinal a intervenção correcta para permitir a exploração do campo operatório com vista à localização da lesão e à adopção de medidas atinentes a repará-la.
18- Apenas a incisão pubo-umbilical, dada a sua extensão e alcance exploratório, permitiria iniciar logo a clampagem ou o tamponamento da artéria na zona provável da lesão, que são os procedimentos médicos adequados até à intervenção do cirurgião geral ou vascular (únicos habilitados a suturar o vaso, reparando a lesão).
19- E, tal como se provou, só posteriormente e após ter feito uma incisão que não era a adequada ao caso, é que a arguida acabou por alargar a sua incisão inicial, em direcção do umbigo (fez pois a incisão pubo-umbilical).
20- Sucede que, de acordo com as regras médicas, a arguida, porque de lesão dos grandes vasos se tratava, deveria ter logo partido para a incisão pubo-umbilical, ao invés de começar pela pfannenstiel, para a qual não havia nenhuma indicação médica ou utilidade.
21- A arguida alega que a duração daquelas incisões foi de 1 minuto e meio, contudo tal não resultou da prova produzida.
22- Ora, por muito rápida que fosse a fazer a incisão de pfannenstiel e depois a iniciar a incisão pubo-umbilical, a arguida perdeu tempo, pois nesse mesmo poderia estar já a ser feita a compressão, e que, por causa disso, assim não sucedeu, causando, assim, um agravamento dessa hemorragia, hemorragia essa que, por sua vez, levou à morte de VA.
23- No nosso entender e concordando com a Mma Juiz, a arguida, não fez de imediato a incisão pubo-umbilical, em violação das leges artis, violação essa da qual viria a resultar a morte, podia tê-la feito e disso era capaz (estava em condições de a fazer, tinha os conhecimentos e as habilitações necessárias).
24- Pelo que entendemos que bem andou a sentença ao dar como provados os factos n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15 dos factos provados e como não provados os factos n.º 12 e 13 dos factos não provados.
25- Face aos factos que ficaram como provados entendeu a Mmª Juiz condenar a arguida pelo crime supra-referido, tendo a arguida preenchido com a sua conduta todos os elementos constitutivos daquele tipo de crime, pelo que bem andou a Mm Juiz em condenar a arguida pela sua prática.
26- A sentença não enferma de erro de direito por violação na aplicação do artigo 374º, nº 2 do CPP, ao contrário do alegado pelo recorrente.
27- Tal como resultou da prova produzida, a incisão pubo-umbilical constituía, o procedimento técnico-cirúrgico adequado, pois que permitiria interromper o processo causal da morte (iniciado com a lesão da artéria), sendo imposto pelas leges artis e consubstanciando um dever objectivo de cuidado.
28- Verificou-se pois o resultado morte de V convocado pelo tipo penal em evidência, resultado esse cuja evitação que constituía a ratio da norma/dever objectivo de cuidado que impunha a opção imediata pela incisão pubo-umbilical), por causa da hemorragia sofrida em consequência da retardada compressão do vaso, retardamento proveniente da conduta da arguida
29- O resultado foi, pois, consequência da acção empreendida pela arguida, acção essa que incrementou, para além dos limites socialmente aceitáveis, o perigo para a vida da paciente, perigo esse que se veio a verificar.
30- Acresce que a arguida, estava em condições de fazer a incisão adequada- pubo-umbilical, tinha os recursos necessários para a ter levado a cabo, bem sabendo como se faz esse tipo de incisões, uma vez que já tinha uma vasta experiência em fazê-las. 31- A arguida podia, pois, ter observado o cuidado exigido para evitar a verificação do resultado e a conduta daquela foi apta a criar um risco proibido para a vida de V
32- E o resultado causado foi a concretização do risco não permitido inerente àquela conduta.
33- Por conseguinte, concordamos com a Mma Juiz quando concluiu pela imputação objectiva do resultado morte à conduta da arguida.
34- Pelo exposto, não houve, em nosso entender, qualquer exagero na fixação da pena de multa nem do seu quantitativo diário aplicada pela Mmª Juiz, mostrando-se justa e adequada, tendo sido observado o disposto nos arts. 70º, 71º, 77º, 40º, 47 nº 2 todos do C.P.
35- Pelo exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida por ter feito correcta apreciação e valoração da prova produzida e não ter violado qualquer disposição legal.

- o assistente (quanto a ambos os recursos), sem extrair conclusões, mas manifestando que deve ser negado provimento aos recursos.

Neste Tribunal da Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, acompanhando e aderindo aos fundamentos de facto e de direito invocados na resposta apresentada pelo Ministério Público na instância recorrida, no sentido de que o recurso (da arguida) não merece provimento.

Observado o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), nada foi acrescentado.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
*

2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto dos recursos define-se pelas conclusões que a respectiva recorrente extraiu da motivação, como decorre do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal n.º 7/95, de 19.10, publicado in DR I-A Série de 28.12.1995.
Reside, então, em apreciar:
1 - Recurso da arguida/demandada:
A) - da incorrecta natureza e valoração probatória do parecer do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos;
B) - da ausência de exame crítico das provas;
C) - da impugnação de matéria de facto;
D) - da absolvição criminal;
E) - da redução da medida da pena;
F) - da ausência de pressupostos para a obrigação de indemnização civil;
G) - da redução dos montantes fixados a título de indemnização.

2 - Recurso de A P:
A) - da nulidade da sentença;
B) - da eliminação de factos provados;
C) - da ausência de requisitos para a sua responsabilização civil;
D) - da redução dos montantes fixados a título de indemnização.
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Em sede de matéria de facto, consta da sentença recorrida (negritos e sublinhados conforme aí consignado):
Factos provados:
Da pronúncia:
1. No dia 06 de Abril de 2011, VA, de 27 anos de idade, deu entrada no Hospital A – para ser submetida a um “drilling” do ovário por via laparoscópica, por padecer de síndrome do ovário poliquístico e infertilidade primária.
2. A intervenção cirúrgica teve início cerca das 11h30m, e foi realizada pela cirurgiã, a arguida MYB.
3. Após a indução anestésica, a arguida procedeu à introdução do primeiro trocar e, como lhe pareceu que não entrou logo à primeira, a arguida introduziu um dedo no orifício para verificar se o caminho estava aberto e, voltou a introduzir o trocar.
4. Ao fazê-lo, atingiu a bifurcação da aorta abdominal, que é um dos grandes vasos, provocando uma ferida incisa, dando azo a hemorragia intra-abdominal.
5. Por isso, quando se iniciava a insuflação de CO2, VA ficou com abrupta palidez cutânea, taquicardia e diminuição das suas tensões arteriais.
6. A lesão dos grandes vasos é a complicação mais grave que pode resultar da introdução do primeiro trocar.
7. A arguida suspeitou de hemorragia, mas não previu tratar-se dos grandes vasos.
8. Assim, ao invés de imediatamente realizar a laparotomia exploradora por meio de incisão pubo-umbilical, que pode ser rapidamente alargada para a região supra umbilical até ao apêndice xifoideu, se necessário, que seria o procedimento técnico mais indicado, naquele circunstancialismo, para a exposição dos grandes vasos, a arguida não o fez.
9. Antes levou a cabo, como primeira opção, a laparotomia de Pfannenstiel que se revelou insuficiente para determinar a causa da hemorragia tendo a arguida, então, iniciado a incisão pubo-umbilical, esta alargada posteriormente até ao xifoideu pelo Dr. GG.
10. A arguida tinha o dever de saber que, em caso de suspeita de lesão dos grandes vasos, no circunstancialismo referido, o procedimento mais indicado para a exposição dos mesmos é a laparotomia por incisão pubo-umbilical e não aquele outro que utilizou em primeiro lugar.
11. Assim, ao não ter, de imediato, lançado mão da técnica de incisão pubo-umbilical, como primeira opção, a arguida não logrou detectar a causa da hemorragia a tempo de a debelar, conduta que devia e podia ter adoptado.
12. Sobrevindo a morte de VA por hematoma retroperitoneal na sequência da ferida da artéria aorta abdominal.
13. A arguida sabia que devia efectuar as manobras cirúrgicas de forma a não atingir qualquer veia, artéria ou órgão de VA, o que devia evitar.
14. A arguida não levou a cabo o procedimento técnico adequado que as circunstâncias concretas impunham para se inteirar das causas da hemorragia a que dera azo e poder combatê-las, estancando ou reduzindo a hemorragia e as suas consequências já que, ao invés de efectuar a laparotomia exploradora por meio de incisão mediana pubo-umbilical, como primeira reacção, antes, por descuido ou inabilidade, ao ter desvalorizado os sintomas da paciente, realizou a laparotomia de Pfannenstiel, conduta que devia e podia evitar.
15. A arguida sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei penal.
Do pedido cível:
16. A arguida procedeu à laparoscopia dispensando a presença de um cirurgião ajudante, o qual deveria estar presente neste tipo de cirurgias.
17. O HPA é uma unidade particular que tem a responsabilidade de prestar serviços de saúde adequados àqueles que ali recorrem, cabendo-lhe proporcionar os meios técnicos e humanos adequados a todas as intervenções que ali ocorram.
18. JMSF era casado com VA (nascida a 03.08.1983), desde 23 de Setembro de 2008.
19. Eram um casal unido e feliz, que vivia em harmonia e em estabilidade, e que projectava ter filhos, o que os levou a recorrer aos serviços do HPA.
20. A morte de VA e a forma como foi informada deixou JA arrasado, destroçado e com uma profunda tristeza, sofrendo um grande choque por perder, inesperadamente, a sua mulher, a quem amava profundamente e que o auxiliava no dia a dia, e em questões de saúde, pois que era enfermeira.
21. JA passou a viver amargurado, triste e deprimido, o que se manterá pelo resto da sua vida, vendo ainda o fim do seu projecto de vida com a sua mulher e da possibilidade de vir a ser pai de um filho dos dois, não sentindo interesse pela vida, dormindo apenas com a ajuda de calmantes, e tem vindo a ser acompanhado por psicólogo para minorar a depressão.
22. VA era uma pessoa jovem, alegre, saudável e feliz, com estreitos laços afectivos para com o seu marido, com quem vivia em clima de entre-ajuda.
23. VA trabalhava como enfermeira, no IDT, e auferia, em média, cerca de 1.100 euros mensais.
24. À data da morte, JA encontrava-se de baixa, como ainda se encontra, em resultado de um acidente de trabalho que o deixou incapacitado.
25. JA tem como únicos rendimentos mensais uma pensão de invalidez, de 180 euros, uma pensão de sobrevivência, de 146 euros e 30 euros da seguradora, num total de cerca de 350 euros mensais.
26. Para tratar de questões da sua saúde, JA teve que passar a custear tais cuidados prestados em centros de saúde e de enfermagem.
27. O casal projectara comprar casa, recorrendo a crédito bancário, para o que haviam outorgado o respectivo contrato-promessa, na sua maioria, com fundos proporcionados por VA.
28. Com os seus rendimentos actuais, JA não espera ver aprovado qualquer crédito bancário para comprar casa.
29. Para subsistir, JA vive da ajuda dos seus sogros.
Da contestação do HPA:
30. A arguida celebrou, em 2004, um contrato de prestação de serviços com o HPA, ali exercendo, desde então, a sua actividade profissional, quer na unidade de A, quer na de F.
31. A arguida, como médica contratada, tem autonomia no exercício da sua actividade, não se imiscuindo o HPA no modo de exercício da mesma, designadamente quanto a diagnósticos, escolha de procedimentos, o momento para a realização das cirurgias ou quanto à escolha da equipa cirúrgica, cabendo ao HPA assegurar a existência de pessoal qualificado e de condições técnicas e equipamento adequados à realização de cirurgias, tal como sucede.
32. O HPA tem contratados médicos e enfermeiros, de diversas especialidades e em número suficiente para a composição de equipas médicas, consoante os médicos livremente determinarem.
33. O HPA tem contratados cirurgiões gerais, em permanência ou em chamada, para acorrerem a situações de emergência ou de urgência em qualquer das suas unidades.
34. O HPA tem um protocolo com o Banco de Sangue do Centro Hospitalar do B, que garante o fornecimento de unidades de sangue, em caso de emergência, em minutos.
Da contestação da arguida:
35. Antes da intervenção cirúrgica, VA realizou os exames e análises necessários, tal como a arguida solicitou, revelando parâmetros normais.
36. Para este tipo de cirurgia, em que não são previsíveis grandes perdas sanguíneas, não é necessário ter sangue em reserva.
37. A arguida utilizou um trocar óptico, para poder visualizar todo o procedimento.
38. A arguida é médica especialista de ginecologia obstetrícia e já realizou centenas de laparoscopias, com a mesma técnica, sem incidentes.
39. Enquanto a arguida tentava apurar as causas da hemorragia, o Dr IC, anestesista, pediu o envio de sangue ao Serviço de Sangue do Centro Hospitalar do B; o Dr FR, cirurgião da mesma especialidade da arguida e que se encontrava a dar consultas no Hospital, acorreu à sala de operações para a ajudar; e foi chamado um cirurgião geral.
40. A arguida não tem conhecimentos nem experiência, dada a sua especialidade, para suturar lesões de vasos sanguíneos, o que só os cirurgiões vasculares ou cirurgiões gerais sabem e podem fazer.
41. Os cirurgiões vasculares ou gerais não têm que integrar a equipa médica cirúrgica para uma cirurgia como a que estava prevista.
42. A arguida, face ao tipo de lesão detectado, logo ordenou que fosse chamado um cirurgião geral, tal como foi feito.
43. A arguida, depois de fazer a incisão pubo-umbilical, e com o auxílio do Dr. FR, fez compressão de modo a evitar que a mesma progredisse, até à chegada do cirurgião geral, a quem aquela passou a adjuvar.
44. Por contrato de seguro titulado pela Apólice n.º 0084.0.011348, foi a responsabilidade civil da arguida, por danos causados a terceiros, transferida para a A P, SA.
Da contestação da A P:
45. Toda a logística, instalações, fornecimento de equipamentos, materiais e consumíveis, apoio de enfermagem e técnico pertencia ao HPA.
46. A A P responde nos termos da sua apólice com sub-limite por sinistro, de 300.000 euros e a franquia de 10% dos danos materiais indemnizáveis, no mínimo de 125 euros.
Mais se provou que:
47. A arguida não tem antecedentes criminais.
48. A arguida exerce a sua profissão de médica desde há cerca de 27 anos, e como ginecologista/obstetra desde há de 12 anos; tendo estudado em Maputo e em Sófia antes de vir para Portugal, onde começou por exercer Clínica Geral; depois de obter a especialidade, exerceu funções no Hospital DistRl de F; foi ainda responsável pelo serviço de ginecologia do HPA, estando actualmente dedicada à criação da maternidade do HPA, tendo suspendido a intervenção em cirurgias desacompanhada.
49. A arguida colaborou, enquanto médica, com a AMI, em Moçambique, durante cerca de 1 ano, no início da sua carreira.
50. A arguida recebeu, em média, entre Fevereiro e Abril de 2014, cerca de 16.000 euros, ilíquidos.
51. A arguida vive com a sua filha, de 24 anos de idade, estudante, que está ainda a seu cargo; ajuda ainda financeiramente os seus pais, já reformados, que residem na B, para quem remete cerca de 120 euros mensais, para além de lhes enviar medicamentos; vive em casa própria, pagando a prestação bancária mensal de cerca de 1.800 euros mensais.
52. A arguida é considerada pelos seus colegas e pacientes como sendo uma profissional dedicada e competente.

Factos não provados:
Da pronúncia:
1. A arguida, ao introduzir o trocar, provocou também duas feridas incisas na artéria ilíaca direita e a laceração do fígado, o que podia e devia ter evitado.
2. A arguida suspeitou logo de hemorragia dos grandes vasos.
3. A morte de VA também sobreveio das feridas da artéria ilíaca primitiva direita.
4. Foi por descuido ou inabilidade que a arguida atingiu a bifurcação da aorta.
5. A arguida podia ter evitado a lesão da bifurcação da aorta abdominal.
Do pedido cível:
6. A arguida devia ter utilizado a agulha de Veress para a realização do pneumoperitoneu ao invés de usar um trocar, que era o procedimento mais indicado.
7. O Hospital A devia ter reserva de sangue para a cirurgia prevista e a arguida devia ter cuidado pelo mesmo.
8. A morte de VA teria sido evitada se a arguida tivesse sido assistida por um cirurgião-ajudante desde o início da cirurgia.
9. O HPA não proporcionou todos os meios técnicos e humanos necessários à cirurgia em causa, em acordo com a arguida.
10. O HPA tentou ocultar as circunstâncias da morte de VA.
11. Com a sua actuação, a arguida provocou em VA as seguintes lesões traumáticas: duas feridas cirúrgicas abdominais em forma de T invertido, com agrafos; uma ferida vertical mediana, à esquerda da cicatriz umbilical, com 21 cm; uma ferida transversal, supra-púbica, com 13 cm; uma ferida horizontal supra umbilical com 5 cm, edema encefálico, edema pulmonar e rins congestionados.
Da contestação da arguida:
12. A arguida agiu em todas as circunstâncias com todo o cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
13. A realização prévia da incisão de pfannenstiel não teve qualquer repercussão no que sucedeu.

Convicção do Tribunal:
Sendo certo que, salvo quando a lei disponha diferentemente, como sucede a respeito da prova pericial, a prova, nos termos do art.º 127.º do CPP, deve ser apreciada, no seu conjunto, segundo as regras da experiência e segundo a livre convicção do julgador, foram os seguintes os meios de prova nos quais o Tribunal fundou a sua convicção quanto à factualidade apurada:
- Declarações da arguida: que apresentou a sua versão sobre as razões que levaram a vítima a procurar os seus serviços e qual o diagnóstico da mesma, sobre os procedimentos tomados antes da cirurgia, bem como sobre a sua actuação durante toda a intervenção cirúrgica. A sua versão foi, no essencial, confirmada pelo depoimento das testemunhas que presenciaram os factos, tendo ainda sido valorada na parte em que não foi adequadamente contrariada pelos restantes meios de prova, ao abrigo do princípio do in dubio pro reo. Mais se valoraram as suas declarações a respeito da sua situação pessoal, conjugadas com a prova documental produzida a este respeito.
- Declarações do assistente JMSF: marido da falecida VA, o qual esclareceu sobre os tratamentos e exames feitos pela vítima, as consultas com a arguida e o tratamento proposto, os factos presenciados no dia da cirurgia e as consequências psicológicas e económicas que para si resultaram do falecimento da sua mulher, o que, por coerente, foi valorado.
- Depoimento da testemunha GG (Dr. GG): médico cirurgião geral, o qual exerce funções para o HPA desde há cerca de 7 anos, e que esclareceu sobre as circunstâncias em que foi chamado, de emergência, ao bloco operatório dos autos, bem como sobre os procedimentos que levou a cabo e os demais factos presenciados. Revelou algum comprometimento com os factos (designadamente com a lesão da ilíaca e a suturação do fígado), tendo ainda deposto de modo defensivo, o que suscitou algumas reservas a respeito da sua isenção. Assim, valoraram-se as suas declarações na parte em que não foram contrariadas pelos restantes meios de prova.
- Depoimento da testemunha ISPC (Dr. IC): médico anestesista, o qual exerce funções no HPA desde há cerca de 7 anos, tendo trabalhado por diversas vezes com a arguida, e que interveio, desde o início até ao final, na cirurgia programada, esclarecendo sobre os factos por si presenciados, o que fez de modo coerente e sem suscitar dúvidas a respeito da sua isenção, pelo que foi merecedor de credibilidade para o apuramento dos factos.
- Depoimento da testemunha EFSRF (Dr. FR): médico cirurgião de ginecologia e obstetrícia, que exerce funções no HPA desde há cerca de 16 anos, e que esclareceu sobre as circunstâncias em que foi chamado a intervir, de urgência, no procedimento cirúrgico em curso, já após a conversão para a laparotomia, e que esclareceu sobre os factos pelo mesmo presenciados. A testemunha depôs de modo cauteloso e defensivo, o que suscitou algumas reservas a respeito da sua isenção. Por isso se valorou o seu depoimento, para o apuramento dos factos, na parte em que não foi contrariado pelos demais meios de prova.
- Depoimento da testemunha JMFM: 1.º enfermeiro instrumentista, em exercício de funções no HPA desde há cerca de 9 anos, o qual interveio no procedimento cirúrgico dos autos, desde o seu início, até ao falecimento da paciente e que esclareceu sobre os factos que presenciou, bem como sobre os procedimentos usualmente levados a cabo pela arguida em cirurgias semelhantes, com quem já antes trabalhara. Depôs de modo pormenorizado e coerente, pese embora, se denotasse pontualmente, ao longo do seu relato, uma postura mais defensiva e menos espontânea, o que suscitou algumas reservas quanto à sua isenção. Assim, valoraram-se as suas declarações na parte em que não foram contrariadas pelos restantes meios de prova.
- Depoimento da testemunha CAPB: enfermeiro anestesista, que exerce funções no HPA desde há cerca de 8 anos, e que interveio na cirurgia dos autos, desde o início, tendo esclarecido sobre os factos de que revelou conhecimento directo, de modo coerente e sem suscitar dúvidas a respeito da sua isenção, pelo que mereceu credibilidade para o apuramento dos factos.
- Depoimento da testemunha SMLR: 2.ª enfermeira instrumentista, em exercício de funções no HPA, desde há cerca de 9 anos, a qual interveio no procedimento cirúrgico dos autos, desde o seu início, até ao falecimento da paciente e que esclareceu sobre os factos presenciados bem como sobre a experiência profissional da arguida, com quem já antes trabalhara, o que fez de modo coerente e sem suscitar dúvidas a respeito da sua isenção, pelo que mereceu credibilidade para o apuramento dos factos.
- Depoimento das testemunhas […]: respectivamente, prima do assistente; Médica coordenadora, Enfermeiros Chefes e Assistente social no IDT onde trabalhava VA; e amiga de infância da vítima; os quais esclareceram sobre os factos de que revelaram conhecimento directo relativamente à personalidade da vítima, ao relacionamento do casal e aspirações, ao vencimento da mesma, e ao estado emocional do assistente após o falecimento, o que fizeram de modo coerente e sem suscitar dúvidas a respeito da sua isenção, tendo merecido credibilidade para o apuramento dos factos.
- Depoimento da testemunha (…): Gestor do HPA, que esclareceu sobre a qualidade dos serviços prestados pelo HPA e a organização interna do mesmo. A testemunha depôs de modo pontualmente defensivo, pelo que suscitou algumas reservas a respeito da sua isenção. Assim, valoraram-se a suas declarações na parte corroborada pelos restantes meios de prova.
- Depoimento da testemunha (…): Médico cirurgião geral e Director clínico do HPA, exercendo funções no HPA desde há cerca de 6 anos, o qual esclareceu sobre a organização interna do HPA, sobre a sua intervenção na data dos factos e sobre a experiência profissional da arguida. Depôs de modo coerente, tendo sido valorado o seu depoimento para o apuramento dos factos.
- Depoimentos das testemunhas (…): pacientes da arguida, as quais abonaram em favor da sua personalidade e competência profissional, o que foi valorado.
- Prova pericial
a) relatório de exame toxicológico do INML, de fls 63;
b) relatório da autópsia de fls 72 a 75;
c) parecer do Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos de fls 168 a 172 e de fls 303 a 305 (redigido e elaborado pela Médica Dr.ª FF, designada pelo referido Colégio, que o mesmo assumiu como seu).
d) esclarecimentos complementares da Dra. CR, médica legista, que foi a responsável pela realização da autópsia médico-legal da paciente e pela elaboração do relatório de autópsia junto aos autos.
e) esclarecimentos complementares da Dr. FF, médica ginecologista/obstetra, designada pelo Colégio da Especialidade.
- Prova documental
a) certificado de óbito de fls 7;
b) documentação clínica de fls 31 a 41 (composta por declaração de consentimento; lista de verificação pré-operatória; registo da cirurgia segura; registo da cirurgia; registo de hemovigilância; resumo da informação clínica; relatório médico);
c) registo intra-operatório da cirurgia de fls 82;
d) imagem anatómica de fls 134;
e) resultado de pesquisa do registo civil de fls 143;
f) relatório de ocorrências de fls 163 a 166;
g) apólice de seguro de fls 424 a 436;
h) certificado de Registo Criminal da arguida, de fls 472;
i) assento de casamento de fls 479;
j) informação clínica de fls 480;
k) declaração do IDT de fls 481;
l) tabela de remunerações de fls 482;
m) assento de nascimento de fls 498/499;
n) certidão de repúdio de herança de fls 671/672;
o) listagem de valências do HPA junta no decurso da audiência de julgamento;
p) artigo médico junto no decurso da audiência de julgamento;
q) recibos de vencimento da arguida juntos no decurso da audiência;
r) fotografia da ilíaca junta no decurso da audiência;
s) contrato de prestação de serviços junto no decurso da audiência.
Cumpre, agora, em conformidade com o estatuído no art.º 374.º, n.º 2 do CPP proceder ao exame crítico das provas, que foram ponderadas de modo conjugado entre si e em conformidade com os princípios lógicos e as máximas da experiência comum, por forma a expor o sentido da convicção formada a respeito da factualidade que integra o objecto do processo e que se explanará por temas (conjuntos de factos).
Assim:
I - Quanto à patologia da paciente VA:
Da conjugação da prova produzida em audiência, designadamente, das declarações da arguida, do assistente, da prova documental (fls 38 a 40) e pericial (a autópsia comprova que a paciente tinha ovários poliquísticos) resultou comprovado que a paciente VA sofria de infertilidade primária associada ao síndrome de ovários poliquísticos.
Resultou ainda demonstrado que, antes da cirurgia, já a paciente havia tentado outro tipo de abordagens para engravidar, sem êxito.
Por isso se deu como provado o facto n.º 1 dos factos provados.
II - Da morte de VA:
A paciente faleceu no dia 06.04.2011, às 13h30m, no bloco operatório do HPA de A, durante a cirurgia, como se retira do teor dos documentos de fls 7 e 35 e do relatório da autópsia de fls 72 a 75.
Nesta conformidade, deram-se como provados os factos n.º 1 e 12 dos factos provados.
Do referido relatório resulta que a médica patologista que realizou a autopsia observou, em exame ao hábito externo, as seguintes feridas cirúrgicas abdominais: duas em forma de T invertido com agrafos (uma vertical, mediana, à esquerda da cicatriz umbilical, com 21 cm; e uma transversal, supra-púbica, com 13 cm); e uma horizontal, supra-umbilical, com 5 cm; para além de sinais de venoclise terapêutica nos sangradouros e dorso de ambas as mãos.
Os resultados do exame ao hábito externo são compatíveis com o tipo de intervenções cirúrgicas realizadas à paciente, tal como apurada nos autos (incisão de pfannenstil e incisão pubo-umbilical até ao xifoideu, bem como administração de expansores e transfusão sanguínea). Sendo tais feridas resultantes da própria intervenção cirúrgica, não se poderão reputar como lesões traumáticas e daí que se tenha dado como não provado o facto n.º 11 dos factos não provados (sendo que parte da descrição corresponde ao estado do hábito interno aquando da autópsia, como sucede com os edemas).
No que refere ao exame do hábito interno, a médica patologista observou: os órgãos muito anemiados; hematoma retroperitoneal, com coágulos; hematoma peri-renal direito; líquido pleural sero-hemático, com 100 cc à direita, e 110 cc à esquerda; uma ferida incisa na bifurcação da artéria aorta abdominal, suturada; duas feridas incisas na artéria ilíaca esquerda (não suturadas); laceração do lobo hepático direito, suturada; edema encefálico; edema pulmonar; e rins congestionados. Mais observou a existência de ovários poliquísticos (o que confirma o diagnóstico que levou à realização da cirurgia na data dos autos), sendo que o conteúdo do estômago era vazio (o que é compatível com o estado de jejum, desde as 00h00 do dia 06.04.2011, documentado pelo protocolo de cirurgia segura, de fls 32). Descreve ainda a realização de exames complementares (exame toxicológico) que deu resultado negativo (e que a peR, em esclarecimentos complementares, esclareceu tê-la ordenado para excluir a interferência de qualquer medicação que pudesse ter contribuído para o estado hemorrágico, designadamente, afectando a coagulação. Apesar da amostra colhida não ser electiva, por ser muito reduzida, não detectou a presença de qualquer substância. Acresce que apesar da referência a aspirinas, a fls 32, a sua ingestão só seria susceptível de interferir com a coagulação se tomada em momento muito próximo da cirurgia, algo que os resultados do exame toxicológico e o estado de jejum da paciente permitem afastar). Excluíu ainda a peR quaisquer outras causas eventualmente concorrentes com a causa da morte.
Ali se fixa, assim, como causa de morte as feridas nas artérias aorta abdominal e na ilíaca direita primitiva, em intervenção cirúrgica. Sendo as conclusões médico-legais as seguintes: a morte da paciente foi devida a hematoma retroperitoneal na sequência das feridas da artéria aorta abdominal e da artéria ilíaca primitiva direita. Em esclarecimentos complementares, a PeR esclareceu que atribuiu as feridas na ilíaca por não se mostrar a mesma suturada, ao contrário da aorta. Porém, admite que o maior débito sanguíneo saiu da aorta abdominal pelo que o débito sanguíneo das ilíacas não seria significativo, sendo a principal causa de morte, assim, a ferida na artéria aorta abdominal. Por isso que, pelas dúvidas suscitadas, se tivesse dado como não provado o facto n.º 3 dos factos não provados.
Acresce que consignou a peR, no respectivo relatório, que as feridas cirúrgicas do hábito externo e a anemia dos órgãos denotam terem sido produzidas por objecto com acção cortoperfurante, podendo ter sido devidas (todas) a trocar laparoscópico. Nos esclarecimentos prestados em audiência, porém, sublinhou ter sido intencional o uso de tal expressão, já que não pode excluir que pudessem algumas das lesões (as da ilíaca, portanto, face ao sentido da restante prova produzida) ter ocorrido noutras circunstâncias.
E se a ruptura da aorta, apesar de suturada, constitui causa da morte, na medida em que é essa lesão que explica o desencadeamento do choque hipovolémico, e a grande hemorragia denunciada, para além do mais, nos hematomas; as feridas da ilíaca terão muito menor débito sanguíneo, porém não se encontravam suturadas, sendo certo que as mesmas foram provocadas ainda em vida da paciente. Por isso que as tivesse incluído como causa da morte, admitindo, porém que a principal causa da morte seria a lesão da bifurcação da aorta.
III - Do evento cirúrgico realizado no dia 06.04.2011, no HPA:
A este respeito importa distinguir, entre os procedimentos médicos correctos, tal como deveriam ser realizados (em conformidade com as leges artis apuradas), dos procedimentos que foram efectivamente levados a cabo.
No que concerne aos procedimentos e técnicas aceites pela ciência médica actual como sendo os correctos, far-se-á um excurso do que resultou apurado em face da conjugação dos esclarecimentos de ambas as peRs médicas (a médica patologista e a médica designada pelo Colégio da Especialidade, que em audiência confirmou e esclareceu sobre o teor das guidelines aplicáveis, assentes em estudos randomizados, recolhidos e analisados pelo “Royal College Of Obstetricians and Gynaecologists” (guideline n.º 49, de Maio de 2008, “Preventing entry-related gynaecological laparoscopic injuries”) e pela “Society Of Obstetricians and Gynaecologists of Canada” (estudo de Maio de 2007, revisto em Junho de 2013, “laparoscopic entry: a review of techniques, technologies, and complications”), ambos acessíveis, respectivamente in www.rcog.org.uk e www.sogc.org.
- III – a) DAS LEGES ARTIS
Como deveria ser.
- No que concerne à cirurgia programada (drilling do ovário por via laparoscópica) -
A laparoscopia, ao contrário da laparotomia (que corresponde à cirurgia que incisa a parede abdominal para operar as estruturas e órgãos intra-abdominais a céu aberto), consiste numa técnica cirúrgica com recurso a pequenas incisões, nas quais se introduzirão, numa delas, uma lente (o laparoscópio) mediante a qual se visualizará o interior do abdómen, e nas demais, as pinças cirúrgicas, adequadas ao tipo de cirurgia em causa, sendo, portanto, uma cirurgia realizada internamente, mas sob visão directa, possibilitada pela dita óptica.
Este tipo de cirurgia apresenta vantagens sobre a laparotomia, já que é claramente menos invasiva, possibilitando uma mais rápida e menos dolorosa recuperação do paciente (sendo também menos dispendiosa já que não carece de internamento pós-operatório), e o risco de complicações “minor” é inferior, pese embora o risco quanto a complicações “major” seja semelhante.
Porque a cavidade abdominal é meramente virtual (ou seja, os órgãos e estruturas abdominais estão “colados” uns aos outros) é necessário distender a referida cavidade, através da introdução de gás (CO2), que permite a separação desses órgãos e assegura ainda um manuseamento, em maior segurança, das pinças cirúrgicas e do próprio laparoscópio. A imagem obtida pela referida lente/óptica é transmitida, em tempo real, para um monitor de vídeo. Por isso que, a primeira entrada seja, justamente, a destinada à introdução do laparoscópio, posto que, introduzido o mesmo, será já possível controlar a subsequente introdução das pinças, porquanto o cirurgião terá já visão directa do interior do corpo (evitando danificar órgãos ou estruturas internas).
Ora, para a realização da laparoscopia é necessário criar, assim, por um lado, um acesso para a inserção das pinças cirúrgicas e da óptica, mas, por outro, garantir que, na criação desse acesso não se afecte a distensão do abdómen, provocada pela insuflação de CO2 (o pneumoperitoneu, que cria espaço para trabalhar e permite uma melhor visualização dos órgãos).
O trocar é o instrumento que composto, no essencial, por uma bainha (parte externa que possui um canal para a introdução das pinças com um sistema valvulado que impede o escape do gás) e pelo mandril (parte interna constituída por um elemento adequado a atravessar a parede abdominal durante a sua introdução), cfr. definição dada por Marco Aurélio Pinho de Oliveira, in “Brazilian Journal of Videoendoscopic Surgery”, v.5, n.º 2, Abril/Junho 2012, acessível in
Dada a particularidade deste tipo de cirurgia (realizada com instrumentos específicos, e cujo manuseamento vai sendo seguido através de um monitor - e, portanto num plano maior, o que, se por um lado, permite uma visualização mais precisa e pormenorizada, por outro, implica uma maior sensibilidade para a diferente escala de visualizado dos órgãos e estruturas) é necessário, ao cirurgião, um treino/formação também eles apropriados, sendo, portanto, o factor experiência do cirurgião relevante no que toca à incidência de complicações (para além da complexidade ou não do tipo de cirurgia, da familiaridade com o equipamento utilizado e da constituição da equipa médica e de enfermagem).
O drilling ovárico consiste numa abordagem cirúrgica, adequada ao tratamento do síndrome dos ovários poliquísticos (endocrinopatia que se caracteriza pelo hiperandroginismo, anovulação e ovários poliquísticos, muitas vezes associado à resistência à insulina e à obesidade), que induz a ovulação através da realização de múltiplos orifícios na superfície do ovário (na cápsula de cada ovário), com laser ou electrocoagulação, com o objectivo de proceder à destruição do estroma ovárico produtor de androgéneos. Os estudos médicos apontam para tA Ps de ovulação, subsequentes a esta terapêutica, na ordem dos 70 a 90% e tA Ps de gravidez até 70%, sendo que os efeitos do referido drilling até cerca de 72 meses, tendo esta técnica indicação no tratamento da infertilidade em doentes com o aludido síndrome e anovulação resistente a abordagens farmacológicas. O drilling ovárico laparoscópico constitui, assim, uma opção terapêutica eficaz e segura (sem prejuízo dos riscos inerentes a qualquer cirurgia laparoscópica) no tratamento da infertilidade em doentes com aquelas características (cfr. “Drilling Ovárico: uma opção no tratamento da infertilidade”, de Ricardo Ribeiro, Helena Leite, Andreia Marques, Nuno Pereira, Sílvia Sousa e Sidónio Matias, da Maternidade Bissaya-Barreto, em Coimbra, 2010).
A multiperfuração ovárica laparoscópica é realizada sob anestesia geral, revelando-se uma cirurgia minimamente invasiva, de recuperação rápida do paciente, e, no caso do drilling, menos lesiva do ovário, do que a laparotomia.
A este tipo de cirurgia estão associados riscos específicos desta técnica: infecção das incisões; hemorragia das incisões; herniação das ditas incisões; embolia causada pelo gás usado para criar o pneumoperitoneu; hemorragias internas; e, sobretudo, a lesão dos órgãos internos ou dos grandes vasos (provocados pelo próprio laparoscópio ou pelos instrumentos cirúrgicos, existindo risco de perfuração).
Em caso de complicações é necessário converter a laparoscopia para a laparotomia (cirurgia aberta).
- Quanto à técnica e instrumentos cirúrgicos para a primeira entrada
Um dos momentos mais críticos da cirurgia é, naturalmente, o da criação da primeira porta de acesso para a introdução do laparoscópio.
Com efeito, se a introdução das pinças cirúrgicas é orientada pela visão directa dada pela óptica, na introdução dessa óptica não existe qualquer apoio visual do interior do corpo, sendo, portanto, feita “às cegas”. E aí reside o maior risco, já que, é possível atingir, nessa primeira entrada, algum órgão ou algum vaso, sendo, portanto, maior o cuidado a empregar neste procedimento.
O acesso ao abdómen, através deste tipo de cirurgia está, portanto, associada a lesões do trato gastrointestinal e dos grandes vasos, sendo que, em pelo menos, 50% dos casos destas grandes complicações ocorre, precisamente, na fase inicial da cirurgia, com a criação do primeiro acesso, sendo que a tA P deste tipo de complicações tem-se mantido ao longo dos últimos 25 anos. A maioria deste tipo de lesões verifica-se, assim, aquando da introdução do primeiro trocar.
Para minimizar o risco de lesões relacionadas com a referida entrada têm vindo a ser desenvolvidas diferentes técnicas, instrumentos específicos e tipos de abordagens - sobre os quais, porém persiste controvérsia sobre qual a mais segura - e que incluem:
- a técnica fechada (criação prévia do pneumoperitoneu com recurso à agulha de Veress ou de trocar seguida da introdução do laparoscópio; ou introdução directa do trocar sem prévio pneumoperitoneu);
- a técnica aberta (ou de Hasson, em que é feita uma incisão inicial até à cavidade peritoneal, com visão directa, seguindo-se a colocação de uma cânula em torno da qual se suturará a parede abdominal, para introdução do laparoscópio e criação do pneumoperitoneu, numa espécie de mini-laparotomia);
- o uso de trocares de protecção descartáveis; agulha de Veress com óptica, trocares ópticos, trocares expansíveis; etc (os quais terão sempre capacidade perfurante já que a sua superfície tem que ser adequada à dissecção dos tecidos).
Um dos factores de risco deste tipo de cirurgias é o da aderência umbilical, já que a mesma pode alterar a distância interna normal do umbigo até às estruturas internas, o que pode ser detectado através de ecografia. Porém, apesar de poder ser útil não está medicamente comprovado que o seja necessariamente. Acresce que a aderência está associada à realização de cirurgias anteriores.
No que respeita ao ângulo de introdução da agulha de Veress ou do trocar, tendo em consideração que, em termos médios, a distância entre o umbigo e os grandes vasos medirá cerca de 0,4 cm, nas pacientes mais magras, cerca de 2,4 cm, nas mulheres gordas, e cerca de 2,9 cm, nas pacientes obesas, considerando o respectivo índice de massa corporal, é recomendado inclinar o instrumento utilizado a um ângulo, variável, entre os 45 graus, para as mulheres mais magras, e os 90 graus para as mulheres muito obesas.
Quanto à introdução propriamente dita, pese embora existam estudos sobre testes e técnicas para o cirurgião poder certificar-se se a agulha ou o trocar se encontram correctamente posicionados na cavidade abdominal, tais testes não evitam, com total segurança, a produção de lesões viscerais ou vasculares, já que não fornecem informação completa sobre a exacta colocação daqueles instrumentos. Ou seja, a omissão na realização desses ditos testes não é considerada como uma má prática cirúrgica.
Ainda a respeito dessa introdução, e porque é necessário comprimir o instrumento por forma a trespassar a parede abdominal e toda a massa adiposa até atingir a cavidade abdominal, apesar de ser natural o movimento de agitação da agulha de um lado para o outro para ajudar nesse movimento (facilitando a penetração do instrumento) ou para soltar um órgão que ali se tenha “colado”, o certo é que a movimentação lateral excessiva deve ser evitada, já que, em caso de lesão, esta manobra poderá aumentar a dita lesão.
No que respeita ao levantamento da parede abdominal aquando da introdução da agulha ou do trocar, que afasta a mesma dos órgãos, também não existe consenso entre os especialistas, sendo certo que se deram ocorrências de lesões na aorta mesmo com utilização desta técnica.
Quanto ao número de tentativas para a introdução da agulha ou do trocar, a recomendação é de que, sendo progressivamente maior o risco de complicações quanto maior for o número de tentativas, devem fazer-se, no máximo, até 2 tentativas, sendo que em caso de frustração, o recomendado é mudar de técnica para a técnica aberta ou mudar o ponto de introdução.
A respeito da avaliação às técnicas supra aludidas, não existe consenso médico sobre qual a mais segura, já que todas comportam riscos vários e específicos de cada técnica. Assim, pese embora existam vários estudos que defendam que a técnica de Hasson, por oferecer uma menor tA P de lesões, designadamente vasculares, (pese embora já assim não suceda com as lesões dos intestinos, com uma significativa tA P de mortalidade) foram reportados vários casos de tais lesões terem ocorrido. A conclusão a que chega a SOGC é que, apesar desta técnica revelar uma menor incidência de lesões vasculares, tal vantagem é contrabalançada pela significativa incidência de lesões graves nos intestinos, recomendando esta técnica como uma possível alternativa à técnica fechada, sem que, porém, a mesma se revele superior ou inferior a qualquer outra técnica de entrada.
No que concerne à entrada directa do trocar, a conclusão é idêntica, já que, pese embora tenha vantagens sobre a agulha de Veress (não existe risco de insuflação preperitoneal, de insuflação intestinal ou de embolia, já que, com esta técnica, prescinde-se da realização prévia do pneumoperitoneu; tem menos complicações “minor”, e carece de apenas uma introdução, uma vez que sendo o trocar directamente introduzido, dispensam-se as fases de introdução da agulha, de insuflação e de colocação, então, do trocar), ao ser inserido directamente dentro da cavidade, não evita a ocorrência de lesões, designadamente dos grandes vasos. Por isso que, não havendo evidência de se tratar de uma técnica menos segura que as outras, ainda que sem criação inicial do pneumoperitoneu, constitui uma alternativa viável às outras técnicas, não sendo reconhecidas desvantagens em termos de segurança.
E semelhante avaliação é feita para os restantes instrumentos específicos utilizáveis neste tipo de cirurgia, a laparoscópica.
Em suma, seja qual for a técnica utilizada e o tipo de instrumentos específicos usados em cada técnica, não existe controlo absoluto sobre o risco de lesões viscerais ou vasculares. Não está, pois, cientificamente comprovada a superioridade de vantagem na utilização de qualquer uma destas técnicas em termos de prevenção de complicações viscerais ou vasculares graves
Note-se que, ainda assim, a tA P de mortalidade associada à entrada laparoscópica (com qualquer das técnicas) é de cerca de 1 por 100.000 procedimentos, sendo, no que concerne especificamente às lesões vasculares a tA P de incidência de complicações é de 0,1/1000.
As mulheres obesas têm maior risco de complicações se submetidas a laparotomia, pelo que a cirurgia laparoscópica apresenta particulares benefícios. Porém, a par das mulheres excessivamente magras, têm riscos específicos associados. Estamos, no entanto, a falar da obesidade mórbida. Para estes casos é recomendada a técnica de Hasson, ou a entrada no chamado ponto Palmer, mas não se exclui o recurso à agulha de Veress (só que neste caso, a incisão ser efectuada na base do umbigo e a agulha deverá ser inserida verticalmente no peritoneu e o mais profundamente possível, isto no caso das agulhas de tamanho standard; para inclinações a 45 graus, será necessário uma agulha de maior cumprimento, porque tem que atravessar uma distância entre cerca de 11 a 16 cm para chegar à profundidade necessária).
- quanto à laparotomia exploradora
Da prova produzida, tendo em apreço o teor do parecer do Colégio da especialidade (constante de fls 304) confirmado e complementado em audiência pela peR médica Dr.ª FF, designada pelo Colégio da Especialidade, a incisão correcta para exploração da origem da hemorragia, em caso de suspeita de lesão dos grandes vasos, é a incisão mediana pubo-umbilical, a qual, por sua vez, poderá sempre ser alargada, se necessário, para a região supra-umbilical, já que esta incisão, tendo grande amplitude, permite a exposição do interior de todo o abdómen e, portanto, dos grandes vasos.
Ainda que, com a incisão de pfannenstiel não seja completamente impossível detectar a lesão da aorta (por vezes, ao levantar a parede abdominal é possível ter visão para os órgãos superiores), o certo é que o sangue acumulado na cavidade abdominal e os intestinos sempre obstruiriam o acesso ao vaso para iniciar o tamponamento do mesmo, sendo que a aorta é um vaso que sangra abundantemente e todo o tempo que se perca até à compressão do vaso é tempo em que a situação se vai agravando, com a progressiva perda de sangue, com consequências graves, designadamente, ao nível da disseminação da coagulação intravascular e o aumento da descompensação, para além da afectação do sistema nervoso central.
- quanto à técnica médica para o tamponamento da hemorragia -
Mais ficou demonstrado, em face do referido parecer e dos esclarecimentos complementares ao mesmo, que, para estancar a hemorragia, ao cirurgião, com a especialidade da arguida, apenas é exigível que proceda ao tamponamento da lesão, o que deverá ser efectuado ou através da colocação de clamps (um acima de lesão, e outro abaixo da mesma, mas para tanto é necessária a identificação do local exacto da ferida, o que num campo operatório cheio de sangue é inviável), ou mediante a compressão do local provável, designadamente com compressas, até à chegada do cirurgião geral ou vascular, únicos habilitados a reparar (suturar) a lesão vascular.
Por todo o exposto, no que concerne às leges artis apuradas, impunha-se dar como provados os factos n.º 6, 8 e 10 dos factos provados e como não provado o facto n.º 6 dos factos não provados, como se decidiu fazer
Agora,
III b) – DA CIRURGIA REALIZADA
Como foi que sucedeu.
Do conjunto dos depoimentos das testemunhas que intervieram no procedimento e das declarações da arguida, evidenciou-se a seguinte sucessão de eventos: dá-se, em primeiro lugar, a indução anestésica da paciente, após a confirmação da regularidade dos seus parâmetros e dados analíticos; segue-se o início da laparoscopia, através da introdução do trocar; poucos minutos após o início da cirurgia é sinalizada a alteração brusca dos parâmetros vitais da paciente; dá-se, em seguida, a conversão da cirurgia para laparotomia exploratória (primeiro com incisão transversal, seguida de incisão mediana), enquanto se diligencia pela chamada ao bloco operatório de um colega da arguida e de um cirurgião geral e se pedem unidades de sangue universal, administrando-se, ainda expansores de sangue e soros à paciente; até à chegada do cirurgião geral e do sangue são efectuadas manobras de compressão; segue-se a detecção da lesão e a suturação da mesma pelo cirurgião geral, e a subsequente descoberta de uma escorrência vinda de plano superior; é aumentada a incisão até ao xifoideu para exploração da respectiva causa; a paciente acaba por falecer entrando em paragem cardíaca.
Vejamos, então, os sucessivos momentos da cirurgia.
Da cirurgia programada:
Tal como resultou demonstrado, VA sofria de infertilidade primária decorrente do síndrome de ovários poliquísticos. Uma das opções de tratamento da referida infertilidade é o drilling do ovário com abordagem laparoscópica.
A paciente não apresentava resultados analíticos que desaconselhassem a realização da cirurgia por via laparoscópica e não havia sido sujeita a cirurgias anteriores (não havia risco provável de aderências), tendo todos os parâmetros dentro da normalidade (o que resultou dos esclarecimentos periciais e, designadamente, do depoimento do Dr. IC). Também não existiam quaisquer razões objectivas para que se efectuassem outros exames complementares, tendo sido realizados os exames necessários para a cirurgia em causa (tal como foi confirmado pela Dr. FF).
A arguida, avaliando a situação clínica da paciente, propôs-lhe aquela abordagem cirúrgica, a qual ficou marcada para o dia dos autos. Ora, a abordagem proposta pela arguida (a opção pela via laparoscópica) é a indicada para o tratamento da paciente, como aliás resultou comprovado pelos esclarecimentos prestados pelas peRs médicas.
ii) Da anamnese pré-operatória:
Mais resultou demonstrado que, antes de iniciar a cirurgia propriamente dita, foi a paciente vista, primeiramente, pelo enfermeiro anestesista e depois pelo médico anestesista, em que foram observados os protocolos aplicáveis, apresentando a mesma todos os parâmetros normais (o que se retirou da conjugação do depoimento do Dr. IC e do enfermeiro CB, em conjugação com o teor dos documentos juntos a fls 32 a 34).
Assim, o Dr. IC confirmou ter analisado toda a documentação médica disponível (incluindo os exames pré-operatórios) e ter concluído que, em face da mesma, bem como dos resultados da monitorização da paciente, VA, apresentava todos os dados conformes para se dar início à cirurgia propriamente dita. Mais confirmou o enfermeiro CB que o equipamento foi também devidamente testado.
Não se provou, assim, que tivesse sido levado a cabo algum procedimento incorrecto.
iii) Da experiência cirúrgica da arguida:
Do conjunto das declarações da arguida, conjugadas com os depoimentos dos médicos e enfermeiros que com a mesma trabalham no HPA desde há vários anos, resulta que a arguida é médica-cirurgiã desde há vários anos, com vasta e reconhecida experiência cirúrgica, avaliada pelos seus colegas como uma médica competente, tendo vasta prática daquela concreta cirurgia, sem que tivesse tido algum incidente anterior. Mais estava familiarizada com aquela concreta técnica utilizada (entrada directa com trocar óptico, que era a utilizada nas várias cirurgias laparoscópicas), com aquele concreto equipamento e, bem assim, com a equipa com a qual procedeu à referida intervenção (todos com grande experiência neste tipo de cirurgias), por já ter operado por diversas vezes com a mesma.
iv) Da técnica laparoscópica adoptada:
Tal como resultou da conjugação dos meios de prova, a arguida adoptou a técnica fechada, com entrada directa de trocar óptico, a qual não é desaconselhada pelas regras médicas aplicáveis, sendo, portanto, adequada.
v) Do início da cirurgia - introdução do trocar:
De acordo com o declarado pela arguida, a mesma começou por proceder a uma incisão superficial da pele, junto ao umbigo (portanto, no local correcto) e introduziu o trocar com uma bainha de plástico e de ponta cónica, ligeiramente aguçada (ainda assim com capacidade traumática/perfurante), através do qual iria proceder à insuflação do CO2 para distender o abdómen. Assim, colocou o trocar na incisão, pressionou para o interior, para dissecção dos tecidos, num único movimento, aplicando a força necessária, com o cuidado que sempre costuma aplicar, e com uma ligeira inclinação (não a direito), no sentido descendente (da região púbica), enquanto o enfermeiro instrumentista levantava os tecidos, para criar espaço para penetrar na aponevrose evitando a perfuração de qualquer estrutura (o que foi referido pelo enfermeiro JM).
A descrição efectuada pela arguida sobre o modo como procedeu à introdução do trocar foi corroborada pelo depoimento do enfermeiro JM e pela enfermeira SR, que presenciaram os factos e que depuseram de modo coincidente. Nenhuma outra testemunha observou este procedimento e o teor do relatório da autópsia bem como do parecer do Colégio da Especialidade apenas se pronuncia sobre os resultados observados não sendo adequados a, só por si, contrariarem aquela versão (ou seja, sem que dali resultassem contra-indícios que impusessem conclusão diversa).
Face ao que resulta da aludida versão, não se demonstrou, muito menos com o necessário grau de certeza, que a arguida tivesse, assim, introduzido o trocar noutro local que não o correcto (antes o fez, como recomendado, junto ao umbigo); que tivesse utilizado um trocar danificado (era novo, descartável e sem defeito, como atestou a enfermeira SR); que tivesse aplicado um grau de força desadequado ao enfiar o trocar no interior do corpo, ou que o tivesse feito bruscamente; que o tivesse balançado para um lado para o outro, muito menos desajeitadamente; que tivesse empurrado em várias direcções, ou aos solavancos (com sucessivos movimentos de impulso); que o tivesse inclinado na direcção errada (fê-lo, como era devido, na direcção da região púbica); que não tivesse efectuado o levantamento dos tecidos aquando da introdução do trocar; ou que tivesse utilizado um grau de inclinação desadequado (inclinou ligeiramente; é certo que a paciente, atento o índice da sua massa corporal, se enquadra no grupo das pessoas obesas, porém estava longe da obesidade mórbida; ora a introdução a 90 graus é recomendada para os pacientes muito obesos, o que não era ainda o caso; donde, não é incorrecto dar inclinação ao trocar, sendo certo que é mais perigoso introduzir o instrumento a 90 graus, já que a bifurcação da aorta se situa por debaixo do umbigo, e não foi esta a inclinação que se apurou ter sido dada). Aliás, a própria Dr.ª FF esclareceu que, mesmo com a inclinação correcta a aorta pode vir a ser atingida.
Da confirmação da entrada:
Não tendo a certeza de que o trocar havia já atingido a cavidade abdominal (até porque, segundo o enfermeiro JM, o CO2 utilizado para a criação do pneumoperitoneu não estava a entrar, uma vez que não se observou a expansão do abdómen e o equipamento não registava a saída do gás), a arguida decidiu retirar o trocar e confirmar, com o dedo, a extensão do orifício feito pelo trocar. Tal foi o que foi declarado pela arguida, e confirmado pelas testemunhas JM e SR.
Como resulta da literatura médica já antes referida, existe sempre a possibilidade de falhar a entrada. Tal pode suceder, por factores vários, mesmo tomando todas as cautelas.
Existem, no entanto, recomendações para o caso de frustração na entrada à primeira tentativa, admitindo-se que se tente, com o uso da mesma técnica, apenas uma vez mais, mas desaconselhando-se que se insista mais do uma vez, dados os riscos acrescidos que cada tentativa envolve. Ou seja, se depois de duas tentativas não se tiver logrado entrar na cavidade abdominal, o procedimento médico correcto terá que passar pela adopção de outra técnica (designadamente a técnica aberta ou de Hasson, tal como evola do parecer e dos esclarecimentos complementares da PeR indicada pelo Colégio da Especialidade).
A arguida, porém, terá conseguido entrar na cavidade abdominal à primeira tentativa (ou, pelo menos não se provou que assim não tivesse sido, já que nenhum meio de prova contrariou a versão da arguida). Não tinha era a certeza de o ter feito (o que explicaria a obstrução à entrada do CO2) e, por isso, decidiu confirmá-lo inserindo um dedo.
Ao reintroduzir o trocar, fê-lo no mesmo orifício já criado, não se tratando, pois, de uma segunda tentativa.
Ou seja, não se pode ter por demonstrado que a arguida, só porque sentiu dúvidas sobre se teria atingido já a cavidade abdominal ou não, tivesse usado de imperícia ou de descuido na introdução do trocar (ao retirá-lo para verificar com o dedo a profundidade do orifício). Tal é normal suceder. O que não deve acontecer é a insistência no uso da mesma técnica para além de duas tentativas.
Ora, a paciente era relativamente obesa (o que foi confirmado pelo parecer das duas peRs médicas, declarações da arguida e testemunhas), portanto, seria, naturalmente, maior a espessura dos tecidos que vão desde a pele, camada adiposa, parede abdominal, etc., até se alcançar a cavidade abdominal, o que dificulta a percepção sobre o grau de profundidade necessário para se atingir a aludida cavidade.
É certo que a peR do Colégio da Especialidade referiu que, com esta técnica de entrada, é justamente este um dos seus riscos, o de não se conseguir ter tanta sensibilidade para se distinguir a gordura da parede abdominal da gordura da parte interior da cavidade abdominal. Ou seja, poderia o trocar ter atingido já a cavidade e a arguida não o ter percebido, mas sem que o pudesse perceber, por ser uma limitação do próprio instrumento e da técnica empregue (que, todavia, como acima ficou já assente, não são repudiados pela ciência médica, antes sendo aceites a par das restantes técnicas, por não se ter comprovado que esta técnica tem uma maior incidência de complicações do que as outras).
Da reintrodução do trocar:
Depois de se assegurar de que o caminho estava aberto, retirou o dedo e voltou a introduzir o trocar, desta feita já sem a bainha inicial (o orifício já fora aberto antes), mas apenas com o cano exterior (de plástico, com espessura fina), ali introduzindo a óptica, para se proceder, então, à criação do pneumoperitoneu. Foi o que resultou das declarações da arguida e dos depoimentos dos enfermeiros instrumentistas presentes.
Ainda aqui não se provou que a arguida, ao inserir o trocar no mesmo local onde antes o havia inserido, que o tivesse feito de modo brusco, intenso, oscilando-o ou em sucessivos movimentos para dentro, etc. Ou seja, não se provou que o tivesse feito sem cuidado. E não se provou por não ter sido a versão da arguida contrariada por outros meios de prova, versão essa que, nos mesmos termos já acima assinalados (princípio do in dubio pro reo), tem que ser atendível.
Em face do que anteriormente se referiu, importava dar como provados os factos n.ºs 2 e 3 dos factos provados e foi que se decidiu fazer.
Da lesão da aorta:
Resultou apurado (face às declarações da arguida e dos depoimentos das testemunhas presentes, conjugados com o relatório da autópsia) que, depois de ter a arguida reintroduzido o trocar, o médico anestesista sinalizou à arguida a alteração dos parâmetros vitais da paciente, na sequência do que a arguida converteu a cirurgia em curso para uma laparotomia, para exploração das causas, vendo um extenso coágulo e formando-se um hematoma retroperitoneal, consequente à lesão da bifurcação da aorta.
Do exposto conclui-se que foi em consequência da introdução do trocar que a bifurcação da aorta foi atingida. Quanto a este facto não existem dúvidas já que é o que se retira da prova produzida, ponderada em conformidade com as regras da lógica.
Com efeito, se a paciente não tinha qualquer problema de saúde denunciado pelas análises e exames efectuados (para além do problema que a levara à cirurgia); se a mesma estava bem antes de se iniciar a introdução do trocar (todos os parâmetros vitais estavam normalizados); se o trocar é um instrumento adequado a causar lesões internas, por mais “seguro” que seja (e a Dr.ª FF foi bem expressiva quando admitiu que não existiam trocares ideais, ou seja, 100% seguros); se o trocar foi introduzido junto ao umbigo, por debaixo do qual, mais internamente, se encontram os grandes vasos; se a paciente sofreu uma hemorragia provocada pela lesão da bifurcação da aorta; se a alteração dos sinais vitais da paciente ocorreu após o início da cirurgia propriamente dita; se a única intervenção no corpo da paciente foi com a introdução do trocar; e se a única pessoa que manuseou o trocar foi a arguida; dúvidas não restam de que foi a arguida, ao introduzir o trocar, que atingiu a bifurcação da aorta.
Assim que se tenham dado como provados os factos n.ºs 4 e 5 dos factos provados.
O que não se logrou provar, porém, é que a arguida pudesse, de facto, ter evitado atingir a aorta.
E vejamos porquê.
Na verdade, se não se comprovou que a arguida tivesse introduzido o trocar de modo incorrecto; se a primeira entrada é sempre feita sem visão directa do interior do corpo, pelo que não era possível à arguida visualizar, com recurso àquela técnica (técnica essa que estava cientificamente autorizada a utilizar), o interior do corpo e, portanto a localização exacta dos vasos; sendo certo que a lesão dos grandes vasos é uma complicação associada a qualquer técnica laparoscópica; não se pode ter por demonstrado, sobretudo, para além de qualquer dúvida, que a lesão resultante do trocar fosse consequência da actuação com imperícia ou falta de cuidado por parte da arguida. Para ser admissível assim concluir necessário era que se demonstrassem factos indiciários de onde resultasse a única e firme conclusão e só devido a falta de cuidado ou inabilidade ter tal sucedido.
Importa aqui referir que, no parecer do Colégio da Especialidade, a fls 171, conclui a peR designada pelo Colégio da Especialidade que a multiplicidade de lesões vasculares pode indiciar uma deficiente técnica na sua introdução. O referido parecer assentou no teor do relatório da autópsia, que concluiu, como causas da morte, as feridas na bifurcação da aorta e na ilíaca direita. Com base nesta informação, concluiu a Dr.ª FF que, com tantas lesões, não era possível que o trocar tivesse sido correctamente introduzido e, como assim, teriam sido violadas as leges artis aplicáveis.
O problema é que tal conclusão assenta em premissas que não se podem ter por demonstradas. Com efeito, se dúvidas não existem de que a lesão na bifurcação da aorta é consequência da introdução do trocar, já assim não sucede a respeito dos ferimentos verificados na artéria ilíaca. Ou mesmo do lobo hepático.
Na verdade,
Das lesões da ilíaca:
Tal como vem consignado no relatório da autópsia, a paciente apresentava duas feridas incisas na artéria ilíaca direita.
Todavia, da prova que se produziu, tendo em conta o depoimento do Dr. GG, o mesmo, para desbridar a artéria ilíaca, que foi por onde começou a sua minuciosa observação em busca da lesão que causara a hemorragia e os consequentes hematomas (no interior do peritoneu e atrás do peritoneu), teve que libertar o peritoneu da referida artéria (são estruturas que estão justapostas). E para isso, teve que cortar a referida “membrana” para alcançar o vaso que estava por detrás da mesma. Afastou o cirurgião que pudessem as feridas consignadas no relatório da autópsia tratar-se de feridas da própria artéria, antes devendo tratar-se do peritoneu. Ora a peR médica patologista esclareceu que as feridas que observou se encontravam no próprio vaso (e não no peritoneu), juntando ainda uma fotografia ampliada da situação que descreveu.
Donde, tendo em consideração o supra referido, temos que foi manuseado um bisturi junto à referida ilíaca (pese embora o cirurgião pretendesse descartar ter sido o responsável por ter atingido a mesma).
Por outro lado, o parecer do Colégio da Especialidade foi formulado em face dos elementos então disponíveis e disponibilizados à PeR designada pelo Colégio, sendo que as lesões examinadas na ilíaca e no fígado não tinham uma explicação lógica ou segura, pelo que, sem outros dados, partiu do pressuposto que as lesões seriam contemporâneas do mesmo procedimento, o que justificaria a conclusão a que chegou.
Porém, em esclarecimentos em audiência a referida médica explicou que, sem saber quantas haviam sido as tentativas para a introdução do trocar ou as dificuldades eventualmente ocorridas nesse procedimento, não podia com segurança afiançar ter-se tratado de erro na introdução do trocar o que teria causado as feridas da ilíaca. Na verdade, o parecer elaborado partiu da dedução que tivesse sido mais do que uma tentativa e, nesse caso, as lesões da ilíaca poderiam advir da insistência na operação de dissecção dos planos. Confrontada com a hipótese de não ser assim e de ter sido o trocar reintroduzido após a verificação do trajecto ser o correcto, a mesma logo avançou reservas quanto à conclusão de poderem as feridas da ilíaca terem sido causadas pela introdução do trocar já com a óptica (na 2.ª introdução), não podendo excluir que a manobra de desbridamento levada a cabo pelo Dr. GG pudesse ser a causa dessas mesmas lesões.
Da lesão do fígado:
E o mesmo se dirá a respeito das lesões hepáticas, se bem que por fundamento diverso.
É que, tal como veio a ser consignado no relatório da autópsia, a paciente sofreu uma lesão no fígado, a qual foi suturada. Consta do parecer do Colégio da Especialidade, a fls 304, que, numa correcta técnica de entrada do trocar, não é possível que o fígado seja atingido. Com efeito, sendo a técnica correcta de entrada aquela que é feita com uma inclinação variável, entre os 45 e os 90 graus, sendo a inclinação no sentido descendente, e encontrando-se o fígado muito acima da região do umbigo, se a lesão tivesse sido provocada pelo trocar, dúvidas não teríamos de que, para atingir o fígado com o trocar, só mesmo com uma técnica escandalosamente deficiente seria tal possível. Sucede que não se logrou comprovar que a lesão do fígado tivesse resultado da introdução do trocar.
Na verdade, do que se produziu em audiência, o que resultou foi que, para o Dr. GG poder perscrutar os vasos sanguíneos livremente, foi necessário manipular todos os órgãos afastando-os o mais para cima possível. Ora, o fígado da paciente era muito gordo (o que foi confirmado pela peR médica-legista) e, portanto, friável. A pressão feita como manobra de salvamento é compatível com a lesão que o fígado apresentava quando foi descoberta, após o Dr GG ter alargado a incisão até ao xifoideu (que se situa junto às costelas). Também o Dr FR confirmou ter existido manipulação na região aquando da compressão, o que explicaria a lesão do fígado, hipótese esta não afastada pelas peRs médicas nos esclarecimentos complementares prestados em audiência. Ou seja, é possível que, em virtude das manobras de salvamento, sob a compressão ou para afastamento dos órgãos para libertar espaço para a intervenção do Dr. GG, pudesse ter sido provocada uma laceração hepática.
Donde, não resulta demonstrado, face ao que supra fica exposto, ter tal lesão sido provocada pela introdução do trocar.
CONCLUSÃO (quanto ao cuidado empregue pela arguida):
Por tudo o acima exposto, se nenhum destes factos indiciários (de onde se poderia retirar a conclusão de ter a arguida agido com incúria ou inabilidade) se demonstrou, não é legítimo inferir que foi de modo descuidado que a arguida agiu ao introduzir o trocar.
Com efeito:
- se a arguida tinha a formação e a experiência adequadas, estava rotinada com a equipa e com os instrumentos;
- se a técnica adoptada é aceite pelas leges artis como sendo tão segura quanto as demais, já que não há consenso nesta matéria;
- se o trocar utilizado é um trocar óptico (não cortante, sem lâmina, ainda que com ponta com a necessária capacidade perfurante);
- se não se provou que a arguida tivesse manuseado o trocar de modo descuidado ou com imperícia (colocando-o no local errado, com uma inclinação errada, agitando lateralmente, sem levantamento dos tecidos, etc);
- se dificilmente seria possível, com um só movimento do trocar (e não se provou que tivessem sido mais), atingir a aorta e, simultaneamente, em mais dois locais, na ilíaca (que fica ligeiramente mais abaixo);
- se não se provou que tivesse feito outras tentativas por ter falhado a primeira;
- se não se demonstrou que as feridas na ilíaca fossem contemporâneas da lesão da aorta (o que demonstraria terem sido provocadas pelo trocar);
- se a paciente sofria de obesidade mas apenas relativa (95 kg distribuídos por cerca de 1,70m; o que não integra uma obesidade mórbida ou excessiva, pelo que não lhe eram aplicáveis as técnicas específicas para este tipo de doentes);
- se a vítima não padecia de doenças nem tinha sido submetida a cirurgias anteriores (pelo que não eram necessários ou exigíveis exames ou técnicas específicas diversas das adoptadas);
- se o Dr. GG, como o próprio admitiu, teve que desbridar as ilíacas para localizar a lesão, o que implica o uso do bisturi para cortar o peritoneu que está justaposto à artéria;
- se o Dr G não verificou a existência de qualquer outra lesão sangrante quando interveio de emergência (é certo que tal não é conclusivo, já que a falta de pressão sanguínea levaria a que o vaso já não sangrasse, pelo que poderiam estar lá as lesões e não terem sido vistas, porém tal não exclui que as lesões pudessem ter sido causadas pelo próprio);
- se as feridas na ilíaca não poderiam ter sido causadas pela própria pfannenstiel (como atestou a Dr.ª FF);
- se as lesões da ilíaca tanto serão compatíveis com a exploração abdominal como com a introdução de um trocar (dependendo do seu manuseamento), como concluíu a Dr.ª FF em audiência;
- se era impossível atingir o fígado com o trocar (dada a direcção tomada e as dimensões do próprio instrumento);
- se as lesões do fígado são compatíveis com a manipulação interna;
- se, pese embora tivessem sido dados 4 pontos de sutura na aorta (como confirmou o Dr. G), a aorta é um vaso elástico e sujeito a grande pressão sanguínea (o que não exclui o alargamento da incisão provocada pelo trocar por força da pressão do próprio sangue, pelo que não é legítimo daqui inferir que foi o trocar que abriu aquela lesão em cerca de 1 cm ou 1cm e meio);
- se a lesão dos grandes vasos é uma complicação associada a este tipo de cirurgia, podendo resultar de causa acidental;
não se vê como se possa, muito menos com a necessária segurança, concluir, legitimamente que a introdução do primeiro trocar provocou uma multiplicidade de lesões vasculares (apenas a da aorta) e do fígado.
E se assim é, não se pode, daqui retirar, sem mais, que a arguida aplicou uma técnica deficiente para introduzir o trocar nem, consequentemente, imputar à arguida as feridas detectadas na ilíaca ou no lobo hepático, ou que pudesse ter evitado a lesão da aorta.
Ou seja, e em síntese, se a lesão dos grandes vasos é uma complicação associada a este tipo de cirurgia, podendo resultar de causa acidental, para se excluir que assim tivesse sido importava comprovar o modo incorrecto, em violação das leges artis aplicáveis, da introdução do trocar, para ser legítimo imputar a referida lesão a uma actuação incauta da arguida. Para tanto, mister era que se demonstrasse, como se referiu, a violação de alguma das regras acima indicadas sobre este tipo de procedimento, o que faria supor que teria sido essa concreta violação a causa da lesão da aorta que se veio a verificar. Mas assim não sucedeu. Não se demonstrou que a arguida tivesse manuseado incorrectamente o trocar ou tivesse utilizado procedimentos errados na execução desta técnica. Ora, não tendo a versão da arguida sido adequadamente contrariada por outros meios de prova, deverá a mesma ser valorada ao abrigo do princípio do in dubio pro reo, tal como se decidiu fazer. E, como assim, deram-se como não provados os factos sob os n.ºs 1, 4 e 5 dos factos não provados.
Da conversão para a laparotomia (exploratória):
Enquanto a arguida reintroduziu o trocar e já se preparava para realizar o pneumoperitoneu, o médico anestesista pediu para parar a intervenção, já que algo se passava, o que esta fez.
Com efeito, cerca de 10 a 15 minutos após o início da cirurgia (colocação do trocar), a paciente começou a apresentar variações de parâmetros vitais, o que sucedeu de modo brusco (tal como decorre do depoimento do Dr IC e do enfermeiro CB, que se encontravam junto ao equipamento que monitorizava os parâmetros vitais da paciente, junto à cabeceira da marquesa). VA ficou, de modo abrupto, muito pálida e a frequência do pulso aumentou bastante, o que alarmou a equipa de anestesia.
Depois do médico anestesista ter confirmado que não existia qualquer avaria técnica que pudesse interferir nos valores sinalizados pelo equipamento, informou a arguida dos sintomas e da alteração dos sinais vitais da paciente: a mesma havia ficado, subitamente, com abrupta palidez cutânea; registava taquicardia e baixas tensionais. Assim referiram as testemunhas presentes (Dr. IC, enfermeiro CB e enfermeiros instrumentistas JM e SR, conjugado com o teor de fls 36).
Sucede que, estes sinais são compatíveis com um estado de pré-choque hipovolémico (em que o estado de choque não se encontra ainda estabilizado), o que é compatível com uma hemorragia. Aliás, com uma hemorragia significativa e abrupta, dada a rapidez com que os sintomas se instalaram (segundo o parecer do Colégio da Especialidade, a fls 171, esclarecimentos da peR designada pelo Colégio da Especialidade e a peR médico-legal, e opinião consensual de todos os médicos inquiridos em audiência).
Na explicação avançada pelo Dr. IC, os sintomas apresentados constituem a resposta do organismo para compensar a falta de sangue circulante, já que, para obviar à diminuição do volume de sangue a circular, o coração aumenta a frequência cardíaca (provocando a taquicardia), para bombear mais rapidamente o sangue que ainda se encontra no sistema circulatório. Donde, em face da taquicardia, palidez abrupta e baixas tensionais sinalizadas, só se poderia concluir pela perda de sangue, por conseguinte, uma hemorragia.
A situação descR implica, ademais, que se trate de um vaso de grande calibre, não sendo tais sintomas compatíveis com uma hemorragia de um vaso de menor débito sanguíneo (que levaria mais tempo a declarar-se), o que foi confirmado pelos esclarecimentos periciais de ambas as peRs.
Por conseguinte, a referida hemorragia só poderia resultar da lesão dos grandes vasos, que é a complicação mais dramática associada à laparoscopia.
A arguida, com aquela informação concluiu, porém, que poderia tratar-se de uma reacção à anestesia, de um reflexo vagal, ou de poder ter atingido o grande epiplon ou os intestinos, ou ainda um vaso sanguíneo (mas que tanto podia ser de grande calibre ou de menor calibre). Foi o que a própria admitiu em audiência de julgamento.
Ora, do exposto resulta que a arguida, com aqueles sintomas formulou uma série de hipóteses para explicar os mesmos, pelo que foi com base nesse quadro de possibilidades aventadas que agiu em seguida (tanto assim que a arguida declarou que foi, nessa sequência - do que lhe fora transmitido - e não suspeitando de uma gravidade de tal ordem, que agiu), tendo optado pela incisão pfannenstiel.
Sucede que, dada a rapidez com que evoluiu criticamente a situação da paciente, nunca se poderia tratar de uma hemorragia resultante da lesão de um órgão ou de um vaso de menor débito sanguíneo, como acima se referiu. Caso assim fosse, a hemorragia levaria mais tempo até se revelar através dos sinais recolhidos pelo equipamento técnico. Sinais esses ocorridos cerca de 10/15 minutos após o início da cirurgia, precisamente, com a introdução do trocar, que tem alcance perfurante na ponta.
A arguida, todavia, não correlacionou as duas coisas, limitando-se a deduzir que a hemorragia antes devesse provir do grande epiplon ou, quando muito, de um vaso de menor calibre (nunca, portanto, dos grandes vasos). Assim, desvalorizou a complicação mais grave que pode resultar desta técnica e que é compatível com os sintomas apresentados: a lesão dos grandes vasos. Excluiu, pois, que pudesse ser essa a causa (sem que tivesse razões objectivas para o excluir, bem pelo contrário).
Assim, foi fundada na sua avaliação (errada) dos sintomas indicados pelo Dr IC, que pese embora decidisse abrir o corpo para ver o que se passava, terá sido o que a determinou a optar pela incisão pfannenstiel em primeiro lugar (incisão essa que poderia ser adequada a averiguar a causa da hemorragia nas hipóteses por si supostas mas que nunca seria suficiente para expor os grandes vasos).
Ora, a decisão de parar a laparoscopia e prosseguir de imediato para uma laparotomia (convertendo a cirurgia) é correcta, pois só desta forma, com a visão directa do interior do corpo se poderia, por um lado estancar, o mais rapidamente possível a hemorragia, e, por outro saber a sua precisa origem.
Sucede, todavia, que, tal como impõem as regras técnicas médico-cirúrgicas, sendo a lesão dos grandes vasos a hipótese mais provável de ter acontecido (e também a mais gravosa), a única incisão adequada a actuar o mais rápida e eficazmente possível (pois que permitiria expor os grandes vasos, possibilitando a imediata visualização da causa da hemorragia e, bem assim, o início da compressão dos vasos), era a incisão mediana pubo-umbilical, já que a mesma poderia ainda ser rapidamente alargada para os andares superiores do abdómen em caso de necessidade (tal como esclareceu a peR Dr.ª FF).
Não foi esta, porém, aquela que a arguida decidiu levar logo a cabo. Como já se assinalou, a arguida, para explorar a causa dos sintomas que lhe foram reportados, confiando que a situação não fosse tão grave como aquela se veio a revelar, optou por uma incisão transversal, situada na parte inferior do abdómen. Muito dificilmente, através da mesma, lograria detectar a origem da lesão (tal como não detectou), ou muito menos conseguiria, através da mesma, aplicar correctamente a manobra de compressão, para estancamento da hemorragia.
Donde, importa concluir que a arguida não efectuou o procedimento necessário e correcto mas antes um outro que assim não era.
A lesão dos grandes vasos, como se disse já, é a complicação mais grave de entre as associadas à laparoscopia. A hemorragia causada pela referida lesão é, na quase totalidade dos casos, mortal. É muito difícil reparar, com êxito, uma artéria com o débito sanguíneo desta, a maior artéria do corpo humano, dependendo a sobrevivência do paciente de factores variáveis, como a sua própria constituição física, a rapidez com que seja debelada a hemorragia, etc. Como assim, o tempo de acção é fundamental para inverter o processo mortal.
Ora, só a incisão pubo-umbilical, dada a sua extensão e alcance exploratório, permitiria iniciar logo a clampagem ou o tamponamento da artéria na zona provável da lesão, que são os procedimentos médicos adequados até à intervenção do cirurgião geral ou vascular (únicos habilitados a suturar o vaso, reparando a lesão).
A colocação de clamps, um acima da lesão, e outro abaixo, é mais eficaz para estancar a hemorragia, no entanto, tal procedimento implica a identificação da localização exacta da lesão, o que num campo operatório cheio de sangue é muito difícil. Nestes casos a compressão será o procedimento adequado.
Ora, apurou-se que a arguida, ante a notícia de evidências que apontavam para uma hemorragia grave, efectuou uma incisão, transversal, na parte inferior do abdómen, a chamada incisão de pfannenstiel.
Ao abrir a incisão deparou-se com um extenso coágulo de sangue.
A hemorragia era grave, e foi nesta altura (mas só nesta altura) que a arguida o soube.
A incisão efectuada pela arguida não permitia, nem o acesso aos grandes vasos, que se situam num plano superior, nem ao estancamento da hemorragia. Por isso que apenas lhe tenha possível detectar o referido coágulo, sem que lograsse ver de onde brotava o mesmo.
A arguida, em face disto, decidiu, então, avançar para outro tipo de incisão – a pubo-umbilical, partindo da incisão anterior até próximo do umbigo em sentido ascendente.
Como acima ficou registado, a incisão pubo-umbilical é a intervenção cirúrgica correcta para permitir a exploração do campo operatório com vista à localização da lesão e a adopção das medidas adequadas a repará-la (como seria a manobra de compressão).
E, tal como se provou, a arguida acabou por alargar a sua incisão inicial, em direcção do umbigo (fez pois a incisão pubo-umbilical).
Sucede que, de acordo com as regras médicas, a arguida, porque de lesão dos grandes vasos se tratava, deveria ter logo partido para a incisão pubo-umbilical, ao invés de começar pela pfannenstiel, para a qual não havia nenhuma indicação médica ou utilidade.
Daqui bem se vê que o problema foi a errada a avaliação feita pela arguida sobre a informação clínica transmitida pelo médico anestesista. Porque não correlacionou o conjunto dos sintomas com a rapidez com que se instalaram, falhou em concluir que só podiam ser os grandes vasos a fonte da hemorragia. E porque assim foi, ao invés de avançar logo para a pubo-umbilical (cuja técnica devia conhecer e dominar, tal como conhecia e dominava, tanto assim que a aplicou), antes se quedou num plano inferior, ali fazendo a incisão de pfannenstiel, afinal, totalmente desadequada ao caso, não tendo, em consequência, iniciado mais cedo o procedimento de tamponagem, permitindo, nesse período de tempo, que o estado da paciente se agravasse, com a acumulação da perda sanguínea. A arguida tardou, pois, em tamponar a lesão/hemorragia porque não avançou logo, como devia ter feito, para a incisão pubo-umbilical.
Foi, portanto, aqui que a arguida não procedeu com cuidado, cuidado esse que devia ter tomado e que sabia dever tomar, estando em condições de o fazer.
Com efeito, a arguida deveria ter logo deduzido que, com o quadro relatado pelo médico anestesista e na altura em que o foi, a hemorragia só podia ser grave e, portanto, consequência de lesão dos grandes vasos. Devia sabê-lo. Ademais, sabendo que introduzira o trocar (perfurante) junto ao umbigo, zona sensível e próxima dos grandes vasos e sabendo que a lesão destes grandes vasos é a complicação mais mortífera, devia ter imediatamente ponderado na hipótese, ainda que remota, de poder ter atingido os referidos vasos.
Donde, qual era a incisão que permitiria não só explorar as hipóteses consideradas pela arguida como ainda a hipótese mais arriscada? A incisão pubo-umbilical. Através da mesma ter-se-ia uma amplitude de visão para toda a zona abdominal, o que possibilitaria verificar todas as hipóteses e ir, se fosse o caso, excluindo as mesmas sucessivamente até apurar a causa efectiva.
Sucede que a artéria abdominal é o vaso de maior débito sanguíneo e, portanto, com maior pressão sanguínea. A alteração da volémia, causada pela perda sanguínea, com a saída do sangue para fora do sistema sanguíneo tem consequências muito graves, ao nível do funcionamento de vários órgãos, incluindo do cérebro e o sistema nervoso central, o que pode provocar a falência de vários outros órgãos (como resultou dos esclarecimentos da Dr.ª FF e do depoimento Dr IC). Tanto mais grave, quanto maior for, naturalmente, a perda sanguínea, perda essa que só se pode evitar se se estancar a hemorragia, e tal hemorragia só se consegue estancar se se abrir o corpo no sítio certo para se começar, pelo menos, a tarefa de compressão. Donde, até que se iniciem as manobras de compressão, o sangue vai-se esvaindo pelo orifício da lesão.
Por conseguinte, quanto mais depressa se iniciarem as referidas manobras de compressão maiores serão as hipóteses de sobrevivência, porquanto menor será a perda sanguínea.
Cada minuto que passa sem que haja contenção do sangue que sai da artéria conta. Até ao início da compressão (que só sucedeu após a incisão pubo-umbilical), a artéria foi vazando sangue, sendo um vaso com grande pressão sanguínea
Ora, a arguida, por muito rápida que fosse a iniciar a incisão pubo-umbilical, perdeu tempo, desnecessariamente (e precioso que ele era) ao ter decidido, antes disso, fazer a incisão de Pfannenstiel. Entre o início da pfannenstiel e a finalização da pubo-umbilical, decorreu todo um período de tempo que, por muito curto que fosse (e que incluiu a drenagem do coágulo e a preparação da mesa e dos instrumentos cirúrgicos), foi desperdiçado, pois que nesse mesmo período de tempo poderia estar já a ser feita a compressão, e que, por causa disso, assim não sucedeu, causando, assim, um agravamento dessa hemorragia, hemorragia essa que, por sua vez, levou à morte de VA.
Do exposto resulta evidente, e por isso legitima a firme conclusão nesse sentido, de que a arguida, que não fez de imediato a incisão pubo-umbilical, em violação das leges artis, violação essa da qual viria a resultar a morte, podia tê-la feito e disso era capaz (estava em condições de a fazer, tinha os conhecimentos e as habilitações necessárias).
Por tais razões se deram como provados os factos n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15 dos factos provados e como não provados os factos n.º 12 e 13 dos factos não provados.
Da dimensão da incisão pubo-umbilical feita pela arguida:
Apurou-se, face às declarações da arguida, conjugadas com o depoimento dos enfermeiros JM e SR e do depoimento do Dr. G que a arguida, ao fazer a incisão pubo-umbilical, ficou ligeiramente abaixo do umbigo, incisão essa que veio a ser alargada pelo Dr. GG até acima do umbigo (cfr. facto provado, nessa parte, sob o n.º 9). Com efeito, a lesão encontrava-se ligeiramente mais acima da altura em que ficara a referida incisão feita pela arguida.
Admite-se que a arguida, que já deveria, nesta altura, ter deduzido que se tratava de uma lesão dos grandes vasos, não tivesse conseguido ver o local exacto da lesão (com o coágulo e o sangue) e, como assim, não poderia saber se a referida lesão estava mais acima, na bifurcação, ou mais abaixo para efeitos de saber qual a extensão a dar à incisão. Porém, a incisão feita pela arguida, por um lado sempre permitia ter, pelo menos, alguma visibilidade para os órgãos e estruturas que estivessem ligeiramente mais acima (bastava levantar os tecidos no limite da incisão e “espreitar”), pelo que o Dr. GG, ao alargar a incisão, porventura mais não fez do que facilitar a exposição do campo (quer para poder visualizar melhor os vasos, quer para ter mais espaço de manobra, tal como o mesmo referiu, secundado pelos enfermeiros JM e SR); por outro, a manobra que devia ser feita (compressão), foi, deste modo, correctamente efectuada, partindo da incisão feita pela arguida, pelo que a mesma, apesar de ter sido alargada pelo Dr. G, foi suficiente e adequada ao único acto médico de salvamento que poderia a arguida, legitimamente, ter praticado, a compressão.
Como assim, não se retira, da dimensão da incisão feita pela arguida, que a mesma tivesse aqui agido de modo descuidado.
Da intervenção de outros médicos, em emergência:
Das declarações da arguida, secundadas pelo depoimento das testemunhas que estavam presentes na intervenção cirúrgica, resultou apurado que a arguida, enquanto realizava a incisão pubo-umbilical, deu instruções para ali ser convocado um colega cirurgião da sua especialidade, que se encontrava no Hospital (o Dr. FR), para a auxiliar, tendo este comparecido no bloco operatório em cerca de 5 minutos e um cirurgião geral, que ali chegou cerca de 25 minutos depois (o Dr. GG).
Quando ali compareceu o Dr. R, havia sido já drenado o campo operatório, mas ainda não havia sido localizada a concreta lesão, sendo que, ao visualizar o hematoma retroperitoneal, foi possível concluir que só se podia tratar de uma lesão de um grande vaso, tendo ambos procedido à compressão generalizada e vigorosa, procedimento esse, aliás, conforme com a indicação que lhes foi dada pelo Dr. PS (cirurgião geral e director Clínico do HPA), pelo telefone, o que fizeram até à chegada do cirurgião geral, Dr. GG.
Ora, ficou demonstrado, em face do referido parecer do Colégio da Especialidade e dos esclarecimentos complementares ao mesmo, que, para estancar a hemorragia, ao cirurgião, com a especialidade da arguida, apenas era exigível que procedesse ao tamponamento da lesão, fosse através da colocação de clamps (que, naquelas circunstâncias, porém, era um procedimento inviável), fosse mediante a compressão do local provável, até à chegada do cirurgião geral ou vascular, que seriam os únicos médicos habilitados a suturar vasos sanguíneos. E foi o que esta fez.
A arguida agiu, portanto, dentro dos limites do que lhe era permitido fazer, com os seus conhecimentos e habilitações.
Como assim, neste particular a arguida agiu em conformidade com as regras médicas aplicáveis, nada havendo a apontar.
Ainda assim,
Da composição da equipa cirúrgica inicial:
Tal como se apurou, face às declarações da arguida e das testemunhas presentes desde o início da cirurgia, integravam a equipa inicial (para tanto escalada): a arguida, como médica-cirurgiã; o Dr. IC, como médico anestesista; os enfermeiros instrumentistas JM e SR, a enfermeira circulante Célia; e o enfermeiro de anestesia CB. Era esta, portanto, a equipa inicial que interveio no procedimento cirúrgico dos autos.
Porém, no decurso da intervenção, e por causa das complicações apuradas, foram chamados, de emergência, o Dr. FR, médico da mesma especialidade que a arguida (que se encontrava a dar consultas no seu gabinete, no HPA de A), e que interveio já após a arguida ter efectuado a incisão pubo-umbilical, e o Dr. GG, como cirurgião geral (que logrou identificar a lesão da aorta, que suturou).
De acordo com o esclarecido pela PeR designada pelo Colégio da Especialidade, Dr.ª FF, as recomendações da Ordem dos médicos sobre esta matéria (pese embora, não escritas, mas que todos os médicos conhecem e sabem que devem cumprir) são no sentido de deverem intervir nas cirurgias, para além do cirurgião principal, também um cirurgião ajudante, da mesma especialidade. Já no que concerne à intervenção ab initio de um cirurgião geral, esclareceu a referida PeR que nem é tal necessário, nem seria sequer exequível, neste tipo de cirurgias (drilling ovárico laparoscópico), pelo que inexistem recomendações da Ordem dos Médicos que o imponham.
Ora, como acima se referiu, resultou comprovado que a arguida iniciou a cirurgia sem a presença de qualquer colega, da mesma especialidade, que a assistisse, tendo assim dispensado a colaboração de um cirurgião-ajudante (apesar de contar com a presença, naquele Hospital, de colegas da sua especialidade para o caso de ser necessário). Donde, a mesma desrespeitou a recomendação da Ordem dos Médicos, pelo que o seu procedimento não foi o correcto.
Por isso se deu como provado o facto n.º 16 dos factos provados.
Agora, o que não se pode ter por demonstrado é um qualquer nexo entre a violação daquela recomendação e o resultado que se veio a verificar.
Com efeito, não é legítimo concluir que a falta desse cirurgião-ajudante, desde o princípio da cirurgia, tivesse efectivamente contribuído para o desfecho final verificado.
Na verdade, a arguida é que introduziu o trocar, pelo que o cirurgião ajudante, nesta fase inicial do procedimento, seria necessário apenas para levantar os tecidos para criar espaço para a introdução do trocar. Ora pese embora a PeR designada pelo Colégio da Especialidade tenha manifestado alguma renitência em aceitar que um enfermeiro possa substituir um médico-cirurgião ajudante naquele específico procedimento, admitiu que tal pudesse suceder, desde que o enfermeiro em causa tivesse as necessárias habilitações e muita experiência. Ora, era o caso do enfermeiro JM, sendo certo que não se provou que o mesmo não tivesse efectuado o dito levantamento de tecidos ou que o tivesse feito de modo incorrecto e, por isso, tivesse interferido na colocação do trocar, colocação essa que viria a provocar a lesão da aorta. Portanto, neste aspecto particular não se mostra comprovada uma qualquer relação entre a violação da referida lex artis e a lesão provocada.
É certo que ao ter um colega presente na sala de operações poderia este ter discutido com a arguida os sintomas indicados pelo médico anestesista e sugerido logo a incisão pubo-umbilical, o que poderia ter evitado que a mesma tivesse procedido primeiramente à incisão de Pfannenstiel. Porém, estamos no campo das suposições. Com a prova que foi produzida não é possível dar esse salto lógico. Não é seguro que, se acaso tivesse sido escalado um cirurgião ajudante para adjuvar a arguida o resultado tivesse sido outro, tudo dependendo da própria experiência e conhecimentos desse médico e do acatamento ou não da sua opinião pela arguida. Por isso que, apesar da falta em causa, não é a mesma suficiente para dali retirar qualquer nexo com os factos. Por tal razão se deu como não provado o facto n.º 8 dos factos não provados.
No que respeita à ausência de um cirurgião geral, sendo certo que não era necessário que interviesse na cirurgia programada qualquer cirurgião geral ou vascular, não se encontrava nenhum presente nas instalações do HPA, daí que tivesse sido necessário chamar o Dr. GG, que se encontrava a dar consultas, em Lagos. Ora, o HPA não tem serviço de urgência para cirurgia geral, pelo que apenas o regime de chamada. Não se apurou quem devia estar de chamada na data dos autos, porém, ficou provado que o Dr G foi chamado e logo acorreu, entre 20 a 25 minutos depois à sala de operações. Assim, não se provou o facto n.º 9 dos factos não provados.
Das transfusões sanguíneas/reserva de sangue:
Da prova produzida, designadamente, do depoimento do Dr. IC, enfermeiros JM e CB (conjugado com o documento de fls 37), resultou apurado que, enquanto a arguida convocava ao bloco operatório os médicos já aludidos (colega e cirurgião geral), o Dr. IC foi diligenciando pelo imediato fornecimento de unidades de sangue, tendo contactado com o responsável pelo Banco de Sangue do CHBA, para agilizar aquela entrega (dispensando a tipagem e realização de testes de compatibilidade, pedindo sangue de dador universal).
Assim, até a chegada das duas unidades de sangue e do Dr. G, que chegaram mais ou menos em simultâneo, cerca de 25 minutos depois, a arguida manteve a compressão, auxiliada pelo Dr. R, enquanto o Dr IC e o enfermeiro CB preparavam os acessos venosos e administravam soros e expansores do plasma tentando estabilizar a paciente. Tal foi confirmado pelo depoimento de todos os presentes.
Tal como se evidenciou do depoimento do Dr. IC, do enfermeiro CB e do enfermeiro JM, não existia sangue de reserva para a cirurgia programada (drilling ovárico laparoscópico), tanto assim que, em face da hemorragia massiva consequente à entrada do trocar, foi necessário recorrer ao Banco de Sangue do CHBA, com quem o HPA tem um protocolo, o que foi cedido no mais curto período de tempo (sangue universal, dispensando tipagem, etc).
Porém, de acordo com a prova produzida, e de modo unânime relatado não só pela peR Dr.ª FF, como ainda pelas testemunhas Dr. IC e enfermeiro JM, a cirurgia programada não carecia de sangue em reserva (nem, muito menos, em presença física no Hospital), por se tratar de uma cirurgia simples com perdas hemáticas pouco significativas. Ademais, a paciente apresentava valores analíticos adequados (índice de hemoglobina e de coagulação) que não suscitavam a necessidade de ter sangue em reserva, sendo certo que, com os resultados que a mesma apresentava nas análises sanguíneas, não haveria fundamentos para o Banco de Sangue dispensar ao Hospital A quaisquer unidades de sangue, criteriosos, como são, na selecção dos casos que justificam a cedência de sangue.
De todo o modo, como esclareceu o Dr IC, ainda que tivesse sido feita uma reserva de sangue, nunca a satisfação do pedido, por essa via, teria sido mais rápida do que como sucedeu no dia dos autos, dada a sua intervenção.
Face a todo o exposto, não se pode ter por demonstrado que deveria existir, naquele caso concreto, uma reserva de sangue para a cirurgia em causa e por isso se deram como provados os factos n.ºs 34, 36 e 39 e como não provados os factos n.ºs 7 e 9 dos factos não provados.
Do alargamento da incisão até ao xifoideu:
Subsequentemente a ter o Dr. GG suturado a lesão na bifurcação da aorta, descobriu-se que ainda sangrava acima da lesão reparada, pois que escorria uma espécie de “baba”. Assim, foram retiradas as compressas que ali se encontravam e o cirurgião alargou a incisão, novamente, mais para cima, até ao apêndice xifoideu, onde teve tempo de perceber uma laceração do fígado. Nesta precisa altura, porém, VA entrou em paragem cardíaca e faleceu em consequência (foi o que resultou da conjugação dos depoimentos das testemunhas que se encontravam presentes).
IV- Dos danos sofridos:
Os factos dados como provados, a respeito do pedido cível deduzido pelo assistente, resultaram das declarações do mesmo, que os confirmaram, tendo deposto de modo coerente, conjugadas com o depoimento das testemunhas especificamente inquiridas a esta matéria, e que depuseram sobre os factos que directamente presenciaram (como sejam a personalidade e a vivência da vítima; sobre o que a mesma lhes contava sobre projectos de vida e sobre o relacionamento com o demandante, bem como sobre o valor do seu salário, isto, no caso dos colegas de trabalho e da amiga da vítima; ou sobre a situação pessoal e económica do demandante, no caso da prima deste), conjugadas ainda com o teor dos documentos de fls 479, 480, 481, 482, 498/499 e 671/672.
V - Da situação pessoal da arguida e dos seus antecedentes criminais:
Que a arguida não regista antecedentes criminais, é o que se extrai do seu CRC, e que foi valorado.
No que respeita à sua situação económica e pessoal foram valoradas as suas declarações, conjugadas com o teor da prova documental (contrato de prestação de serviços e recibos), que se mostraram coerentes.
Quanto à sua personalidade, experiência e reputação médica, resultou a mesma do depoimento das testemunhas que abonaram em seu favor para além do que fluiu dos depoimentos dos médicos que têm vindo a colaborar com a arguida no HPA.
Os factos dados como não provados, para além dos acima explanados, resultam, ou da falta de prova dos mesmos, ou da insuficiência da prova produzida a tal respeito, face às dúvidas geradas pela versão da arguida, não devidamente contrariada por outros meios de prova.
*

APRECIANDO, conforme definido quanto ao objecto dos recursos e seguindo lógica cronologia:

1 - Recurso da arguida/demandada:
A) - da incorrecta natureza e valoração probatória do parecer do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos:
A recorrente entende que o parecer do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos, junto aos autos, de fls. 170/172, foi incorrectamente considerado e valorado como prova pericial, sustentando que não reúne os requisitos legais para esse efeito, dado que, na sua perspectiva, a médica que o subscreveu (Dr.ª FF) não foi nomeada pelo Ministério Público ou pelo Tribunal e não prestou compromisso, devendo assim tal elemento de prova, bem como os esclarecimentos que aquela prestou em audiência, ser tidos como prova testemunhal e não sujeita à vinculação prevista no art. 163.º do CPP, mas antes à livre apreciação do julgador.
Decorre do fundamentado na sentença que foram assumidos como prova pericial, sem que, porém, se tivesse descurado a sua análise crítica e a conjugação com os restantes elementos de prova examinados e produzidos na audiência de julgamento.
Em rigor, o que a recorrente vem questionar prende-se com os aspectos formais dessa dita prova, para si, insuficientes para ser havida como pericial nos termos legais, relativamente ao que o Ministério Público manifesta posição diversa, não vendo obstáculo para que assim tivesse sido considerada.
Não discute que a prova em apreço, pela sua natureza e finalidade, pudesse integrar prova pericial, não fora a preterição daquelas formalidades, mas que, tendo-se esta verificado, a consequência residirá na sua inadmissibilidade como tal e na insusceptibilidade de específica valoração que a lei lhe atribui.
Ora, nos termos do art. 151.º do CPP, “A prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos”, visando a avaliação de vestígios da prática do crime que pressupõe esses conhecimentos, fora do alcance directo do julgador.
Como já assinalava Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, reimpressão autorizada da Universidade Católica, Lisboa, 1981, vol. II, pág. 345, a sua contribuição no processo consiste na formulação dum parecer ou opinião sobre o significado ou valor de meios de prova, consubstanciando, assim, um auxiliar importante da função judicial, embora sem que deixe de se restringir a uma análise factual.
Conforme Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 209, «se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer -, já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é susceptível de uma crítica igualmente material e científica. Quer dizer: perante um certo juízo científico provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser científica também e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal – salvo casos inequívocos de erro, mas nos quais o juiz terá então de motivar a sua divergência.».
Constitui, em si mesma, um meio de prova pessoal, efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos, cuja relevância inerente a esses conhecimentos explica que o legislador a tenha preferencialmente confiado a serviços públicos, desde que a complexidade da matéria não justifique diferente tratamento ou não exista impossibilidade ou inconveniência (arts. 152.º, 154.º e 160.º-A do CPP).
Vigorando, pois, entre nós, um modelo de perícia pública (mesmo art. 152.º) a mesma tem de ser precedida de despacho da autoridade judiciária que a ordene, contendo, além do mais, indicação sumária do objecto da perícia (mesmo art. 154.º).
Em concreto, na acusação deduzida, para a qual remeteu a pronúncia nesse âmbito, aquele parecer foi mencionado como prova pericial (fls. 202).
Por seu lado, constata-se que foi elaborado na sequência de despacho do Ministério Público, no inquérito e, assim, da autoridade judiciária que dirige essa fase (arts. 1.º, alínea b), e 263.º, n.º 1, do CPP), nos termos do qual, como decorre de fls. 77, informando que nos autos se investigava factos susceptíveis de configurar o crime de homicídio por negligência, por violação das leges artis, solicitou, ao Ex.mº Senhor Presidente do Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos, parecer sobre as causas da morte de V Mónica Medeiros Alves, remetendo, para tanto, certificado do óbito, elementos clínicos da intervenção hospitalar e relatório da autópsia.
Recebido o pedido, foi este, depois, enviado ao Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia daquela Ordem (fls. 95), sendo que o Presidente da Direcção desse Colégio manifestou, relativamente ao parecer subscrito por aquela médica, concordância e aceitação pela Direcção (fls. 169).
Ora, na vertente, quer da entidade que ordenou a elaboração do parecer, quer da regularidade da nomeação da pessoa que o subscreveu, quer da colegialidade inerente à sua aceitação, não se coloca fundamento que venha infirmar a sua validade como prova pericial.
Com efeito, mostra-se realizada por serviço oficial apropriado à matéria sobre que teria de incidir, ao qual o Ministério Público confiou a tarefa e, tacitamente, deferiu a nomeação dos intervenientes, em sintonia com a circunstância excepcional de versar formação médica especializada e permitida pelo n.º 2 do referido art. 159.º (identicamente, no art. 2.º, n.º 2, da Lei n.º 45/2004, de 19.08, que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses), devendo interpretar-se que a alusão, aí, à contratação ou indicação de peritos pelo Instituto Nacional de Medicina Legal deve ser entendida apenas para os casos em que a autoridade judiciária não tenha, ela própria, indicado outra entidade para realização da perícia.
Por seu lado, embora não se tenha obtido a prestação de compromisso que se impunha nos termos do art. 91.º, n.º 2, do CPP, tal omissão apenas redunda em mera irregularidade que não foi arguida em momento próprio (art. 123.º, n.º 2, do CPP), estando assim sanada e sem virtualidade para afectar o valor da prova em causa.
Não se descortina, por isso, razão válida para que não devesse ter sido admitida e valorada como prova pericial.
O mesmo se diga, inevitavelmente, quanto aos esclarecimentos prestados em audiência pela referida médica, que manteve aí a sua qualidade processual e no âmbito do relatório que subscreu.
Acresce que a alegação da recorrente, com fundamento no acórdão desta Relação de Évora de 21.10.2010, no proc. n.º 281/04.0TALGS.E2, rel. aqui Adjunto, in www.dgsi.pt, não procede, uma vez que, face à respectiva transcrição que convoca, não se encontram motivos que infirmem a prova concreta em discussão, acrescentando-se que, na situação ali apreciada, se excluiu a natureza pericial por razões que agora se não divisam.

B) - da ausência de exame crítico das provas:
Apenas nas conclusões do recurso, a recorrente invoca violação do art. 374.º, n.º 2, do CPP, reportando-a a “inadequado acatamento do dever de formulação do exame crítico das provas”.
A ser essa afirmação procedente, poderá motivar nulidade da sentença, por força do art. 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, aliás, de conhecimento oficioso como decorre do n.º 2 deste mesmo preceito legal, na interpretação de que a utilização da expressão «conhecidas» outro sentido não consente e, além do mais, se harmoniza com a especificidade das nulidades de sentença face às nulidades em geral (entre outros, acórdão do STJ de 02.02.2005, in CJ Acs. STJ, ano XIII, tomo I, pág. 189, acórdãos da Relação do Porto de 29.09.2004 e de 30.03.2005, respectivamente nos procs. n.º 0442419 e n.º 0510407, acessíveis em www.dgsi.pt, acórdão da Relação de Lisboa de 13.01.2005, in CJ ano XXX, tomo I, pág. 123, e acórdão desta Relação de Évora de 17.10.2006, no proc. n.º 2194/06-1, in www.dgsi.pt).
Todavia, limita-se a recorrente a aduzir essa conclusão, sem que, da motivação do recurso, se colha argumentação para o efeito, transparecendo que o faz, afinal, como manifestação da sua discordância quanto ao exame crítico operado pelo tribunal a quo.
A questão prende-se com a necessária explicitação, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com a indicação e o exame crítico das provas, cuja finalidade, sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do CPP, é impor que o julgador esclareça, conforme acórdão do STJ de 01.03.2000, in BMJ n.º 495, pág. 209, quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e por que o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra.
Não dizendo a lei em que consiste esse exame crítico das provas, ele tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (acórdão do STJ de 12.04.2000, no proc. n.º 141/2000-3.ª, in Sum. Acs. STJ, n.º 40, pág. 48).
Assim, não basta uma mera referência dos factos às provas, mas torna-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam, de molde a poder concluir-se quais as provas e em que termos garantem que os factos aconteceram, ou não, da forma apurada.
Sem prejuízo, note-se, contudo, que a fundamentação exigível não se configura como repositório pormenorizado de todo o julgamento, já que isso se consubstanciaria como que um substitutivo da audiência e dos princípios da imediação e da oralidade que a regem.
Nem mesmo ao tribunal é exigido que indique todos os meios de prova produzidos, desde que tais meios não tenham sido considerados relevantes para motivar os factos provados e não provados a cuja enumeração procedeu, como, também, não se impõe que sobre cada meio de prova seja feita uma individualizada e exaustiva valoração, como, ainda, que, em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir e que em relação a cada fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, de tal modo minuciosa que acabaria por tornar-se tarefa impraticável e sem utilidade, além do mais, destinando-se os recursos a servir de remédios jurídicos contra decisões erradas e injustas e não a meios de entorpecimento da justiça (acórdão do STJ de 30.06.1999, no proc. n.º 285/99-3.ª, in Sum. Acs. STJ n.º 32, pág. 92).
Essa exigência de motivação acaba por ter uma função dupla, pré e pós judicatória – naquela primeira fase permite ao julgador exercer um auto-controle do acerto dos seus próprios juízos; na segunda fase permite à comunidade, e ao destinatário das medidas a tomar pelo sistema penal, compreender os critérios seguidos pelo julgador e aferir da respectiva legitimidade, razoabilidade e aceitabilidade (Paulo Saragoça da Matta, in “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coorden. científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, 2004, pág. 255).
Traduz imposição do moderno processo penal, conexionado com a concepção democrática ou antidemocrática que insufle no espírito de um determinado sistema processual, com a dupla finalidade de, extraprocessualmente, constituir condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que a determinaram e, intraprocessualmente, de realização do objectivo de reapreciação da decisão por via do sistema de recursos.
Ainda, trata-se de concretização do desiderato constitucional a que alude o art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), impondo a fundamentação “na forma prevista na lei”, como parte integrante do conceito de Estado de Direito democrático e da legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição Anotada, pág. 799), por respeito às garantias de defesa do condenado (art. 32.º, n.º 1, da CRP) e de acesso à tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º, n.º 4, da CRP), no sentido de que se assegure um julgamento equitativo, como vem sendo reconhecido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e se apresenta consagrado, em termos amplos, no art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Só esse entendimento se compadece com a livre apreciação da prova, a qual se não confunde com apreciação judicial arbitrária, em que a livre convicção do juiz seja meramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável.
Esta “liberdade” de apreciação não é nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação (Castanheira Neves, in “Sumários de Processo Criminal”, 1967/68, pág. 53).
Postas estas considerações, é manifesto que o tribunal a quo procedeu a bem pormenorizado exame crítico das provas, não só as elencando, como também as analisando valorativamente, sem prejuízo da sua conjugação e da sua ponderação relativa.
Resulta que a fundamentação cuidou de apreciar as diversas perspectivas que quanto aos factos se colocaram, com a implícita preocupação de explicitar adequadamente as asserções que estabeleceu, de modo a tornar cabalmente inteligível o processo que rodeou a construção da sua convicção.
Para além de que a recorrente nada fundamenta em concreto que sustente diverso entendimento, a conclusão que extraiu não é mais, como se referiu, do que a expressão da sua discordância relativamente a esse exame crítico, como decorre da sua argumentação ao nível da matéria de facto, esta, em momento próprio, a ser analisada, mas, contudo, realidade bem diversa daquela que poderia conduzir à nulidade da sentença nos termos descritos.
Manifestamente, inexiste, pois, ausência, ou relevante deficiência, do exame crítico em questão.

2 - Recurso de A P:
A) - da nulidade da sentença:
A demandada, ora recorrente, invoca que a sentença padece de nulidade, por referência ao disposto no art. 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, devido, segundo alega, não se ter pronunciado acerca de questões que suscitou, que identifica como reportadas à ilegitimidade do demandante, JF, e à falta de cobertura da apólice quanto a parte dos danos peticionados e à existência de franquia nos danos materiais indemnizáveis.
Assim, a questão prende-se com a oficiosidade da apreciação e do conhecimento de todas as questões que são pertinentes à decisão da causa, o que resulta da natureza dos interesses que se visam proteger, na realização de opções fundamentais de política criminal, se bem que estejamos, na parte convocada, no âmbito da análise da acção cível, mas que, por via de adesão, integra a matéria que foi objecto de julgamento.
A expressão legal «devesse», contida nesse preceito legal, tem o significado literal de injunção e outro sentido não consente (acórdão do STJ de 07.12.1999, in CJ, Acs. STJ, ano VII, tomo III, pág. 234), porém, inevitavelmente, condicionada à relevância das questões para o objecto e a decisão da causa.
Ora, na verdade, em sede de contestação ao pedido de indemnização civil (fls. 421), a recorrente, se bem que sucintamente, levantou essas questões, o que, todavia, não implica que o tribunal a quo as tivesse de ter expressamente dilucidado, mas que, ainda assim, se possa colher da sentença que as não terá descurado, sendo certo que encerram aspectos processuais, mas com relevância na substância indemnizatória por que enveredou.
Neste âmbito, colhe-se da sentença que o facto provado em 46. faz referência à responsabilidade da recorrente nos termos da apólice e que, na parte atinente à fundamentação da parte cível, se consignou que o pagamento das quantias relativas aos danos adiante descriminados estavam abrangidos pela apólice, pelo que, pelo menos, relativamente às alegadas falta de cobertura da apólice e existência de franquia, não se aceita que não tivesse havido pronúncia do tribunal.
De qualquer modo, aqui ficam algumas considerações.
Quanto à questão da ilegitimidade do demandante, a recorrente refere que o repúdio da herança pelos pais da vítima não tem relevância para, no domínio do dano-morte, não deverem aqueles ter, também, essa qualidade de demandantes, quer se entenda, nos termos do art. 496.º, n.º 2, do Código Civil (CC), que esse dano lhes caiba por via própria ou por via sucessória, estando-se, na sua perspectiva, perante caso de litisconsórcio necessário, assim preterido, além de não se ter como adquirido que a vítima tivesse, ou não, filhos.
Note-se, contudo, que, na aludida contestação, apenas colocou a ausência de demonstração, pelo demandante, da sua qualidade de viúvo ou herdeiro, o que, agora, em recurso, reconhece que ficou documentado, o que leva a constatar, afinal, que a falta de pronúncia, porque irrelevante, se não verificou.
Não obstante, tratando-se de matéria de excepção dilatória, conforme ao art. 494.º, alínea e), do Código de Processo Civil (CPC) então em vigor - as subsequentes referências ao diploma reportar-se-ão a essa versão -, a sua apreciação é mesmo oficiosa (art. 495.º do CPC), pelo que cumprirá aquilatar, em concreto, da efectiva relevância, sendo que na sentença se consignou, ainda que de forma tabelar, inexistirem excepções influenciando na instância.
Segundo Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1984, págs. 122/123, «Ser parte legítima na acção é ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível (…) Se assim não suceder, a decisão que o tribunal viesse a proferir sobre o mérito da acção, não poderia surtir o seu efeito útil, visto não poder vincular os verdadeiros sujeitos da relação controvertida, ausentes da lide.».
Tal efeito útil normal significa, declarar o direito de modo definitivo, formando o caso julgado material. Se este resultado não puder conseguir-se sem que estejam em juízo todos os interessados, estaremos em presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica. Por outras palavras, se a relação litigiosa for de tal natureza, que, para se formar o caso julgado substancial, seja indispensável que a sentença vincule todos os interessados, todos eles têm de figurar na acção, visto, por um lado, ser inadmissível que se profira uma sentença inútil e, por outro, ser intolerável, em princípio, que uma sentença tenha eficácia contra interessados directos que não foram chamados à acção (Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil anotado”, Coimbra Editora, 1982, volume I, págs. 95/96).
Em sintonia, segundo o art. 28.º, n.º 2, do CPC, “A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.
Impõe-se o litisconsórcio sempre que, pela natureza da relação jurídica controvertida, só com a intervenção de todos esses interessados se obtém decisão que produza aquele efeito útil e normal.
Ainda, nos termos do art. 26.º, n.º 3, do CPC, “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Em concreto, o pedido de indemnização, relativamente ao alegado dano-morte, que consubstancia dano não patrimonial, foi formulado pelo demandante enquanto viúvo da vítima (fls. 224) e aludindo, além do mais, à expectativa desta em criar filhos (fls. 230), sendo que é inegável que a cirurgia a que se submetera tinha em vista debelar o seu problema de infertilidade primária.
Não tem, pois, sentido vir a recorrente afirmar não saber se a vítima tinha ou não filhos, para sustentar que, eventualmente, se existissem, fossem interessados na demanda.
Nem do pedido decorre, por algum modo, que a vítima tivesse filhos ou outros descendentes, para o efeito de que, por sua morte, lhes devesse caber, conjuntamente com o demandante, direito à indemnização por via do art. 496, n.ºs 1 e 2, do CC.
Acresce que, independentemente do referido repúdio da herança por parte dos pais da vítima, cujo relevo seria, como a recorrente invoca, discutível, uma vez que se afigura que a indemnização em apreço é atribuída aos familiares e por direito próprio (sobre a matéria, vg. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Almedina, Coimbra Editora, 1973, págs. 489/494, e Pires de Lima/Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Coimbra Editora, 1982, volume I, págs. 473/475), a necessidade de que esses ascendentes também figurassem como demandantes não resulta do disposto no normativo em análise.
Com efeito, aí se prevendo a titularidade desse direito à indemnização pelo dano em causa, a sua atribuição aos pais da vítima só aconteceria na falta de cônjuge sobrevivo, o que, no caso, não sucede.
Tanto basta para que o demandante JF seja parte legítima na acção, pelo que a abordagem expressa do tribunal não se tem como necessária, uma vez que, além de se tornar implicitamente inteligível pela sentença através da sua decisão, é a própria lei que afasta a perspectiva defendida pela recorrente.
No tocante à outra questão suscitada, a recorrente, na sua contestação, mencionou que “A apólice da contestante exclui as perdas indirectas de qualquer natureza, lucros cessantes e paralisações, na alínea i) do artigo 5º das condições gerais”, para além da alusão à referida franquia, sendo que suscita, ora, que nessas perdas indirectas se deva considerar a perda de rendimentos que a vítima proporcionaria, como lucro cessante, bem como, nas quantias fixadas por danos materiais, essa mesma franquia.
Na verdade, aquela menção decorre da apólice (fls. 431), não se configurando, todavia, como questão prévia que o tribunal devesse apreciar com o sentido de obstáculo ao conhecimento de mérito ou como motivo para inquinar a atribuída responsabilidade civil da recorrente, na medida em que se deu como provado, em 44., que “Por contrato de seguro titulado pela Apólice n.º 0084.0.011348, foi a responsabilidade civil da arguida, por danos causados a terceiros, transferida para a A P, SA.” e, em 46., que “A A P responde nos termos da sua apólice com sub-limite por sinistro, de 300.000 euros e a franquia de 10% dos danos materiais indemnizáveis, no mínimo de 125 euros”.
Deste modo, consignando a abrangência dos “danos causados a terceiros”, sem prejuízo do que adiante ficou fundamentado nessa vertente cível, implicitamente decorre que a alegada exclusão e da forma como é perspectivada pela recorrente não foi tida por pertinente, nem, acrescente-se, a vemos como tal, não obstante a análise que se fará aos montantes fixados.
Nos termos do art. 564.º, n.º 1, do CC, “O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”, prevendo, o n.º 2 do normativo, a possibilidade de fixação de danos futuros, quanto, quer a danos emergentes, quer a lucros cessantes.
O pedido de indemnização deduzido referiu-se, em parte, aos danos patrimoniais, por perda de rendimentos do demandante, ocasionada pela prática dos factos, na asserção, pois, de danos futuros e, nestes, como lucros cessantes.
Foi esta a perspectiva em que o tribunal atentou e sobre a qual fundamentou a responsabilidade da recorrente, não se descortinando que outra possa ter sido.
Por seu lado, a referida exclusão, vista como a recorrente a coloca, para além de contender com os princípios gerais em matéria de responsabilidade civil e com os normais parâmetros de responsabilização das entidades seguradoras, não deve ser interpretada no sentido que propõe.
Com efeito, a aludida cláusula de exclusão da responsabilidade, constante da apólice, conjugada com as condições gerais aí definidas, ainda que reportando-se ao exercício da profissão da tomadora do seguro, deve ser aferida em razão de perdas nesse exercício, mas não ampliando-as a situação de responsabilidade por factos ilícitos que aqui está em causa, sob pena de, por um lado, não se adequar ao conteúdo global desse clausulado nesse art. 5.º, tendencialmente reportando-se a aspectos alheios à natureza da indemnização em apreço e, por outro, a amplitude geral desta ficar injustificadamente desvirtuada.
Em conformidade, nesta vertente, para além do que ficou explicitado na sentença, não se detecta fundamento relevante para que o tribunal devesse ter feito específicas considerações.
A propósito da aludida franquia, sendo esta, por definição, a suportar pelo tomador do seguro, não se vê como pudesse vir a reflectir-se nas quantias fixadas, do que decorre, mais uma vez, que a pertinência para o objecto da causa fica arredada, dispensando o tribunal de esclarecimentos nessa parte.
Não ocorre, pois, nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

B) - da eliminação de factos provados:
Defende a recorrente a eliminação dos factos provados em 10., 11., 14. e 15., porque, segundo entende, revestem matéria conclusiva.
Ainda, também, quanto ao facto provado em 11., essa eliminação é sustentada pela sua incompatibilidade com o facto provado em 43..
Finalmente, propõe que, expurgado de conclusões o provado em 8. e 9., deve ser unificado de modo a ficar a constar os procedimentos referidos no facto provado em 8..
Reproduzem-se, aqui, tais factos:
8. Assim, ao invés de imediatamente realizar a laparotomia exploradora por meio de incisão pubo-umbilical, que pode ser rapidamente alargada para a região supra umbilical até ao apêndice xifoideu, se necessário, que seria o procedimento técnico mais indicado, naquele circunstancialismo, para a exposição dos grandes vasos, a arguida não o fez.
9. Antes levou a cabo, como primeira opção, a laparotomia de Pfannenstiel que se revelou insuficiente para determinar a causa da hemorragia tendo a arguida, então, iniciado a incisão pubo-umbilical, esta alargada posteriormente até ao xifoideu pelo Dr. GG.
10. A arguida tinha o dever de saber que, em caso de suspeita de lesão dos grandes vasos, no circunstancialismo referido, o procedimento mais indicado para a exposição dos mesmos é a laparotomia por incisão pubo-umbilical e não aquele outro que utilizou em primeiro lugar.
11. Assim, ao não ter, de imediato, lançado mão da técnica de incisão pubo-umbilical, como primeira opção, a arguida não logrou detectar a causa da hemorragia a tempo de a debelar, conduta que devia e podia ter adoptado.
14. A arguida não levou a cabo o procedimento técnico adequado que as circunstâncias concretas impunham para se inteirar das causas da hemorragia a que dera azo e poder combatê-las, estancando ou reduzindo a hemorragia e as suas consequências já que, ao invés de efectuar a laparotomia exploradora por meio de incisão mediana pubo-umbilical, como primeira reacção, antes, por descuido ou inabilidade, ao ter desvalorizado os sintomas da paciente, realizou a laparotomia de Pfannenstiel, conduta que devia e podia evitar.
15. A arguida sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei penal.
43. A arguida, depois de fazer a incisão pubo-umbilical, e com o auxílio do Dr. FR, fez compressão de modo a evitar que a mesma progredisse, até à chegada do cirurgião geral, a quem aquela passou a adjuvar.
Ora, quando o art. 374.º, n,º 2, do CPP prevê, como requisito da sentença, a
enumeração dos factos provados e não provados”, implicitamente afasta que estes se traduzam em juízos de valor ou meras conclusões.
Estes juízos ou conclusões constituirão já apreciação do que a realidade concreta ofereça, e não, em rigor, acontecimentos ocorridos, embora a linha divisória neste âmbito se torne, não raras vezes, relativamente flutuante.
Conforme Antunes Varela/ Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, ob. cit. págs. 392/393, «Dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem, não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem – ex propriis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (…), Anota-se, por fim, que a área dos factos (…) cobre, principalmente, os eventos reais, as ocorrências verificadas; mas pode abranger também as ocorrências virtuais (os factos hipotéticos), que são, em bom rigor, não meros factos, mas verdadeiros juízos de facto.».
Importante é, pois, saber se esses ditos juízos cabem ainda, em concreto, na narrativa em análise, sem descurar que os factos a constar da sentença são todos aqueles que revelem para a decisão da causa, sendo que os alegados pela recorrente já da decisão instrutória faziam parte integrante (fls. 333) e, inevitavelmente, não se dissociam de outros que foram dados por provados.
Reflectem a atribuída relação entre a conduta da arguida e o resultado que se verificou, decorrendo como juízos apoiados em acontecimentos reais, mormente, trazidos pelos elementos probatórios, o que se infere da sua fundamentação, mas ainda suportando que devam ser tidos como juízos de facto, necessários ao devido esclarecimento do objecto da causa, o qual, note-se, se prende com as práticas médicas ao caso pertinentes.
Acresce que se apresentam consentâneos com a averiguação dos elementos que, na vertente da negligência imputada à arguida, se justificava, de acordo com o que teria feito e do que deveria ter feito, sem o que a percepção cabal da realidade ficaria afastada.
No que concerne à alegada incompatibilidade entre o provado em 11. e 43., não se descortina minimamente que ela exista.
Com efeito, da circunstância da arguida ter procedido às manobras de compressão para evitar que a hemorragia progredisse, não decorre que tivesse logrado detectar a causa da hemorragia e a tempo de a debelar.
Relativamente ao alegado quanto aos factos provados em 8. e 9., não se aceita, atento o já explicitado, dever apenas constar o que ficou, em parte, vertido no segundo e ser eliminado o primeiro que contém âmbito não inteiramente coincidente com aquele.
Inexiste razão, pois, para que esses factos sejam eliminados e, designadamente, em parte unificados.

1 - Recurso da arguida:
C) - da impugnação de matéria de facto:
A recorrente impugna matéria de facto, tendo minimamente dado cumprimento às especificações exigidas (art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP), embora sem que o tivesse feito de forma cabal e relativamente a alguns dos pontos de facto que indica, uma vez que não apresentou, quanto a alguns, transcrição de excertos da prova como seria conveniente à sua apreciação.
Não obstante, a sua perspectiva afigura-se, no geral, inteligível, permitindo que, dentro das limitações por si própria colocadas, da mesma se conheça.
Note-se que o recurso em matéria de facto não constitui um novo julgamento, mas apenas um remédio para os erros de julgamento, através da reapreciação da prova, que, contudo, não se destina a limitar (ou arredar) o princípio da livre apreciação consagrado no art. 127.º do CPP, nem pode suprir a imediação e a oralidade de que o tribunal que julgou dispôs.
A propósito, lê-se no acórdão do STJ de 10.03.2010, in CJ Acs. STJ ano XVIII, tomo I, pág. 219: Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se de um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento (…) O objeto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento (…) A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restou à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação (…) A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.
Mais se justifica pela circunstância de que, como Damião da Cunha, in “A Estrutura dos Recursos”, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 8, Abril-Julho, 1998, págs. 259 e seg., ao recorrente é exigido que apresente os pontos de facto que mereçam a censura de incorrectamente decididos (…) Não basta, porém, que no recurso manifeste a discordância e, bem assim, as provas (…) que não só demonstrem a possível incorrecção decisória, mas também permitam configurar uma alternativa decisória.
Analisando em concreto, à luz dos excertos das transcrições da prova apresentadas e sem prejuízo da faculdade de audição prevista no n.º 6 desse art. 412.º, que, quanto necessário, se utilizou:
A recorrente começa por referir que a incorrecta apreciação da prova reside na fundamentação da convicção da sentença no segmento nesta designado de “Da conversão para a laparotomia (exploratória)”, que, menciona, «baseia parte significativa do seu raciocínio nas declarações prestadas pela dita perita designada pelo Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos».
Em abono da sua posição, com vista à impugnação dos factos que indica como incorrectamente julgados - provados em 7. a 15. e não provados em 2. e 3. -, traz à colação as suas declarações e os esclarecimentos da peR Dr.ª CR, que subscreveu o relatório da autópsia de fls. 72/74.
Sem prejuízo do subsequente exame crítico das provas, consignou-se na sentença, no que concerne às suas declarações, que apresentou a sua versão sobre as razões que levaram a vítima a procurar os seus serviços e qual o diagnóstico da mesma, sobre os procedimentos tomados antes da cirurgia, bem como sobre a sua actuação durante toda a intervenção cirúrgica. A sua versão foi, no essencial, confirmada pelo depoimento das testemunhas que presenciaram os factos, tendo ainda sido valorada na parte em que não foi adequadamente contrariada pelos restantes meios de prova, ao abrigo do princípio do in dubio pro reo. Mais se valoraram as suas declarações a respeito da sua situação pessoal, conjugadas com a prova documental produzida a este respeito”.
Por seu lado, quanto à referida perita, fez-se menção na sentença “aos esclarecimentos complementares da Dra. CR, médica legista, que foi a responsável pela realização da autópsia médico-legal da paciente e pela elaboração do relatório de autópsia junto aos autos”, este também devidamente indicado como prova pericial.
Transcrevem-se, aqui, para comodidade de percepção e de apreciação, os factos ora impugnados:
- Provados:
7. A arguida suspeitou de hemorragia, mas não previu tratar-se dos grandes vasos.
8. Assim, ao invés de imediatamente realizar a laparotomia exploradora por meio de incisão pubo-umbilical, que pode ser rapidamente alargada para a região supra umbilical até ao apêndice xifoideu, se necessário, que seria o procedimento técnico mais indicado, naquele circunstancialismo, para a exposição dos grandes vasos, a arguida não o fez.
9. Antes levou a cabo, como primeira opção, a laparotomia de Pfannenstiel que se revelou insuficiente para determinar a causa da hemorragia tendo a arguida, então, iniciado a incisão pubo-umbilical, esta alargada posteriormente até ao xifoideu pelo Dr. GG.
10. A arguida tinha o dever de saber que, em caso de suspeita de lesão dos grandes vasos, no circunstancialismo referido, o procedimento mais indicado para a exposição dos mesmos é a laparotomia por incisão pubo-umbilical e não aquele outro que utilizou em primeiro lugar.
11. Assim, ao não ter, de imediato, lançado mão da técnica de incisão pubo-umbilical, como primeira opção, a arguida não logrou detectar a causa da hemorragia a tempo de a debelar, conduta que devia e podia ter adoptado.
12. Sobrevindo a morte de VA por hematoma retroperitoneal na sequência da ferida da artéria aorta abdominal.
13. A arguida sabia que devia efectuar as manobras cirúrgicas de forma a não atingir qualquer veia, artéria ou órgão de VA, o que devia evitar.
14. A arguida não levou a cabo o procedimento técnico adequado que as circunstâncias concretas impunham para se inteirar das causas da hemorragia a que dera azo e poder combatê-las, estancando ou reduzindo a hemorragia e as suas consequências já que, ao invés de efectuar a laparotomia exploradora por meio de incisão mediana pubo-umbilical, como primeira reacção, antes, por descuido ou inabilidade, ao ter desvalorizado os sintomas da paciente, realizou a laparotomia de Pfannenstiel, conduta que devia e podia evitar.
15. A arguida sabia ser a sua conduta proibida e punida por lei penal.
- Não Provados:
2. A arguida suspeitou logo de hemorragia dos grandes vasos.
3. A morte de VA também sobreveio das feridas da artéria ilíaca primitiva direita.
Vejamos.
No que concerne ao provado em 7.,e não provado em 2., entende a recorrente que não descartou a possibilidade de terem sido lesionados os grandes vasos, considerou todas as possibilidades e, por isso, optou, num primeiro momento, pela incisão de Pfannenstiel, a qual, segundo alega e conforme às declarações da perita, Dr.ª CR, é feita por cima da zona das ilíacas.
Conclui que desse facto provado deve ficar a constar que “A arguida suspeitou de hemorragia e previu como possível tratar-se de lesão do grande epíploon, dos intestinos ou dos vasos de maior ou menor calibre”, assim integrando aquela matéria dada como não provada.
Ora, se, tal como decorre das declarações da recorrente, a suspeita de hemorragia para si surgiu, já o mesmo não resulta quanto à suspeita, nesse momento, antes de iniciar a conversão para a laparotomia, de se tratar de um grande vaso, referindo expressamente que não suspeitou de uma tal gravidade e que, apenas já depois da incisão de Pfannenstiel, se apercebeu que assim fosse.
No tocante ao esclarecido pela referida Sr.ª perita no âmbito alegado, limitou-se a referir que essa incisão foi realizada, como é característica da mesma, sensivelmente na zona em que as lesões foram detectadas, mas sem que daí se permita extrair que a opção feita pela recorrente fosse resultado da invocada suspeita, bem pelo contrário.
Acresce que essa opção, como decorre das declarações da recorrente, teve em conta a avaliação errónea dessa suspeita, a qual, segundo a Sr.ª perita, e também, note-se, os esclarecimentos da Dr.ª FF, pela dimensão da hemorragia, inevitavelmente levaria necessariamente a suspeitar-se de lesão em grande vaso.
Quanto ao provado em 8., que a recorrente propõe, até, seja eliminado, invoca que a peR médico-legal informou que os grandes vasos são, para além da aorta, a veia cava e as artérias ilíacas e, assim, sendo a referida incisão de Pfannenstiel na zona das ilíacas, a sua conduta foi uma atitude correcta.
Refere, ainda, as declarações dessa perita, mencionando que esta afirmou tudo ter sido feito de acordo com o que está protocolado.
Todavia, esta afirmação não contende com o que ficou no restante explicitado pela Sr.ª perita, nem com o fundamentado na sentença, na conjugação, sobretudo, com os esclarecimentos prestados pela Dr.ª FF.
Na verdade, se bem que aquela Sr.ª perita se tenha reportado à normalidade da conversão para a laparotomia exploratória face à existência de hemorragia, na qual se poderá inserir esse tipo de incisão e, neste aspecto, consonante com a realização desta em moldes protocolares, isso não significa, nem esse foi o sentido conferido, que essa incisão fosse a mais adequada à situação, ao invés da incisão pubo-umbilical, tendo mesmo sublinhado que, dada a hemorragia massiva, a suspeita de lesão de grande vaso era forçosa se concluir.
De resto, o tribunal fundamentou que “a decisão de parar a laparoscopia e prosseguir de imediato para uma laparotomia (convertendo a cirurgia) é correcta, pois só desta forma, com a visão directa do interior do corpo se poderia, por um lado estancar, o mais rapidamente possível a hemorragia, e, por outro saber a sua precisa origem”, o que não é posto em crise por esses prestados esclarecimentos.
Mas, estes foram complementados pelos esclarecimentos da Dr.ª FF, que se revelaram bem pormenorizados e inteiramente inteligíveis, como transparece da sentença e, além do descrito nesta, vindo a manifestar, sem que existam elementos probatórios em contrário, que qualquer médico ginecologista/obstreta tem de estar preparado para qualquer um dos tipos de incisão em casos como o sucedido, mas a incisão pubo-umbilical era a adequada às circunstâncias.
No que tange ao provado em 9., é suscitado pela recorrente como decorrência do anterior, preconizando que, tendo a sua opção sido correcta e iniciado, depois, a incisão pubo-umbilical, estas, no conjunto, demoraram cerca de um minuto e meio.
Apela às suas declarações, denotando experiência e rapidez nos procedimentos, sendo especialista muito treinada, contestando o fundamentado na sentença, de que “por muito rápida que fosse a iniciar a incisão pubo-umbilical, perdeu tempo, desnecessariamente (e precioso que ele era) ao ter decidido, antes disso, fazer a incisão de Pfannenstiel. Entre o início da pfannenstiel e a finalização da pubo-umbilical, decorreu todo um período de tempo que, por muito curto que fosse (e que incluiu a drenagem do coágulo e a preparação da mesa e dos instrumentos cirúrgicos), foi desperdiçado, pois que nesse mesmo período de tempo poderia estar já a ser feita a compressão, e que, por causa disso, assim não sucedeu, causando, assim, um agravamento dessa hemorragia, hemorragia essa que, por sua vez, levou à morte de VA”.
Através das declarações da recorrente, constata-se que admitiu ter decorrido um período de 4/5 minutos até à chegada do Dr. FR, médico-cirurgião da mesma especialidade, pelo que dificilmente se poderá estar a falar de um minuto e meio para as duas incisões.
Não obstante a recorrente ter posteriormente realizado o que seria correcto fazê-lo antes e que, dada a situação de emergência e a sua experiência, o terá feito inevitavelmente de forma rápida e, admite-se, sem que tenha tido necessidade de preparativos especiais, a sua atitude não é dissociável da errada opção por que enveredara e adequada ao agravamento trágico que deveria ter, nas suas condições, previsto.
Quanto ao provado em 10., sem esquecer anterior argumentação que para o mesmo convoca, propõe a sua eliminação, seja por revestir-se como conclusivo, seja por contraditório com outros.
No primeiro aspecto, afigura-se que, traduzindo, na verdade, tendência conclusiva, esta não deixa de ser, simultaneamente, um juízo de facto, com o sentido de que reflecte, relacionando-se com os anteriores, a preterição do dever que à recorrente incumbia no exercício da sua prática médica, na concreta situação que o estado da paciente transmitia, sem se desligar desta e consequente à mesma.
Sobre o segundo aspecto, não se aceita a alegada contradição.
Invoca que o facto em causa parte, afinal, do pressuposto de que tivesse suspeitado de hemorragia, mas, ainda assim, foi dado como provado.
Reportar-se-á, então, ao provado em 7., o qual já se deixou analisado, e, nele, ficou vertido que “não previu tratar-se dos grandes vasos”, pelo que, aparentemente, poderia configurar-se incompatibilidade com a circunstância de que, no facto em análise, se tenha feito menção à “suspeita de lesão de grandes vasos” como base do dever aí referido.
E, note-se, aparentemente, porque decorre da conjugação implícita com o provado em 8. e 9. que essa previsibilidade era para si, “no circunstancialismo referido”, como aí se menciona, também acessível e motivo para se conduzir de modo diverso.
Contrariamente ao que parece pretender inquinar, entende-se que o tribunal não descurou a análise dos passos da sua actuação, mas relacionou-os e valorou-os, como era devido, em razão do acontecimento único e irrepetível que a realidade reflectiu.
Quanto ao provado em 11. e 14., para sustentar a pretensão de que não se provaram, a recorrente aponta a taxa de mortalidade elevada nos tipos de acidente como o ocorrido, reportando-se a esclarecimentos nesse sentido da Sr.ª perita Dr.ª CR, a impossibilidade de determinar qual o tempo a partir do qual a situação é irreversível, a realização das manobras de compressão realizadas por si e pelo Dr. FR, a detecção da causa da hemorragia apenas pelo Dr. GG, o tempo de espera até à chegada deste e a eventual contribuição das lesões da artéria ilíaca para a morte de VA.
Ora, sendo que a referida Sr.ª PeR efectivamente abordou que as complicações em situações similares, que são raras, a verificarem-se, são mortais numa tA P elevada, não deixou também de se reportar à necessária suspeita, nas condições concretas, de hemorragia de grande vaso, ainda que a sua resolução seja normalmente difícil.
Admitindo-se, porque da prova e das regras da experiência, em contrário nada se retira, que inexiste certeza do alegado período temporal adequado a debelar a hemorragia, inevitavelmente variável em função da causa e da relevância desta, mas sempre exigindo meios, rapidez e destreza perante a dimensão massiva que a mesma apresentava, e ainda que a recorrente não a lograsse apurar, o procedimento de incisão mediana, longitudinal, pubo-umbilical, estava nas suas possibilidades e era, desde logo, o indicado para detectar o local de sangramento, como a própria, nas suas declarações, reconheceu, independentemente das correctas e subsequentes manobras de compressão que terá realizado já depois da preterição dessa aconselhada intervenção.
O mesmo se diga relativamente à circunstância de que o médico-cirurgião geral, Dr. GG, só tivesse comparecido depois de tempo considerável, uma vez que o cerne da problemática da sua conduta se coloca nos momentos anteriores e, também, quanto às lesões na artéria ilíaca, quer a referida Sr.ª perita, quer a Dr.ª FF, vieram esclarecer que poderão ter sido provocadas pela intervenção desse cirurgião, mas não denotando que daí proviesse o maior sangramento.
A Dr.ª FF acentuou a conveniência da incisão mediana para a detecção em vista, bem como a influência de atitude diversa, desde logo pela gravidade que se deparava e pelo que representa o decurso de escassos minutos nessas circunstâncias no resultado mortal que se verificou.
Em conformidade, aquele procedimento não era, para a recorrente, inviável e, ao invés, tornava-se, sim, o que, inicialmente, as boas práticas médicas, em concreto, impunham, pelo que não se descortina que o tribunal não tivesse atentado nos argumentos aduzidos para valorar o seu comportamento, à luz da prova de que dispôs.
Acerca dos factos provado em 12. e não provado em 3., a recorrente apela às dúvidas explicitadas pelo tribunal, mas entendendo que as mesmas não se aplicam a que essas lesões na artéria ilíaca pudessem ter concorrido para o resultado morte, em sintonia com os esclarecimentos da Dr.ª CR, embora sem alusão expressa a estas.
Preconiza, por essa via, que seja dado como provado em 12. que “Sobrevindo a morte de VA por hematoma retroperitoneal na sequência da ferida da artéria aorta abdominal e das feridas da artéria ilíaca primitiva direita”, ou seja, que aquele segmento não provado passe a integrar esse facto provado.
Reporta-se à fundamentação da sentença que ficou consignada nos seguintes termos:
Ali se fixa, assim, como causa de morte as feridas nas artérias aorta abdominal e na ilíaca direita primitiva, em intervenção cirúrgica. Sendo as conclusões médico-legais as seguintes: a morte da paciente foi devida a hematoma retroperitoneal na sequência das feridas da artéria aorta abdominal e da artéria ilíaca primitiva direita. Em esclarecimentos complementares, a perita esclareceu que atribuiu as feridas na ilíaca por não se mostrar a mesma suturada, ao contrário da aorta. Porém, admite que o maior débito sanguíneo saiu da aorta abdominal pelo que o débito sanguíneo das ilíacas não seria significativo, sendo a principal causa de morte, assim, a ferida na artéria aorta abdominal. Por isso que, pelas dúvidas suscitadas, se tivesse dado como não provado o facto n.º 3 dos factos não provados.
Compreende-se a lógica do raciocínio do tribunal, ao ter distinguido a relevância respectiva para o resultado verificado, já que, também, como consta da sentença, a Sr.ª perita acabou por admitir que a “principal causa da morte seria a lesão da bifurcação da aorta”, sendo que, através dos seus esclarecimentos, decorre que o débito sanguíneo da aorta será sempre muito maior que o das ilíacas, adequado a desencadear choque hipovolémico (hemorrágico) e irreversível, o que, revertendo ao concreto, confirmou ter detectado ferida aí muito maior que as restantes e, relativamente ao que a intervenção do Dr. GG, que procedeu à inerente sutura, se ofereceu analisar, não descurando, certamente porque em emergência se justificava, que o tivesse feito quanto à aorta, mas já não quanto à ilíaca.
Reconheceu a Sr.ª perita que essas lesões na ilíaca poderiam ter sido provocadas pelos procedimentos de salvamento levados a cabo por esse cirurgião, o que a recorrente, aliás, veio também a reflectir, ao afirmar que, após a manobra efectuada pelo mesmo, de isolamento das ilíacas para visualizar os vasos até à bifurcação da aorta e de suturação desta, a hemorragia terá parado e, assim, reportando situação consentânea com a de que a efectiva causa que desencadeou o hematoma retroperitoneal foi a ruptura da aorta.
Tudo isto para além do que ficou cabalmente explicitado na sentença relativamente às lesões da ilíaca:
Tal como vem consignado no relatório da autópsia, a paciente apresentava duas feridas incisas na artéria ilíaca direita.
Todavia, da prova que se produziu, tendo em conta o depoimento do Dr. GG, o mesmo, para desbridar a artéria ilíaca, que foi por onde começou a sua minuciosa observação em busca da lesão que causara a hemorragia e os consequentes hematomas (no interior do peritoneu e atrás do peritoneu), teve que libertar o peritoneu da referida artéria (são estruturas que estão justapostas). E para isso, teve que cortar a referida “membrana” para alcançar o vaso que estava por detrás da mesma. Afastou o cirurgião que pudessem as feridas consignadas no relatório da autópsia tratar-se de feridas da própria artéria, antes devendo tratar-se do peritoneu. Ora a perita médica patologista esclareceu que as feridas que observou se encontravam no próprio vaso (e não no peritoneu), juntando ainda uma fotografia ampliada da situação que descreveu.
Donde, tendo em consideração o supra referido, temos que foi manuseado um bisturi junto à referida ilíaca (pese embora o cirurgião pretendesse descartar ter sido o responsável por ter atingido a mesma).
Por outro lado, o parecer do Colégio da Especialidade foi formulado em face dos elementos então disponíveis e disponibilizados à perita designada pelo Colégio, sendo que as lesões examinadas na ilíaca e no fígado não tinham uma explicação lógica ou segura, pelo que, sem outros dados, partiu do pressuposto que as lesões seriam contemporâneas do mesmo procedimento, o que justificaria a conclusão a que chegou.
Porém, em esclarecimentos em audiência a referida médica explicou que, sem saber quantas haviam sido as tentativas para a introdução do trocar ou as dificuldades eventualmente ocorridas nesse procedimento, não podia com segurança afiançar ter-se tratado de erro na introdução do trocar o que teria causado as feridas da ilíaca. Na verdade, o parecer elaborado partiu da dedução que tivesse sido mais do que uma tentativa e, nesse caso, as lesões da ilíaca poderiam advir da insistência na operação de dissecção dos planos. Confrontada com a hipótese de não ser assim e de ter sido o trocar reintroduzido após a verificação do trajecto ser o correcto, a mesma logo avançou reservas quanto à conclusão de poderem as feridas da ilíaca terem sido causadas pela introdução do trocar já com a óptica (na 2.ª introdução), não podendo excluir que a manobra de desbridamento levada a cabo pelo Dr. GG pudesse ser a causa dessas mesmas lesões”.
A propósito do provado em 13., a recorrente começa por aderir à fundamentação da sentença enquanto reportada à sua correcção de procedimentos relativa à introdução de trocar, mas defende que a esse aspecto deverá ser acrescentado, nesse facto, que “introduziu o trocar de forma correcta e adequada, não logrando, ainda assim, evitar a lesão da artéria aorta abdominal”.
Todavia, tal não se justifica.
Para além da fundamentação da sentença nessa parte, que a recorrente transcreve, e do que se deu como não provado em 5. - “A arguida podia ter evitado a lesão da bifurcação da aorta abdominal” - há que notar que, também, se motivou que:
Do exposto conclui-se que foi em consequência da introdução do trocar que a bifurcação da aorta foi atingida. Quanto a este facto não existem dúvidas já que é o que se retira da prova produzida, ponderada em conformidade com as regras da lógica.
(…)
Ou seja, e em síntese, se a lesão dos grandes vasos é uma complicação associada a este tipo de cirurgia, podendo resultar de causa acidental, para se excluir que assim tivesse sido importava comprovar o modo incorrecto, em violação das leges artis aplicáveis, da introdução do trocar, para ser legítimo imputar a referida lesão a uma actuação incauta da arguida. Para tanto, mister era que se demonstrasse, como se referiu, a violação de alguma das regras acima indicadas sobre este tipo de procedimento, o que faria supor que teria sido essa concreta violação a causa da lesão da aorta que se veio a verificar. Mas assim não sucedeu. Não se demonstrou que a arguida tivesse manuseado incorrectamente o trocar ou tivesse utilizado procedimentos errados na execução desta técnica. Ora, não tendo a versão da arguida sido adequadamente contrariada por outros meios de prova, deverá a mesma ser valorada ao abrigo do princípio do in dubio pro reo, tal como se decidiu fazer. E, como assim, deram-se como não provados os factos sob os n.ºs 1, 4 e 5 dos factos não provados”.
Deste modo, na ausência de prova segura, a recorrente beneficiou do favor rei, mas sem que isso implique, contrariamente ao que preconiza, que, relativamente à introdução do trocar, se tivesse verificado correcção, mas sim, e apenas, que não se provou que assim não tivesse sido.
O conhecimento que ficou reflectido nesse facto coaduna-se com a qualidade profissional e a experiência da recorrente, não mais do que isso, e o pretendido aditamento não é suportado pela prova, nem pela adequada valoração que esta mereceu.
Quanto ao provado em 15., se é certo que o risco de acidente era inerente à intervenção que realizava, como em qualquer cirurgia, à recorrente, ainda que tivesse manuseado correctamente o trocar, exigia-se que tivesse valorizado a dimensão dos sintomas e da hemorragia, para prevenir o resultado, através da técnica adequada, sendo que, por maioria de razão, se, como invoca, colocou todas as hipóteses para a causa da hemorragia, tanto mais isso lhe era, em concreto, imposto.
Dúvidas não se colocam na vertente da sua actuação consciente e das consequências, mormente legais, a que sabia sujeitar-se.
Outras considerações não se justificam para concluir que a matéria impugnada deve persistir, porque cabalmente motivada na prova recolhida e sem que, a respeito dela (e da restante que se fixou) o tribunal tenha expressado qualquer dúvida ou que, ora, se perspective que alguma dúvida, que teria de ser séria, relevante e inultrapassável, se devesse ter perspectivado à luz das regras da experiência, resultando, sim, ao invés, que foi firmada convicção de modo devidamente objectivado, alicerçada em raciocínio lógico, reflectido de forma inteligível, com equilibrada ponderação dos elementos probatórios com que se deparou, maxime, mediante análise detalhada e esclarecedora, que merece, aqui, ser sublinhada.

D) - da absolvição criminal:
A recorrente pugna pela sua absolvição criminal como consequência da pretendida modificação da matéria de facto que não procedeu.
Deste modo, a sua apreciação revela-se substancialmente afastada.
Ainda assim, algumas considerações caberão fazer.
No essencial, a recorrente alega que os seus procedimentos foram correctos, de acordo com as leges artis, integrados na atipicidade das intervenções prevista no art. 150.º do CP, a produção do resultado não era consequência adequada da opção pela realização da incisão de Pfannenstiel e nem o mesmo era, em concreto, previsível, bem como a sua actuação não criou ou aumentou o risco de que se produzisse.

Neste âmbito, ficou a constar da sentença:
À arguida foi imputada a prática de um crime de homicídio por negligência previsto e punível pelo art.º 137.º, n.ºs 1 e art.º 15.º, b), ambos do CPenal, porquanto, no dia 06.04.2011, durante uma intervenção cirúrgica laparoscópica de drilling do ovário a que VA foi submetida, a arguida, agindo sem o cuidado que devia e de que podia, ao introduzir o trocar, teria provocado lesões na bifurcação da aorta, na artéria ilíaca e no fígado, as quais provocaram uma hemorragia intra-abdominal importante, perante a qual, ao invés de atalhar logo por uma incisão pubo-umbilical e estancar a hemorragia, antes começou por efectuar a incisão de pfannenstiel, durante a qual a paciente continuou hemorrágica, vindo esta a falecer em consequência.
Nos termos do disposto no citado preceito incriminador:
«1. Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos».
E nos termos estatuídos pelo art.º 15.º do C.Penal, «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»
*
Ora, o tipo de ilícito negligente consiste na violação do dever de cuidado a que o agente está obrigado, em conformidade com os conhecimentos e a capacidade do homem médio, sendo que tais deveres de cuidado podem fundar-se, entre outras fontes, na previsão de normas legais. Está em causa, portanto, a não observância das regras de cuidado, indispensáveis à minimização dos riscos inerentes às respectivas condutas.
O tipo de ilícito negligente é assim consubstanciado por uma acção violadora do dever objectivo de cuidado (que encerra o desvalor dessa acção) e pela verificação do resultado típico, justamente aquele que a observância daquele dever objectivo de cuidado visava evitar (revelando o desvalor do resultado). Importa, ainda que, entre a acção e o resultado exista uma relação de adequação (o resultado deverá ser objectivamente imputado à acção descuidada).
A culpa negligente corresponderá à atitude ético-pessoal de descuido ou leviandade do agente face ao bem jurídico lesado ou posto em perigo pela acção praticada sem o cuidado exigível (e que pressupõe a previsibilidade subjectiva do perigo, ou seja, a possibilidade de o agente, em conformidade com as suas capacidades individuais e as circunstâncias concretas em que a acção é praticada, ter previsto os riscos da sua acção; e a possibilidade de o agente ter cumprido o dever objectivo de cuidado).
Como se colhe dos ensinamentos de Américo Taipa de Carvalho (in “Direito Penal – Parte Geral – Teoria Geral do Crime”, volume II, Porto, 2004, pág 380), a violação do dever objectivo de cuidado pressupõe, por um lado a previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico e, por outro lado, a não observância do cuidado objectivamente adequado a obstar à verificação do resultado típico.
A previsibilidade é assim um elemento essencial, na medida em que se o risco de lesão de um dado bem jurídico é objectivamente previsível, então é exigível que o agente actue com o cuidado adequado a evitar a concretização dos riscos dessa lesão. Donde, se o agente tiver procedido com o cuidado exigível e, ainda assim, o resultado desvalioso se produz, não poderá esta ser imputada à acção do agente. É que, neste caso, não existe qualquer acção desvaliosa e sem que a mesma se verifique não existe qualquer ilícito. Ou seja, se apesar de o agente ter procedido com o cuidado exigível, ainda assim, o resultado desvalioso se produz, este não poderá ser imputado à acção do agente.
No que concerne à violação do dever objectivo de cuidado, trata-se este do segundo pressuposto do elemento do tipo objectivo e reporta-se ao incumprimento do dever de cuidado que, caso tivesse sido respeitado, teria evitado o resultado.
É objectivamente exigível o cumprimento do dever de cuidado a todo o agente que do mesmo seja capaz, medindo-se tal capacidade em função do homem consciente e cuidadoso do sector de actividade a que pertence o agente (sector de actividade onde ocorreu o facto).
A imputação do resultado à acção negligente pressupõe que se afiance que, com grande probabilidade, o resultado não teria ocorrido se o agente tivesse procedido com o cuidado objectivamente exigível. Não sendo assim, excluída fica tal imputação.
Exige-se, portanto, que o resultado – morte – seja objectivamente imputável à conduta do agente.
A violação de normas de cuidado consubstancia, justamente, um critério de imputação objectiva da morte à conduta do agente.
O tipo negligente pode assumir duas formas: a negligência consciente (quando o agente representa a verificação do resultado típico, sem que, porém, se conforme com a realização do facto típico) e a negligência inconsciente (em que o agente não chega a representar tal verificação).
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No caso dos actos médicos, a ilicitude pode resultar da violação dos deveres contratualmente estipulados, da violação do dever de informação, de deveres funcionais, de deveres de protecção ou de direitos de personalidade que, no campo médico, se assumem na categoria geral das “leges artis”, de modo que se concluirá pela existência da ilicitude quando se verifique uma violação das referidas “leges artis”(«que correspondem aos métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes», conforme definição dada pelo STA, em decisão de 13.03.2012, no Proc. n.º 0477/11, citado por V Lúcia Raposo, in “Do acto médico ao problema jurídico”, Almedina, 2014, pág. 45).
É, portanto o conteúdo de tais leis da arte que vai delimitar o que corresponde à violação de uma norma ou de um direito de outrem para efeitos da aferição do preenchimento dos elementos constitutivos do tipo penal em evidência. Ora, a definição dessas leges artis resultará, na sua maioria, das normas do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, mas pode ainda reconduzir-se a protocolos, guidelines, reuniões de consenso e normas especialmente atinentes à actividade médica e que definem as boas práticas médicas.
E quando estamos na presença do conjunto de regras, técnicas e procedimentos adaptados ao caso concreto, ligando as regras gerais às especificidades do caso concreto, estaremos na presença da lex artis ad hoc.
A lex artis ad hoc é o critério valorativo da correcção de um concreto acto médico executado por um profissional da medicina (ciência ou arte médica), que tem em conta as principais características do seu autor, da profissão, da complexidade e transcendência do próprio acto, do estado ou da intervenção do doente, dos seus familiares e da própria organização sanitária – destinado a qualificar o referido acto como conforme ou não com a técnica normal requerida (cfr. L. Martinez/Calcerrada Y Gomez citados por Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues, na sua obra de referência “A negligência médica hospitalar na perspectiva jurídico-penal”, Almedina, 2013, pág.40).
As leges artis medicinae constituem um acervo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis às concretas situações individuais (vide aut. cit., ob cit., pág. 41).
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No caso dos autos, foi imputada à arguida a prática de um crime de homicídio negligente, porquanto, para além do mais, aquando da introdução do trocar, alegadamente, realizada de modo leviano e inábil, teria atingido a bifurcação da aorta e a ilíaca, bem como a laceração do fígado.
Ora, no que concerne a tal factualidade, como acima se evidenciou, não se logrou comprovar, acima de qualquer dúvida razoável, que assim tivesse sido. Na verdade, a arguida, efectivamente, ao introduzir o trocar, instrumento cirúrgico com superfície com capacidade traumática (perfurante), atingiu a bifurcação da aorta, dando origem a uma hemorragia massiva, hemorragia essa que, caso não seja de imediato estancada e o vaso suturado, é causa adequada à morte.
Porém, não se provou que, nesse mesmo acto, tivesse atingido ainda a artéria ilíaca ou lacerado o fígado, sendo certo que estes factos indiciariam a aludida leviandade ou inabilidade. Por outro lado, não ficou demonstrado que a arguida, nesse concreto procedimento, tivesse violado qualquer das leges artis aplicáveis ao caso.
As lesões vasculares são um risco (o mais grave) associado à técnica cirúrgica laparoscópica, designadamente com entrada directa do trocar óptico.
Na verdade, sendo tal entrada necessária, para inserir o laparoscópio (a óptica), através do qual, já sob visão directa do interior do corpo, será possível visualizar, não apenas a realização das restantes portas de entrada, como a introdução das pinças cirúrgicas, como ademais a própria cirurgia, é esse, justamente, o momento mais arriscado da intervenção, o momento inicial de criação da primeira porta de entrada. Ora, por se tratar de uma cirurgia sem incisão profunda (com visão directa do interior do abdómen, não é visível a localização concreta e exacta dos órgãos e vasos. Por isso que só com as maiores cautelas seja possível (ainda que sem garantia absoluta) introduzir o primeiro trocar sem lesionar qualquer estrutura interna. O que é, naturalmente difícil, já que se trata de um instrumento, que como os demais instrumentos cirúrgicos, tem capacidade traumática (mesmo tratando-se de um trocar com ponta de plástico e apenas ligeiramente aguçado), instrumento esse sem o qual não é possível realizar a cirurgia; e, por outro lado, sendo o local correcto de entrada, a zona situada junto ao umbigo, onde a espessura da camada adiposa é mais fina (permitindo um acesso mais fácil à cavidade abdominal) é também menor a distância entre a referida camada e as estruturas internas, designadamente os grandes vasos. É, pois, sempre perigoso, para tais vasos, o acto inicial de introdução do trocar. Tanto mais que não é possível saber, com exactidão, a distância a que os mesmos se encontram, mas apenas calculá-la (cálculos esses que deverão contar com a estrutura corporal da paciente, com a natural lordose da coluna num corpo em posição deitada, e com a movimentação dos intestinos que, como referiu a perita médica, “fogem à frente” do trocar). Não obstante, mesmo com todos os cálculos (de mera previsão se trata), todas as cautelas e com o cumprimento de todas as leges artis, pode não ser possível, dadas as contingências e limitações do próprio tipo de procedimento (admitido pela ciência médica), evitar a lesão visceral ou vascular.
É, assim, imperioso, adoptar todos os procedimentos e técnicas que reduzam aquele risco de lesão. E quais são eles? De acordo com as leges artis, deverá ser dada a inclinação adequada à estrutura física do paciente; deverá ser manuseado o instrumento com cuidado; deverá proceder-se ao levantamento dos tecidos para criar espaço de entrada; não se deve insistir mais do que duas vezes com a mesma técnica; etc.
Não se apurou que a arguida tivesse procedido à introdução do trocar com violação de qualquer dessas regras, o que seria essencial para formar a legítima conclusão de ter sido a lesão da aorta provocada pela violação do dever objectivo de cuidado convocado pelas referidas leges artis. Donde, pese embora o resultado (incisão da bifurcação da aorta), não ficaram preenchidos os demais elementos constitutivos do tipo penal negligente. Nem a arguida violou, comprovadamente, qualquer dever objectivo de cuidado, nem é possível, em consequência, imputar o resultado a qualquer conduta objectivamente descuidada da arguida.
Tratou-se, pois, nos dizeres citados pelo Conselheiro Álvaro Rodrigues (in “A negligência médica hospitalar na perspectiva jurídico-penal”, Almedina, 2013, pág. 243), de um acidente ou de um evento adverso, que corresponde à «ocorrência negativa ocorrida para além da vontade e como consequência do tratamento, mas não da doença que lhe deu origem, causando algum tipo de dano, desde uma simples perturbação do fluxo do trabalho clínico a um dano permanente ou mesmo a morte.»
Como assim, nesta parte, inexiste qualquer ilícito criminal.
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Já não assim, porém, no que concerne à segunda parte da cirurgia.
Com efeito, em consequência da lesão da aorta, o sangue que na mesma circulava foi-se esvaindo pelo orifício criado pelo trocar. Ora, a aorta abdominal é um vaso de grande calibre, com elevada pressão e débito sanguíneos. Assim, iniciou-se o processo hemorrágico, massivo, intra-abdominal, o qual, por necessariamente significativo foi imediatamente sinalizado pelo equipamento de monitorização da paciente. Sinais esses que logo alarmaram a equipa de anestesia, pelo que foram dadas indicações para a arguida parar o procedimento cirúrgico (havia acabado de reintroduzir o trocar), o que esta fez.
E depois de excluída a eventual falha do próprio equipamento – os sinais não constituíam, portanto, um falso alarme – o médico anestesista descreveu à arguida os sinais monitorizados e os que o próprio directamente percebeu: a paciente ficara abruptamente pálida e acusava taquicardia e baixa tensional.
Estes sintomas são compatíveis com uma hemorragia importante. E se era importante, só podia ser devida a lesão dos grandes vasos, lesão essa que está medicamente descrita como uma lesão possível associada à primeira entrada, entrada essa que havia acabado de ser criada pela arguida.
Na presença destes sintomas, que determinam a suspeita da referida lesão dos grandes vasos, ditam as leges artis aplicáveis que se converta imediatamente a cirurgia em curso para uma laparotomia exploratória, através da incisão mais abrangente: a incisão pubo-umbilical, que pode ainda ser alargada, caso seja necessário, até ao apêndice xifoideu, e que permite a visualização ampla de todo o interior do abdómen, bem como o imediato acesso à causa da hemorragia.
Com a adopção desta técnica, seria desde logo visível o coágulo formado e o hematoma intraperitoneal e retroperitoneal, o que levaria à rápida conclusão de se tratar de uma lesão de um dos grandes vasos e, nesta sequência, seria possível iniciar imediatamente o tamponamento da zona provável da lesão até à chegada de um cirurgião geral (que era o procedimento correcto aplicável neste caso, como resulta também das ditas leges artis).
A arguida, porém, começou por efectuar uma incisão transversal, num plano muito inferior ao da lesão, o que apenas lhe permitiu visualizar o coágulo extenso. Logo constatou, porém, que, com aquela incisão, não conseguiria perceber qual a origem da hemorragia (que se manteve desconhecida) e, por isso, qual o local provável da lesão para iniciar o procedimento de compressão, compressão essa que, ademais, não seria viável realizar pela abertura criada com a referida incisão.
Por isso que, dadas as dificuldades sentidas, tivesse a mesma acabado por alargar a incisão inicial, desta feita passando do plano da sua incisão até, aproximadamente, ao umbigo, no sentido ascendente e vertical, ou seja, a pubo-umbilical, que era a incisão que se impunha ter sido feita ab initio.
E aí, sim, logrou concluir tratar-se da lesão dos grandes vasos, só então, porém, começando a compressão da zona provável.
Ora, até à compressão, manobra que, ao colapsar o vaso, é adequada a estancar a hemorragia (quanto ao sangue que ainda circula nos vasos sanguíneos), evitando o vazamento de mais sangue, o mesmo vai jorrando livremente pelo orifício da lesão. Importa insistir, a artéria abdominal é um vaso de grande débito sanguíneo e a lesão da mesma, pela hemorragia que provoca é causa adequada à morte.
Donde, até à sua compressão, não só o sangue continuou a vazar como era, necessariamente, em grande quantidade que assim sucedia.
A arguida, portanto, tendo, em face dos sintomas reportados, decidido iniciar a exploração da causa desses sintomas através da incisão de pfannenstiel, preteriu o procedimento correcto e adequado a conter a hemorragia (e a obviar, assim, ao agravamento da situação e do processo causal da morte já iniciado com a lesão pelo trocar). Violou, pois, as leges artis aplicáveis ao caso.
Fê-lo, certamente, em virtude de um erro de diagnóstico (respeitante aos sintomas evidenciados pela paciente), erro médico esse que é penalmente relevante, por ter resultado de uma transgressão de regras tidas como recomendáveis ou seguras – e, portanto, não desculpável – que podia ter sido evitado se a arguida tivesse seguido as regras definidas, e que revelou a sua imprudência. À arguida era exigível, desde logo que tivesse suspeitado tratar-se de lesão dos grandes vasos. Mas ainda que assim não fosse, sempre a mesma estava obrigada a equacionar essa hipótese, por ser a mesma previsível e ser a que mais gravemente poria em causa o bem jurídico vida (bem este protegido e razão de ser das regras de intervenção médica) e, portanto, proceder à incisão que acautelasse o maior perigo previsível – a incisão pubo-umbilical.
Ora, o erro de diagnóstico é susceptível de conexão causal adequada com a lesão verificada, funcionando, então como elemento da factualidade típica relevando para a imputação objectiva, na medida em que a tal erro se deve a criação ou potenciação do risco não permitido que se concretiza no resultado (vide Álvaro Rodrigues, ob cit., pág. 272). E ficou demonstrada essa conexão causal.
Na verdade, durante todo o período de tempo que decorreu, desde o início da pfannenstiel até ao início da compressão, o sangue foi continuando a correr (e quanto maior a perda sanguínea maior o risco de morte; sendo ainda que tanto maior seria a perda quanto maior fosse a lesão, lesão essa que, por sua vez, poderia ir aumentando por força da pressão do próprio sangue). O tempo necessário para a arguida fazer aquela aludida incisão, detectar o coágulo extenso já formado, drená-lo, e passar para a pubo-umbilical, por poucos minutos que fossem, foi o tempo em que a artéria abdominal continuou, sem qualquer intervenção obstaculizante, a jorrar sangue. E, dada a pressão e a volémia sanguíneas desta artéria, sempre seria significativo o volume de sangue a esvair-se a cada minuto que ia passando. Como referiu a perita médica, cada minuto conta. Cada minuto era essencial. A arguida, porém, desperdiçou, numa incisão desadequada, minutos, durante os quais o vaso foi continuando a sangrar.
Ora, a incisão pubo-umbilical constituía, como se disse, o procedimento técnico-cirúrgico adequado, pois que permitiria interromper o processo causal da morte (iniciado com a lesão da artéria), sendo imposto pelas leges artis e consubstanciando um dever objectivo de cuidado.
A paciente veio a falecer (verificou-se o resultado morte convocado pelo tipo penal em evidência, resultado esse cuja evitação que constituía a ratio da norma/dever objectivo de cuidado que impunha a opção imediata pela incisão pubo-umbilical), por causa da hemorragia sofrida em consequência da retardada compressão do vaso, retardamento esse decorrente da conduta da arguida, que ao invés de lançar, de imediato, mão da incisão pubo-umbilical, como devia, antes decidiu recorrer à incisão pfannenstiel. O resultado é, pois, consequência da acção empreendida pela arguida, acção essa que incrementou, para além dos limites socialmente aceitáveis, o perigo para a vida da paciente, perigo esse que se veio a verificar.
A arguida, que devia ter realizado de imediato a dita incisão pubo-umbilical, estava em condições de a fazer. Com efeito, a mesma tinha os recursos (internos e materiais) para a ter levado a cabo. Sabia como se faz este tipo de incisões, está para tanto habilitada e tinha experiência em fazê-las. A arguida podia, pois, observar o cuidado exigido para evitar a verificação do resultado.
A conduta apurada (a incisão a que a arguida procedeu) é apta à criação de um risco proibido para a vida da paciente.
E o resultado causado foi a concretização do risco não permitido inerente àquela conduta.
Por conseguinte, importa concluir pela imputação objectiva do resultado morte à conduta da arguida.
A arguida agiu, pois, negligentemente.
Nestes termos, importa concluir pelo preenchimento de todos os elementos constitutivos do tipo penal imputado à arguida e como assim, decide-se condená-la pela sua prática.

A negligência, definida no art. 15.º do CP, subjacente ao ilícito por que a recorrente foi condenada, traduz-se na violação de um dever de cuidado, por acção ou omissão, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que, segundo as circunstâncias, o agente podia ter cumprido.
«O tipo de ilícito do facto negligente considera-se preenchido por comportamento sempre que este discrepa daquele que era objectivamente devido em uma situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, para deste modo se evitar uma violação juridicamente proibida» (Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, tomo I – “Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime”, Coimbra Editora, 2004, pág. 634).
A ordem jurídica, ao impor esse dever de cuidado, está a afirmar, no plano normativo, o verdadeiro sentido onto-antropológico que liga o agir entre os homens.
E com realce, note-se, na actividade médica, que, por natureza, é potenciadora de diversos riscos, impondo aos profissionais um dever jurídico especial, obrigando-os à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, assumindo nesse sentido a posição de garante de evitar a verificação de eventos danosos para a saúde e vida do doente (Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, “Responsabilidade Médica em Portugal”, in BMJ n,º 332, pág. 64), ainda que estejamos perante uma obrigação de meios, não de resultado (Álvaro Rodrigues, in “Responsabilidade Médica em Direito Penal”, Almedina, 2007, pág. 62), à luz das designadas leges artis, definidas, conforme ao acórdão desta Relação de Évora de 08.04.2010, no proc. n.º 683/05.5TAPTG.E1, rel. Correia Pinto, in www.dgsi.pt, como as regras da arte …. normas escRs (não jurídicas) de comportamento, fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos e destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade, designadamente, a evitar o desenvolvimento de perigo ou a ocorrência de danos que tais ofícios são naturalmente hábeis a produzir.
Essas regras da arte constituem um complexo de regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais (…) Regras de índole não exclusivamente técnico-científicas, mas também deontológicas ou de ética profissional (Álvaro Rodrigues, in “A Negligência Médica Hospitalar na Perspectiva Jurídico-Penal, Almedina, 2013, pág. 41).
Também como referido por Faria e Costa, in “O Perigo em Direito Penal”, Coimbra Editora, 1992, págs. 529 e seg., 530, «As regras do cuidado cristalizadas nas leges artis medicinae sem dúvida que são, primariamente regras de cuidado, na medida em que visam acautelar e defender os bens jurídicos que a ordem penal considera relevantes (…), mas, para além disso, perfilam-se com uma densidade normativa que de modo algum pode ser ignorada, sob pena de, se assim se proceder, amputarmos uma parte substancial da realidade. Com efeito, as leges artis médicas visam, não só a manutenção ou a não diminuição dos bens jurídicos, como também prosseguem a finalidade de aumentarem esses mesmos bens jurídicos».
Todavia, conforme Helena Moniz, in “ Risco e negligência na prática clínica”, Revista do Ministério Público n.º 130, Abril/Junho.2012, pág. 94, «os comportamentos violadores das leges artis apenas constituem um comportamento típico se a violação das regras criou um perigo proibido de produção do resultado, e este corresponde à materialização do perigo (proibido) criado».
Como motivado na sentença e de acordo com o acervo provado, pelas boas práticas médicas, a aqui recorrente devia ter realizado de imediato a dita incisão pubo-umbilical, estava em condições de a fazer. Com efeito, a mesma tinha os recursos (internos e materiais) para a ter levado a cabo. Sabia como se faz este tipo de incisões, está para tanto habilitada e tinha experiência em fazê-las. A arguida podia, pois, observar o cuidado exigido para evitar a verificação do resultado.
A conduta apurada (a incisão a que a arguida procedeu) é apta à criação de um risco proibido para a vida da paciente.
E o resultado causado foi a concretização do risco não permitido inerente àquela conduta.”.
Na verdade, não tendo previsto que a hemorragia se tratasse dos grandes vasos, a recorrente incorreu em erro de prognóstico, quanto à evolução da situação, intimamente ligado à averiguação diagnóstica, optando por realizar procedimento que não era efectivamente apropriado à necessidade de verificar a causa da hemorragia perante a gravidade que lhe era visível através dos sintomas que a paciente apresentava.
O seu erro foi relevante uma vez que, além de se ter traduzido em violação das leges artis, incrementou o risco permitido, excedendo a margem tolerada aceite na actividade médica.
Conforme Álvaro Rodrigues, in “Responsabilidade Médica em Direito Penal” cit., págs. 277/278, como é opinião dominante da generalidade da doutrina especializada, só se pode falar em ilícito imprudente, quando a acção (conduta ou comportamento) se traduza na criação de um risco não permitido (incremento ou potenciação de risco), previsível ou cognoscível pelo agente e desde que se estabeleça a relevância jurídica penal de tal conduta, que só existirá quando o resultado lhe for objectivamente imputável, isto é, quando se verifica um resultado danoso mediante a actualização do risco (…) Em síntese: o risco será não permitido ou intolerado quando for apto a causar lesão à vida ou integridade física do paciente e for exigível e possível ao agente (médico) a sua evitação. E, desta forma, só haverá negligência penal médica se a violação do dever geral objectivo de cuidado tiver criado um risco não permitido e se o resultado se plasmar na concretização ou actualização de tal risco cabendo no âmbito da protecção da norma.
Tal omissão de cuidado da recorrente não se dissocia do resultado verificado, existindo entre ambos o necessário nexo de causalidade, já que a decisão por que se pautou, perante as apuradas condições, incrementou a possibilidade do resultado se ter verificado.
O subjacente conceito de causalidade tem em vista a apreciação da causa adequada a produzir o resultado, seja por acção, seja por omissão, perante a qual essa adequação tem de ser aferida segundo um juízo de “prognose póstuma”, o que significa, conforme Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 310, que o juiz se deve deslocar mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais da experiência e o normal acontecer dos factos, a acção praticada teria como consequência a produção do evento. Se entender que a produção do resultado era improvável ou de verificação rara, a imputação não deverá ter lugar.
E, como escreveu Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, Almedina, 2.ª edição, 1973, pág. 748. Em condições regulares, desprendendo-nos da natureza do evento constitutivo da responsabilidade, dir-se-ia que um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele, aqui entroncando a previsão ou previsibilidade do resultado, relativamente à qual se debruça a sentença em termos bastantes.
Acompanhando Claus Roxin, in “Problemas Fundamentais de Direito Penal”, Veja, 1986, págs. 257 e seg., a questão fundamental e decisiva é a seguinte: como se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente? Como método de resposta, proponho o seguinte procedimento: examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de actuar do arguido, e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorrecta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente. Se não houver aumento do risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e, consequentemente, deve ser absolvido.
Deste modo, ainda que o resultado pudesse vir a ocorrer se outro fosse o procedimento da recorrente, os seus conhecimentos e os meios de que dispunha exigiam-lhe diferente atitude e de acordo com as leges artis, que se revelasse consentânea com o obviar a que esse resultado se viesse a verificar, sendo para si, dada a gravidade e a emergência da situação, necessariamente previsível que acontecesse, o que, contudo, não valorizou como devia ao tomar a sua opção.
No homicídio por negligência, para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade não basta a sua existência fáctica sendo indispensável que possa imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente; ou seja, a responsabilidade só se verifica quando existe nexo de causalidade entre a conduta do agente e o evento ocorrido e serão relevantes não todas as condições, mas só aquelas que segundo as máximas da experiência, a normalidade do acontecer e portanto segundo o que é em geral previsível são idóneas para produzir o resultado; consequências imprevisíveis ou de verificação rara serão juridicamente relevantes (acórdão do STJ de 05.11.1997, in CJ, Acs. STJ, ano V, tomo III, pág. 227).
Dentro de todo o descrito circunstancialismo, que o acervo fáctico provado reflecte, a subsunção ao crime por que foi a recorrente condenada não merece censura e afastado fica, inevitavelmente, o preconizado enquadramento na vertente da atipicidade prevista por via do art. 150.º do CP.

E) - da redução da medida da pena:
A recorrente invoca que a medida da multa fixada, quer quanto ao número de dias, quer quanto à quantia diária, é desproporcional e injusta.
No sentido da sua redução, apela, por um lado, a que a sentença considerou as necessidades de prevenção especial como pouco significativas e o grau médio de prevenção geral e, por outro, a que a referência ao valor de 16.000 euros ilíquidos no facto provado em 50. tem de ser entendida como reportada à sociedade de que é sócia, conforme aos recibos de vencimento juntos aos autos e em que o tribunal se apoiou e, assim, com atenção a que forçosamente a sociedade tem encargos próprios e não corresponde ao efectivamente por si recebido.
Note-se, desde logo, que, relativamente a outras considerações e que não estejam reflectidas na matéria dada como provada, as mesmas não são de atender.

Nesta sede, resulta da sentença:
Subsumidos os factos ao direito importa seguidamente determinar a espécie e a medida da pena aplicável ao caso concreto.
O crime praticado pela arguida é punível, em abstracto, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (a fixar entre 10 e 360 dias, nos termos conjugados do art.º 137.º, n.º 1 e do art.º 47.º, n.º 1, ambos do CPenal). Pese embora se trate da violação do bem jurídico supremo, a vida, o legislador ponderou na diversa valoração/carga axiológica da conduta homicida negligente, razão pela qual previu, como espécies de penas aplicáveis, não apenas a prisão, mas também a multa.
As penas têm por finalidades quer a protecção de bens jurídicos, quer a reintegração do agente na sociedade.
Ora, os parâmetros fixados pelo legislador no que refere à operação de determinação da pena encontram-se consignados nos art.sº 71.º e 40.º do CPenal: as exigências de prevenção geral e especial (atendíveis como limiar a partir do qual já se justifica e impõe uma punição) e a culpa do agente (atendível como limite máximo da pena aplicar).
Quer tal significar que a opção entre uma pena privativa da liberdade e uma pena não privativa da liberdade (ou seja, a espécie da pena) será ditada pelas finalidades preventivas (quer de prevenção geral, onde imperam a tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias em ordem à defesa do ordenamento jurídico; quer especial, na vertente da socialização) e não por uma qualquer finalidade de compensação da culpa, a qual apenas deverá ser atendível na operação subsequente, de quantificação/medida da pena, funcionando como limite inultrapassável do respectivo quantum (como explica o Prof. Figueiredo Dias, na sua obra de referência “Direito Penal Português – Parte Geral – As Consequências Jurídicas do Crime”, pág 331 a 333).
Assim, quando ao crime sejam aplicáveis, alternativamente, uma medida privativa e uma medida não privativa da liberdade (tal como sucede com a multa), o Tribunal deverá dar preferência à segunda sempre que esta proteja adequadamente os bens jurídicos e permita ainda a reintegração do agente na sociedade (cfr. art.º 70.º do Código Penal).
Ora, tendo em atenção o caso concreto e os factos apurados é de concluir serem de grau médio as exigências de prevenção geral. Já no que concerne às exigências de prevenção especial, importa notar que a arguida se encontra social, profissional e familiarmente inserida e não regista antecedentes criminais, pelo que as necessidades de ressocialização serão pouco significativas.
Em face do exposto, considera-se que a aplicação de uma pena de multa realiza, de modo adequado e suficiente as finalidades das penas que no caso se fazem sentir, razão pela qual se opta pela sua aplicação.
Nesta conformidade, a pena concreta a aplicar à arguida será determinada, dentro da moldura penal aplicável (de 10 a 360 dias), considerando todas as circunstâncias que, não fazendo parte daquele tipo, deponham a favor ou contra a mesma. Assim, e ao abrigo do n.º 2 do art.º 71.º do CPP cumpre atender:
- Contra a arguida -
a) grau de ilicitude: é de grau médio (a arguida acabou, ainda assim, por adoptar a incisão correcta, poucos minutos após a pfannenstiel e iniciou, em consequência, a manobra de compressão);
b) Carácter negligente da conduta: que é de intensidade significativa (a arguida desvalorizou os sintomas dados, optando pela pfannenstiel, ao invés da pubo-umbilical, quando devia ter logo adoptado pela incisão mais ampla)
- A favor da arguida -
c) A arguida não tem antecedentes criminais, não havendo notícia de ter antecedentes disciplinares no exercício da medicina.
d) A arguida é considerada pelos colegas como sendo uma boa profissional e neste momento é a responsável pela maternidade do HPA, tendo suspendido a realização de cirurgias desacompanhada.
Em face de tudo quanto fica exposto e devidamente ponderado, afigura-se adequado punir a prática deste crime com a pena de 200 dias de multa, à tA P diária de 100 euros (atenta a situação económica da arguida apurada nos autos), num total de 20.000 euros.

Como emerge do art. 40.º, n.º 1, do CP, a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, elementos decisivos para a determinação da pena concreta, pois constituem as finalidades a que a punição se subordina.
Na protecção de bens jurídicos, vai ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afectem bens e valores, ou seja, de prevenção geral. A previsão, a aplicação ou a execução da pena devem prosseguir igualmente a realização de finalidades preventivas, que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes, isto é, uma finalidade de prevenção especial.
As finalidades das penas - de prevenção geral positiva e de integração e de prevenção especial de socialização - conjugam-se na prossecução do objectivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.
Segundo Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, em “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, AAFDL, 1998, págs. 25 e segs., e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, Almedina, 2000, págs. 32 e seg.), a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral.
Ainda, conforme Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 214, culpa e prevenção são (…) os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena.
A medida da culpa funciona como pressuposto axiológico-normativo de qualquer pena, nos termos do n.º 2 daquele art. 40.º, o que significa que não pode exceder, na sua medida, o grau de culpa que se apresente.
Este, no essencial, reconduz-se a um juízo de valor, de apreciação, que enuncia o que a situação em análise, em todos os seus elementos - factuais, do agente, da vítima, da sociedade -, vale aos olhos da consciência e do que deve ser do ponto de vista da sua validade lógica, ética e do direito (acórdão do STJ de 10.04.1996, in CJ Acs. STJ ano IV, tomo II, pág. 168).
Assim, no caso vertente, será a finalidade de tutela e protecção do bem jurídico em causa que há-de constituir o motivo fundamento da pena; de tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade da norma e do valor concretamente afectado.
Por seu lado, a finalidade de reintegração da recorrente há-de ser, também, no caso, prosseguida pela imposição de pena que, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Tais parâmetros foram focados pelo tribunal.
Adoptado legalmente o modelo ou sistema de dias de multa - em que a sua determinação concreta se faz em dois momentos distintos, obedecendo as respectivas operações a diferentes critérios e teleologia, sem que, contudo, se perca de vista a globalidade da sua conjugação atenta a natureza eminentemente económica que lhe é característica -, afigura-se que, em função da culpa e das exigências de prevenção (art. 47.º, n.ºs 1 e 2, do CP), a medida fixada é proporcional e equilibrada, correspondendo a resposta punitiva consentânea.
Reflecte ponderação devidamente encontrada através de, como vem sendo entendido, um “quantum” que varia entre um ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se até atingir o limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar, sem descurar pontos de vista de socialização.
Com efeito, perante os factores que se deparam, sobressaindo grau da ilicitude e da negligência relevantes e atentando na dimensão do desvalor da acção e na importância do desvalor do resultado, que vieram a incidir no bem supremo que é a vida humana, não obstante a recorrente se mostre inserida e não tenha antecedentes criminais, o número de dias de multa (200) é proporcional, mormente, à medida da culpa, tendo-se, aliás, quedado por apenas ligeiramente superior ao equivalente ao terço do limite máximo.
De modo algum se aceita que esse número seja excessivo, sendo que a argumentação trazida pela recorrente foi atendida, e bem, pelo tribunal a quo para suportar a opção por pena não privativa da liberdade, não devendo, por isso, ainda ser valorizada quanto à medida concreta aplicada.
No tocante ao quantitativo diário, o mesmo deve atentar na situação económica e financeira do condenado e nos seus encargos pessoais, entre o mínimo de 5 euros e o máximo de 500 euros, nos termos do art. 47.º, n.º 2, do CP.
Ora, em razão do provado em 50. e 51. (sendo que neste último, como decorre do documentado, de fls. 737/739, o valor se reporta a cada um dos meses entre Fevereiro e Abril de 2014), o montante diário fixado (100 euros) representa adequado sacrifício que à recorrente deve ser exigido, sem que revele excesso intolerável.
O mesmo se diga relativamente ao apurado valor global da multa.
Na verdade, à pena de multa, para que cumpra a sua função, dentro do desiderato de verdadeira e autónoma pena, tem de ser conferida a intrínseca dignidade, sob pena de ficar desvirtuada como sanção criminal e até, poder ser vista como sintoma de impunidade.
Não se aceita, pois, que a pena de multa deixe de ser uma alternativa à prisão para passar a ser uma alternativa à absolvição, ou seja, configurar uma forma disfarçada de absolvição (Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 156).
Como tal, tem de representar algum sacrifício para o condenado, sob pena de se desacreditar a pena (acórdão do STJ de 02.10.1997, in CJ Acs. STJ, ano V, tomo III, pág. 183).
Afigura-se, pois, de manter a medida cominada à recorrente.

1 - Recurso da arguida/demandada:
F) - da ausência de pressupostos para a obrigação de indemnização civil:
G) - da redução dos montantes fixados a título de indemnização:
Vem a recorrente pôr em causa que se verifiquem os requisitos de que depende a obrigação de indemnização civil, por referência ao disposto no art. 483.º do CC.
Transparece que o faz como consequência de modificação da matéria de facto.
Ora, para além de que esta não veio a ser alterada, como questão prévia se coloca a ilegitimidade da recorrente para, neste âmbito, recorrer, dado que a respectiva decisão não foi contra si proferida, mas sim contra a seguradora A P, para quem transferira a sua responsabilidade por danos causados a terceiros no exercício da sua profissão.
Situação idêntica sucede com a preconizada redução dos montantes indemnizatórios.
Assim, por ausência de legitimidade (art. 401.º, n.º 1, alínea c), do CPP a contrario sensu), o recurso nesta parte não é conhecido.

2 - Recurso de A P:
C) - da ausência de requisitos para a sua responsabilização civil:
A recorrente contesta que se verifiquem os requisitos que impliquem a sua responsabilização civil, invocando ausência de ilicitude, de culpa e de nexo de causalidade entre os factos e os danos.
Quanto à primeira, refere que, pela conduta da arguida, não se mostram violadas as leges artis da profissão, uma vez que, na sua perspectiva, não era possível saber exactamente qual o vaso atingido e a incisão de Pfannenstiel seria suficiente para chegar às ilíacas e outros vasos a nível inferior, sendo que, verificada a existência de coágulo de sangue provindo da zona superior do abdómen, efectuou a incisão pubo-umbilical, assim seguindo critério lógico de exploração e detecção do local da lesão, em tempo muito curto, sem que se esteja demonstrado que apenas esse último tipo de incisão seria suficiente para o efeito.
No tocante à segunda, sustenta que à arguida não era exigível comportamento diverso do que adoptou, já que, inexistindo erro de diagnóstico, a lesão poderia ser nas ilíacas.
Relativamente à terceira, aduz que as manobras de salvação levadas a cabo pela arguida não foram causa da morte de VA.

No que aqui releva, resulta da sentença:
Veio o assistente e demandante JMSF deduzir pedido cível contra a arguida e contra o Hospital A, pedindo a condenação solidária dos mesmos no pagamento da quantia total de 410.000 euros, a título de indemnização pelos danos causados com a sua conduta, dos quais 100.000 euros a título de indemnização pelo dano morte; 100.000 euros a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante; e 210.000 euros pelos danos patrimoniais pela perda futura de rendimentos.
Ora, nos termos estatuídos pelo art.º 483.º do CCivil «aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.»
Da análise do preceito convocado - e pese embora a divergência doutrinária na enunciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual - decorre claramente que são elementos constitutivos da responsabilidade civil extracontratual: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante (como regra, em virtude do disposto no n.º 2 do art.º 483º do Cód. civil), o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano neste sentido, vide Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, Almedina, 5ª edição, p. 517; Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 5ª edição, p. 446..
Na génese, pois, da responsabilidade emergente de factos ilícitos está uma conduta voluntária do agente lesante, ou seja, um facto dominável ou controlável pela vontade, embora não necessariamente precedido de uma representação ou prefiguração mental dos efeitos desencadeados pela actuação em causa.
Porém, para que, pelos efeitos prejudiciais ou danosos do facto voluntariamente praticado, ao lesante seja imputada a correspondente responsabilidade, necessário se torna que a conduta por ele assumida se traduza numa actuação desconforme com o ordenamento jurídico e, neste sentido, reprovada pelo Direito.
Entre os direitos que se consideram, encontra-se seguramente incluído, e logo em primeira linha, o direito à vida, constitucionalmente consagrado e de onde promanam todos os demais direitos reconhecidos a um ser humano.
Ora, em face dos factos apurados nos presentes autos verifica-se que a vítima VA faleceu por causa da hemorragia provocada pelas lesões que a mesma sofreu na aorta, decorrentes da introdução do trocar, hemorragia essa que não foi atempadamente detectada e estancada pela arguida, com isso lhe causando a morte, o que sucedeu em virtude de uma actuação negligente.
Tal comportamento é civilmente ilícito, conforme, de resto, sem mais decorria já afirmação da respectiva relevância criminal atento o sentido unilateral em que consensualmente é entendido o princípio da unidade da ordem jurídica.
Para além de ilícita, a conduta é culposa, uma vez que sobre a mesma pode legitimamente incidir um juízo de censura e de reprovação, na perspectiva de que o comportamento é ilícito sendo que, em face das concretas circunstâncias, podia e devia ter agido de outro modo.
É assim a arguida a responsável pelos danos causados.
Tal como se apurou, porém, a arguida transferiu para a Seguradora A P a sua responsabilidade civil. Será sobre esta, portanto, que recairá a obrigação de suportar o pagamento das quantias que de seguida se fixarão, estando abrangidas pela apólice junta aos autos.

Analisando a argumentação trazida pela recorrente, já se vê que, não tendo impugnado a matéria de facto e falecendo legitimidade para o fazer ao nível da matéria criminal, não pode a mesma proceder.
As reservas que suscita relativamente àqueles pressupostos da responsabilidade civil, por referência ao art. 483.º do CC, só teriam razão de ser se outra tivesse sido a decisão quanto aos factos pertinentes, sendo que esta se apresenta cabalmente fundamentada.
A preterição do adequado procedimento, com vista a detectar a causa da hemorragia, segundo as regras da arte, nas circunstâncias que ficaram provadas, consubstanciou-se em ter optado por manobra que não era idónea à exploração da zona dos grandes vasos, podendo e devendo actuar de forma diversa, por maioria de razão perante os sintomas da paciente que lhe foram perceptíveis e a inviabilidade de detecção que a incisão de Pfannenstiel, por si só, propiciaria, com isso criando um risco para a vida daquela, que se veio a revelar irreversível.
Ainda que a lesão fosse nas ilíacas, outra conclusão não se extrairia dada a matéria de facto provada, pelo que, na situação, essa actuação da arguida contende com as exigências que se lhe impunham, merecendo censura.
Também, tal como decorre da sentença, “verifica-se que a vítima VA faleceu por causa da hemorragia provocada pelas lesões que a mesma sofreu na aorta, decorrentes da introdução do trocar, hemorragia essa que não foi atempadamente detectada e estancada pela arguida, com isso lhe causando a morte”, donde resulta demonstrada a influência directa, ainda que de modo negligente, do seu procedimento, enquanto conjunto dos actos que realizou, no resultado ocorrido.

D) - da redução dos montantes fixados a título de indemnização:
Insurgindo-se contra os montantes fixados neste âmbito, a recorrente invoca, no essencial:
- que ao dano da morte de VA foi atribuído valor exagerado, em atenção às condições económicas da sociedade e sem que se deva considerar que, tratando-se de seguradora, deva o mesmo ser superior aos casos em que isso se não verifica, pugnando pela sua fixação em 50.000 euros, à luz dos critérios da jurisprudência;
- que o dano não patrimonial sofrido pelo demandante, por razões idênticas, deve ser fixado em 25.000 euros;
- que, sem que se provasse o grau de incapacidade de que está o demandante afectado e qual o montante com que a vítima contribuía para a economia doméstica e/ou as despesas do demandante, os danos futuros atribuídos, resultantes da perda de rendimentos deste pela morte de VA, não repercutiram que ao valor mensal de salário que esta auferia haveriam de ser deduzidos os descontos legais para IRS e Segurança Social, redundando em cerca de 800 euros, que VA tinha de gastar algum dinheiro consigo própria, em despesas estRmente pessoais, considerando-se razoável atribuir 250 euros, que desse rendimento sobrante, de 550 euros mensais, o demandante receberia, no máximo, 150 euros, valor este que, multiplicado por 456 meses (38 anos), redunda em 68.400 euros, que, pago de uma só vez, haverá de deduzir-se margem de juro aplicável a longo prazo, não inferior a 3,5%; preconiza, então, que seja fixado em 50.000 euros.

Da sentença, decorre fundamentado:
Dos danos a indemnizar pela Seguradora:
Ora, para que, pela via da responsabilidade civil por factos ilícitos, sobre o lesante venha a impender a obrigação de indemnizar é necessário que, na sequência da actuação por si desenvolvida, alguém tenha sido concretamente prejudicado.
Em sentido jurídico-civil, o dano surge como a supressão de vantagens tuteladas pelo Direito, traduzida na ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, de natureza patrimonial e não patrimonial, consoante haja ou não possibilidade de uma correspondente avaliação pecuniária.
No que concerne aos danos não patrimoniais, correspondendo estes aos que atingem bens que não integram o património do lesado, serão, por natureza, insusceptíveis de avaliação pecuniária, razão pela qual a obrigação de os ressarcir terá mais uma natureza compensatória do que indemnizatória. A indemnização por danos não patrimoniais tem, pois, por finalidade compensar desgostos e sofrimentos suportados pelos lesados.
Como se escreve no Ac. STJ de 15.04.2009, in www.dgsi.pt, os danos não patrimoniais são os insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, dos quais resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização, assumindo o seu ressarcimento uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória ou de pena privada.
A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais deverá circunscrever-se, nos termos do art.496º do Cód. Civil, àqueles danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito, como sucede in casu.
O montante da compensação a atribuir por danos não patrimoniais deverá ser fixado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado e demais circunstâncias que no caso se justifiquem (cfr. arts. 496º, n.º3 e 494º, ambos do Cód. Civil). Note-se, porém, que no caso da demandada se tratar de uma seguradora, tem a jurisprudência vindo a entender que a limitação decorrente da situação económica do lesante não lhe é aplicável (vide Ac. STJ de 27.10.2010, in www.dgsi.pt).
De igual modo, deverá ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência e do bom senso. De qualquer modo, e segundo o entendimento que vem sendo jurisprudencialmente propugnado, a indemnização por danos não patrimoniais, para corresponder actualizadamente ao comando do art.º 496º do Cód. Civil e constituir efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa (cfr. Ac. do STJ de 11.10.94, CJSTJ, T.III, pg.89, e, mais recentemente, Ac. do STJ de 28-11-2013, acessível in www.dgsi.pt).
Sendo estes os critérios que regerão a determinação do montante indemnizatório, importa relevar à consideração a gravidade das consequências que emergiram dos factos e a conexão entre a mesma e os danos invocados.
Importa ainda referir que se tem entendido, doutrinária e jurisprudencialmente, maxime após o acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência de 17-03-1971 (BMJ 205.º/150), que, em caso de morte, do art.º 496.º, n.ºs 2 e 3 do CC resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis:
- o dano pela perda do direito à vida;
- o dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte;
- o dano sofrido pela vítima antes de morrer (os quais, porém, no caso concreto não foram peticionados, pelo que não se conhecerão de eventuais danos deste jaez).
É ainda consensual a ideia de que só são indemnizáveis os danos não patrimoniais que afectem profundamente os valores ou interesses da personalidade física ou moral, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objectivo, embora tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, mas afastando-se os factores subjectivos, susceptíveis de sensibilidade exacerbada, particularmente embotada ou especialmente requintada, e apreciando-se a gravidade em função da tutela do direito; o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
Relativamente aos casos de morte da vítima, como se escreve, Ac. STJ de 15.04.2009, in www.dgsi.pt, importa atender ao círculo restrito de pessoas a esta ligados por estreitos laços de afeição, a quem a lei concede reparação quando pessoalmente afectadas, por isso, nesses sentimentos. Neste caso, ali se prossegue, «os danos destas vítimas “indirectas” emergem da dor moral que a morte pessoalmente lhes causou, havendo lugar a indemnização em conjunto e jure proprio ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos, na falta destes, aos pais, e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representarem – art. 496.º, n.º 2, do CC. Está em causa um dano especial, próprio, que os familiares da vítima sentiram e sofreram com a morte do lesado, contemplando o desgosto provocado pela morte do ente querido. A origem do dano do desgosto é o sofrimento causado pela supressão da vida, sendo de negar o direito à indemnização em relação a quem não tenha sofrido o dano. (…). Salvo raras e anómalas excepções, a perda do lesado é para os seus familiares mais próximos causa de sofrimento profundo, sendo facto notório o grave dano moral que a perda de uma vida humana traz aos seus familiares, às pessoas que lhe são mais chegadas. (…) Trata-se de um dano não patrimonial natural, cuja indemnização se destina a compensar desgostos que, por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados nem quesitados, mas só pedidos. É pacífico que um dos factores a ponderar na atribuição desta forma de compensação será sempre o grau de proximidade ou ligação entre a vítima e os titulares desta indemnização. Na sua determinação «há que considerar o grau de parentesco, mais próximo ou mais remoto, o relacionamento da vítima com esses seus familiares, se era fraco ou forte o sentimento que os unia, enfim, se a dor com a perda foi realmente sentida e se o foi de forma intensa ou não. É que a indemnização por estes danos traduz o “preço” da angústia, da tristeza, da falta de apoio, carinho, orientação, assistência e companhia sofridas pelos familiares a quem a vítima faltou».
Ora,
1. Do dano pela perda do direito à vida
Pede o demandante a condenação no pagamento da quantia de 100.000 euros, devidos pela morte causada à vítima.
O dano resultante da perda da vida tem carácter autónomo, sendo a reparação deste dano tratado como um caso especial de indemnização, atribuindo-se a determinadas pessoas um direito próprio de serem indemnizadas, abstraindo-se de regras sucessórias (cfr. Ac. STJ, de 18.09.2012, in www.dgsi.pt).
O dano resultante pela perda da vida é o prejuízo supremo, configurando a lesão de um bem superior a todos os outros. E a indemnização, porque visa oferecer ao lesado uma compensação que contrabalance o mal sofrido, deve ser significativa, e não meramente simbólica, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de compensação.
Na determinação do quantum compensatório pela perda do direito à vida importa ter em conta a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais, e, no que respeita à vítima, a sua vontade e alegria de viver, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, incluindo a sua situação profissional e sócio-económica (cfr. Ac. STJ de 23-02-2011, in www.dgsi.pt).
Ora, provou-se que VA tinha 27 anos de idade, uma mulher ainda jovem, portanto, a qual tinha casado pouco anos antes (em 2008), vivendo harmoniosamente com o seu marido, com quem mantinha uma relação afectiva muito próxima e com quem planeava ter filhos (fora por isso, justamente, que procurara a arguida, para efectuar um tratamento que a ajudasse a concretizar o seu sonho de ser mãe), era ainda uma esposa dedicada ao seu marido (de quem cuidava e o qual dependia de si para tarefas diárias pessoais, já que a mesma era quem o ajudava a vestir-se, quem o conduzia a consultas, etc, uma vez que o mesmo ficara incapacitado do seu braço como consequência de um acidente de trabalho), sendo ainda uma pessoa alegre e saudável. Mais exercia as suas funções como enfermeira, no IDT, auferindo, em média, cerca de 1.100 euros mensais, valor esse com o qual contribuía para os encargos da vida familiar, recebendo o seu marido um valor muito inferior (cerca de 350 euros).
VA morreu, pois, na “flor da vida”, durante o tratamento pelo qual tanto ansiara para poder concretizar o seu sonho e o do seu marido de ter filhos, formulando o feliz projecto de viver uma vida familiar plena e preenchida (com o seu marido e os filhos que pudessem vir a ter), desempenhava uma profissão pela qual se havia esforçado em alcançar; acabara de conseguir um vínculo efectivo ao serviço público (em Fevereiro de 2011); exercia funções de meritoso relevo social e numa instituição de apoio aos toxicodependentes. A sua perda, naturalmente, causou um profundo impacto na vida daqueles com quem a mesma tinha uma relação afectiva profunda, especialmente, na vida do seu marido, mas também na restante comunidade.
Tudo visto e ponderado, afigura-se ajustada uma indemnização de 70.000 euros referente ao dano morte, quantia esta em cujo pagamento se condena a seguradora demandada, a qual não se mostra excessiva, tendo em conta as circunstâncias concretas apuradas e os valores jurisprudencialmente aceites que, não deverão ser miserabilistas, improcedendo, porém, quanto ao demais.
2. Do dano sofrido pelo marido da vítima com a sua morte
Mais pede o demandante uma indemnização pelos danos sofridos, em face da dor e abalo sofridos com a morte da sua esposa, no montante de 100.000 euros.
Ora, o impacto emocional e psicológico sofrido pelo demandante, como viúvo, é um dano não patrimonial que, pela sua gravidade, merece a tutela do direito, cfr. art.º 496.º, n.º 1 do CC.
E, de facto, provou-se que, ante a notícia do falecimento da sua jovem esposa, mulher com quem havia ainda recentemente casado e com quem planeava passar o resto da sua vida, juntamente com os filhos que pudessem vir a ter (com os quais sonhavam cada vez mais intensamente, ante a expectativa criada pela possibilidade de tratamento do seu problema de infertilidade); com a qual vivia em feliz harmonia, a quem amava, e de quem dependia no seu dia-a-dia e também economicamente (já que era a V que mais contribuía para as despesas domésticas, por ser superior o valor do seu salário), sofreu o demandante um profundo e sentido pesar, com o fim abrupto e inesperado de toda uma vida projectada a dois, que ruiu, inesperadamente. O demandante sofreu, pois, profundo choque e tristeza, tanto maior quanto menos esperava poder perder assim a sua mulher, passando a viver amargurado, sem rumo, desorientado, sem a sua “cara metade”, carecendo de apoio psicológico para poder aliviar a dor da sua perda.
A morte repentina de algum dos nossos entes mais próximos e, por regra, queridos, causa, em princípio, mais sofrimento e pesar, do que o decesso anunciado por via de doença grave e sem cura à vista (cfr. Ac. STJ de 28-11-2013, acessível in www.dgsi.pt). E terá sido o caso. VA foi internada no HPA para ser sujeita a uma cirurgia simples e rápida, pelo que nunca seria, para o demandante (como não foi), expectável que dali decorressem complicações, muito menos as que vieram a culminar na morte da sua mulher.
Considerando o grau de proximidade dos laços que uniam o casal; a idade da vítima; o facto de ter a mesma falecido inesperadamente, durante uma intervenção cirúrgica que se previa simples e rápida e em que não era expectável que surgisse qualquer complicação; o grau intenso de sofrimento com a sua perda por parte de um marido ainda no início da sua vida de casados e de quem o mesmo dependia no dia a dia; julga-se adequado, justo e equitativo, fixar em 35.000 euros o valor da indemnização devida ao viúvo.
3. Dos danos patrimoniais resultantes da perda de rendimentos:
Peticiona o demandante viúvo a condenação no pagamento da quantia de 210.000 euros, a título de indemnização pelos rendimentos que deixou de auferir, desde a morte da sua esposa e que, caso a mesma fosse viva, continuaria a receber em resultado do seu trabalho, por força do dever que recaía sobre a sua mulher de, enquanto membro do casal, contribuir para a economia comum (e dos quais deixou de beneficiar, passando a assegurar, sozinho, com os seus rendimentos, as despesas que antes do falecimento da vítima, eram suportadas por ambos). E calcula o demandante aquele valor reportando-se ao salário que a vítima vinha recebendo à data da morte.
Sendo a força de trabalho um bem patrimonial, porquanto gera rendimentos, a perda dos mesmos resultante do falecimento da vítima deverá ser entendida como um dano patrimonial, com direito do lesado a uma indemnização por danos futuros, desde que previsíveis (neste sentido, Ac. STJ, de 19.04.2012, in www.dgsi.pt). É o que sucede in casu, tendo a vítima um contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado.
Acresce ainda que o dever de assistência entre os cônjuges compreende a obrigação de prestar alimentos e de contribuir para os encargos da vida familiar (art.º 1675.º do CC), traduzindo estes a expressão do dever de alimentos que os cônjuges se devem enquanto vivem juntos. E assim era. Quando o cônjuge reclama indemnização por danos futuros referenciados à perda, para sempre, da contribuição do outro cônjuge, falecido em virtude da actuação médica da arguida, está a reclamar tais alimentos, expressão da contribuição para os encargos da vida familiar que podia exigir à falecida mulher e a que a mesma estava vinculada (Ac. STJ de 04.05.2010, in www.dgsi.pt).
Acresce que, nos termos do disposto no art.º 495.º, n.º 3 do CC, terão direito a indemnização aqueles que podiam exigir alimentos ao lesado. E era o caso, já que o demandante era marido da vítima. Direito esse que lhe assiste ainda que a necessidade de alimentos seja futura, desde que previsível (vide Ac. TRL, de 07-05-2013, acessível in www.dgsi.pt).
Pese embora seja admissível o recurso à equidade, para se fixar o valor desta indemnização, dever-se-á atender, como critério base, ao rendimento anual da vítima, ao montante que presumivelmente despenderia em gastos pessoais, a sua idade ao tempo da morte e ao acerto resultante da entrega do capital de uma só vez (tal como se defende naquele citado aresto).
Ora, tendo-se apurado que a vítima, com 27 anos de idade, efectivamente, estava a trabalhar, como enfermeira no IDT, em regime de contrato e trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, desde 01.02.2011, auferindo, em média, cerca de 1.100 euros mensais (pelo menos, quanto a 12 meses) sobre as quais incidiriam os descontos legais; atendendo-se a que, atenta a esperança média de vida actual e a idade de vida activa (a reforma estava fixada para os 65 anos de idade), era de prever que a falecida teria ainda, pelo menos, 38 anos de vida activa e, portanto, era provável que viesse a receber uma remuneração mensal pelo seu trabalho; considerando ainda que a mesma contribuía para as despesas do casal em maior proporção que o seu marido (que auferia menores rendimentos); mas tendo ainda em conta o contexto de crise actual, com uma grande volatilidade a respeito da legislação fiscal e laboral (não é garantido o recebimento do subsídio de Natal e de férias, muito menos nos mesmos valores que o do salário mensal); tudo visto e ponderado, afigura-se dever ser fixado em 190.000 euros, o valor da indemnização, o qual se mostra adequado a reconstituir a situação que existira se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, correspondendo aos benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, sendo tais danos futuros e previsíveis (tudo os termos do disposto nos art.ºs 562.º, 566.º, n.º 1, 564.º, n.ºs 1 e 2, 566.º, n.º 2, 566.º, n.º 3, 496.º, n.º 1 e 495.º, n.º 3, todos do CC).
Nestes termos, fixa-se em 190.000 euros o valor da indemnização pela frustração de ganhos como resultado do evento danoso, quantia em cujo pagamento se condena a seguradora, contida nos limites da apólice, improcedendo o demais peticionado.
Assim, no total dos danos patrimoniais e não patrimoniais, deverá a Seguradora pagar a quantia de 295.000 euros ao demandante JF.
A tais quantias acrescerão os respectivos juros de mora, calculados à tA P legal aplicável, desde o trânsito em julgado da sentença até efectivo e integral pagamento.

Vejamos.
Nos termos do art. 496.º, n.º 1, do CC, “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”, aqui se incluindo, inevitavelmente, o dano pela perda do direito à vida, com carácter autónomo, incidindo no bem supremo.
O montante da indemnização deve ser fixado equitativamente, isto é, tendo em conta todas as regras de boa prudência, de bom senso, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida e, assim, tanto quanto viável, com vista a alcançar a solução justa no caso concreto.
Nada há a censurar aos parâmetros que, nesse âmbito, o tribunal referiu dever atender, resultando, aqui, da sentença que “importa ter em conta a própria vida em si, como bem supremo e base de todos os demais, e, no que respeita à vítima, a sua vontade e alegria de viver, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, incluindo a sua situação profissional e sócio-económica (cfr. Ac. STJ de 23-02-2011, in www.dgsi.pt)”.
Por seu lado, as considerações concretas acerca dos mesmos afiguram-se consentâneas com o que se provou, sem que, de algum modo, a recorrente as venha infirmar, já que nem as condições económicas da sociedade, nem a circunstância de se tratar de seguradora, contendem com a dimensão do valor atribuído por esse dano.
De maior relevo, para o efeito, relevam os padrões acolhidos pela jurisprudência, enquanto norteadores da adequada valorização do dano, no sentido de ultrapassar perspectiva miserabilista, sob pena da própria dignidade humana se ver inexplicavelmente desvalorizada.
E, percorrendo a jurisprudência do STJ na matéria, que poderá ser consultada, mormente, no acórdão de 20.02.2013, no proc. n.º 269/09.5GBPNF.P1.S1, rel. Cons. Raul Borges, in www.dgsi.pt, sendo que, como já se assinalara no acórdão do STJ de 31.01.2012, no proc. n.º 875/05.7TBILH.C1.S1, rel. Cons. Nuno Cameira, in www.dgsi.pt, No que respeita ao dano morte, que representa o bem mais valioso da pessoa e simultaneamente o direito de que todos os outros dependem, a compensação atribuída tem oscilado nos últimos anos entre os 50 e os 80 mil €, com ligeiras e raras oscilações para menos ou para mais (cfr, a título de mero exemplo, os acórdãos do STJ de 10/1/08 (Revª 3716/07-6ª) e 24/6/08 (Revª 1185/08 - 6ª), ambos desta conferência de juízes, de 8/9/11 (Revª 2336/04.2TVLSB.L1.S1-2ª) e de 27/9/11 (Revª 425/04.2TBCTB.C1.S1-6ª), o valor atribuído não se apresenta dissociado desses padrões.
Não vemos, pois, razão válida para o reduzir.
O mesmo se diga quanto à fixada compensação pelos danos sofridos pelo demandante com a perda da sua esposa, em face do que se provou, relativamente ao que a sentença consignou, e bem, ter considerado o grau de proximidade dos laços que uniam o casal; a idade da vítima; o facto de ter a mesma falecido inesperadamente, durante uma intervenção cirúrgica que se previa simples e rápida e em que não era expectável que surgisse qualquer complicação; o grau intenso de sofrimento com a sua perda por parte de um marido ainda no início da sua vida de casados e de quem o mesmo dependia no dia a dia”, requerendo, em nosso entender, lenitivo substancial, como aquele que foi concedido.
Passando à análise dos danos patrimoniais, na vertente de danos futuros, pela perda de rendimentos que o demandante irá deixar de auferir com a morte da sua esposa, a indemnização corresponde a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir, mas extinguindo-se o capital no final do período provável de vida (acórdão do STJ de 06.07.2000, in CJ Acs. STJ ano VIII, tomo II, pág. 145).
O montante a fixar há-de apelar, também, à equidade (arts. 564.º, n.º 2, e 566.º, n.º 3, do CC), nomeadamente, no que aqui releva, em razão da provável contribuição da vítima para a economia comum do casal, sem perder de vista ainda actualização anual desse capital correspondente ao tempo apurado e a circunstância de vir a ser recebido de uma só vez.
Atenta a fundamentação do tribunal a quo, resulta que teve em conta o salário mensal que a vítima auferia, pelo menos durante doze meses, sem prejuízo dos descontos legais, a previsão de que durante, pelo menos, 38 anos, teria vida activa, considerando a idade de reforma de 65 anos, e contribuía para as despesas do casal em maior proporção que o marido e, ainda, o contexto de crise actual e de volatilidade da legislação fiscal e laboral, sem que, contudo, tivesse pormenorizado como alcançou o montante atribuído.
Neste aspecto, há que considerar, como aspectos relevantes, designadamente, a proporção com que, em média, cada um contribuiria para a economia comum e para si próprio, a duração média da vida da vítima, a progressão profissional desta e a flutuação do valor monetário, por referência ao normal acontecer e à experiência, segundo o que é previsível e determinável perante os factos dados como provados aí pertinentes.
Note-se, entretanto, que as alegadas circunstâncias de que não se apurou o grau de incapacidade de que está o demandante afectado e qual o montante, em rigor, com que a vítima contribuía para a economia doméstica e/ou as despesas do demandante, não são de molde a impedir um juízo de equidade, por critérios comummente aceites.
Assim, tendo em conta o apurado salário ilíquido de VA (1100 euros), é razoável que, deduzidos os descontos legais, auferisse quantia não superior a 850 euros, afectando, pelo menos, na ausência de elementos em concreto, o montante de 250 euros para gastos pessoais (com a devida adaptação, v. Sousa Dinis, “Dano Corporal em Acidentes de Viação”, in CJ, Acs. STJ, ano IX, 2001, tomo I, págs. 5 e segs.), do que decorre o montante disponível de 600 euros.
Por seu lado, vista a proporção de rendimentos da vítima e do demandante, afigura-se que será de considerar, manifestamente, que aquela, não fosse a sua morte, contribuiria na maior parte para a economia comum e, dada a estreita afectividade com o marido, a ajuda que a este prestava em questões de saúde e os projectos que, em comum, delineavam, não se encontra fundamento bastante para que, pelo menos, daquele montante de 600 euros, o valor de 450 euros fosse reverter para a economia doméstica.
Conforme ao fundamentado na sentença, ter-se-á por referência o período anual de 12 meses, que é previsível se venha a manter relativamente aos trabalhadores por conta de outrem, apesar da referida volatilidade, pelo que se obtém o valor anual de 5.400 euros (450x12).
Também, admite-se que, de acordo com a sentença, não sendo a questão pacífica na jurisprudência, se atente apenas no previsível período de vida activa da vítima, embora, diga-se, pela natureza da indemnização, seja tendencialmente mais correcto que se refira ao provável período de vida, a dita esperança média de vida, conhecida à data e para o género em causa (fixada, pelos dados mais recentes, aplicáveis à situação, em 82,79 anos - acessíveis através do Google, “Jornal Expresso” de 31.05.2014 e “Portal da Saúde” - dados revelados pelo INE).
Partindo, então, do pressuposto dos 38 anos atendidos pelo tribunal (dada a idade da vítima e a fixada para reforma nos 65 anos), atinge-se o valor de 205.200 euros (5.400x38).
Finalmente, em atenção aos factores da normal progressão profissional da vítima, da reduzida tA P de juro aplicável às operações financeiras e da vantagem que representa a recepção antecipada do benefício, a indemnização calculada pelo tribunal em 190.000 euros não resulta excessiva, sendo ajustada aos critérios da equidade no caso vertente.
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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- não conhecer do recurso da arguida em matéria cível;
- negar provimento, no restante, ao recurso interposto pela arguida;
- negar provimento ao recurso interposto pela demandada A P;
- em consequência,
- manter integralmente a sentença recorrida.

Custas a cargo das recorrentes, sendo, quanto à arguida, com a tA P de justiça em soma correspondente a 6 UC e, relativamente à demandada, pelo decaimento cível.
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Processado e revisto pelo relator.
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(Carlos Jorge Berguete)
(João Gomes de Sousa)