Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3873/20.7T9FAR.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: AMNISTIA
PERDÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: As leis de amnistia e perdão têm caracter de clemência, não é um direito dos cidadãos;
O Estado goza de grande liberdade conformativa no conteúdo das leis de amnistia e perdão, sendo que as suas razões e objetivos não estão concretizadas em lei;

Não podendo ocorrer o arbítrio ou discriminação infundada, o Estado pode escolher o momento da entrada em vigor da amnistia/perdão, que tipos legais ou condutas serão passiveis de amnistia/perdão, qual a abrangência da amnistia/perdão (penal, contraordenacional, disciplinar …), que grupos de indivíduos amnistiar/perdoar (Lei 9/96, de 23 de Março, conhecida pela Amnistia às FP25), isto é, desde que justificada a sua restrição não existe inconstitucionalidade.

Ora, no caso em apreço não se vislumbra qualquer arbítrio ou falta de fundamento material.

Na verdade, tratou-se de assinalar a vinda do Papa às JMJ, estabelecendo-se vários limites: idade, data da prática dos factos, tipos de infracções.

Tal e qual se estabeleceu em anteriores amnistias.

A fixação da idade dos 30 anos, e não de outra qualquer, mesmo que por referência a jovens, está também bem explicitada, parecendo desrazoável a discussão acerca da idade até à qual se pode considerar uma pessoa jovem. E muito menos por referência ao conceito de jovem para muitos outros efeitos (até para jovem agricultor!).

Tratou-se apenas de equiparar com a idade considerada para participação nas JMJ.

Por outro lado, é bem compreensível que se associe à vinda do Papa e às JMJ à concessão de um “benefício” a quem sendo jovem, mais facilmente merece “incentivo” para uma melhor ressocialização.

Resulta de tudo o exposto que com a fixação do limite dos 30 anos não se vislumbra qualquer contrariedade aos preceitos constitucionais ou da carta dos direitos fundamentais dos cidadãos da união europeia

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito do processo acima referenciado foi proferido o seguinte despacho:

“Compulsados os autos, temos que:

1. Foi o arguido, nascido a …/…/1981, condenado por sentença transitada em julgado, a 24/01/2023, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), praticado em 25/09/2020, do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 horas de trabalho.

2. Veio o arguido ora aos autos referir entender que o crime praticado se encontra amnistiado por via da aplicação aos autos da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, considerando a moldura penal aplicável à mesma, devendo ser extinto o respetivo procedimento criminal, sendo que, o entendimento atinente à idade do arguido, com mais de 30 anos, levando à não aplicabilidade do diploma, sempre tornaria o mesmo inconstitucional, porque violador do princípio da igualdade, tornando a norma igualmente desconforme com a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, requerendo, pois, que seja o crime em análise amnistiado, com base na supra referida lei.

Pronunciou-se o Ministério Público, referindo entender ser de indeferir o requerido, por falta de fundamento legal, sendo a amnistia uma medida de natureza discricionária, tendo existido amnistias aplicadas ao longo dos anos a determinados grupos específicos, sem se entender pela inconstitucionalidade das mesmas, pugnando, pois, pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade no referido diploma.

Cumpre decidir.

Considerando os dados acima referidos, à data da prática dos factos o arguido tinha 39 anos de idade, pelo que, não lhe sendo aplicável o disposto na Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, porquanto nos termos do artigo 1.º da referida Lei, apenas são abrangidas as sanções penais relativas a ilícitos praticados por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática dos factos.

Ora, a proposta de lei n.º 97/XV/1.ª, refere na sua exposição e motivos que “considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana, justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento. Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina”.

Face ao exposto, entende-se não se poder concluir, atentos os motivos expostos, pela existência de qualquer violação do princípio da igualdade, não se tratando de distinção arbitrária.

Neste sentido, e nos termos referidos, atendendo-se sempre à larga margem de conformação legislativa da Assembleia da República no que à escolha das situações às quais se aplicam a amnistia e o perdão genérico, e cujos limites, entendemos, não se ultrapassaram no caso, nada mais se pode senão que entender que o artigo 1.º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, não padece de qualquer inconstitucionalidade, indeferindo-se, pois, o requerido.”

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Discordando da referida decisão, dela recorreu o arguido, tento terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“A norma aplicada ela Meritíssima Juiza quo para não amnistiar o Recorrente do crime de que vem condenado, o artigo 2.º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, é uma norma inconstitucional por violar o princípio da igualdade e da proibição da descriminação negativa (a idade superior a 30 anos), sem qualquer suporte constitucional para o efeito. Sendo que,

A dita norma (limitação a menores de 30 anos), viola grosseira e inequivocamente direito internacional imperativo directamente aplicável no nosso ordenamento jurídico, como é o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ex vi, artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa.

O crime que o arguido vem condenado, é objectivamente elegível para ser objecto de amnistia nos termos do artigo 4.º da Lei n.º38-A/2023 de 2 de Agosto.

Pelo exposto, e pelas sempre mais Doutas razões de Vossas Excelência e o respectivo Mui Douto suprimento, humildemente entendemos que deverá ser cassada a douta decisão impugnada, substituindo-se por outra que aplique o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 21.º n.º 1 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no sentido de ser inconstitucional, logo inaplicável, a limitação de idade imposta negativamente em relação ao Recorrente, apenas e só por este à data dos factos ter mais de 30 anos de idade. E, por conseguinte, que se considere amnistiada a infracção penal de que vem o arguido condenado.”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“A.- O recorrente foi condenado no âmbito dos presentes autos pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º n.º 1 alínea b).º do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 horas de trabalho a favor da comunidade.

B.- Na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, o Recorrente solicitou que lhe fosse aplicada a amnistia, arguindo a inconstitucionalidade da Lei, concretamente a limitação da idade dos arguidos/condenados na aplicação da amnistia/perdão, prevista no artigo 2.º n.º 1 da Lei.

C.- Alega o Recorrente que a norma que limita em razão da idade a aplicação da amnistia ou perdão é inconstitucional por violação do artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa, ou seja, quer por violação do principio da igualdade, quer pela violação da proibição de discriminação.

D.- Quanto ao mérito do recurso, somos de nos pronunciar pela sua total improcedência porque:

- as leis de amnistia e perdão têm caracter de clemência, não é um direito dos cidadãos;

- o Estado goza de grande liberdade conformativa no conteúdo das leis de amnistia e perdão, sendo que as suas razões e objetivos não estão concretizadas em lei;

- não podendo ocorrer o arbítrio ou discriminação infundada, o Estado pode escolher o momento da entrada em vigor da amnistia/perdão, que tipos legais ou condutas serão passiveis de amnistia/perdão, qual a abrangência da amnistia/perdão (penal, contraordenacional, disciplinar …), que grupos de indivíduos amnistiar/perdoar (Lei 9/96, de 23 de Março, conhecida pela Amnistia às FP25), isto é, desde que justificada a sua restrição não existe inconstitucionalidade;

- sendo o motivo da amnistia/perdão a presença do Papa em território nacional no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude, o Estado Português decidiu por uma amnistia/perdão (à semelhança de 1967, 1982 e 1991, nas três presenças do Papa em território nacional) e fê-lo para os jovens;

- independentemente da bondade da restrição da aplicação da amnistia a menores de 30 anos de idade, a verdade é que inexiste qualquer inconstitucionalidade nessa restrição porque cabe no âmbito da discricionariedade atribuída ao Estado.

F.- Neste sentido vide Ac. TC. n.º 444/97, n.º 510/98 e 488/2008.

G.- Inexiste qualquer discriminação na Lei 38-A/2023 atento o motivo para conceder amnistias/perdões, ou seja, se o Estado Português quis conceder perdão no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude, ao elaborar uma lei que se aplica de forma abstrata e geral a todos os indivíduos, restringindo os efeitos nos ilícitos de natureza penal apenas aos cidadãos com menos de 30 anos, não viola o artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que, deve ser rejeitado o recurso apresentado pelo recorrente.

DECIDINDO NESTA CONFORMIDADE SERÁ FEITA JUSTIÇA!”

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Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P. não foi apresentada resposta.

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APRECIAÇÃO

A única questão em causa no presente recurso é a apreciação da alegada inconstitucionalidade material do artº 2º, nº 1, da L. 38-A/2023 de 2/8, com a seguinte redacção:

Artigo 2.º

Âmbito

1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º

No entender do recorrente a referida disposição legal, ao impor o limite de 30 anos aos beneficiários da amnistia, viola o artº 13º da C.R.P. e o artº 21º, nº 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Dispõe o referido artº 13º, nº 1, da C.R.P.:

Artigo 13.º

(Princípio da igualdade)

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Dispõe o referido artº 21º, nº 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia:

Artigo 21.º

Não discriminação

1. É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniõess políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.

Importa, ainda, considerar que o artº 161º, al. f), da C.R.P. dispõe que compete à Assembleia da República “Conceder amnistias e perdões genéricos”.

A questão da (in) constitucionalidade da referida norma contida na “lei da amnistia” tem sido debatida pelos vários intervenientes políticos e judiciários.

Logo aquando da sua aprovação, vários se pronunciaram sobre a sua inconstitucionalidade ou, pelo menos, demonstraram muitas dúvidas quanto à conformidade da norma com a constituição.

Desde logo, a questão foi colocada na nota de admissibilidade da direcção de apoio parlamentar (divisão de apoio ao plenário) nos seguintes termos:

“Segundo o artigo 2.º da proposta de lei, o seu âmbito subjetivo é restringido a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da praticado um crime ou contraordenação, até dia 19 de junho de 2023.

A diferenciação entre as pessoas penalmente imputáveis – todos os maiores de 16 anos (cfr. artigo 19.º do Código Penal) – em função da idade, à data da prática de um facto ilícito, ainda que o tipo de ilícito cometido tenha sido o mesmo, poderá justificar a ponderação da conformidade desta norma com o princípio constitucional da igualdade, previsto no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.

Nos termos da alínea f) do artigo 161.º da Constituição, compete à Assembleia da República “conceder amnistias e perdões genéricos”. Em comentário a esta norma, Rui Medeiros e Jorge Mirada (1) defendem que “a decisão de amnistiar assenta na pura discricionariedade política, seja qual for a sua finalidade [celebrativa de certo evento (…), etc]. Por isso, é insidicável, salvo quando vedada a respeito de certa categoria de crimes (…), mas não o seu conteúdo, que deve ser aferido à luz dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.”

A presente proposta de lei tem como causa política a Jornada Mundial da Juventude de 2023. Conforme se refere na exposição de motivos, pretende adotar “medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento”, que “abarca jovens até aos 30 anos”.Conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º44/97, “o princípio de igualdade, tratando-se aqui de definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados - como são restringidos pela aplicação das sanções -, impede desigualdades de tratamento. O problema então não se põe relativamente à constitucionalidade do acto amnistiante total dada a sua causa, mas relativamente à configuração concreta de cada norma de amnistia. A delimitação dos factos amnistiados tem que ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização (…) em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito”.

Francisco Aguilar ressalva que, formalmente, as leis de amnistia configuram “necessariamente uma derrogação ao princípio da igualdade. É que, por força da amnistia, apenas alguns dos factos que correspondam à previsão normativa da lei incriminadora irão ser efetivamente punidos.” Não obstante, “uma lei de amnistia será (…) inconstitucional quando viole o princípio da igualdade (materialmente entendido)”.

O referido Acórdão TC n.º 444/97 sustentou que o “princípio da igualdade não significa proibição de normas especiais ou excecionais relativas a categorias de interessados, mesmo se já individualizáveis em concreto, como nas leis retroativas, mas sim proibição de normas diversas para situações objetivamente iguais, com o corolário de que normas diversas regulam situações objetivamente diversas do ponto de vista da razão da norma”. Conforme é referido em decisões concretas do mesmo tribunal:

- “A ideia de igualdade, com efeito, só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis. Ora, a dita norma, de um lado, trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições” (Acórdão TC n.º 42/95);

e

- “Entre os princípios, cujo respeito se impõe ao legislador ordinário competente para dispor sobre o perdão genérico das penas, contam-se o invocado pela recorrente, o princípio da igualdade perante a lei e na lei (…). No que importa à primeira dimensão, importa reconhecer que o legislador do perdão genérico não o desrespeitou. Na verdade, o perdão foi concedido a todos condenados que houvessem praticado os mesmos crimes” (Acórdão TC n.º 488/2008).

De referir que a exposição de motivos menciona, ainda, “leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios”. No entanto, consultando as disposições das leis de perdão ou amnistia, apenas detetámos normas específicas que estabeleciam que determinadas penas de prisão fossem substituídas por penas de multa, quando aplicadas a menores de 18 ou 21 anos de idade ou a maiores de 70 anos de idade – Leis n.ºs 29/99, de 12 de maio, 15/94, de 11 de maio, e 17/82, de 2 de julho.

Quanto a antecedentes legais que tenham efetuado uma discriminação subjetiva, destacamos a Lei n.º 31/81, de 25 de agosto, que amnistia diversos crimes referentes a veículos automóveis, quando hajam sido praticados por desalojados das ex-colónias ou por emigrantes, ou as Leis n.ºs 17/85, de 17 de julho, e 5/95, de 20 de fevereiro, relativas a infrações disciplinares de determinados sujeitos. Nestes atos normativos parece existir uma estreita ligação entre o âmbito subjetivo e os ilícitos previstos, que fundamentam a discriminação.

Assim, salvo melhor opinião, poderão ser analisados os critérios que justificam que o artigo 2.º da proposta – e não o motivo que a causou a iniciativa – discrimine entre agentes que tenham praticado o mesmo crime ou a mesma contraordenação, consoante tivessem, no momento da prática do facto, por exemplo, 30 ou 31 anos de idade.

Conclusão: A apresentação desta iniciativa parece cumprir os requisitos formais de admissibilidade previstos na Constituição e no Regimento da Assembleia da República, sem prejuízo do exposto nas observações.

No parecer apresentado pela P.G.R. a propósito da proposta de lei 97/XV/1, da qual resultou a lei que veio a ser aprovada, também se expressaram dúvidas sobre a constitucionalidade da norma em causa, aí se referindo:

“No entanto, a Proposta de Lei cria uma efetiva diferenciação entre as pessoas penalmente imputáveis em função da idade à data da prática de um facto ilícito típico, ainda que o tipo de ilícito cometido tenha sido o mesmo, pelo que deverá merecer uma aturada e aprofundada reflexão sobre a sua eventual conformidade com o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o artigo 21º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta).”

De igual modo consta no parecer emitido pelo C.S.M.:

“Ora, a diferenciação de tratamento entre pessoas que praticaram idênticas infrações com base unicamente na idade que possuíam no momento da sua prática, ainda que amparada na faixa etária dos principais destinatários de um evento, suscita as maiores reservas quanto à sua conformidade constitucional.

Na verdade, trata-se de uma discriminação (positiva) em função da idade4, que não se mostra devidamente justificada.

Segundo o ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira5, as diferenciações só podem ser legítimas quando se baseiem numa distinção objetiva de situações, tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objetivo.

A discriminação para ser legítima terá, pois, que ser proporcional, necessária e adequada, não podendo, de modo algum, ser arbitrária. As medidas das diferenças que estabelecem terão que ser proporcionais.

As JMJ não são um valor constitucional que justifique a discriminação de pessoas, sendo, pois, duvidoso que esta discriminação se considere não arbitrária, considerando que a discriminação que é feita tem que se justificar para fins constitucionalmente legítimos.

Por outras palavras: é necessário que a discriminação seja constitucionalmente legítima e que a diferença de tratamento estabelecida pelo legislador seja adequada e proporcional nessa perspetiva.”

A Ordem dos Advogados emitiu também parecer no sentido de a referida norma estar de acordo com os preceitos constitucionais.

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A justificação para a fixação o limite dos 30 anos está bem patente na exposição de motivos que acompanhou a apresentação da proposta de lei.

Aí se refere:

“(…) A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.

Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.

Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.”

Como se constata, a fixação o limite dos 30 anos tem que ver com a idade que se convencionou relativamente à participação nas JMJ.

A amnistia, tal como aconteceu em várias outras ocasiões anteriores, teve que ver com a vinda a Portugal do Papa e a realização as JMJ.

Ora, o tribunal constitucional tem tido uma visão muito ampla a propósito de várias normas das leis das amnistias, entendendo que desde que se descortinem razões plausíveis para qualquer tratamento diferenciado (no caso, em razão da idade, tal como já anteriormente aconteceu), não ocorre qualquer contrariedade à constituição.

Uma vez que no acima referido parecer apresentado pela P.G.R. se refere de forma assaz completa esse entendimento do tribunal constitucional, bem como o historial das leis de amnistia, aqui se reproduz o mesmo nas partes que interessam :

“Revisitadas as Leis de Amnistia nº 17/82, de 2 de julho, 15/94, de 11 de maio, 9/96, de 23 de março e 29/99, de 12 de maio, observa-se:

a) A Lei nº 17/82 de 2 de julho amnistiou infrações e concedeu o perdão a penas por ocasião da visita a Portugal do Sumo Pontífice.

A técnica legislativa adotada foi a da concreta enunciação dos tipos de crime abrangidos pela amnistia contrariamente àquela que é utilizada no diploma em análise que o faz por reporte a uma moldura penal abstrata, enunciando, após, as exceções à sua aplicação.

O artigo 5º, nº6, do diploma prevê:

“6 - A pena de prisão aplicada em medida não superior a 2 anos a delinquentes menores de 18 anos ou maiores de 70 anos à data da prática do crime, quando cometido até 10 de Maio de 1982, será sempre substituída por multa.”

b) A Lei nº 15/94, de 11 de maio também amnistiou diversas infrações e aplicou outras medidas de clemência.

A técnica legislativa adotada também foi a da concreta enunciação dos tipos de crime abrangidos pela amnistia.

O diploma não contém normas aplicáveis em razão da idade do infrator.

c) A Lei nº 9/96, de 23 de março, que “Amnistia às infrações de motivação política cometidas entre 27 de julho de 1976 e 21 de junho de 1991” e que ficou conhecida como Lei da Amnistia das FP25. A lei contempla apenas dois artigos e não contém referências a medidas específicas aplicáveis em razão da idade do infrator.

d) A Lei nº 29/99, de 12 de maio que concedeu um “perdão genérico e amnistia de pequenas infrações”:

Prevê o artigo 3º deste diploma que “Relativamente às infracções praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, a pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos a delinquentes com menos de 21 anos, à data da prática do crime, ou com 70 ou mais anos, em 25 de Março de 1999, será sempre substituída por multa na parte não perdoada, salvo se forem reincidentes ou se se encontrarem em alguma das situações previstas no artigo seguinte.”

O diploma, o último que em Portugal concedeu uma amnistia, amnistiou as seguintes infrações (Artigo 7º):

“Desde que praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, e não constituam ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral são amnistiadas as seguintes infracções:

a) As contravenções a que correspondam unicamente penas de multa;

b) As contra-ordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 500 contos em caso de dolo e 1000 contos em caso de negligência;

c) As infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior à suspensão ou prisão disciplinar;

d) Os crimes cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou multa, com exclusão dos cometidos através da comunicação social.”

A consulta destes diplomas permitiu-nos identificar, em dois deles, uma norma que aplica um regime punitivo especial para jovens (no primeiro caso até aos 18 anos de idade e no último até aos 21 anos de idade) e para todos quantos tivessem mais de 70 anos de idade.

(…)

Questionado o Tribunal Constitucional sobre a observância do princípio da igualdade a propósito das anteriores Leis de Amnistia adotou como regra uma interpretação bastante flexível, que encontra limite no arbítrio.

Recuperamos, por elucidadora, a argumentação tecida nos seguintes Acórdãos:

i.

A questão mereceu aturado desenvolvimento no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 42/95, proferido no Processo nº 372/943 a propósito da norma contida no artigo 9º, nº3, alínea d) da Lei nº 15/94, de 11 de maio que exclui do número dos beneficiários do perdão concedido pela alínea d) do nº 1 do artigo 8º da Lei (perdão de "um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado") "os condenados pela prática de crimes contra as pessoas a pena de prisão superior a 10 anos, que já tenha sido reduzida por perdão anterior".

Com referências doutrinárias efetuadas por apelo aos ensinamentos de J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 650); FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 1993, páginas 688 e seguintes); MAIA GONÇALVES ("As medidas de graça no Código Penal e no Projecto de Revisão", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, 1, 1994, páginas 8 e seguintes), o Tribunal Constitucional concluiu que a norma não violava o artigo 13º da CRP, porquanto:

- “A ideia de igualdade, com efeito, só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis.”

No caso, “a dita norma, de um lado, trata por igual todos os que se encontram nas mesmas condições; e, de outro, a distinção que estabelece entre os que já beneficiaram de um perdão anterior (aos quais, agora, o recusa) e os restantes condenados, inclusive aqueles que, havendo sofrido o mesmo tipo de punição, não tenham sido objecto de perdão (aos quais ele é agora concedido) assenta num critério objectivo e materialmente fundado.”

ii.

A mesma interpretação foi vertida no Acórdão nº 152/95, proferido no Processo nº 519/944, de 15 de março de 1995, onde se considerou:

“É sabido que a igualdade, em sentido material (e é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (por exemplo no Acórdão nº. 231/94, publicado no DR-I-A de 28/4/94) que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy, Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária "quando (...) não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível", para essa diferenciação.

No caso da exclusão do perdão aqui em causa, sendo colocados como são, em plano de igualdade todos aqueles que, como o aqui recorrente, foram condenados pela prática de crimes contra as pessoas em pena de prisão superior a 10 anos, que já tenha sido reduzida por anterior perdão, não existe tratamento diverso de quem se encontra em situação idêntica (v. Rui Pereira, O Princípio da Igualdade em Direito Penal, o Direito, 1988/I-II, pág. 151). Da mesma forma não comporta a exclusão tratamento arbitrário, sendo como é explicável e racionalmente compreensível por razões de política criminal expressas numa acrescida necessidade de efectividade da pena, nas situações excluídas.

(…)

Sobre este tema, já se escreveu (José de Sousa e Brito, "Sobre a Amnistia", Revista Jurídica, 6/1986, pág. 44): "o princípio da igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados - como são restringidos pela aplicação das sanções -, impede desigualdades de tratamento (...). A delimitação dos factos amnistiados tem que ser feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito".5

iii.

A matéria foi objeto de uma relevante e aprofundada reflexão no Acórdão nº 444/97, proferido no Processo nº 784/96, de 25 de junho de 19976, jurisprudência de referência e de citação em vários arestos posteriores deste Tribunal Superior, que se debruçou sobre a Lei nº 9/96, de 23 de março.

Circunscrevemo-nos, em razão do objeto da presente análise, à fundamentação tida por relevante quanto à eventual violação do princípio da igualdade.

Considerou então o Tribunal Constitucional que a causa do acto amnistiante explica a oportunidade do diploma no seu conjunto.

Citando o Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerfGE, 10, 234 [246]; cf. BVerfGE, 2, 213 [224-5]; 10, 340 [354]):

- "Ao decretar uma lei de amnistia o legislador não está obrigado, do ponto de vista do artº 3º, secção 1ª, da Lei Fundamental, a conceder amnistia a todas as acções puníveis e em medida igual. Não só pode excluir inteiramente da lei de amnistia certos tipos de crime, como pode também sujeitar tipos determinados num regime especial. Só a ele cabe decidir em relação a que infracções se verifica em especial medida um interesse geral de pacificação. Também é uma questão da sua liberdade de conformação legislativa em que âmbito e a que crimes quer conceder amnistia. O Tribunal Constitucional Federal não pode controlar uma lei de amnistia quanto à questão de saber se as regras que nela se consagram são necessárias ou convenientes, e só pode, em vez disso, verificar se o legislador ultrapassou o extremo limite do largo campo de discricionariedade que se lhe abre.

E nessa lei de amnistia só há uma violação do princípio da igualdade quando a regulamentação que o legislador deu a certos factos típicos não está manifestamente orientada por princípios de justiça, ou seja, quando não se encontram para ela quaisquer considerações racionais, que derivem da natureza das coisas ou sejam de qualquer outro modo evidentes".

Relativamente à delimitação dos beneficiados pela Lei o Tribunal acabou por concluir:

- “Quanto à afirmada limitação aos membros das FP-25, ela foi expressamente negada pela maioria da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, em vista do conteúdo objectivo da Lei, tendo essa negação sido retomada pelos defensores dela na discussão parlamentar (Diário da Assembleia da República, I Série, 203, 1996, pp. 1197 ss). A limitação não corresponde portanto à intenção da lei, que é determinante para julgamento da questão da conformidade com o princípio da igualdade, nem à intenção do legislador. É, aliás, normal que na votação das leis da amnistia se tenham em vista casos determinados de pessoas determinadas, sem prejuízo da definição através de conceitos gerais desses casos e dessas pessoas. Esta doutrina foi claramente afirmada pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão num caso em que se teve em vista historicamente um conjunto determinado de cerca de 40 pessoas, nomeadamente um certo jornalista Dr.Platow, seus colaboradores e editores e vários funcionários («grupo Platow») todos envolvidos na divulgação de informações económicas confidenciais, e os crimes de corrupção activa e passiva e violação de segredo pelos mesmos praticados (BverfGE, 10, 234 [243-245]).

(…)

Não havendo restrição aos membros das FP-25 também não há discriminação pelas convicções políticas ou ideológicas dos mesmos”.

Decidindo conceder provimento ao recurso por considerar que a Lei não se mostrava ferida de inconstitucionalidade, “devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o juízo sobre a questão de constitucionalidade ora proferido”.

*

Ainda que não recaiam sobre Leis de Amnistia, também as mais recentes Decisões do Tribunal Constitucional têm vindo a manter esta interpretação ampla sobre o princípio da igualdade.

No Acórdão nº 809/2021, proferido no Processo nº 516/20, de 26 de outubro, o Tribunal Constitucional entendeu, sobre uma eventual violação do princípio da igualdade:

7. O princípio da igualdade constitui um verdadeiro princípio estruturante da ordem jurídica constitucional, sendo mesmo uma exigência do princípio do Estado de Direito. Trata-se de um princípio que vincula diretamente todos os poderes públicos – particularmente o legislador –, que estão assim obrigados a tratar de modo igual situações de facto essencialmente iguais e de modo desigual situações intrinsecamente desiguais, na exata medida dessa desigualdade, desde que esse tratamento desigual tenha uma justificação razoável, racional e objetivamente fundada.

O âmbito de proteção do princípio da igualdade abrange, na ordem constitucional portuguesa, diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 339).

Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, sem fundamento material bastante, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º (veja-se, neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 39/88, 157/88, 86/90, 187/90, 1186/96, 353/98, 409/99, 245/2000, 319/2000, 187/2001 e 232/2003).

Assim, constitui jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal que a Constituição só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material. A este respeito e em particular sobre o sentido da igualdade jurídica, pode ler-se no Acórdão n.º 565/2018:

«15. Numa perspetiva material ou substantiva, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da diferença. Com efeito, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:

«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).

O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.

Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.

O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.”

Na sua mais recente orientação em matéria de controlo da liberdade de conformação do legislador à luz do princípio da igualdade, tem este Tribunal separado dois níveis de análise e graus diferenciados quanto à intensidade do escrutínio. Segundo a síntese do Acórdão n.º 157/2018:

“No primeiro nível, o princípio da igualdade surge convocado como condição da possibilidade de estabelecer a distinção introduzida pela norma questionada, decorrendo a sua violação da ausência de um «fundamento racional» suficientemente justificativo da própria opção de diferenciar […].

No segundo nível, resultante da integração na estrutura do princípio da igualdade de dimensões típicas do princípio da proibição do excesso, tem-se especialmente em vista o escrutínio da medida ou da extensão em que a diferenciação estatutária entre [as] duas categorias [em causa] surge concretizada [no regime diferenciador: assumindo a respetiva ratio, importará verificar se o legislador não demonstra] que a prossecução de tal desiderato tornasse necessário o afastamento integral [do regime comum]. [A configurar-se] uma medida menos diferenciadora, propiciadora de um tratamento mais igualitário entre as duas categorias […] sob comparação, e suscetível de alcançar o mesmo desiderato, a extensão em que a diferenciação surge concretizada no [regime em análise] será, em vista dos próprios fins que lhe subjazem, desnecessária, tornando-se, nesta aceção, incompatível com o “princípio da proporcionalidade, enquanto decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição)”.

Na base do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, e comum a todos os corolários, mais ou menos exigentes, que dele se podem retirar, encontra-se a ideia de igualdade enquanto proibição do arbítrio.

Fornecendo o patamar mínimo do controlo jurisdicional proporcionado pelo princípio da igualdade e acentuando-lhe a função de limite externo da liberdade de conformação do legislador ordinário, a conceção da igualdade como proibição do arbítrio vem sendo desde há muito perfilhada na jurisprudência deste Tribunal. [Na síntese do Acórdão n.º 750/95, o “princípio da igualdade reconduz-se (…) a uma proibição de arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais”. […]

Segundo se extrai ainda da jurisprudência constitucional, a ausência de fundamento material bastante em que se baseia o juízo de censura por violação do princípio da igualdade tanto pode dizer respeito à própria opção de estabelecer um tratamento diferenciado, como à medida em que tal diferenciação surge em concreto concretizada.

[…]

[O]perando essencialmente enquanto proibição do arbítrio, [o princípio da igualdade] enseja um controle externo das opções do legislador ordinário baseado num escrutínio de baixa intensidade. Partindo do reconhecimento de que é ao legislador democraticamente legitimado que cabe ponderar, dentro da ampla margem de valoração e conformação de que dispõe, “os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica” (Acórdão n.º 231/94) – definindo ou qualificando “as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente” (Acórdão n.º 369/97) –, assinala-se ao princípio da igualdade a função de invalidar as escolhas do poder legislativo quando a desigualdade de tratamento que nelas se contém for, quanto ao seu fundamento ou quanto à medida, extensão ou grau em que surge concretizada, à evidência irrazoável.»

O que há a reter é que “… constitui jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal que a Constituição só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material.”

Ora, no caso em apreço não se vislumbra qualquer arbítrio ou falta de fundamento material.

Na verdade, como já se referiu, tratou-se de assinalar a vinda do Papa às JMJ, estabelecendo-se vários limites: idade, data da prática dos factos, tipos de infracções.

Tal e qual se estabeleceu em anteriores amnistias.

A fixação da idade dos 30 anos, e não de outra qualquer, mesmo que por referência a jovens, está também bem explicitada, parecendo desrazoável a discussão acerca da idade até à qual se pode considerar uma pessoa jovem. E muito menos por referência ao conceito de jovem para muitos outros efeitos (até para jovem agricultor!).

Tratou-se apenas de equiparar com a idade considerada para participação nas JMJ.

Por outro lado, é bem compreensível que se associe à vinda do Papa e às JMJ à concessão de um “benefício” a quem sendo jovem, mais facilmente merece “incentivo” para uma melhor ressocialização. É precisamente o que passa com o D.L. 401/82 de 23/9.

Embora não directamente a propósito da norma em causa, mas no sentido do aqui entendido, referiu-se no recente ac. de fixação de jurisprudência 2/2023 de 1/2:

“Desta forma, «a jurisprudência do Tribunal Constitucional afirma que o princípio da igualdade nas leis de amnistia e de perdão genérico "só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis" (Acórdão n.º 42/95), entendendo que as diferenças de tratamento legal traduzem uma diferenciação arbitrária apenas quando não sejam concretamente compreensíveis ou quando não seja possível encontrar uma justificação razoável para a diferenciação, ligada à natureza das coisas (Acórdão n.º 152/95)"». Nesta medida, "a proibição de discriminação nos termos do artigo 13, n.º 2, da Constituição da República, não significa uma igualdade absoluta em todas as situações, mas apenas exige que as diferenciações de tratamento sejam materialmente fundadas e não tenham por base qualquer motivo constitucionalmente improprio. As diferenciações de tratamento podem ser legitimas quando se fundamentarem numa distinção objectiva e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas a realização da respectiva finalidade".

Como tal, e nesta linha de entendimento, "embora a concessão do perdão genérico [...] seja efeito de um acto político, que pode ter por causa as mais diversas motivações [...], como sejam a magnimidade por occasio publicae laetitia excepcional, razões de política geral de apaziguamento ou outras, de correcção de determinadas ponderações anteriores efectuadas pelo direito ou do modo da sua aplicação pela jurisprudência ou pela administração, ela expressa-se através de uma lei em sentido material.

Ora, cabendo a sua edição na competência do legislador ordinário, tomada no campo da política criminal, não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo."

Nesta medida, "o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d'Etat".

Assim, o legislador da clemência tem liberdade de estabelecer os critérios e a forma de determinar o perdão, mantendo uma significativa margem de discricionariedade, de forma a cumprir os objetivos que lhe estão subjacentes. Como tal, "cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas - o quantum do perdão -, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis".

Resulta de tudo o exposto que com a fixação do limite dos 30 anos não se vislumbra qualquer contrariedade aos preceitos constitucionais ou da carta dos direitos fundamentais dos cidadãos da união europeia (no mesmo sentido: acs. da rel. de Coimbra de 22/11/2023 e desta relação de 18/12/2023).

É evidente que se pode discordar da concessão da amnistia (desta ou de outra qualquer) ou dos termos concretos em que a mesma se consubstanciou, mas isso é outro patamar de análise que não tem que ver com a sua conformidade constitucional.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente.

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Custas pelo arguido, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.

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Évora, 23 de Janeiro de 2024

Nuno Garcia

Maria Clara Figueiredo

J.F. Moreira das Neves