Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
779/21.6T8STB.E1
Relator: ELISABETE VALENTE
Descritores: FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
FACTOS ESSENCIAIS
PODERES DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada, impedindo que se conheça a base da convicção da 1.ª instância, a Relação deve determinar a remessa dos autos ao Tribunal da 1.ª instância, a fim de corrigir essa falha. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.

Nos presentes autos, P…, residente no …, em Coimbra, intentou, sob a forma de processo especial, a ação de acompanhamento de maior em benefício de V…, divorciado, NIF …, reformado, residente em …, Setúbal, pedindo a sua nomeação como acompanhante do seu pai, que entende não estar em condições de gerir o seu património e a sua pessoa desde que lhe foi diagnosticado um deficit cognitivo de tipo amnésico, razão pela qual entende também que deve ser suprida a autorização do beneficiário para a propositura da ação e aplicada a medida provisória de internamento civil no Lar M.H.A.S em Setúbal.
Pediu ainda a constituição de conselho de família composto por C… (filha do beneficiário) e A… (irmão do beneficiário), entendendo que M… (companheira do beneficiário) obstaculiza contactos entre a família, não devendo integrar o referido conselho.
O beneficiário foi pessoalmente citado, constituiu mandatária e apresentou contestação, defendendo-se com a invocação de exceção dilatória de ilegitimidade ativa do requerente para propor a presente ação sem colher a sua autorização, impugnando toda a factualidade quanto ao seu estado de saúde e capacidade em geral, pedindo a improcedência da ação.
Foi agendada a audição do beneficiário, sem suprir previamente a autorização deste, por se entender que, em face das circunstâncias do caso concreto, para dar cumprimento ao disposto no artigo 141.º do Código Civil, o Tribunal carecia de ouvir o beneficiário para aferir da sua capacidade e discernimento para autorizar (ou não) a propositura da ação.
Oficiou-se o RENTEV para informar sobre a existência de testamento vital e/ou procuração para cuidados de saúde.
Procedeu-se à audição do beneficiário, nos termos do artigo 898.º do Código do Processo Civil (conforme auto).
Foi proferida sentença, que julgou a presente ação procedente e, em consequência, decidiu:
A) Decretar o acompanhamento do maior V…, reformado, residente em Rua …, em Setúbal.
B) Aplicar, em benefício do acompanhado, medidas de representação especial e intervenção em termos de ASSISTÊNCIA, SUPERVISÃO E CUIDADOS DE SAÚDE, no AUXÍLIO AO NÍVEL DAS COMPETÊNCIAS DE GESTÃO PATRIMONIAL e de AJUDA NA AUTONOMIZAÇÃO PESSOAL, com vista a assegurar o seu bem-estar, configurando as seguintes medidas:
MEDIDA 1 – ASSISTÊNCIA NOS CUIDADOS DE SAÚDE: deveres de cuidado com vista ao acompanhamento, marcação e cumprimento da terapêutica medicamente indicada e outros tratamentos médicos que sejam propostos ao beneficiário como tendentes a melhorar a sua patologia ou condição (incluindo a à submissão do beneficiário a programas de reabilitação cognitiva e neuropsicológica), devem ser decididos pela acompanhante que com ele resida, promovendo esta o envolvimento e adesão do beneficiário às terapêuticas propostas.
MEDIDA 2 – GESTÃO PESSOAL SUPERVISIONADA: impõe-se a necessidade de deveres de supervisão das atividades do quotidiano do beneficiário, mantendo-se, na medida do possível a sua autonomização, incentivando-se o uso do chamado dinheiro de bolso, a ida ao supermercado de forma autónoma, a preparação supervisionada das refeições e o auxílio na escolha de indumentária e organização quotidiana, supervisão essa que deve ser feita pela acompanhante que com ele resida.
MEDIDA 3 – GESTÃO PATRIMONIAL: a tomada de decisão em relação a processos administrativos junto das repartições públicas, devem ser feitas com o apoio de ambas das acompanhantes em união de esforços e em sintonia, a quem se atribui poderes de representação legal para, em nome e interesse do acompanhado, realizar todos os atos necessários perante Autoridade Tributária, Caixa Geral de Aposentação, Segurança Social e outros.
MEDIDA 4 – GESTÃO PATRIMONIAL: A gestão e administração (incluindo movimentos, levantamentos, transferência bancária) das contas bancárias de que o beneficiário possa ser titular, são feitos por decisão conjunta do beneficiário e de ambas as acompanhantes.
MEDIDA 4 – GESTÃO PATRIMONIAL: o apoio na negociação e celebração de contratos, sejam eles de prestação de serviços, de concessão de crédito ou outros que impliquem oneração do património do beneficiário (em tudo o que ultrapasse os atos correntes do quotidiano), devem ser feitos por decisão conjunta do beneficiário e de ambas as acompanhantes.
MEDIDA 5 -AUTONOMIZAÇÃO PESSOAL: impende sobre as acompanhantes o dever de informar o Tribunal de qualquer alteração que justifique a revisão da medida de acompanhamento, ou de causa que fundamente a extinção da medida, devendo o beneficiário ser incluído no processo decisório o mais possível, como forma de se sentir útil e autónomo.
C) Limitar, em benefício do acompanhado, os seguintes exercícios de direitos pessoais:
c.i para os efeitos do disposto no artigo 2189.º, alínea b) do Código Civil, o beneficiário é incapaz de testar;
c.ii para os efeitos do artigo 5.º, n.º 1 alínea c) e n.º 3 da Lei da Saúde Mental [Lei n.º 36/98, de 25 de julho], a presente decisão limita o exercício do direito de decidir receber ou recusar as intervenções diagnósticas e terapêuticas que venham a ser indicadas ou propostas (em sintonia com a medida 1);
c.iii para os efeitos do artigo 85.º, n.º 4 do Código Civil, fixa-se o domicílio do beneficiário na Rua …, em Setúbal.
D) Nomear para as funções de acompanhante de V… as seguintes pessoas:
d.i) a sua companheira M…, de 73 anos de idade, residente na Rua …, em Setúbal, a quem caberá proporcionar o apoio e a supervisão necessários ao governo da vida pessoal do beneficiário, providenciar relativamente a todas as questões que se prendam com a saúde do beneficiário, incluindo a decisão de aceitação e recusa de intervenções diagnósticas e terapêuticas que lhe venham a ser indicadas e propostas (sem prejuízo do art. 148.º do Cód. Civil), bem como em relação a todas as questões que digam respeito à gestão do dinheiro de bolso e do quotidiano doméstico (pagamento das contas da casa, da empregada, do supermercado, da farmácia, entre outras).
d.ii) a sua filha C…, residente na Rua …, em Setúbal, a quem caberá a gestão do património do beneficiário, a outorga de documentos junto de instituições e solicitação de documentação oficial relativos ao beneficiário, incluindo o acompanhamento das contas bancárias de que o beneficiário seja titular, das quais deverá ser constituída como co-titular.
E) Fixar um regime de visitas entre o acompanhado e todos os membros da sua família (de sangue e/ou afetiva), sendo que no caso da acompanhante M…, como reside com o beneficiário não se impõe um regime de visitas, mas se exorta a promover e incentivar o contacto regular do beneficiário com os seus filhos, netos e irmãos, bem como os demais membros da família, seja através de meios de comunicação à distância, seja presencialmente, não havendo qualquer razão, nem mesmo pandémica, para evitar contactos do beneficiário com a sua família.
Por seu turno, a acompanhante C… deverá colaborar com a companheira do seu pai sempre que lhe seja solicitado e necessário ao bem-estar do beneficiário, visitando-o, no mínimo, com uma periodicidade mensal, porquanto não residem na mesma casa, mas na mesma cidade.
Deverá ser ainda organizado com uma periodicidade mensal visitas do beneficiário com o seu filho P…, como forma de incentivar e promover o reatar de laços que se quebraram, mas que são importantes para o bem-estar familiar e para a saúde do acompanhado, sempre buscando a sua adesão.
F) Determinar a constituição do Conselho de Família, nomeando P… (filho do beneficiário), residente no …, em Coimbra para o cargo de protutor/1.º vogal e A… (irmão do beneficiário), residente na …, em Setúbal; para o cargo de 2.º vogal.
G) Determinar que as medidas serão eficazes a partir da data da notificação da presente sentença.
H) Dispensar a publicidade da decisão, sem prejuízo do seu registo/comunicação.
I) Fixa-se à ação o valor de € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).
Inconformado com a sentença, o requerente interpôs recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«a) Na sentença recorrida a Mmª. Juíza indeferiu as diligências de prova requeridas pelo ora recorrente em 17.5.2021, omitiu pronúncia quanto aos meios de prova requeridos na petição inicial, nomeou para a função de acompanhante de V… e determinou a data da notificação da decisão como a data do início das incapacidades.
b) Salvo o devido respeito, sem razão ou fundamento legal, como tentaremos demonstrar. Assim:
c) na petição inicial, o ora recorrente requereu, para além do mais, que fosse decretado o acompanhamento do maior V…, a nomeação do ora recorrente como seu acompanhante e que o Conselho de Família fosse constituído pela filha e irmão do beneficiário, C…, respectivamente.
d) Face ao teor da sentença recorrida, que, para além do mais, nomeu como acompanhante nos cuidados de saúde, gestão pessoal supervisionada unicamente a Srª Dª M… e como acompanhantes na gestão patrimonial e autonomização pessoal a Srª Dª M… e a Srª Drª C…, em detrimento do ora recorrente, indeferiu as diligências de prova requeridas pelo ora recorrente em 17.5.2021, omitiu pronúncia quanto aos meios de prova requeridos na petição inicial, e determinou a data da notificação da decisão como a data do início das incapacidades, é a mesma, quanto a tais questões, desfavorável ao ora recorrente, sendo, por isso, recorrível, nos termos do disposto no artº 629º, nº 1, do CPC.
Do indeferimento das diligências de prova requeridas em 17.5.2021 pelo ora recorrente e da omissão de pronúncia quanto às diligências de prova requeridas na petição inicial:
e) na petição inicial e em diversos requerimentos por si apresentados nos autos, o ora recorrente alegou que o cargo de acompanhante do beneficiário (seu pai) lhe deveria ser atribuído, por ser quem está em melhores condições para o auxiliar e acompanhar.
f) Dado que tal matéria de facto é absolutamente essencial nos presentes autos, não podia, nem devia o Tribunal a quo deixar de ordenar a produção de prova testemunhal requerida pelo ora recorrente na petição inicial e no seu requerimento de 17.5.2021, uma vez que o apuramento das substâncias / medicamentos que têm sido ministrados ao beneficiário e em que doses, através de análises clínicas, é fundamental para conhecer o estado de saúde do beneficiário e determinar a quem deve ser deferido o cargo de acompanhante, não pondo em causa a reserva da vida privada do beneficiário.
g) No ordenamento jurídico português vigoram, para além do mais, os princípios da justiça, da verdade material, do inquisitório, da tutela jurisdicional efectiva e da promoção do acesso à justiça, competindo ao julgador realizar ou ordenar todas as diligências úteis ao apuramento da verdade.
h) Ao dispensar a produção de diligências probatórias, por um lado, e ao omitir pronúncia sobre outros meios de prova requeridos, o Tribunal a quo impediu, indiscutivelmente, a prova de alguns dos factos alegados e que se encontrem controvertidos, o que influi de forma relevante na decisão da causa.
i) E, ao o fazer, violou, de forma grave, os princípios de justiça, da procura da verdade material, do inquisitório, da tutela jurisdicional efectiva e da promoção do acesso à justiça, consagrados nos art.ºs 2º, 3º, 20º, 202º e 205º da CRP.
Ilegalidade e inconstitucionalidade essas que aqui se invocam para todos os efeitos legais. Bem como o direito de as partes verem apreciadas todas as questões que sejam imprescindíveis à boa decisão da causa.
j) Em face do exposto, é a sentença nula por omissão de acto que influi na decisão da causa, nos termos do disposto no nº 1 do artº 195º do CPC. O que se requer seja declarado e, em consequência, seja ordenada a realização da prova requerida para prova da matéria de facto alegada na petição inicial e que se mostra controvertida para a boa decisão da causa, seguindo-se os demais trâmites legais, com as legais consequências.
Por outro lado:
Da impugnação da matéria de facto:
k) o ponto 4 dos factos dado como provados deve ser dado como não provado, atendendo que o “atestado da junta de freguesia” foi expressamente impugnado pelo ora recorrente nos arts 22º a 27º do requerimento junto em 07.5.2021, para além de ter sido contraditado com o documento junto na mesma data (07.5.2021), que não foi impugnado.
l) Pelo menos até 01.3.1996, o beneficiário vivia com I…, nos termos do documento junto a fls. … dos autos (cfr. requerimento junto em 07.5.2021) e não com M….
m) Acresce que, não podia o Tribunal a quo deixar de analisar criticamente a junção de tal “Atestado da Junta de Freguesia” aos autos, dado que o mesmo é falso, por não retratar a realidade, tirando, em consequências, as devidas ilações relativamente à Srª Dª M….
n) Os pontos 20., 21., 22. e 26. dos factos dado como provados devem ser dado como não provados, porquanto nenhuma prova foi produzida neste sentido.  
o) A filha do beneficiário, C…, referiu ao Tribunal que o “Pai (ora beneficiário – esclarecimento nosso) deu prioridade aos filhos” (cfr. Auto de Audição de 27.4.2021, aplicação informática “Habilus”, módulo “Media Studio”, na parte denominada pelo Tribunal a quo como “Perguntas ao Indigitado Conselho de Família e à Testemunha”, minuto 14:30 ao minuto 15:00), e que os filhos sempre foram o centro da vida do beneficiário, com quem este (beneficiário) sempre quis estar (filhos), para além de mencionar que M… afasta os filhos (P… e C…) e a neta do beneficiário do mesmo.
p) Acresce que, não ficou demonstrado, por um lado, qualquer conflito consciente do beneficiário com o ora recorrente, nem, por outro lado, qualquer confiança deste com M…. E, obviamente se tal confiança existisse, o mesmo teria, por exemplo, procedido à gestão do seu património com esta (M…) em data anterior à sua demência – o que não aconteceu -, sendo que apenas terá eventualmente procedido à abertura de conta bancária – da qual não se recorda – após se encontrar em situação de demência!
q) Para além de não ter sido dada qualquer explicação plausível para as transferências bancárias que M… efectuou em seu único proveito (M…) das contas bancárias tituladas conjuntamente pelo beneficiário e os seus dois filhos (P… e C…).
r) O beneficiário não tem qualquer agressividade com o ora recorrente, mas como refere a Senhora Médica Perita no Relatório Médico, na conclusão ii do seu relatório, qualquer agressividade resultaria do seu estado de demência.
S) O ponto 30 dos factos dado como provados deve ser alterado, passando a ter a seguinte redação: “O funcionamento social e a autonomia do beneficiário encontram- se prejudicados”, de acordo com a conclusão xi do relatório médico da Senhora Perita Médica, junto a fl.s … dos autos.
t) Acresce que, o Tribunal a quo também não apreciou criticamente as declarações de M… que, em sede de “Audição”, referiu que, desde 2015, o beneficiário sofre um agravamento da sua demência e que a própria sofre de problemas de audição e de ossos e que, em Dezembro de 2020, o beneficiário foi internado por a mesma não ter capacidade de cuidar dele.
u) Pelo que, face aos documentos juntos sob os nºs 1, 3 e 4 da petição inicial, sob os nºs 1 e 2 do requerimento de 17.5.2021 e o “Relatório Médico” da Senhora Médica Perita (cfr. “Auto de Audição” de 27.4.2021), devem ser aditados os seguintes factos aos factos provados:
-o Requerente tem 50 anos de idade;
-desde, pelo menos, 2015, que o beneficiário sofre de demência;
-o beneficiário tem alterações comportamentais, com tendência de agravamento num curto prazo, com períodos de agressividade;
-os filhos do beneficiário, P… e C…, sempre foram o centro da vida do beneficiário;
-desde, pelo menos, 2018, que M… procede ao levantamento e a transferências bancárias de diversas quantias pecuniárias existentes em contas bancárias que o beneficiário tinha com os seus 2 filhos (P… e C…) a seu favor (M…);
-em Dezembro de 2020, o beneficiário foi internado atendendo ao facto de M… não ter capacidade de cuidar dele, tendo a mesma tratado do seu internamento sem informar o requerente (P…);
-M… tem problemas de audição e de ossos.
O que se requer, com as legais consequências.
Por outro lado ainda:
Da nomeação de acompanhante e da data de início das incapacidades:
v) o Tribunal a quo ao atribuir o cargo de acompanhante a M… não atentou, por exemplo, à idade desta (73 anos de idade) e à sua condição física e de saúde frágeis, dado que a mesma não é capaz de auxiliar o beneficiário caso o mesmo caía ao chão ou de o amparar ou o levar, em situação de dificuldade na locomoção. E isto contrariamente ao ora recorrente que tem condições físicas para amparar, apoiar e levar o beneficiário.
w) Para além disso, é o ora recorrente que tem melhores condições (nomeadamente de idade – 50 anos de idade – e físicas) para acalmar física e psicologicamente o beneficiário, caso o mesmo se torne violento e / ou exaltado, face à “presença de alterações comportamentais” na sequência do seu quadro de demência.
x) Face à importância que os filhos sempre tiveram para o beneficiário, sendo o centro da sua vida, deve ser atribuído o cargo de acompanhante ao ora recorrente, que tem condições para residir em Setúbal, e à sua irmã C…,a quem competirá as medidas de assistência e de supervisão do beneficiário, por ser quem melhor pode proporcionar a este os melhores cuidados, atenção e bem-estar.
y) E, consequentemente, o regime de visitas deve ser incentivado e promovido, com uma regularidade diária, se possível, ou semanal com todos aqueles que são importantes para o beneficiário, designadamente o seu irmão A… e filha C…, alterando-se em conformidade o Conselho de Família, que deve ser composto por A…, irmão do beneficiário, e M…, cunhada do beneficiário.
z) Por outro lado, a data de início das incapacidades deve ser o ano de 2015 (cfr. relatório médico junto sob o nº 3 da pi e as declarações prestadas em sede de “Audição do Beneficiário”) ou, se assim se não entender – o que se não aceita e só por necessidade de raciocínio se refere – sempre a data de início das incapacidades deve ser reportada a Outubro de 2019 (cfr. conclusão xii do Relatório Médico da Senhora Perita Médica e documentos juntos sob os nºs 3 e 4 da pi). O que tudo se requer seja declarado, com as legais consequências.
aa) Assim, deve a sentença recorrida ser revogada nesta parte, com as legais consequências, assim se fazendo, com mui suprimento de V.s Exªs Venerandos Desembargadores, JUSTIÇA!»
Nas contra-alegações, o requerido conclui que o recurso do recorrente deve ser julgado improcedente.
Também o requerido, inconformado com a sentença, interpôs recurso contra a mesma, apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«1ª – A presente acção foi intentada por P…, filho do Requerido, sem a sua autorização, que nem sequer a pediu, pois sabia que o pai estava em condições de dar (ou não) e que jamais a daria, pelo que o melhor era nem sequer pedir ao Tribunal e requerer ao Tribunal que suprisse a autorização.
2ª – O Requerido invocou a ilegitimidade do Requerido para a presente acção, tendo o tribunal o Tribunal julgado a excepção invocada improcedente, expondo, na 3ª página da sentença, os fundamentos da decisão nesse sentido.
Decidiu mal a nosso ver. O Tribunal para decidir no sentido de que a autorização deve ser suprida invoca “o que resulta demonstrado nos autos, sobretudo proveniente da observação directa pelo Tribunal da postura e comportamento do beneficiário, assim como o resultado da sua audição…parece evidente não tem noção da demência de que padece, e está lentamente a perder a sua capacidade de avaliar a realidade como ela é. Além do mais o beneficiário demonstrou alguma desorientação no tempo, não reconhece a necessidade de ser ajudado, sendo frontalmente contra qualquer iniciativa para o auxiliar demonstrando não só a falta de insight* para a sua patologia, mas também uma total negação da sintomatologia desta demência crónica de que padece, que poderá compreender um óbice à sua estimulação cognitiva e melhoria em geral.
3ª - Impõe-se que V. Exas., Venerandos Desembargadores, tomem conhecimento da forma como o Tribunal procedeu à audição do Beneficiário
4ª - Quando entrou na sala de audiências foi indicado pela sra. funcionária judicial ao Beneficiário para entrar naparte que tem um semicírculo ao centro, em que são ouvidos os arguidos em processo crime.
5ª - A Mma. Juíza iniciou a audição do beneficiário, seguindo-se a Perita Médica, o Ministério Público, a Mandatária do Requerente e do Beneficiário, tendo este permanecido sempre de pé, nunca lhe tendo sido dito pela Mma. Juíza, a única a quem competia dizê-lo, para se sentar.
6ª - A audição do Beneficiário durou mais de 45 minutos, o que significa que o Beneficiário, de 78 anos de idade, pelo menos a partir dos primeiros 10 minutos, passou a estar em sofrimento causado pelo incómodo de permanecer em pé, a que acresce, obviamente, que a situação de estar no local onde são ouvidos os arguidos em processo crime, foi de igual modo causa de sofrimento e stress.
7ª - O Beneficiário deveria ter prestado as suas declarações, na parte onde prestam depoimento as testemunhas, sentado numa cadeira, tal como as testemunhas prestam depoimento.
8ª - Em primeiro lugar, mesmo prestando declarações no local reservado aos arguidos, o que já foi muito mau, nada impedia que fosse dito ao Beneficiário para se sentar o que certamente teria contribuído para que ele não se sentisse tão estigmatizado. Todos sentados menos o beneficiário, ainda por cima, o mais velho e separado de todos os outros intervenientes.
9ª – A mandatária do Requerido referiu este aspecto nas alegações que apresentou Ref: 57822291 (que supra se transcreveu na pág. 4 , mas a Mma. Juíza não fez qualquer referência na sentença.
10ª - O Beneficiário já se deslocou ao Tribunal numa situação de profunda angústia e revolta, como facilmente se percebe e compreende.
11ª – O Requerido sabe - porque foi notificado pessoalmente da acção pelo tribunal e leu a petição - que o seu filho, (com quem está de relações cortadas (conforme consta do ponto 22 dos factos provados) pretendia ser nomeado seu acompanhante, tirá-lo da sua casa para ir viver com ele em Coimbra onde reside, separá-lo da sua companheira que nem do conselho de família deve fazer parte, tirá-lo da sua cidade, dos seus pertences, do convívio com os seus amigos, os seus vizinhos, do local onde mora, etc., sem esquecer, da possibilidade de ser internado num Lar, e o Tribunal avalia a sua postura que verte na aludida pág. 3ª da sentença dizendo que é causa de suprir a sua vontade porque não está em condições de a dar?
12ª - Pois é exactamente ao contrário. O que o comportamento do Beneficiário revelou foi uma enorme noção do que estava ali a fazer e do que da sua audição podia resultar.
13ª - Quando ele leu o que o filho pretendia, o seu comentário foi este: “Mas isto é condenar-me à morte”.
14ª - A Mma. Juíza revela que tem noção que o Beneficiário estava em condições de dar a autorização para a presente acção, como o demonstra o facto de se ter visto na necessidade de dizer (§ 4º da mesma pág. 3ª)……. O beneficiário não se encontra em condições de compreender os pressupostos do procedimento, apesar de ter recebido por si próprio a citação pessoal que lhe foi feita (nosso sublinhado), uma vez que a sua patologia e fases oscilantes de lucidez o tornam instável, agressivo e susceptível a perdas graves de memória.
15ª - O Requerido foi citado pessoalmente em 22-03-2021 (cfr. Certidão de citação Ref.ª 5673373), tendo-lhe sido entregue a acção, documentos e feito assinar um documento complexo, com uns círculos a assinalar para o que ele era citado, etc., etc., e aqui para a Mma. Juíza já estava em condições de compreender todos os pressupostos e mais algum.
16ª - Ou seja, o Requerido teve toda a lucidez para receber citações pessoais, para perceber do que se tratava, das consequências que a acção tinha para a sua vida, etc., etc., mas um mês antes não se encontrava em condições de compreender os pressupostos do mesmo procedimento para o qual estava a ser citado.
17ª - Isto é até contraditório com o que se diz e repete na sentença acerca do agravamento da doença.
Para dar autorização não tinha capacidade para compreender o procedimento, mas para ser citado para o mesmo procedimento já teve capacidade para compreender tudo.
18ª – O que os autos demonstram é que o Beneficiário estava em condições de dar autorização para a presente acção, não resultando dos autos, antes pelo contrário, que a sua vontade devesse ser suprida pelo tribunal, pelo que a excepção de ilegitimidade do requerente devia ter sido julgada procedente e consequentemente o tribunal devia ter-se abstido de conhecer do mérito da causa e ter absolvido o Requerido da instância (Arts. 141º nº 1 do CC e 576º nº 2 e 577º d) ambos do C.P.C.).
19ª – Prevenindo a hipótese que de forma alguma se espera, mas que se tem de equacionar, desse Venerando Tribunal entender que não merece censura o suprimento da autorização do Requerido, o Requerido defende que deve improceder o pedido de acompanhamento, por não se mostrarem necessárias medidas que restrinjam os seus direitos, quer pessoais quer patrimoniais, necessitando apenas do que tem, o auxílio da sua companheira e de outros familiares como a sua filha Cristina, (mas não como acompanhante), o seu irmão Américo Gaspar, bem como outros familiares de quem não se falou na audição, mas que existem.
20ª – O Requerente discorda da redacção de alguns factos dados como provado sob os pontos 6, 8,9 ,12, 21, e 25, pelas razões que explanou no corpo das sua alegações, sugerindo-se que tais factos passem a ter a seguinte redacção:
21º - Sugere-se que o ponto 6 dos factos provados passe a ter a seguinte redacção:
6. Foi maquinista da Marinha Naval e quando saíu da Marinha passou a trabalhar na Siderurgia Nacional, tendo-se reformado há alguns anos, não conseguindo precisar quantos, passando a auferir duas reformas uma da Marinha e outra da Siderurgia Nacional.
22ª - Sugere-se que a redacção dos ponto 8 e 9 dos factos provados seja a seguinte:
8. Apresenta um quadro de demência crónico e lentamente progressivo.
9. Tem actualmente alterações ligeiras de memória, de atenção, desorientação temporal e presença de alterações comportamentais.
23ª - Sugere-se que o ponto 12 dos factos provados tenha a seguinte redacção:
12. No tocante a pagamentos e compras, o beneficiário quando não tem dinheiro na carteira, vai ao multibanco sozinho para o levantar, mas às compras tem ido junto com a sua companheira porque, quando o beneficiário vai sozinho, por vezes troca os itens que tem de comprar, não apresentando dificuldades em fazer trocos, mas usa o cartão multibanco maioritariamente para fazer pagamentos.”
Os factos vertidos no ponto 21 não têm sustentação na audição do beneficiário nem em nenhumas declarações prestadas pelo que deve ser eliminado.
24ª – Sugere-se que o ponto 25 tenha a seguinte redacção:
25. O beneficiário sempre teve uma conta bancária co-titulada pelos seus dois filhos P… e C…, mas abriu uma nova conta bancária co-titulada com a sua companheira M…, para onde passou a ser depositada uma das reformas que aufere, continuando a outra a ser depositada na conta que já tinha co-titulada com os filhos.
25ª – A sentença acautelou inteiramente os interesses do Requerente (mesmo não o tendo nomeado acompanhante, mas membro do conselho de família, e da sua irmã, C…, a quem o Requerente indicou na petição para pro-tutora, tendo-a o tribunal nomeado acompanhante juntamente com a companheira do Beneficiário, com poderes de gestão patrimonial.
26ª - Embora o Tribunal tenha dito para as decisões serem tomadas em conjunto com o beneficiário e companheira, na prática, nada podendo o Beneficiário decidir, em sintonia com a sua companheira de há 38 anos, sem o acordo da filha, deixando-o reduzido ao “dinheiro de bolso” (sic), para além de ser uma medida que não se justifica, será factor de conflitos que só agravarão a saúde do Beneficiário.
27ª - Está demonstrado nos autos que o quadro demencial de que o Requerido padece, não assume gravidade que justifique que o Tribunal o tenha reduzido à condição de um menor, retirando-lhe na prática qualquer autonomia de gerir o seu património que se reconduz, na prática a duas contas bancárias.
28ª – Conforme consta da sentença, “Com interesse para a decisão a proferir não se provou que o beneficiário tenha dificuldade em exprimir-se de forma lógica”.
29ª – Só se exprime de forma lógica quem pensa de forma lógica, do que resulta que o Requerido tem capacidade pra gerir o seu património, sendo até triste que se diga a um homem, depois de uma vida de trabalho, de uma vida regrada, poupada, para usufruir de uma velhice confortável junto da sua companheira, ao ficar doente, lhe seja dito que fica reduzido a gerir o dinheiro de bolso, conforme foi decidido.
30ª - Da matéria de facto dada como provada, mesmo tal como foi considerada provada, mas mais evidente ainda com as alterações que se sugeriram, não resulta, nem se retira que o Requerido esteja incapaz de compreender e de exercer o seu direito pessoal de testar ou de limitar o exercício do direito de decidir receber ou recusar as intervenções diagnósticas e terapêuticas que venham a ser indicadas, nada tendo resultado provado que alguma vez o Requerido se tenha recusado a cuidados de saúde que lhe tenham sido propostos, como de resto, demonstra o facto dos exames médicos juntos aos autos terem sido realizados por iniciativa própria e juntos aos autos no dia da sua Audição.
31ª - Perante tudo o que consta dos autos, mormente, a Audição do Beneficiário, as medidas propostas pelo seu Médico, o que consta do Relatório Neuropsicológico elaborado a pedido do seu Médico, junto aos autos, nenhuma dúvida pode restar, na prossecução do interesse do beneficiário que nenhuma medida deve ser decretada, quer a nível pessoal quer patrimonial, pelo que se pugna pela improcedência do pedido de acompanhamento, ou, subsidiariamente, pela manutenção da nomeação da sua companheira M… para exercer o cargo de acompanhante, devendo ser dispensado o conselho de família, que, de resto, nunca poderia integrar o Requerente com quem o Requerido está de relações cortadas.
32ª - A douta sentença proferida padece de excessivo cariz patrimonial e, não diremos que restringe completamente, mas restringe forte e injustificadamente, os direitos pessoais do Requerido.
33ª - A presente acção de acompanhamento de maior intentada pelo Requerente com os objectivos plasmados na petição é uma acção cruel, que evidencia sem margem para dúvidas que foi movida apenas por interesses económicos, sendo indiscutível a total indiferença do Requerente pelas gravíssimas consequências que teriam na saúde, e consequentemente, na vida do Requerido.
34ª – Foi violado por erro de interpretação o disposto nos arts. 141º nº 1 e 2 do C.C. , 576, nº 2 e 577º d) do C.P.C., 140º nº 1 e 2, 145º nº 1, 147º nº 1 do C.C., os quais devem ser interpretados no sentido explanado no corpo das alegações.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V.EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO Deve ser dado provimento ao recurso, ser revogada a douta sentença, ser declarado que o Requerido estava em condições de dar autorização para a presente acção, não resultando dos autos, que a sua vontade devesse ser suprida pelo tribunal, pelo que a excepção de ilegitimidade do Requerente deve ser julgada procedente e consequentemente decidido que o tribunal se devia ter abstido de conhecer do mérito da causa, absolvendo-se o Requerido ora Recorrente da instância (Arts. 141º nº 1 do CC e 576º nº 2 e 577º d) ambos do C.P.C.).
Na hipótese que não se espera, mas que tem de se equacionar de esse Venerando Tribunal entender que não assiste razão ao Recorrente, quanto ao suprimento da vontade do Recorrente pelo Tribunal, Deve ser julgado improcedente o pedido de acompanhamento do Recorrente, declarando-se não existirem fundamentos quer de facto quer de direito para a restrição quer dos direitos pessoais quer patrimoniais que se encontram descritos nos pontos A), B) Medidas 1, 2, 3, 4, 4, 5. C) c.i, c.ii e c.iii d) d.i, dii, E), F) G) e h) . da dota sentença.
Deve, assim, ser julgado improcedente o pedido de acompanhamento, ou, subsidiariamente a nomeação da sua companheira Maria Preciosa da Graça Almeida para exercer o cargo de Acompanhante.
ASSIM FAZENDO V. EXAS. VENERANDOS DESEMBARGADORES A COSTUMADA JUSTIÇA».
Nas respectivas contra-alegações, o requerente concluiu que o recurso do recorrido deve ser julgado improcedente e a sentença deve ser mantida na parte que decretou o acompanhamento do maior V…, contudo as medidas devem ser alteradas no sentido por si requerido nas suas alegações de recurso.
Na resposta do MP ao recurso do requerente, aquele conclui da seguinte forma:
«1. No processo de acompanhamento de maior, como é o caso dos presentes autos, opera o princípio do inquisitório (cfr. artigos 891.º, 986.º, n.º 2, e 897.º, n.º 1, todos do C.P.C.) no que respeita aos poderes oficiosos do juiz para investigar os factos e recolher os meios de prova, o qual é sempre direcionado para a salvaguarda do interesse imperioso do beneficiário.
2. In casu, o Tribunal a quo pronunciou-se quanto às diligências de prova requeridas pelo ora Recorrente, considerando que aquelas não se mostravam indispensáveis, tendo em vista a demonstração dos factos pertinentes para a decisão a proferir, razão pela qual as indeferiu.
3. Consequentemente, tendo presente os poderes instrutórios que o artigo 897.º, n.º 1, do C.P.C. confere ao juiz, a natureza urgente dos presentes autos, e o disposto no n.º 2, do artigo 986.º, do C.P.C. [só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias], a sentença não é merecedora de censura.
4. Importa ainda ter presente o princípio da livre apreciação da prova, o qual prevê que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, conforme previsto no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
5. Foi precisamente por atender aos documentos juntos aos autos e, bem assim, ao teor das declarações prestadas, que o Tribunal a quo, no cumprimento da lei, decidiu pela necessidade do acompanhamento de V…, pela nomeação de M… e C… para o cargo de acompanhantes e pela nomeação de P… e A… para a composição do conselho de família.
6. A sentença ora recorrida é, pois, expressa na indicação das normas jurídicas que sustentam a sua decisão, assim como na descrição dos factos provados e na prova com base na qual o Tribunal a quo assentou a sua convicção.
7. Verifica-se, assim, que os fundamentos do recurso sustentam apenas e só a discordância do Recorrente sobre a matéria de facto.
8. Na determinação do âmbito e conteúdo do acompanhamento, bem como da pessoa a designar para o cargo de acompanhante, deverão ser respeitadas, até onde for possível, a autonomia e a liberdade individual do beneficiário (cfr. artigo 143.º, n.º 1, do Código Civil).
9. Assim sendo, e no que diz respeito à escolha de M… para exercer a função de acompanhante, a mesma resultou, não só da vontade expressa e inequívoca de V…, mas também da circunstância de se ter provado ser aquela a pessoa que melhor salvaguarda o interesse imperioso do Maior Acompanhado.
10. O Tribunal a quo deu, pois, adequado e cuidado cumprimento ao dever de fundamentação no que diz respeito à decisão de as medidas serem eficazes a partir da notificação da presente sentença.
11. De facto, o Tribunal a quo atendeu ao enquadramento legal em vigor e aos factos assentes, os quais são suficientes para suportar a solução jurídica adoptada, a qual se mostra adequada face às condições concretas do beneficiário, à sua autonomia e liberdade.
12. Atento o supra exposto, é entendimento do Ministério Público não merecer censura a decisão recorrida, por obedecer a todos os requisitos legais, não tendo violado qualquer norma legal.
Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, consequentemente, confirmada a decisão ora recorrida.
Vossas Excelências, porém, e como sempre, farão Justiça!»
Na resposta do MP ao recurso interposto pelo requerido, aquele conclui da seguinte forma:
«1 – Tendo a acção de acompanhamento de maior por escopo a salvaguarda do interesse imperioso do beneficiário (cfr. artigo 143.º, n.º 2 do CC), é de concluir que a falta de reconhecimento da doença, em linguagem clínica a falta de insight para a doença, aliada ao facto de o requerido acreditar, como o demonstrou ao longo de toda a audição, que a acção foi iniciada apenas por motivos económicos e ao teor dos relatórios médicos, que bem demonstram a existência de doença cognitiva de carácter progressivo e irreversível , são factores que apenas poderiam levar a Mma. Juiz a decidir pela necessidade de suprir a autorização do beneficiário, o que fez.
2 – Relativamente à matéria de facto dada como provada e à necessidade de, face à prova produzida alterar o teor de tal matéria de facto temos que no que respeita ao ponto 6 um mero lapso que em nada influi para a fundamentação ou para o dispositivo da sentença.
3 – Os pontos 8 e 9 da matéria de facto em causa resultam claramente dos relatórios médicos juntos aos autos e da audição do beneficiário, assim como da inquirição da sua companheira de longa data, escolhida pela Mma. Juiz como acompanhante.
4 -Por sua vez no que respeita ao ponto 11, tal facto foi retirado do relatório neuropsicológico constante dos autos não resultando da conjugação de tal facto com os factos 8 e 9 qualquer contradição que, aliás, o requerido apenas alega existir sem que a explane minimamente.
5 -Quanto ao ponto 12, a sua redacção resulta directamente do relatado pela testemunha M…., a perguntas da Senhora Perita Médico-legal, sendo o acrescento de que sabe fazer trocos, absolutamente irrelevante, uma vez que, por exemplo o beneficiário apesar de conhecer valor facial do dinheiro demonstra desconhecer o valor real do mesmo, o que é notório quando afirma que um par de calças de ganga pode custar entre 1.000,00EUR (mil euros) a 1.500,00EUR (24’10 a 26’21’’) e desapoiada do contexto da inquirição da referida testemunha já que o que esta afirma é que o requerido a partir de determinada altura começou a pagar as compras com cartão multibanco e que “antes” sabia fazer trocos, referindo claramente a mesma testemunha que o beneficiário seria incapaz, por si só, de se deslocar a Lisboa.
6 -Já o ponto 21 resulta claramente das declarações do beneficiário ao longo de toda a sua audição, particularmente dos momentos em que afirma que a presente acção especial foi iniciada pelos seus filhos “por causa do tostão” (vide supra) e do facto de o beneficiário afirmar que não consegue estar na mesma sala que o seu filho (44’00 a 45’30’’), das declarações da sua filha, do seu filho, da sua companheira e do seu irmão, todos eles fazendo alusão à progressiva crispação e afastamento entre eles, particularmente a partir do momento em que a acção foi proposta.
7 -Para finalizar o ponto 25 da matéria de facto dada como provada não deve ser alterado já que tal facto resulta claramente das declarações do beneficiário (25’20’’ a 26’30’’ e 38’00 a 39’00’’) que afirmou aos autos que só tem uma pensão, resultante da unificação da pensão da “siderurgia” e da “marinha”, pensão essa que a partir de determinada altura passou a ser depositada na conta bancária co-titulada com a testemunha M….
8 -Não sendo necessário repetir toda a fundamentação de direito e de facto já constante do aresto sub judice, porque clara e suficiente, há que, no entanto, afirmar que a decisão quanto à necessidade de acompanhamento e quanto às medidas de acompanhamento face à matéria de facto dada como provada não poderia ser outra.
9 -O beneficiário ao longo de toda a audição demonstrou sinais da demência que lhe foi diagnosticada, alguns deles já supra elencados, bem como da dificuldade que sente em gerir o seu património por causa de tal doença que se lhe impõe. Apenas se pode explicar e entender a afirmação do beneficiário de que um par de calças de ganga pode custar entre “1.000,00 a 1.500,00 EUR”, como sendo um sinal inequívoco de tal condição de saúde.
10 -Ora, face ao carácter progressivo e irreversível da doença, é clinicamente expectável, como o afirma o relatório da perícia médico-legal, que tal condição se agrave, tornando-se os episódios de desorientação mais frequentes, prolongados e com consequências mais graves. E não se diga que a desorientação foi provocada pelo ambiente hostil do tribunal e pelo facto de o beneficiário ter estado durante toda a audição, que durou 45 minutos, em pé e no lugar do arguido;
11 -Primeiro porque tal não corresponde à verdade, como se pode constatar pelo minuto 19’30’’ a 19’31’’ da audição, e depois porque a audição do beneficiário decorreu no mesmo sítio que ocorrem todas as diligências processuais de todos os intervenientes em todo o tipo de processos, seja no âmbito da jurisdição cível, seja no âmbito da jurisdição de família e menores, seja no âmbito de qualquer outra, não se podendo dizer que tal foi suficiente para prejudicar a sua sanidade mental ou a sua cognição ou volição, como o pretende o recorrente.
12 -Nesta medida atendendo a toda a prova produzida, documental, pericial, testemunhal e audição do beneficiário, de onde resultou nomeadamente a confiança que este deposita na sua companheira, o ambiente de crispação, actual, com os seus filhos e com o seu irmão, a Mma. Juiz a quo, procurou e encontrou um equilíbrio na representação do beneficiário, preservando o seu superior interesse e a preservação das suas capacidades actuais, não deixando, ademais, de prever a revisão da decisão num prazo que consideramos, ainda que curto, adequado.
13 -Também por isto não se concorda com o recorrente quando afirma que as medidas decretadas restringem “forte e injustificadamente os direitos pessoais do requerido”, até porque apenas foram limitados os direitos pessoais de testar e de fixar residência, o que nos parece adequado face à desorientação temporal e espacial de que o mesmo padece e à sua dificuldade em reconhecer o real valor monetário das coisas.
14 -Até porque a gestão patrimonial, que se nos afigura absolutamente necessária, nos termos em que foi regulada não alterará o actual estado das coisas, uma vez que qualquer decisão patrimonial que tenha que ser tomada não pode ser tomada unilateralmente por qualquer um dos membros integrantes do conselho de família ou qualquer uma das acompanhantes face ao equilíbrio que foi encontrado pela Mma. Juiz e que está bem claro na sentença que deve ser lida na sua totalidade e não apenas reproduzida parcialmente, como o fez o recorrente.
Termos em que, e nos mais de direito, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo R. e, consequentemente, ser confirmada a decisão recorrida, assim se fazendo a necessária JUSTIÇA! »
Foram dados como provados na 1.ª instância os seguintes factos (transcrição):
1. O beneficiário V… nasceu no dia 10 de junho de 1942, em Setúbal e está registado como filho de C… e M….
2. Casou catolicamente com M… em 26.11.1967 e divorciou-se por sentença proferida em 02.05.1978 pelo Tribunal de Coimbra.
3. O beneficiário é pai de P… (requerente).
4. O beneficiário vive em união de facto com M… há 38 anos.
5. O beneficiário tem 79 anos e a sua companheira 73 anos, vivendo ambos sozinhos na Rua …, em Setúbal.
6. Foi maquinista da Marinha Naval e está reformado há alguns anos, não conseguinte precisar quantos.
7. Desde, pelo menos, o ano de 2015 que o beneficiário tem vindo a apresentar esquecimento momentâneo, desorientação no tempo e dificuldade em fazer ligações ao nível da memória de curto e médio prazo.
8. Apresenta um quadro de demência que é arrastado, crónico e lentamente progressivo.
9. Tem atualmente alterações graves de memória, da atenção, desorientação temporal e alterações de comportamento, marcados por períodos de agressividade.
10. Demonstra diminuição importante da iniciativa, com perda de capacidades para a execução das tarefas diárias, como a escolha da indumentária, a toma de medicação e a confeção de alimentos.
11. Em abril de 2021 o beneficiário fez uma avaliação neuropsicológica, tendo em conta a sua faixa etária e o nível de escolaridade, que revelou um discurso espontâneo fluente com ligeira dificuldade em encontrar as palavras a usar, uma alteração grave da flexibilidade cognitiva e uma diminuição da velocidade de processamento da informação.
12. Quando vai ao supermercado, o beneficiário já não consegue selecionar que produtos precisa de adquirir, mesmo que vá munido de uma lista de compras, e tem dificuldades em fazer o pagamento da conta final se a mesma for em numerário.
13. Em casa, o beneficiário já não sabe em que gavetas se encontram as peças de vestuário que precisa para se vestir, dependendo da sua companheira para lhe escolher a roupa.
14. No que se refere à preparação de refeições, o beneficiário já não tem a iniciativa de preparar alimentos na grelha como antigamente, dependendo em absoluto da sua companheira para a preparação e programação de refeições.
15. O beneficiário já não tem destreza para conduzir veículos automóveis, embora declare que não os conduz porque não quer.
16. O beneficiário já não tem capacidade para circular de transportes públicos de forma autónoma, conseguindo deslocar-se nas imediações do local onde reside porque reconhece os sítios que lhe são familiares e as pessoas o conhecem, razão pela qual não o enganam ou ludibriam.
17. O beneficiário tem autonomia motora, alimentando-se pela sua própria mão.
18. O beneficiário não soube verbalizar que médico o acompanha, quando foi a última vez que foi ao médico, nem que exames fez, e não sabe que medicação toma.
19. Em dezembro de 2020 o beneficiário foi internado durante um curto período de tempo no Centro MHAS em Setúbal por sugestão do seu irmão A…, como forma de recuperar a sua mobilidade e condição física, após ter fraturado um pé.
20. Embora não tenha conseguido explicar nada sobre o seu internamento, este afastamento da sua companheira, ainda que momentâneo, representou um evento traumático na vida do beneficiário.
21. E contribuiu para aumentar a agressividade em relação aos seus filhos, que culpabiliza por tudo o que lhe acontece.
22. O beneficiário está de relações cortadas com o filho mais velho (requerente).
23. Ao nível emocional não apresenta sintomatologia depressiva, mas a nível comportamental padece de irritabilidade fácil, agressividade verbal e baixa tolerância às contrariedades.
24. beneficiário conhece o valor facial do dinheiro, mas apresenta grandes dificuldades relativamente ao valor dos bens.
25. O beneficiário sempre teve uma conta bancária co-titulada pelos seus dois filhos P… e C…, mas abriu agora uma nova conta bancária apenas co-titulada com a sua companheira M…, para onde passou a ser depositava a pensão de reforma do beneficiário.
26. O beneficiário confia na sua companheira M…, mas apresenta-se muito agressivo em relação ao seu filho P… (requerente).
27. Encontra-se muito dependente do auxílio de terceiros para a realização de tarefas da vida diária, embora não reconheça as suas limitações.
28. Foi-lhe medicamente sugerido que inicie um programa de reabilitação cognitiva e neuropsicológica de 12 meses para a monitorização da evolução do quadro.
29. O seu quadro clínico é irreversível, embora seja possível atingir melhoramentos se for seguida a terapêutica instituída.
30. O funcionamento social e a autonomia do beneficiário não se encontram totalmente prejudicadas, antes comprometidos de forma moderada.
31. A presente ação foi interposta em 10.02.2021.
* Com relevo para a decisão a proferir, não se provou que:
A) Que o beneficiário tenha dificuldade em exprimir-se de forma lógica.
B) Que a ida do beneficiário para um lar fosse a melhor forma de o ajudar.

2 – Objecto do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objecto dos recursos delimitados pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC:
Recurso do requerente:
1.ª Questão – Saber se a prova requerida em 17.05.2021 deveria ter sido admitida.
2.ª Questão – Saber se a sentença é nula por omissão de decisão quanto às diligências de prova requeridas na petição inicial.
3.ª Questão (recurso do requerente) - Saber se os factos 4, 20., 21., 22., 26 e 30 dos factos provados devem ser alterados/se a fundamentação é suficiente e se devem ser aditados novos factos.
E
1.ª Questão (recurso do requerido) - Saber se os factos provados 6, 8, 9, 12, 21 e 25 devem ser alterados/se a fundamentação é suficiente.
4.ª Questão – Saber quem deve ser nomeado acompanhante.
5.ª Questão – Saber qual é a data do início das incapacidades.
Recurso do requerido:
2.ª Questão – Saber se o tribunal podia suprir o consentimento da beneficiária para a propositura da presente acção.

3 - Análise do recurso.

Recurso do requerente:

1.ª Questão – Saber se a prova requerida em 17.05.2021 deveria ter sido admitida.

Aquando das suas alegações, o requerente requereu a realização de análises clínicas ao requerido para apurar que substâncias/medicamentos tem sido administrados ao beneficiário e a notificação da Agência de Gestão e Tesouraria e dívida pública bem como ao Banco de Portugal para informarem de que depósitos ou valores é titular o requerido, a notificação da Conservatória para informar se o requerido fez testamento e finalmente indicou testemunhas sem precisar o objecto da inquirição das mesmas.
Na mesma conclusão onde foi proferida sentença foi proferida decisão que indeferiu tal requerimento de prova, com o argumento de que tal prova limitaria desnecessariamente os direitos do requerido.
O recorrente insiste em que tal prova era necessária por ser relevante para a verdade material, nomeadamente para determinar a quem deve ser deferido o cargo de acompanhante.
Ainda que formalmente [porque não inserido no Título XV do Livro V do Código de Processo Civil e outrossim porque nenhuma disposição legal o qualifique como tal] o processo de acompanhamento de maiores não possa ser considerado um processo de jurisdição voluntária, certo é que, em termos substanciais, passa a sê-lo.
Como refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA [O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais, E-Book citado, CEJ, Fevereiro de 2019, págs. 45-46] “Ao processo especial de acompanhamento de maiores aplicam-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de decisão e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (art.º 891.°, n.º 1). Esta regulamentação contém uma remissão para o regime dos processos de jurisdição voluntária nos seguintes aspectos:
- Poderes do juiz: o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; além disso, só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias para a boa decisão da causa (art.º 986.°, n.º 2);
- Critério de decisão: nas providências a tomar, o tribunal deve adoptar, em cada caso, a solução que julgue mais conveniente e oportuna (art.º 987.°); isto significa que, nos processos de acompanhamento de maiores, o critério de decretamento da respectiva medida é a discricionariedade;
- Alteração das decisões: as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; a superveniência pode ser objectiva ou resultar de ignorância da parte ou de outro motivo ponderoso que tenha conduzido à omissão da alegação (art.° 988.°, n.º 1).
Em suma: o processo especial de acompanhamento de maiores é, em termos substanciais, um processo de jurisdição voluntária”.
Dada a remissão constante do art.º 891.º, n.º 1, para o regime dos processos de jurisdição voluntária, o juiz pode coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes (art.º 986.°, n.º 2, 1.a parte), pelo que, é-lhe igualmente conferida a prerrogativa de apenas admitir as provas que considere necessárias para a boa decisão da causa (cfr. art.º 986.º, n.º 2, do CPC).
Neste contexto, não cremos que o recorrente tenha razão, pois não vislumbramos (nem o recorrente o explica) de que forma é que a realização de análises clínicas poderá determinar o sentido da decisão e, por outro lado, as demais diligências correspondem a diligências relativas ao património que não se vê como possam relevar para o efeito (o que o recorrente também não explica), pelo que improcede nesta parte o recurso.

2.ª Questão – Saber se a sentença é nula por omissão de decisão quanto às diligências de prova requeridas na petição inicial.

O recorrente vem ainda invocar que não houve pronúncia sobre a prova indicada na petição inicial e que esta omissão acarreta a nulidade da sentença.
Em primeiro lugar, importa referir que nunca estaríamos perante uma nulidade da sentença, mas eventualmente perante uma nulidade processual.
Mas não cremos que haja qualquer nulidade.
Com efeito, o requerente não deixou de apresentar a prova que entendeu necessária ao longo do processo e, se era sua intenção insistir nessas ou outras provas, bem podia tê-lo feito, como aliás o fez no requerimento de 17.05.2021, no qual, aliás, indica as mesmas testemunhas e que foi indeferido, pelo que omissão não só não influiu no exame ou na decisão da causa, como foi irrelevante.
Mas, mesmo que assim não fosse, a considerar-se que a omissão produz nulidade, estaríamos perante uma nulidade secundária ou atípica que só poderá ser conhecida pelo tribunal mediante reclamação do(s) interessado(s) na observância da formalidade (artigo 200.º do CPC) para o órgão que omitiu o acto e não mediante recurso.
Tanto basta para a improcedência, nesta parte, do recurso.



3.ª Questão (recurso do requerente) - Saber se os factos 4, 20., 21., 22., 26 e 30 dos factos provados devem ser alterados/se a fundamentação é suficiente e se devem ser aditados novos factos.
E
1.ª Questão (recurso do requerido) - Saber se os factos provados 6, 8, 9, 12, 21 e 25 devem ser alterados/se a fundamentação é suficiente.

As partes impugnaram a matéria de facto quanto aos factos 4, 6, 8, 9, 12, 20, 21, 22, 26 e 30 dados como provados e o que se verifica, desde logo, é a impossibilidade de tal tarefa, por desconhecimento da base de convicção do julgador.
Sabemos que, para o cumprimento do dever de fundamentação da decisão da matéria de facto – imposto pelo art.º 653.º, n.º 2 do CPC – não basta a mera indicação dos meios de prova que serviram de base à decisão e nem tão pouco se basta com a alusão aos depoimentos prestados, já que aquilo que se impõe é que o julgador concretize, na medida do possível, o processo lógico que levou à formação da sua convicção, especificando, não só os concretos meios de prova em que se baseou, mas também as razões que o levaram a considerar esses meios de prova como aptos ou adequados para formar a sua convicção relativamente à verificação (ou não verificação) dos factos, analisando criticamente as diversas provas produzidas, explicando as razões pelas quais lhe mereceram credibilidade as provas que foram fundamentais para a formação da sua convicção e concretizando, na medida do possível, as razões que o levaram a atribuir maior credibilidade a determinados meios de prova em detrimento de outros que com eles eram incompatíveis.
Não sendo tarefa fácil, o cumprimento desse dever de fundamentação (até porque no processo de formação da convicção do julgador intervêm inúmeros factores que nem sempre se conseguem exteriorizar), o certo é que a transparência das decisões judiciais impõe a realização de um esforço nesse sentido.
Como refere Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2.ª edição, Lisboa 1997, página 348):
"A fundamentação da apreciação da prova deve ser realizada separadamente para cada facto. A apreciação de cada meio de prova pressupõe conhecer o seu conteúdo (por exemplo, um depoimento da testemunha), determinar a sua relevância (que não é nenhuma quando, por exemplo, a testemunha afirmou desconhecer o facto) e proceder à sua valoração (por exemplo, através da credibilidade da testemunha ou do relatório pericial). Se o facto for considerado provado, o tribunal deve começar por referir os meios de prova que formaram a sua convicção, indicar seguidamente aqueles que se mostraram inconclusivos e terminar com referência àqueles que, apesar de conduzirem a uma distinta decisão, não foram suficientes para afirmar a sua convicção." (sublinhado nosso).
Ou seja, como afirma Lebre de Freitas (in A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª edição, página 315):
“No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5)”. (destaque e sublinhado nosso).
“A fundamentação passou a exercer, pois, a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da Justiça, inerente ao ato jurisdicional”. (Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre)
Como refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, volume II, 2015, páginas 350/351), “[t]rata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio.”
Ora, no caso concreto na motivação da matéria de facto, apesar de se indicarem os meios de prova considerados e se indicar o porquê da relevância dada aos mesmos de forma clara e expressiva não se faz a correspondência desses meios de prova com cada um dos factos dados como provados, o que nos impede de aferir – nomeadamente quanto aos factos impugnados pelos recorrentes – qual foi a prova considerada para cada facto.
Ou seja, é uma fórmula mais genérica e conclusiva, sem referência e conexão aos meios de prova e factos concretos.
Este TR está, por isso, impedido de saber qual a base da convicção da 1.ª instância e é disso que se trata quando se aprecia a impugnação: confrontar a convicção da 1.ª instância com a discordância dos recorrentes (Note-se que, sendo certo que a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas nos mesmos termos em que deve fazer a primeira instância, sem limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada em função do princípio da imediação da prova, isso não significa que a Relação possa actuar como um “[t]ribunal de segunda instância em Tribunal de substituição total e pleno, anulando, de forma plena e absoluta, o julgamento”, como refere o Acórdão do STJ de 01/07/2014, proferido no processo n.º 1825/9.7TBST.P1.S1. Como se diz no referido Acórdão, “[n]ão será certamente alheio a este desígnio e propósito legislativo o facto de não ser possível reeditar, em segunda instância, todo o material probatório que serviu de base à decisão de facto, com todas as vicissitudes que nele podem ocorrer e com isso o Tribunal de segunda instância deve limitar-se aos meios de prova já produzidos, a menos que estime que não foram produzidos todos aqueles que deveriam ter sido em face da matéria a demandar da prova, mas neste caso abstém-se de julgar e ordena a produção dessa prova (…) É à 1ª instância que cabe, em primeira e decisiva linha, fazer uma aproximação imediata e próxima das provas que lhe são presentes”.
Ou seja, estamos perante um sistema de Reponderação (e não de ponderação) em que o objectivo não é a realização de um novo julgamento, destinando-se antes a servir para firmar uma convicção mais segura sobre determinado facto controvertido.
Estamos, assumidamente, perante uma competência de correção de erros judiciários em situações bem determinadas, mediante impulso processual da parte, no qual se limitará o objecto do recurso. Não estamos perante uma competência irrestrita e originária de julgamento da prova – vide Rui Pinto, O Recurso Civil. Uma Teoria Geral, ed.- AAFDL, Lisboa 2017, pág. 165 sgts.
Neste contexto, não nos parece correcto abdicar da análise e ponderação daquilo que foi a convicção da 1ª instância e por assim dizer, começar do “nada”.)
A este propósito, diz-nos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, página 244):
“Se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada a Relação deve determinar a remessa dos autos ao Tribunal da 1.ª instância, a fim de preencher essa falha com base nas gravações efectuadas ou através de repetição da produção de prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto”.
Pelo exposto, cabe-nos utilizar a previsão do art.º 662.º, n.º 2, alínea d) do CPC, nos termos da qual este TR deve ainda, mesmo oficiosamente determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa - no caso concreto os pontos 4, 6, 8, 9, 12, 20, 21, 22, 26 e 30 dados como provados - o tribunal da 1.ª instância a fundamente.
Fica assim prejudicado o conhecimento das demais questões.

4. Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em remeter os autos ao Tribunal da 1.ª instância, para efeitos de fundamentação da decisão sobre os factos nº 4, 6, 8, 9, 12, 20, 21, 22, 26 e 30 dados como provados, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea d) do CPC.
Sem custas.
Évora, 28.10.2021