Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
14/25.8T8LGA-B.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
ADMINISTRADOR
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A responsabilização dos administradores/gerentes, não apenas de direito, mas também de facto, da sociedade insolvente, encontra-se expressamente prevista no n.º 1 do artigo 186.º do CIRE, uns e outros podendo ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa, conforme especifica a alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º do mesmo Código;
II – Estes preceitos, ao se reportarem aos administradores de direito ou de facto, visam estender o regime jurídico em causa, relativo à qualificação da insolvência e aos efeitos da insolvência culposa, a quem exerça a administração de facto, sem que tal extensão importe a exclusão dos administradores de direito que não exerçam as respetivas funções de facto;
III – A qualificação da insolvência como culposa importa a aplicação, às pessoas declaradas afetadas pela qualificação, das medidas estabelecidas nas alíneas b) a e) do n.º 2 do artigo 189.º;
IV – O n.º 2 deste artigo configura uma norma imperativa, mostrando-se obrigatória a aplicação das medidas estabelecidas nas alíneas b) a e) às pessoas afetadas pela qualificação da insolvência.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 14/25.8T8LGA-B.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo de Comércio de Lagoa


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

Por apenso ao processo de insolvência que corre termos no Juízo de Comércio de Lagoa do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, no âmbito do qual foi declarada insolvente a sociedade (…), Lda., o administrador da insolvência requereu a abertura de incidente de qualificação da insolvência, por motivos que expôs, propondo a qualificação da insolvência como culposa, com afetação da gerente da insolvente, (…), e do gerente de facto, (…), com fundamento na previsão das alíneas a), d), e), f), g) e h) do n.º 2, e da alínea b) do n.º 3, do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, o Ministério Público apresentou parecer, pugnando no sentido da qualificação da insolvência como culposa, com afetação das pessoas indicadas e pelos motivos expostos pelo administrador da insolvência.
Notificada a devedora e citados os demais requeridos, (…) e (…) deduziram oposição separadamente, cada um defendendo a sua não afetação pela eventual qualificação da insolvência como culposa.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, após o que se procedeu à identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:
Pelo exposto, qualifico como culposa a insolvência de (…), Lda., e, em consequência:
a) Declaro afetado pela qualificação a sua gerente de direito (…) e seu gerente de facto (…);
b) Declaro (…) e (…) inibidos, pelo período de 6 (seis) anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Condeno (…) e (…) a indemnizar os credores até ao valor de 50% no montante dos créditos reconhecidos e não satisfeitos nos autos, até às forças do respetivo património.
*
Custas do incidente pelo afetado pela qualificação.
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Registe e notifique.
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Remeta certidão às Conservatórias do Registo Civil competente, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 189.º, n.º 3, do CIRE.
Inconformada, a requerida (…) interpôs recurso desta decisão, na parte em que a declarou afetada pela qualificação da insolvência como culposa, com os efeitos consignados nas alíneas b) e c) do segmento decisório, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A) Vem o presente recurso de Apelação interposto da Sentença proferida e que decidiu afectada pela qualificação a gerente de direito (…) e a inibiu pelo período de 6 (seis anos) para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
B) Não se conforma a Requerida/recorrente com a decisão contra si proferida, a qual considera, salvo o devido respeito, fez uma deficiente apreciação da prova produzida e consequentemente a uma decisão que tendo sido devidamente apreciada e ponderada, conduziria necessariamente a uma decisão diversa da que foi proferida.
C) O Tribunal a quo deveria apreciar da conduta de cada um dos gerentes, de facto e de direito, e a sua contribuição para a situação da insolvência da sociedade, para o que tinha toda a prova junta aos Autos e os depoimentos das testemunhas e senhor administrador de insolvência, o que não fez.
D) Visando-se com o presente recurso impugnar-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pois a prova produzida impõe decisão diversa quanto à mesma e para dar cumprimento ao preceituado no referido normativo, a prova que foi gravada e que se invoca no presente recurso foi consignada na acta da sessão da audiência de julgamento de 17.09.2025, contendo o início e o termo da gravação da seguinte forma:
- Declarações de Parte de (…), e cujo depoimento foi gravado no sistema de áudio disponível no tribunal de 10:53 a 11:13 horas;
- Declarações do Sr. Administrador de Insolvência, (…), cujo depoimento foi gravado no sistema de áudio disponível no tribunal de 10:27 a 10:24 horas;
- (…), cujo depoimento encontra-se gravado pelo sistema de áudio disponível no tribunal de 11:15 a 11:38 horas.
E) Como resulta da factualidade dada como provada, nomeadamente nos seus pontos 6, 7, 16 e 17, a gerência da insolvente foi sempre exercida de facto por (…), o que ocorreu logo desde o início / constituição da sociedade, sem que a ora Recorrente tenha participado em qualquer acto de gerência da sociedade e/ou tomada de qualquer decisão sobre a mesma e/ou relativa à mesma.
F) Resultou ainda como assente que (…) e a ora Recorrente vivem em união de facto há cerca de 15 anos, e têm dois filhos em comum.
G) A relação de ambos, pois, ultrapassa a esfera profissional e abarca a esfera pessoal e familiar, numa complexidade própria deste tipo de relacionamento: a existente é uma confiança alinhada com a complexidade e mistura das relações pessoal e profissional.
H) Sendo que provado ficou que em termos profissionais a ora Recorrente nunca agiu activamente na sociedade insolvente, nem praticou quaisquer actos de gestão de facto da mesma.
I) Mesmo na indicada constituição da sociedade (…), Unipessoal, Lda., considerada pelo Tribunal a quo, a ora Recorrente, que dela não faz parte, não teve qualquer intervenção sua, nem na tomada das decisões referidas pelo Tribunal a quo que eventualmente terão levado ao agravamento da situação de insolvência da (…).
J) Todos os actos praticados para o efeito foram levados a cabo pelo (…), sem conhecimento e acção directa ou indirecta da ora Recorrente.
K) Assim, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida, que a imputou em responsabilidade igual à do seu companheiro, gerente de facto da insolvente, por entender que a mesma não valorou, ou valorou erradamente, os elementos probatórios existentes nos autos, e que necessariamente tinham que orientar a sentença num sentido diverso.
L) A Recorrente considera que a sentença recorrida não valorou e / ou apreciou de forma correta os depoimentos da Recorrente, do gerente de facto e das respetivas testemunhas, assim como do próprio Administrador de Insolvência, além da prova documental junta aos Autos, integrando, por isso, nos termos dos artigos 640.º e 662.º do CPC, erro de julgamento da matéria de facto.
M) Acresce que o Tribunal a quo deveria ter apreciado a prova em função da situação em concreto e apreciar a actuação de cada gerente no seio da gestão da sociedade e de apreciar o que a respectiva actuação contribuiu e em que medida para a criação e/ou agravamento da situação da insolvente, o que não fez.
N) O Tribunal a quo não fez esse exercício individualmente para cada gerente, de facto e de direito, assim considerados, nem na verdade, o Tribunal a quo fez no seu conjunto, como deveria.
O) Pelo que ao não ter feito a fundamentação individual para a responsabilidade de cada gerente e a que levou individualmente à condenação em inibição e responsabilização em face dos credores, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 186.º e 189.º do CIRE.
P) O artigo 186.º do CIRE refere claramente que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave do gerente de direito ou de facto.
Q) Sendo que o legislador ao incluir nos 186.º e 189.º do CIRE, a conjunção alternativa “ou”, isto é, ou o gerente de direito “ou” o gerente de facto podem ser abrangidos pela qualificação da insolvência como culposa, quis retratar situações como a dos presentes autos, ou seja, poder responsabilizar apenas e tão só os gerentes de facto que têm uma gestão efetiva da sociedade insolvente, sem que, para tanto, tenham de ser afetados pela qualificação da insolvência, os gerentes de direito que assumem uma posição passiva e se limitam a assinar, permitindo que a imputação de responsabilidades possa e tenha que ser distinta conforme a respectiva actuação para a situação de insolvência da sociedade, tanto mais e como o caso dos presentes Autos em que a Recorrente é a companheira do gerente de Direito e em que as relações que se estabelecem entre ambos, assim como as de confiança têm que ser valorizadas nesse prisma e apreciadas na respectiva fundamentação.
R) A responsabilidade da gerente de direito, no caso, não pode ser aferida como uma qualquer responsabilidade de quem, objectivamente não tendo qualquer relação de familiaridade, exerce gerência de direito com outrem que exerce a gerência de facto da sociedade e apenas pela verificação dos pressupostos indicados na Lei.
S) Não basta a verificação de qualquer um dos pressupostos para, sem fundamentação e apreciação da situação em concreto determinar por igual as medidas sancionatórias previstas no artigo 189.º do CIRE, também elas sem qualquer fundamentação.
T) Mesmo, e sem condescender ou prescindir, no caso de se poder considerar que até existe uma eventual omissão de acção e/ou dever de cuidado de vigilância/controle por parte da mulher, gerente de direito, no caso a ora Recorrente, sempre terá o Tribunal a quo que apreciar a sua culpa, ou culpa grave ou dolo resultante dessa eventual omissão e no que a mesma conduziu ao resultado final e fundamentar a sua posição.
U) E até que ponto a sua eventual omissão e as consequências da mesma e que lhe está a ser imputada, a título de culpa, culpa grave ou até dolo, atentas as circunstâncias do caso em concreto, e se foi a causa criadora e/ou a causa do agravamento da situação de insolvência da sociedade.
V) A apreciação desses pressupostos é assim importante para a qualificação da insolvência ao abrigo do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, que pressupõe que se prove que o seu comportamento tenha agravado a situação de insolvência.
X) Tal apreciação e juízo de valor fundamentado não foi feito pelo Tribunal a quo, como resulta da sentença proferida.
Z) O Tribunal a quo apenas partiu da verificação dos pressupostos indicados no artigo 186.º do CIRE e sem qualquer fundamentação para a culpa encontrada condenou ambos os gerentes, de facto e de direito, na mesma responsabilidade.
AA) Acresce que o Tribunal a quo considerou período mais alargado que os três anos de gestão da sociedade, conforme resulta da sentença, violando desta forma o disposto nos artigos 186.º e 189.º do CIRE.
AB) Ora, para a determinação da medida da inibição deve atender-se à gravidade da concreta conduta que determinou a qualificação da insolvência como culposa, o grau de intensidade da culpa e as consequências que daí resultaram para os credores e para a criação ou agravamento da situação de insolvência – a propósito veja o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 280/2015, de 20 de Maio de 2015 (onde se afirmou que a determinação do período das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º deveria ser feita em função do grau de culpa e ilicitude manifestado nos factos determinantes da qualificação da insolvência como culposa) e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 28-05-2019, no processo n.º 3647/09.6TJCBR-A.C1, publicado em www.dgsi.pt.
AC) Como se retira da sentença proferida o Tribunal a quo não fez essa apreciação, não considerou a actuação de cada um dos gerentes, de facto e de direito na situação em concreto, nem considerou qual o grau e intensidade da culpa de cada um deles, que em função da matéria provada são necessariamente diferentes: seja pela acção, seja pela omissão.
AD) Como já referido o n.º 1 do artigo 186.º do CIRE refere que: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de fato, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
AE) E conforme documentos juntos, a actividade da insolvente não sofreu oscilações, sendo que como resultou do depoimento da testemunha (…) e do sr. Administrador de Insolvência, os activos fixos intangíveis não se encontram em parte incerta ou desapareceram sem rasto.
AF) Conforme resulta dos Autos, todos os activos fixos intangíveis foram localizados e identificada a sua localização, sendo os que não foram entregues às financiadoras credoras e os que foram abatidos, passiveis de reverter à insolvente. Não existiu uma qualquer ocultação de património e/ou de activos, eles estão todos identificados e localizados.
AG) Por todo o supra exposto devendo a prova dada como assente ser reapreciada e considerando o exposto, deverá ser avaliada para efeitos de imputação de responsabilidade aos gerentes de facto e de direito, a qual tem que ser diferenciada em função da responsabilidade e actuação de cada um deles.
AH) A sua, gerente de direito, actuação e/ou omissão não determinou o agravamento da situação da insolvente e em que medida.
AI) E essa determinação é imprescindível porquanto a responsabilização civil dos afectados exige a verificação dos pressupostos gerais do instituto da responsabilidade civil previstos pelo artigo 483º do CC, ou seja, que resultem de conduta por facto voluntário, ilícito e subjectivamente imputável ao lesante, nomeadamente a título de culpa.
AJ) Para esse efeito, e em caso do apuramento dessa responsabilidade a mesma tem que estar intimamente conectada com gravidade da ilicitude e da culpa, que se apura no caso em concreto.
AK) O que não foi feito pelo Tribunal a quo, individualmente e relativamente à ora Recorrente, gerente de direito, e ao não ter apreciado a conduta dos gerentes, de facto e de direito, nem a gravidade da ilicitude do seu comportamento e da sua culpa, o Tribunal a quo violou também desta forma os pressupostos do artigo 483.º do CC e consequentemente do artigo 189.º do CIRE.
AL) Desta forma deve-se pelo presente recurso e em apreciação dos factos dados como provados, substituir-se a sentença proferida por outra onde se aprecie a actuação de ambos os gerentes, discriminadamente e atenta a respectiva responsabilidade na gestão da insolvente e o agravamento da situação da mesma e consequentemente seja absolvida a Recorrente de qualquer afetação proveniente da qualificação, ou e caso assim não se entenda o que apenas se concede por mero exercício, seja aplicada imputação da responsabilidade na proporção das respectivas responsabilidades nessa mesma gestão, apreciando a actuação do gerente de facto, como sendo a única por acção e a da gerente de direito, ora recorrente como por omissão, não tendo a mesma intervindo com culpa grave ou dolo na criação e/ou agravamento da situação da insolvente no período dos três anos anteriores à apresentação à insolvência.
Termos em que e com o sempre mui Douto suprimento de V. Exas. deverá ser proferida decisão que substituindo a proferida, aprecie a actuação de ambos os gerentes, discriminadamente e atenta a respectiva responsabilidade na gestão da insolvente e o eventual agravamento e por virtude disso a Recorrente seja absolvida das condenações sofridas, quer na afetação proveniente da qualificação, e consequentemente na indemnização em que foi condenada.
Caso assim não se entenda o que apenas se concede por mero exercício, e se entenda declarar culpa proveniente da qualificação, seja aplicada imputação da responsabilidade na proporção das respectiva responsabilidade, por eventual omissão de qualquer acção por não existir conduta com culpa grave ou dolo na criação e/ou agravamento da situação da insolvente no período dos três anos anteriores à apresentação à insolvência».
O Ministério Público apresentou resposta, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar as questões seguintes:
- da reapreciação da decisão relativa à matéria de facto;
- da afetação da apelante pela qualificação da insolvência como culposa e das medidas aplicadas.
Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos

2.1. Decisão de facto

2.1.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. A insolvente é uma sociedade comercial por quotas, constituída por deliberação de 4 de Janeiro de 2018 com o objeto social o transporte rodoviário de mercadorias, local ou a longa distância, com características de serviço regular ou ocasional, por meio de camiões ou veículos similares, manutenção e a reparação (mecânica, eléctrica e electrónica, etc.) de veículos automóveis (ligeiros e pesados) e de suas partes e peças. Inclui as actividades de lavagem, polimento, pintura, tratamento antiferrugem, reparação, serviços de mudanças para famílias ou empresas por transporte rodoviário. As actividades de serviços postais (recolha, tratamento, transporte e distribuição, nacional e internacional) sujeitos a obrigações de serviço universal. As actividades aqui incluídas utilizam as infra-estruturas do serviço universal, incluindo locais de venda, instalações de tratamento e redes de recolha e distribuição do correio. A distribuição pode incluir correspondência, publicidade endereçada, livros e catálogos, jornais e outras publicações periódicas, encomendas postais, bens ou documentos. Inclui recolha de correspondências e encomendas postais nos marcos de correio e nas estações de correio. Armazenagem. Compra e venda de veículos ligeiros e de pesados. Consultoria e apoio a empresa. Organização e promoção de eventos. Transferes.
2. A insolvente tem sede no Sítio das (…), Caixa Postal n.º (…), em (…).
3. Foram sócios fundadores (…) e (…) cada um com uma quota no valor de € 65.000,00.
4. A gerência da sociedade ficou atribuída aos dois sócios, obrigando a sociedade a assinatura de dois gerentes.
5. A 4 de Fevereiro de 2020, (…) cedeu a sua quota a (…), que passou a ser a única sócia e gerente.
6. Desde a constituição da sociedade sempre foi (…), companheiro de (…), quem geriu a sociedade, limitando-se aquela a assinar a documentação necessária.
7. Era (…) quem contratava trabalhadores e lhes dava ordens, e tratava dos assuntos da empresa com o contabilista.
8. No final de 2021 a insolvente apresentava capitais próprios negativos no valor de - € 500.169,00.
9. No ano de 2023 esse valor aumentou para - € 706.179,00 e - € 769.419,00 em 2024.
10. Nos anos de 2022, 2023 e 2024 a sociedade insolvente apresentou resultados líquidos negativos de - € 206.009,00, - € 63.241,00, e - € 3.884,00, respetivamente.
11. De 2022 para 2023 o volume de negócios apresentava um decréscimo de cerca de -74%, sendo inexistente em 2024.
12. No final de 2022 a sociedade insolvente apresentava ativos fixos tangíveis no valor de € 53.804,72 sendo que no final de Dezembro de 2023 e 2024 esses ativos eram no valor de € 9.576,61.
13. Em final de 2024 tal ativo não existia fisicamente.
14. A 14 de Julho de 2022 foi constituída a sociedade (…), Unipessoal, Lda. cujo objeto social é “manutenção e reparação (mecânica, elétrica e eletrónica, etc.) de veículos automóveis (ligeiros e pesados) e de suas partes e peças. Inclui as atividades de lavagem, polimento, pintura, tratamento antiferrugem, reparação, substituição ou instalação (de pneus, para-brisas, vidros, rádios, jantes, etc.). Consultoria para os negócios e gestão. Transporte rodoviário de mercadorias, local ou a longa distância, com características de serviço regular ou ocasional, por meio de camiões ou veículos similares, manutenção e a reparação (mecânica, elétrica e eletrónica, etc.) de veículos automóveis (ligeiros e pesados) e de suas partes e peças. Inclui as atividades de lavagem, polimento, pintura, tratamento antiferrugem, reparação, serviços de mudanças para famílias ou empresas por transporte rodoviário. As atividades de serviços postais (recolha, tratamento, transporte e distribuição, nacional e internacional) sujeitos a obrigações de serviço universal. As atividades aqui incluídas utilizam as infraestruturas do serviço universal, incluindo locais de venda, instalações de tratamento e redes de recolha e distribuição do correio. A distribuição pode incluir correspondência, publicidade endereçada, livros e catálogos, jornais e outras publicações periódicas, encomendas postais, bens ou documentos. Inclui recolha de correspondências e encomendas postais nos marcos de correio e nas estações de correio. Armazenagem. Compra e venda de veículos ligeiros e de pesados. Consultoria e apoio a empresa. Organização e promoção de eventos. Transferes”.
15. É única sócia e gerente dessa sociedade (…), que foi trabalhadora da (…), Lda..
16. Tem sido (…) quem, na prática, tem gerido a sociedade (…), Lda..
17. Toda a exploração da insolvente foi transferida para a (…), Unipessoal, Lda., nomeadamente clientes e trabalhadores.
18. Nos dois anos que precederam a apresentação à insolvência a insolvente cedeu à (…), Unipessoal, Lda. a utilização das viaturas (…), (…), (…), (…), sem qualquer contrapartida;
19. Embora a insolvente tenha registadas em seu nome as viaturas com as matrículas (…) e (…), não tem em seu poder tais viaturas nem consta da sua contabilidade a entrada de qualquer valor monetário relativo à sua venda.
20. A devedora insolvente não depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas relativas aos anos de 2021 a 2024.
21. A devedora apresentou-se à insolvência em 16 e Janeiro de 2025.
22. A devedora foi declarada insolvente por sentença proferida em 29 de Janeiro de 2025.
23. Foram reconhecidos créditos no valor total de € 594.460,75.
24. Desses € 256.811,05, são à Autoridade Tributária e € 195.031,60.

2.1.2. Factos considerados não provados em 1ª instância:
Consignou-se o seguinte: Com interesse para a decisão, nada mais se provou.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

2.2.1. Reapreciação da decisão relativa à matéria de facto
A apelante põe em causa a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida, tecendo considerandos sobre a prova produzida, que sustenta não ter sido devidamente apreciada pela 1ª instância, sendo certo que não deduz qualquer pretensão visando a modificação da factualidade julgada provada ou não provada, assim não podendo considerar-se efetivamente impugnada a decisão proferida.
É sabido que a impugnação da decisão relativa à matéria de facto se encontra sujeita a determinados requisitos, impostos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil (CPC), pelo que cumpre verificar se os mesmos se mostram cumpridos.
Sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o citado preceito o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Explicando o sistema vigente quando o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, afirma António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 165-166), além do mais, o seguinte: “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente (…)”.
Em anotação ao citado preceito, explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 770) que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objeto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões”.
Analisando as alegações de recurso apresentadas, verifica-se que a recorrente não especifica nas respetivas conclusões, nem sequer no corpo das alegações, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que impõe se conclua que não cumpriu o ónus previsto na alínea a) do n.º 1 do mencionado artigo 640.º.
Acresce que a apelante também não indica, seja na motivação ou nas conclusões das alegações, a decisão que entende dever ser proferida sobre questões de facto impugnadas, como tal incumprindo igualmente o ónus previsto na alínea c) do n.º 1 do citado preceito.
O incumprimento, pelo recorrente, de qualquer dos ónus previstos nas citadas alíneas a) e c), é cominado com a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º, assim se encontrando afastada a possibilidade de a Relação convidar ao aperfeiçoamento das alegações, de forma a suprir tal omissão.
No caso presente, verificado o incumprimento pela recorrente destes ónus indicação nas conclusões dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e indicação, na motivação ou nas conclusões, da decisão que entende dever ser proferida sobre tais questões de facto , sempre seria de rejeitar o recurso na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, caso tivesse sido efetivamente deduzida, conforme decorre do estatuído no corpo do n.º 1 do citado artigo 640.º.
Verificada a falta de efetiva impugnação da decisão de facto, impõe-se rejeitar a apreciação da argumentação da apelante, na parte em que põe em causa a decisão de facto.

2.2.2. Afetação da apelante pela qualificação da insolvência como culposa e medidas aplicadas
Por sentença proferida no presente incidente de qualificação da insolvência, a 1ª instância qualificou como culposa a insolvência de (…), Lda., o que não vem posto em causa na apelação.
Mais se decidiu, na sentença que qualificou a insolvência como culposa, o seguinte: a) declarar a ora apelante, que é gerente da devedora, e (…), que é gerente de facto, afetados pela qualificação; b) declará-los inibidos, pelo período de seis anos, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; c) condenar a apelante e (…) a indemnizar os credores até ao valor correspondente a 50% do montante dos créditos reconhecidos e não satisfeitos nos autos, até às forças do respetivo património.
Encontra-se impugnada no recurso a parte da sentença em que a 1ª instância declarou a apelante afetada pela qualificação e, consequentemente, lhe aplicou a medida de inibição indicada na alínea b) e a condenou a indemnizar os credores da insolvente nos termos definidos na alínea c).
Sustenta a apelante, em síntese, que não foi tida em conta, na decisão recorrida, a diversa contribuição de cada um dos requeridos para a situação que conduziu à insolvência da sociedade, defendendo que a apreciação da conduta da recorrente, que era mera gerente de direito da sociedade e nunca exerceu a gerência de facto, afasta a respetiva responsabilidade, impedindo que seja declarada afetada pela qualificação, com a consequente absolvição das sanções que lhe foram impostas; subsidiariamente, defende se estabeleça uma diferenciação na responsabilidade imputada a cada um dos requeridos e nas medidas sancionatórias aplicadas.
Cumpre apreciar.
O incidente de qualificação da insolvência encontra-se regulado no Título VIII do CIRE e destina-se a apurar os motivos que determinaram a criação ou o agravamento da situação que conduziu à insolvência, de forma a responsabilizar, nomeadamente, os administradores, de direito ou de facto, da pessoa coletiva insolvente, que para tal tenham contribuído, com a respetiva atuação dolosa ou com culpa grave, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
O CIRE identifica, no artigo 185.º, dois tipos de insolvência, a culposa e a fortuita, e define, no n.º 1 do artigo 186.º o conceito de insolvência culposa, dispondo que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. O n.º 2 do artigo 186.º enumera várias situações, aplicáveis quando o insolvente não seja uma pessoa singular, relativas à atuação dos seus administradores, de direito ou de facto, em que a insolvência se considera sempre culposa; o n.º 3 do preceito, por seu turno, contém uma presunção de culpa grave, relativa ao comportamento dos administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular.
A 1.ª instância qualificou como culposa a insolvência de (…), Lda., o que não foi impugnado na apelação, pelo que não há que reapreciar a verificação dos pressupostos exigidos para tal qualificação.
Tendo a insolvência sido qualificada como culposa, cumpre atender ao disposto no n.º 2 do artigo 189.º, com a redação seguinte: 2 - Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa; b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos; c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afetadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos; e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.
Sendo a insolvência qualificada como culposa, como sucedeu no caso presente, a alínea a) do n.º 2 deste preceito impõe ao juiz que, na sentença de qualificação, identifique as pessoas afetadas pela qualificação e fixe, sendo o caso, o respetivo grau de culpa; a norma elenca, a título exemplificativo, algumas categorias de pessoas que podem ser declaradas afetadas, a saber, não apenas os administradores de direito, mas também os administradores de facto, bem como os técnicos oficiais de contas (presentemente, contabilistas certificados) e os revisores oficiais de contas.
A apelante não põe em causa a qualificação da insolvência como culposa, mas defende que, sendo apenas gerente de direito da sociedade e nunca tendo exercido a gerência de facto, não deve ser afetada por tal qualificação; sustenta que a alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º não prevê a afetação simultânea do gerente de direito e do gerente de facto, antes prevendo a respetiva afetação alternativa, com a responsabilização exclusiva do gerente de facto nas situações em que a gerência não seja exercida pelo gerente de direito, como sucede no caso presente.
Vejamos se lhe assiste razão.
Consta da fundamentação da sentença que a qualificação da insolvência como culposa se baseou nos motivos seguintes:
Ficou demonstrado nos autos que desde 2022 os ativos fixos tangíveis da insolvente sofreram uma redução de € 58.804,72 para € 9.576,61. E aquando da declaração de insolvência tais ativos não tinham existência física nas instalações da insolvente. Os veículos essenciais ao exercício da atividade de transporte que era o objeto principal da insolvente, alguns registados em nome da insolvente não foram localizados e outros foram transferidos para a (…), Unipessoal, Lda. sem qualquer contrapartida económica
Ficou provado que, após a constituição da sociedade (…) em 14 de Junho de 2022, toda a atividade da insolvente, nomeadamente trabalhadores, clientes e veículos foram transferidos para esta sociedade, da qual era única sócia (…) e da qual passou a ser gerente de facto (…). Com esta transferência da atividade os gerentes da insolvente esvaziaram a empresa dos meios necessários para prosseguir a sua atividade, prosseguindo os seus interesses pessoais, sabendo que com isso, atendendo ao passivo que existia levaria, necessariamente, à situação de insolvência.
Além destas condutas, os gerentes da insolvente não depositaram as contas da insolvente na Conservatória do Registo Comercial relativas aos anos de 2021 a 2024 (…).
A insolvente apresentava capitais próprios negativos desde o final do ano de 2021, e dividas de valor elevado à autoridade tributária e à segurança social, sendo que só em 2025 se apresentou à insolvência.
Destes comportamentos dos gerentes da insolvente, cuja culpa se presume (…), resultou senão a insolvência, pelo menos o agravamento da situação de insolvência que já se verificava desde pelo menos o ano de 2021 quando os capitais próprios se apresentavam negativos em € 500.169,00
Conclui se, pois, que a insolvência da (…), Lda. é culposa e como tal tem que ser qualificada.
Mais se extrai da fundamentação da decisão que a apelante foi declarada afetada pela qualificação pelos motivos seguintes:
A insolvente tem como gerente e única sócia (…), que pelo simples ato de nomeação adquiriu poderes para nos termos da lei e do contrato de sociedade, representar e administrar a sociedade. Todavia, ficou prova do que, era (…) quem exercia a gerência praticando os atos necessários.
Esta dualidade de gerentes tem necessariamente subjacente um acordo entre ambos pelo qual o gerente de direito, violando os seus deveres legais e contratuais, com pelo menos grave negligencia, se abstém de exercer os atos de gerência que lhe são legal e contratualmente impostos, consentindo que tais atos sejam praticados pelo gerente de facto.
Assim, os ato s contrários à lei praticados pelos gerentes de facto não podem deixar de ser imputados ao gerente de direito, a título doloso ou pelo menos com negligência grave.
Nesta senda, o artigo 186.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, responsabiliza tanto o gerente de facto como o gerente de direito pela insolvência culposa da sociedade.
Assim, a requerida (…), independentemente de ter ou não acompanhado a gerência exercida por (…), violou gravemente as suas funções de gerente por se ter demitido do seu exercício. Pois ainda que desconhecesse os atos praticados tinha obrigação legal e contratual de os conhecer e atuar em conformidade com os seus deveres.
Devem, pois, ambos os requeridos ser afetados com a qualificação.
Encontra-se provado que:
- a insolvente foi constituída em 04-01-2018, com o objeto social especificado no ponto 1, tendo como sócios os dois requeridos, cada um com uma quota no valor de € 65.000,00, tendo a gerência ficado atribuída a ambos, situação que se manteve até 04-02-2020, data em que o requerido cedeu a sua quota à apelante, que passou a ser a única sócia e gerente;
- o requerido é companheiro da apelante e sempre geriu a sociedade, limitando-se aquela a assinar a documentação necessária; assim, era o requerido que contratava trabalhadores e lhes dava ordens, bem como tratava dos assuntos da empresa com o contabilista;
- no final de 2021 a insolvente apresentava capitais próprios negativos no valor de - € 500.169,00; no ano de 2023 esse valor aumentou para - € 706.179,00 e - € 769.419,00 em 2024; nos anos de 2022, 2023 e 2024 a sociedade insolvente apresentou resultados líquidos negativos de - € 206.009,00, - € 63.241,00 e - € 3.884,00, respetivamente; de 2022 para 2023 o volume de negócios apresentava um decréscimo de cerca de -74%, sendo inexistente em 2024;
- no final de 2022 a sociedade insolvente apresentava ativos fixos tangíveis no valor de € 53.804,72 sendo que no final de dezembro de 2023 e 2024 esses ativos eram no valor de € 9.576,61; em final de 2024 tal ativo não existia fisicamente;
- em 14-07-2022 foi constituída a sociedade (…), Unipessoal, Lda., com o objeto social especificado no ponto 14, sendo única sócia e gerente dessa sociedade (…), que foi trabalhadora da insolvente;
- tem sido o requerido quem, na prática, gere a sociedade (…), Unipessoal, Lda.;
- toda a exploração da insolvente foi transferida para a (…), Unipessoal, Lda., nomeadamente clientes e trabalhadores;
- nos dois anos que precederam a apresentação à insolvência, a insolvente cedeu à (…), Unipessoal, Lda. a utilização das viaturas (…), (…), (…) e (…), sem qualquer contrapartida;
- embora a insolvente tenha registadas em seu nome as viaturas com as matrículas (…) e (…), não as tem em seu poder, nem consta da contabilidade a entrada de qualquer valor monetário relativo à sua venda;
- a devedora insolvente não depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas relativas aos anos de 2021 a 2024;
- a devedora apresentou-se à insolvência em 16-01-2025, tendo sido declarada insolvente por sentença proferida em 29-01-2025.
Decorre desta factualidade que a apelante é, desde 04-02-2020, a única gerente de direito da devedora, sendo que não tem exercido as funções de facto que integram a gerência da sociedade, as quais têm sempre sido exercidas pelo requerido, seu companheiro, assinando a recorrente a documentação necessária para o efeito.
Mostra-se acertada a decisão recorrida, ao considerar que a situação exposta tem necessariamente subjacente um acordo entre a gerente de direito e o gerente de facto, em execução do qual a apelante, violando os seus deveres legais e contratuais com, pelo menos, grave negligência, se abstém de exercer os atos de gerência que lhe são legal e contratualmente impostos, consentindo que tais atos sejam praticados pelo gerente de facto.
Encontra-se expressamente prevista no n.º 1 do artigo 186.º a responsabilização dos administradores/gerentes, não apenas de direito, mas também de facto, da sociedade insolvente, uns e outros podendo ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa, conforme especifica a alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º.
Estes preceitos, ao se reportarem aos administradores de direito ou de facto, visam estender o regime jurídico em causa, relativo à qualificação da insolvência e aos efeitos da insolvência culposa, a quem exerça a administração de facto, sem que tal extensão importe a exclusão dos administradores de direito que não exerçam as respetivas funções de facto.
Esclarece Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2025, pág. 183) o seguinte: «A alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º passou a conter uma referência exemplificativa, da qual decorre que são susceptíveis de ser afectados pela qualificação da insolvência os administradores, tanto de direito como de facto, os técnicos oficiais de contas e os ROC. (…) No que toca aos administradores, de direito ou de facto, a solução já era clara em face do disposto no artigo 186.º, n.º 1. Esclareça-se, porém, que a referência do artigo 189.º, n.º 1, alínea a), aos administradores de facto não faz com que os administradores de direito que não exerçam as suas funções de facto sejam excluídos da qualificação como sujeitos afectados.»
Neste sentido, cfr. o acórdão da Relação de Coimbra de 14-04-2015 (relatora: Anabela Luna de Carvalho) – proferido no processo n.º 1830/10.0TBFIG-Q.C1 e publicado em www.dgsi.pt –, em que se entendeu o seguinte: «Ao reportar-se tanto aos administradores de direito como aos administradores de facto, no artigo 189.º, n.º 2, a), do CIRE, o legislador não visa excluir da qualificação da insolvência os administradores de direito que não exerçam as suas funções de facto, mas estender também tal qualificação aos administradores de facto, isto é, àqueles que praticam atos de administração sem que se encontrem legalmente nomeados como titulares do cargo que exercem.»
Como tal, carece de fundamento legal a solução jurídica defendida pela apelante, no sentido da exclusão da afetação dos gerentes de direito que não exerçam funções de facto, antes decorrendo do regime exposto a afetação de ambos os gerentes, o de direito e o de facto, pela qualificação da insolvência.
Mostra-se acertada a decisão recorrida, ao responsabilizar a apelante, com fundamento na sua gravemente culposa conduta omissiva, pela atuação do gerente de facto, nos termos supra expostos, impondo-se manter a sentença, na parte em que declarou a apelante afetada pela qualificação da insolvência, com a consequente improcedência da apelação na parte respetiva.
Na sequência da declaração de ambos os requeridos como afetados pela qualificação, a 1ª instância aplicou-lhes as medidas especificadas nas alíneas b) e c) do segmento decisório da sentença, a saber: b) declarou-os inibidos, pelo período de seis anos, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; c) condenou-os a indemnizar os credores até ao valor correspondente a 50% do montante dos créditos reconhecidos e não satisfeitos nos autos, até às forças do respetivo património.
No recurso que interpôs, a apelante manifestou discordância relativamente à aplicação da medida de inibição indicada na alínea b) e à condenação em indemnização estabelecida na alínea c); subsidiariamente, defende se estabeleça uma diferenciação nas medidas sancionatórias aplicadas aos dois requeridos, invocando a diversa contribuição de cada um para a criação ou o agravamento da situação que conduziu à insolvência.
Analisando o artigo 189.º, verifica-se que a qualificação da insolvência como culposa importa a aplicação, às pessoas declaradas afetadas pela qualificação, das medidas estabelecidas nas alíneas b) a e) do n.º 2 do preceito.
Face à redação do n.º 2 deste artigo, na parte em que estabelece que na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve: (…), dúvidas não há de que se trata de uma norma imperativa, mostrando-se obrigatória a aplicação das medidas estabelecidas nas alíneas b) a e) às pessoas afetadas pela qualificação da insolvência.
Tal afasta a eventual não aplicação das medidas em apreciação à apelante, dado que declarada afetada pela qualificação, pelo que improcede, também nesta parte, a apelação.
No mais, a apelante não põe especificamente em causa a determinação da concreta medida de inibição a que se reporta a alínea b), nem a quantificação do montante indemnizatório estabelecido na alínea c), limitando-se a pugnar pela diferenciação das medidas aplicadas a cada um dos requeridos, sem precisar o sentido da diferenciação que defende e a modificação que preconiza seja operada nas sanções que lhe foram aplicadas.
Dispõe o artigo 639.º, n.º 1, do CPC, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, esclarecendo o n.º 2 do preceito as indicações que deverão constar das conclusões, nos casos em que o recurso versa sobre matéria de direito.
Explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, págs. 767-768) que “conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo”, acrescentando que deve ser incluído, na parte final, o resultado procurado.
No caso presente, em que a apelante não peticiona qualquer concreta alteração do decidido sob as alíneas b) e c), a apreciar na hipótese de se manter a aplicação de tais sanções, não há que analisar a argumentação pela mesma apresentada, visando seja estabelecida uma diferenciação, de sentido não indicado, entre as sanções aplicadas a cada um dos requeridos nessas alíneas.
Nesta conformidade, improcede totalmente a apelação.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Évora, 27-11-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Cristina Dá Mesquita (1ª Adjunta)
Maria Emília Melo e Castro (2ª Adjunta)