Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
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| Relator: | NUNO GARCIA | ||
| Descritores: | CRIME DE ESCRAVIDÃO INDÍCIOS FORTES INDÍCIOS | ||
| Data do Acordão: | 06/06/2023 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Sumário: | Se é certo que a vítima poderia estar a trabalhar e a viver com condições precárias por virtude da conduta do arguido, não é menos certo que, face ao que se indicia, tal não significa que se esteja perante um crime de escravidão p. e p. no artº 159º, al. a), do Cód. Penal. A escravidão tem que ser mais do que isso, implicando “o estado de condição de um individuo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade” (cfr. artº, parágrafo 1º da Convenção de Genebra sobre Escravatura, assinada em 25/9/1926). Ora, sem pôr em causa a precária condição em que a vítima se encontrava, o que é certo é que os indícios não são suficientemente fortes para se concluir que a vítima era tratada como se fosse “propriedade” do arguido. A circunstância de das buscas realizadas em 17/11/2022 resultar que os bens da vítima se encontravam junto do veículo que esta utilizaria para pernoitar, não altera substancialmente a conclusão que agora se chega sobre a inexistência de fortes indícios da prática de crime de escravidão. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA RELATÓRIO O arguido AA foi submetido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no âmbito do qual foi proferido o seguinte despacho: “Indiciam fortemente os autos: 1. BB, durante cerca de dois anos, guardou cabras pertença de AA, num terreno agrícola situado em …, na zona de …. 9. Ao sair, BB foi surpreendido por AA que, munido de um cajado, durante cerca de 15 minutos, lhe desferiu várias pancadas na face, braços, costas, pernas e abdómen. Em virtude de tal conduta, BB sofreu lesões, designadamente hematomas e escoriações por todo o corpo. 14. AA quis ofender o corpo de BB, o que almejou alcançar. Mostra-se apenas indiciado e não fortemente indiciado: 2. Durante o período mencionado, como pagamento do trabalho, AA pagou um euro por dia a BB e forneceu-lhe almoço e jantar. 3. Como alojamento, para pernoitar, foi fornecida a BB uma carrinha velha, sem portas, pertença de AA, onde foi colocado um colchão para tapar o frio. 4. BB não tinha acesso a água potável, luz eléctrica e casa de banho, pelo que fazia as suas necessidades fisiológicas no campo e tomava banho de água fria com uma mangueira utilizada para dar de beber aos animais. 5. Como BB é alcoólico, o dinheiro que recebia diariamente servia para comprar um pacote de vinho no supermercado. 6. Quando BB fazia algo que desagradava a AA este batia-lhe, tendo tratado sempre o mesmo como se fosse um animal. 7. No dia 23 de Outubro de 2022, AA deslocou-se para … e não deixou qualquer tipo de alimentação a BB. 8. No dia 25 de Outubro, como se encontrava com muita fome, por não se alimentar há dois dias, o último entrou na residência pertença de AA, por uma janela que se encontrava aberta, a fim de obter alguma comida. 10. AA colocou BB na sua carrinha, contra a vontade do último, quando o mesmo já se encontrava bastante debilitado pelas lesões, e transportou-o até um sítio ermo, na zona de …, onde foi abandonado. 11. Antes de ter sido deixado sozinho, aproveitando o facto de BB se encontrar bastante combalido e sem forças para reagir, AA retirou a bateria e o cartão de telemóvel pertença de BB, tendo feito seus tais objectos. 13. Com a actuação supra descrita, AA quis reduzir BB a uma condição de escravo, submetendo o mesmo a condições desumanas e degradantes, com o propósito de obter para si proveito económico, o que efectivamente conseguiu. 15. AA quis privar BB da sua liberdade de locomoção e obrigar o mesmo a permanecer numa viatura automóvel contra a sua vontade, o que logrou alcançar. 16. AA quis retirar a bateria e o cartão de telemóvel pertença de BB e fazê-los seus, contra a vontade do legitimo proprietário, o que conseguiu. 18. Em todas as condutas descritas o arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei. Não se mostram indiciados: 12. AA detinha no interior da sua residência uma espingarda de caça e uma pistola, sem que as mesmas se encontrassem devidamente registadas e sem que possuísse licença para o efeito. 17. AA quis deter no interior da sua residência uma espingarda de caça e uma pistola, bem conhecendo as características das mesmas, sem que estas se encontrem devidamente registadas e sem que possua licença para o efeito, o que efectivamente conseguiu. Prova. - Comunicação de notícia de crime- fls. 4 e 5 - Relatório de diligências iniciais- fls. 9 a 11 - Relatório de exame pericial- fls. 16 a 25 - Auto de inquirição de BB- fls. 27 a 31 - Fotografias Google- fls. 32 a 34 - Documentação clínica-fls. 46 e 47 - Auto de inquirição de CC- fls. 48 e 49 - Informação PSP sobre registo de armas e licença de uso e porte de arma- fls. 51 - Auto de diligência- fls. 57 a 59 - Informação da PJ- fls. 67 - Aditamento efectuado pela GNR- fls. 64 a 71 * Fundamentação. No que concerne às agressões físicas, a forte indiciação resulta desde logo da confissão do arguido, que não deixam no signatário especiais dúvidas quanto à corroboração que efetuam à versão do ofendido. Com efeito, concatenando o depoimento de BB, as declarações aqui prestadas pelo arguido e a prova documental (fotografias juntas aos autos) não emergem especiais dúvidas que no dia 25.10.2022 o arguido praticou os factos descritos no art.º 9.º do despacho do Ministério Público. A clareza probatória é tal que não nos merece adicionais considerações. Questão distinta coloca-se quanto aos factos subsumíveis aos demais crimes. E nesta sede, conhecendo o Tribunal profundamente os autos, sendo que inclusive foi o signatário quem emitiu em duas ocasiões mandados de busca, temos que discordar com as alegações do MP. Da análise dos autos resulta, com exceção das agressões ocorridas no dia 25 de outubro, que o único elemento de prova existente corresponde ao depoimento do ofendido. É certo que tal não significa que a factualidade não possa estar fortemente indiciada, contudo, para que tal ocorra a versão do ofendido deve ter uma tal credibilidade endógena que não suscite no julgador especiais dúvidas. E tal não ocorre nos autos por existirem pequenos detalhes, devidamente valorados à luz das regras da experiência que não conferem uma credibilidade à versão do ofendido à prova de bala. Em primeiro lugar, é difícil não atentar no depoimento de CC, o qual caracteriza a vida do ofendido como algo indigente e suscetível de se dar a trabalhos mal remunerados e bastante precários. Resulta aliás de tais declarações que o ofendido terá sido vítima anteriormente de abusos laborais, não necessariamente reconduzíveis ao crime de escravidão, mas que em momento algum deram origem a qualquer participação criminal. Com muito relevo e nesta sede concordamos com a Defesa, é a circunstância de o ofendido referir que tinha total liberdade deambulatória, podendo ausentar-se do seu local de trabalho livremente e regressar ao mesmo livremente. Mais, adianta o ofendido que a certo ponto decidiu ir habitar para … e que, uma vez que tinha hábitos alcoólicos e não logrou garantir um posto de trabalho estável, voltou, por sua livre e espontânea iniciativa, a trabalhar com o aqui arguido. Tal depoimento parece-nos contrariar a ideia genérica de que o ofendido se sentisse como um objeto ou como um animal. Dos autos evola que as suas condições laborais eram precárias, mas não assumem as declarações do ofendido uma credibilidade suficiente para, sem mais, podermos fundamentar com clareza que aquele era tratado de forma animalesca ou como se fosse um mero objeto do arguido, desprovido de qualquer vontade. A tudo acresce que existem detalhes no depoimento do ofendido, como por exemplo afirmar que o arguido teria cerca de 80 animais, quando da análise da reportagem fotográfica não se afigura que tal número esteja sequer próximo da realidade. Não existe outra prova testemunhal ou documental que possa corroborar o depoimento do ofendido. Não devemos olvidar que estamos no âmbito do processo penal e que não é o arguido que tem que demonstrar a sua inocência ou sequer a menor indiciação dos factos. Ao invés é o Ministério Público que tem que demonstrar de forma suficientemente clara que determinado pedaço de vida decorreu como por si relatado, o que no caso apenas ocorre de forma muito ligeira. Não tem o signatário duvidas que, mantendo-se apenas estes elementos probatórios, existe uma seria probabilidade de absolvição do arguido por aplicação do principio in dubio pro reo. E se assim é tal significa que os indícios não são fortes. Reiteramos, não se querendo de todo imputar falsidades ao ofendido, que o seu depoimento é curto e não é suficiente para convencer o julgador. No que concerne à detenção da espingarda de caça e da pistola, tais factos carecem de um mínimo probatório, mormente de um auto de apreensão, o que não existe nos autos. * Enquadramento Jurídico. - 1 crime de escravidão p. e p. pelo artigo 159º, alínea a) do Código Penal; - 1 crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º, nº1 do Código Penal; - 1 crime de sequestro p. e p. pelo artigo 158º, nº1 do Código Penal; - 1 crime de furto p. e p. pelo artigo 203º, nº1 do Código Penal; Mantem-se a imputação criminal efetuada pelo Ministério Público, com a ressalva de que apenas a factualidade subsumível ao crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º do C.P. está fortemente indiciada. * Exigências cautelares. Presidem à aplicação das medidas de coação os princípios da legalidade, proporcionalidade e adequação. Para a aplicação da medida de coação concretamente a aplicar partirá o Tribunal da gravidade dos factos, efetuando um juízo de prognose quanto à pena a aplicar e no qual se considerará quer a mencionada gravidade dos factos, quer as condições pessoas do arguido, quer a pena aplicável e determinará, sempre com a necessidade de verificação de que pelo menos uma das als. do art.º 204.º do C.P.P. a medida de coação que, sendo proporcional à gravidade e sanção aplicável, seja apta a salvaguardar os interesses plasmados no referido preceito. A gravidade geral nos presentes autos seria, à partida, muito elevada, desde logo, por estarmos perante um crime que atenta diretamente contra a dignidade humana. Contudo, uma vez que a factualidade não está fortemente indiciada, é de excluir a aplicação das medidas de coação prevista no art.º 200.º e ss. Consideramos a gravidade elevada, no entanto, como deixámos dito, efetuando um juízo de prognose, não se nos afigura muito provável, a manter-se o estado probatório dos autos, que o arguido venha a ser condenado por algum dos crimes imputados (com excepção do crime de ofensas à integridade física simples). Concordamos que no caso se verifica o perigo de perturbação do inquérito, na modalidade de conservação de prova, pois que sendo o ofendido uma pessoa notoriamente débil e até influenciável, poderá ser procurado pelo arguido ou por alguém a seu rogo tendo em vista evitar que aquele mantenha o seu depoimento. Tal perigo é comum em situações como a presente em que existe uma disparidade social elevada entre os sujeitos processuais, existindo inclusive uma relação de domínio laboral (não confundível com o crime de escravidão) entre os sujeitos. Tal perigo convocaria inevitavelmente a medida de coação de proibição de contactos, no entanto, considerando que o único creme que está fortemente indiciado não tem moldura penal superior a 3 anos, não pode o Tribunal aplicar a mesma. Quanto ao perigo de fuga, o Tribunal aceita-o mas num grau muito limitado, apenas e tão só por o signatário ter ficado com a notória sensação de que efetivamente o arguido se ausentou da região do … quando se apercebeu da existência de um procedimento criminal. Contudo, tal é suficiente, como afirmámos, para sustentar o perigo, mas num grau pouco relevante, dado que não se nos afigura que tenha sido especialmente complicada a detenção do arguido. Não concordamos que se verifiquem mais perigos, não existindo factualidade em que possamos estribar o perigo de continuação da atividade criminosa. Do leque de medidas de coação que o Tribunal pode aplicar sobra apenas a medida de coação de apresentações periódicas, a qual aplicaremos graduada três vezes por semana face ao número de crimes indiciados. * Decisão. Pelo exposto, e nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, 196.º, 198.º, 204.º al. a) e b) todos do C.P.P. determino que o arguido AA se apresente no posto da GNR da sua área de residência às terças-feiras, sextas-feiras e domingos.” # Inconformado com a referida decisão, dela recorreu o Ministério Público, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões: “Vem o presente recurso interposto dos despachos proferidos em 19 de Janeiro de 2020, no qual o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal considerou que o arguido AA se encontra fortemente indiciado pela prática de um crime de ofensa à integridade física, mas não se encontra fortemente indiciado pela prática do crime de escravidão, sendo que quanto a tal factualidade a prova produzida resulta apenas das declarações do ofendido, pelo que, determinou a aplicação ao arguido AA, nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 191.º, 192.º, 193.º, 194.º, 196.º, 198.º, 204.º al. a) e b) todos do Código de Processo Penal, da medida de coacção de apresentação no posto da GNR da sua área de residência às terças-feiras, sextas-feiras e domingos. É, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que nos permitimos discordar do douto despacho proferido, porquanto as declarações do ofendido são credíveis, claras e detalhadas, e encontram-se alicerçadas na restante prova produzida, designadamente nas declarações da testemunha CC e dos indícios probatórios coligidos em sede de busca ao domicílio e terreno do arguido. Resultam assim dos autos fortes indícios de que o arguido praticou sobre o ofendido factos que integram a prática dos crimes de ofensa à integridade física e de escravidão, aproveitando-se da sua fragilidade e debilidade intelectual, de modo a obter para si uma vantagem económica ao aproveitar-se da sua força de trabalho, mantendo-o sob o seu jugo mediante a ameaça de ser agredido e alimentando o seu vício, tratando-o como se fosse um animal de sua propriedade. Os factos praticados pelo arguido, atentatórios da dignidade humana do ofendido, são graves, e existe por parte do mesmo um perigo de fuga e de perturbação do inquérito que importa acautelar. Considerando a factualidade que se considera fortemente indiciada integradora da prática dos crimes de ofensa à integridade física e de escravidão, a moldura penal abstracta do crime de escravidão - punido com pena de prisão de cinco a quinze anos – bem como a verificação por parte do arguido dos perigos de fuga e de perturbação do inquérito, considerasse que tais perigos apenas poderão ser debelados através da aplicação conjunta das medidas de coacção de prisão preventiva (al. a) do n.º 1 do art. 202.º do Código de Processo Penal) e de proibição de contactar com o ofendido por qualquer meio, incluindo por interposta pessoa (al. d) do n.º 1 do art. 200.º do Código de Processo Penal). Não se vislumbra que exista alguma medida de coação menos gravosa que a privativa da liberdade que possa ser aplicada ao arguido e que faça afastar os enunciados perigos, mormente o de fuga (n.º 2 do art. 193.º do Código de Processo Penal), porquanto o perigo de fuga por parte do mesmo é intenso. As medidas de coacção enunciadas são necessárias e adequadas aos perigos que se visam salvaguardar, para além de que são proporcionais à gravidade do crime de escravidão de que o arguido se encontra fortemente indiciado e à sanção que se prevê que lhe venha a ser aplicada. Conclui-se que o referido despacho violou o disposto na al. a) do n.º 1 do art. 202.º, al. d) do n.º 1 do art. 200.º e als. a) e b) do art. 204.º do Código de Processo Penal, pelo que, deverá ser revogado o douto despacho e substituído por outro onde seja aplicada ao arguido medida de coacção de prisão preventiva e de medida de coacção de proibição do arguido contactar por qualquer via o ofendido, dando provimento ao presente recurso. Assim, será feita a acostumada JUSTIÇA!” # O arguido respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do mesmo, louvando-se no teor do despacho recorrido. # Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta. # APRECIAÇÃO Importa apreciar no presente recurso qual o estatuto coactivo a aplicar ao arguido. # Não está em causa no presente recurso a apreciação da necessidade de aplicação de medida de coacção. O recorrente não põe em causa o que quanto a isso consta no despacho recorrido: existe “perigo de perturbação do inquérito, na modalidade de conservação de prova,” ” e existe perigo de fuga “mas num grau muito limitado”. A questão é outra: entendeu-se que não existiam indícios fortes da prática do crime de escravidão, o qual permitiria a aplicação de medida de cocação prevista no artº 200º, nº 1, al. d), do C.P.P., consistente na proibição de o arguido contactar com a vítima. Entende o recorrente que existem esses indícios fortes e, em consequência, pugna pela aplicação da referida medida de coacção, bem como pela aplicação da prisão preventiva, entendendo que apenas estas medidas poderão acautelar a concretização dos referidos perigos. Ora, perante o que consta nos autos, e independentemente do que possa vir a apurar-se futuramente, entende-se, tal como se entendeu na decisão recorrida, que apesar de existirem alguns indícios da prática de factos que consubstanciam um crime de escravidão, tais indícios, ao menos por ora, não são fortes, não podendo, assim, ser aplicada, em abstracto, qualquer das medidas de coacção pugnadas pelo recorrente. É que se é certo que a vítima poderia estar a trabalhar e a viver com condições precárias por virtude da conduta do arguido, não é menos certo que, face ao que se indicia, tal não significa que se esteja perante um crime de escravidão p. e p. no artº 159º, al. a), do Cód. Penal. A escravidão tem que ser mais do que isso, implicando “o estado de condição de um individuo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade” (cfr. artº, parágrafo 1º da Convenção de Genebra sobre Escravatura, assinada em 25/9/1926). Ora, sem pôr em causa, repete-se, a precária condição em que a vítima se encontrava, o que é certo é que os indícios não são suficientemente fortes para se concluir que a vítima era tratada como se fosse “propriedade” do arguido. A circunstância de das buscas realizadas em 17/11/2022 resultar que os bens da vítima se encontravam junto do veículo que esta utilizaria para pernoitar, não altera substancialmente a conclusão que agora se chega sobre a inexistência de fortes indícios da prática de crime de escravidão. A “impressão” de que o arguido poderá ter mentido aquando do 1º interrogatório judicial é também insuficiente para contrariar o que se concluiu no despacho recorrido. Entende-se, assim, que o despacho recorrido fez uma adequada análise dos indícios existentes aquando do momento em que foi proferido. Mas mesmo que se entendesse em contrário, sempre teria que se concluir que a prisão preventiva se revelaria desnecessária para acautelar os perigos verificados, sendo certo que o perigo de fuga se revela algo mitigado, como também bem se refere no despacho recorrido. É que para a aplicação da medida de prisão preventiva – a mais gravosa das previstas da lei, por ser a mais restritiva da liberdade das pessoas – para além dos requisitos gerais têm que se verificar ainda outros pressupostos. A excepcionalidade da prisão preventiva resulta de vários preceitos legais. Desde logo, dispõe o artº 28º, nº 2, da C.R.P. que a prisão preventiva tem natureza excepcional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei. Trata-se de um dos corolários do princípio da presunção de inocência consagrado no artº 32º, nº 1, da C.R.P. Não tendo o arguido sido sujeito ainda a uma decisão condenatória definitiva, devem os seus direitos fundamentais, e de entre eles, um dos mais importantes que é o direito à liberdade, ser coarctados apenas se tiverem verificados determinados requisitos que são manifestamente restritivos. O carácter excepcional da medida de prisão preventiva resulta também dos artºs 202º e 193º, nº 2, do C.P.P, o qual atribui também carácter excepcional à medida de obrigação de permanência na habitação. E se a medida de prisão preventiva já devia ser encarada como excepcional antes da reforma do C.P.P. introduzida pela L. 48/07 de 29/8, ainda mais excepcional deve agora ser entendida. Por outro lado, com a introdução do nº 3 do artº 193º do C.P.P., operada pela referida L. 48/07 de 29/8, o legislador veio claramente demonstrar que, apesar do carácter excepcional de ambas as medidas de coacção referidas – prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação – deve ser dada preferência a esta última. Na verdade, aí se dispõe que “quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ele se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares”. Acresce ainda que com a nova redacção dada ao artº 193º, nº 1, do C.P.P., com o aditamento da palavra “necessárias” ficou mais claramente expresso o princípio da necessidade, assim definido no dizer do Prof. Paulo Albuquerque, Comentário ao C.P.P., pág. 547: “O princípio da necessidade consiste em que o fim visado pela concreta medida de coacção ou de garantia patrimonial decretada não pode ser obtido por outro meio menos oneroso para os direitos do arguido.” Assim sendo, podendo justificar-se a aplicação da proibição de contactos com a vítima, sempre a prisão preventiva se revelaria excessiva. # DECISÃO Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente. # Sem tributação. # Évora, 6 de Junho de 2023 Nuno Garcia António Condesso Edgar Valente |