Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4189/17.1T9PTM.E1
Relator: JOSÉ MARTINS SIMÃO
Descritores: DIFAMAÇÃO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Data do Acordão: 01/08/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: i) no crime de difamação o bem jurídico protegido é a honra e a consideração.
ii) a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo (que inclui a probidade, a retidão, a lealdade o caráter), quer a sua reputação, imagem ou consideração exterior, que provém do juízo em que somos tidos pelos outros.
iii) a expressão proferida pelo ora arguido, ao ser inquirido na qualidade de testemunha no âmbito de um inquérito crime, em que se referiu à pessoa do assistente como sendo uma pessoa antissocial, no contexto em que foi proferida, não constitui crime de difamação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
Nos presentes autos de inquérito, o assistente deduziu acusação particular contra o arguido AA…, id a fls. 20, imputando-lhe um crime de difamação, p. e p. no artº 180º do C. Penal, que o Ministério Público não acompanhou, por virtude da expressão constante daquela peça processual de que o arguido apelidou o assistente de “anti-social” não atingir o núcleo essencial de qualidades morais deste e por isso, não justifica a intervenção penal.
Remetidos os autos a julgamento, pela Mma Juiz foi proferido despacho a rejeitar a acusação por virtude dos factos não constituírem crime, conforme contra do despacho infra transcrito.

Inconformado, o assistente recorreu tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:
«1) A Acusação Particular apresentada pelo Assistente foi considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, ao abrigo do disposto no art.311.°, nº 2, al a) e nº3 al. a) a d) do c.P.P.
2) O Tribunal "a quo" considerou que "A expressão utilizada pelo arguido não ultrapassa, pois, o âmbito de um simples desabafo não sendo objectivamente ofensiva da honra e consideração de acordo com o sentimento e conhecimento do homem médio" e que " ... não é reconhecida a enunciada gravidade tal susceptível de integrar a prática de um qualquer ilícito criminal, não se mostrando, por conseguinte, dotada de relevância ou dignidade penal."
3) Concluindo este Tribunal que "Embora se admita que a mesma possa ter desagradado ao assistente e ter ferido a sua especial sensibilidade, não integra a carga vexatória ou humilhante que se exige nos arts.180º e 181º do C. Penal, não tendo a virtualidade de o abalar moralmente, reduzindo a sua auto-estima, de o fazer ser alvo de falta de consideração, nos termos em que tais direitos são entendidos em sede de direito penal."
4) O Assistente discorda, até porque a utilização da expressão anti-social tem sempre associado uma carga pejorativa muito grande, e tem uma conotação de desrespeito pelas regras em sociedade, e em última análise é não raras vezes, encontra-se associado a prática de crimes ou comportamentos mentalmente desviantes (sociopatia ou psicopatia).
5) E na Acusação por este deduzida elencam-se as razões que levaram a sentir-se ofendido na sua honra, nomeadamente porque "se considera uma pessoa de bem e sem quaisquer atitudes contra as regras morais e legais que povoam universo social dos homens", e porque chamar alguém de anti social é "sinónimo de desrespeito e desconsideração pelas regras sociais e pelos direitos dos outros, bem como pela sua transgressão."
6) O Tribunal "a quo" ao considerar que a expressão utilizada pelo arguido foi no "âmbito de um simples desabafo", viola o Principio do Acusatório, uma vez que faz uma interpretação diferente daquela que o Assistente faz na sua Acusação, sobre os factos imputados.
7) Neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 07112/2010 (proc. 475/08.0TAAGH.Ll-5 in www.dgsi.pt). " ... Ou seja, o Mmo. Juiz faz uma interpretação divergente de quem deduziu acusação, sobre os factos imputados e que resultam do inquérito, deste modo violando o principio do acusatório. Face a este principio, nesta fase, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Uma opinião divergente, como a manifestada pelo Mmo. Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o principio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juizo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação ... "
8) A descrição dos factos comporta todos os elementos do tipo legal de crime de difamação, isto porque o arguido proferiu a expressão "uma pessoa anti-social", expressão essa ofensiva à honra e consideração do Assistente, e tal expressão foi ainda proferida perante terceiros.
9) Acresce que todas as demais considerações acerca do preenchimento do tipo legal de crime e os seus elementos objectivos ou subjectivos apenas se podem fazer na fase de julgamento.
10) A rejeição da Acusação Particular é a rejeição de um direito, um "direito a acusar".
11) Assim sendo, violou o Douto Acórdão o disposto nos artigos 283.°, 285 e 311, todos do C.P.P.
Termos em que e nos Demais de Direito, deve ser dado provimento ao recurso, e em consequência ser a Acusação Particular aceite e submetida a julgamento, e consequentemente também admitido o pedido de indemnização civil formulado»
O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo:
«1ª – O crime de difamação tutela a honra. O tipo objectivo deste crime é a imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros.
2ª – Como tal, importa que o agente impute a outrem um facto desonroso.
3ª - Como bem explicou o Tribunal “a quo”, “anti-social” é alguém que não socializa, não se relaciona com os demais pares, que é introvertida e reservada. Ora, salvo melhor opinião, não descortinamos qualquer fundamento para que se considere esta expressão como um facto desonroso.
4ª – Trata-se de um adjectivo utilizado em todo o tipo de relações, sejam de amizade, sejam profissionais, entre outras. É uma expressão absolutamente banal e que é socialmente aceite como algo que identifica uma pessoa que se resguarda e que tem dificuldades (ou nem sequer o pretende) em relacionar-se com outrem.
5ª - Ou seja, a expressão utilizada tem de carregar, por si só, um significado desonroso e que seja socialmente reconhecida como tal.
6ª – Se os factos que estiverem descritos na acusação não forem crime, então, o Tribunal deve rejeitá-la.
7ª – Foi exactamente o que ocorreu nesta situação, e que o Tribunal “a quo” desenvolveu detalhadamente o tema e decidiu que o que vem descrito na acusação, não entra no âmbito do tipo criminal, por não ser digno de tutela penal.
8ª – Assim sendo, concordamos com a douta decisão agora em crise, devendo por isso, e na nossa humilde opinião, o recurso improceder e mantendo-se aquela decisão
Termos em que, deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, ser confirmado a Douta decisão recorrida».
Nesta Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de se manter o despacho recorrido.
Observou-se o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não respondeu.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II- Fundamentação

O teor do despacho recorrido é o seguinte:
o Tribunal é competente e o processo é o próprio.
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Por requerimento de fls. 68 a 70, vem o assistente BB… deduzir acusação particular contra AA…, acusando-o da prática de um crime de difamação.
O Ministério Público, em despacho proferido a 07.02.2018, remetendo para o despacho de fls. 52 a 54, optou por não acompanhar a acusação do assistente, fundamentando-o no sentido de a expressão imputada não atingir o núcleo essencial de qualidades morais do assistente, não justificando, por conseguinte, a intervenção penal.
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Relativamente à acusação particular, dir-se-á, antes de mais que, em conformidade com o preceituado no art. 283°/3 alíneas a) a c) do C.P.Penal, aplicável por remissão do art. 285°/3 do mesmo diploma legal, "a acusação contém, sob pena de nulidade as indicações tendentes à identificação do arguido", "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada" e "a indicação das disposições legais aplicáveis".
Acrescenta o legislador no art. 311 °/1 do C.P. Penal que "recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer".
Como estipula o mesmo dispositivo legal, nos seus nºs 2 alínea a) e 3 alíneas a) a d) "se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido (. . .) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada", entendendo-se como tal a acusação que "não contenha a identificação do arguido", "a narração dos factos", que não indique "as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam" ou se "os factos não constituírem crime".
Ora, do teor da acusação particular apresentada pelo assistente é por este imputada ao arguido AA… a prática de um crime de difamação.
Mais deduz pedido de indemnização civil, peticionando o pagamento da importância de € 1.500,00.
Nos termos do disposto no art. 180°/1 do C.Penal, comete o crime de difamação quem "dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo".
Como decorre da inserção sistemática do tipo de crime em análise no capítulo VI do título I do livro II do C.Penal, o bem jurídico protegido no crime de difamação, qualquer que seja a modalidade da acção típica concretamente considerada, é a honra.
Enquanto objecto de tutela penal, a "honra" é, hoje, considerada como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana (plasmada no ar!. 1° da C.R.Portuguesa) e, por esse motivo, como um conceito normativo cuja concretização não dispensará, todavia, a convocação de uma dimensão fáctica ou existencial do homem enquanto ser social, enquanto pessoa empenhada na realização dos seus planos de vida e ideais de excelência (dr. artigo 26°/1 da C.R.Portuguesa).
Nessa medida, constitui um bem jurídico necessariamente complexo, incluindo, necessariamente, o interesse da estima que cada um tem por si próprio e que se sente em qualquer pessoa e, simultaneamente, o valor de apreço ou pelo menos de não desconsideração que se pretende os outros tenham por nós, um e outro protegidos através dos tipos legais das injúrias e da difamação (1). Parafraseando o Prof. Faria Costa (2), poder-se-á dizer que a honra coincide, enquanto bem jurídico penalmente tutelado, quer com o valor pessoal e interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer com a sua própria reputação ou consideração exterior.
Já Beleza dos Santos (3), tem por honra, "aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um individuo possa, com legitimidade, ter estima por si, pelo que é e vale; refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral", e por consideração "aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público; refere-se ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de não o julgar um valor negativo".
Para que determinada conduta possa vir a ser subsumida à materialidade objectiva do tipo ora considerado é, desde logo, necessária uma actuação consistente na imputação de um facto ou na formulação de um juízo - o que significa, num e noutro caso, apresentá-los como correctos segundo uma convicção própria - ou na reprodução de tal imputação ou juízo - divulgando-os agora como uma informação alheia.
Exigido é que tal imputação seja efectuada, não à pessoa visada, mas perante terceiros.
Importa, ainda, acrescentar que, para efeitos de aplicação do preceito em análise, entende-se por "facto", todo o acontecimento ou situação, pertencente ao passado ou ao presente e susceptível de prova e, por "juízo", toda a afirmação contendo uma apreciação relativa não à existência de uma coisa ou de uma ideia mas ao seu valor.
No que respeita ao tipo subjectivo do ilícito, estamos perante um crime doloso, donde resulta, invariavelmente, a exclusão das condutas negligentes, bastando, para o efeito, o dolo genérico, traduzido na consciência de que a atribuição do facto ou juízo ou a sua reprodução são de molde a produzir ofensa da honra e consideração da vítima.
Por outro lado, não é exigível, para o preenchimento do tipo, a efectiva lesão da honra e consideração da vítima, mas a mera susceptibilidade das expressões usadas para ofender, ou seja, a idoneidade das mesmas, sem a necessária produção de um dano.
Todavia, em rigor, os conceitos de honra e consideração não devem aferir-se da perspectiva que cada um tem dos seus valores "morais" ou "ético-sociais", devendo antes ser incutidos pelos valores que emergem do quadro constitucional e legislativo, que aludem ao "bom nome e reputação, à imagem" e à tutela geral da personalidade, nos termos do preceituado nos arts. 26°/1 da Constituição da Republica Portuguesa e 70° do C.Civil.
*
Reportando-nos ao caso dos autos ...
Decorre da factualidade constante da acusação particular que em declarações prestadas no âmbito do inquérito 5616/15.8T9PTM, que culminou em arquivamento, o aqui arguido reportou-se à pessoa do assistente como sendo "anti-social'.
Ora, por "anti-social" temos uma pessoa que não socializa, não se relaciona com os demais pares, que é introvertida e reservada.
Estabelece o legislador no art. 18°/2 da C.R.P. que o direito penal tem carácter subsidiário ou fragmentário. Este carácter de subsidiariedade implica que se imponham determinados limites à aplicação do direito penal e, consequentemente, às condutas que se podem considerar "típicas" para efeito de perseguição criminal.
Tal como se decidiu, entre muitos outros, nos Acs. da RP de 09.03.2011 e da RG de 23.03.2015 (4), só integrarão a prática de um crime - de injuria ou difamação - as expressões que, pela sua natureza e circunstâncias, sejam tidas na comunidade por graves, existindo um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo da qual não se justifica a tutela penal.
Na verdade, a verificação do ilícito não pode circunscrever-se ou limitar-se à valoração isolada e objectiva das expressões proferidas, exigindo-se que as mesmas sejam analisadas e valoradas em função do concreto circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas.
A este respeito subscrevemos, na íntegra, o decidido pelos Venerandos Desembargadores da Relação do Porto, de Guimarães e de Coimbra, nos Acs. de 07.11.2012, de 09.03.2011, de 16.01.2012, de 12.06.2002, de 26.11.2003 e 09.02.2011 (5), quando salientam ser "próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas", existindo frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, que provocam animosidade e é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem, sendo que "o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função".
É que, "se bem que ninguém goste que lhe verberem comportamentos, atitudes ou mesmo simples intenções, ou fustigue a sua personalidade ou carácter, sobretudo quando feito de forma desabrida e cáustica, o incómodo daí resultante e susceptibilidade do visado não bastam para que se considere desde logo atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa se tenha como socialmente realizada.
De facto, a dignidade penal da ofensa não se esgota na subjectividade dialéctica do visado, havendo de objectivar-se ainda necessariamente no circunstancialismo envolvente e no veículo condutor da mesma".
É indiscutível que o direito penal não se destina, pura e simplesmente, a tutelar "o eventual excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante afirmações que lhes sejam dirigidas", antes visando punir factos que sejam objectivamente graves e geradores de ofensas a bens juridicamente protegidos.
Com efeito, "o conceito de ofensa não pode ser um conceito puramente subjectivo, isto é, não basta que alguém se considere difamado ou injuriado para que a ofensa exista. Determinar se uma expressão é ou não injuriosa é uma questão que tem que ser aferida em função do contexto em que foi proferida bem como do meio social a que pertencem ofendido e arguido, a relação existente entre estes, os valores do meio social em que ambos se inserem".
Adianta, ainda nesta senda, o Ac. da RC de 06.01.2010 (6) que "a ofensa à honra ou consideração não é susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direccionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objecto de sanção penal".
Tem sido, ademais, jurisprudência defendida nos nossos Tribunais superiores, nomeadamente na Relação de Guimarães, como são prova os Acs. de 23.02.2015, 10.07.2014, 30.11.2009, 03.11.2004 (7), que até existem expressões comunitariamente tida como obscenas ou soezes que, objectivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente às mesmas.
Nessa medida, e como resulta, à saciedade dos arestos ora transcritos, assume especial relevância, o contexto em que o agente agiu e a maior ou menor adequação social do seu comportamento. A par disso, também importa ter presente o direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento e de opinião, bem como à liberdade de discussão e crítica que, em qualquer Estado de Direito democrático é constitucionalmente garantido a todo o cidadão.
No caso dos autos, não vislumbramos como pode ser desrespeitoso afirmar que alguém não prima pela simpatia e não se relaciona ou convive com os demais.
A expressão utilizada pelo arguido não ultrapassa, pois, o âmbito de um simples desabafo, não sendo objectivamente ofensiva da honra e consideração de acordo com o sentimento e conhecimento do homem médio.
Nessa medida, e no entender do Tribunal, não é reconhecida à enunciada expressão gravidade tal susceptível de integrar a prática de um qualquer ilícito criminal, não se mostrando, por conseguinte, dotada de relevância ou dignidade penal.
Embora se admita que a mesma possa ter desagradado ao assistente e ter ferido a sua especial sensibilidade, não integra a carga vexatória ou humilhante que se exige nos arts. 180º e 181º do C.Penal, não tendo a virtualidade de o abalar moralmente, reduzindo a sua auto-estima, de o fazer ser alvo de falta de consideração ou desprezo públicos, nem mesmo de beliscar a sua honra e consideração, nos termos em que tais direitos são entendidos em sede de direito penal.
Considera, pois, este Tribunal que os factos imputados ao arguido não integram a prática do imputado crime de difamação.
Por conseguinte, consideramos ser manifestamente infundada a acusação particular apresentada pelo assistente, a qual se rejeita.
Por força da rejeição da acusação particular, não se admite o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC's.
Notifique.

III- Apreciação do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, artºs 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.
As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).
Perante as conclusões do recurso a questão a decidir consiste em saber se a acusação devia ser recebida.
Dispõe o art.311º do CPPenal, sob a epígrafe, Saneamento do processo:
«1. Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2- Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a)De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do nº 1 do art. 284º e do nº 4 do art. 285º, respectivamente.
3.Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
A acusação imputa um crime de difamação ao arguido, por virtude deste em declarações prestadas no âmbito do inquérito nº 5616/15.8T9PTM, que culminou em arquivamento, ter apelidado o assistente como sendo anti-social.
No despacho recorrido a Mma Juiz referiu, em síntese, que anti-social “é uma pessoa que não socializa, que não se relaciona com os demais pares, que é introvertida e reservada (---) e que não se vislumbra como pode ser desrespeitoso afirmar que alguém não prima pela simpatia e não se relaciona ou convive com os outros, pelo que tal expressão não ultrapassa um simples desabafo, não sendo objetivamente ofensiva da honra e consideração, de acordo com o sentimento e conhecimento do homem médio”, pelo que acusação foi rejeitada por os factos imputados não integrarem o crime de difamação.
O Ministério Público acompanha o despacho recorrido, enquanto que o assistente entende que a expressão em causa está sempre associado a uma carga pejorativa muito grande, e tem uma conotação de desrespeito pelas regras em sociedade, e em última análise é não raras vezes associada à pratica de crimes ou comportamentos desviantes.
Vejamos.
Dispõe o art. 180º nº 1 do C. Penal sob a epígrafe difamação: «quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.»
Doutrinariamente pode definir-se difamação como a atribuição a alguém de um facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, isto é que sejam ofensivos da reputação do visado.
Na linguagem da lei a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.
A honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo (que inclui a probidade, a rectidão, a lealdade o carácter), quer a sua reputação, imagem ou consideração exterior, que provem do juízo em que somos tidos pelos outros.
O bem jurídico protegido com este crime é, assim, a honra e a consideração.
O elemento objetivo do crime de difamação consiste na imputação a outrem de um facto ou juízo desonroso, que é algo subjetivo, já que para uns determinadas expressões pouco ou nenhum significado têm, enquanto que para outros assumem relevância, dependendo do meio e contexto em que são proferidas.
Importa, pois, apurar o teor da expressão constante da acusação particular, em conjugação com o contexto em que foi proferida.
No caso em apreço, o ora arguido ao ser inquirido na qualidade de testemunha no âmbito do inquérito nº 5616/16.8PTM reportou-se à pessoa do assistente, como sendo uma pessoa anti-social.
Como consta do despacho recorrido anti-social “é uma pessoa que não socializa, que não se relaciona com os demais pares, que é introvertida reservada” e no dicionário de língua portuguesa, o termo em análise significa “ (…) pessoas que não se prendem com padrões sociais, de convívios. Alguém que não sente necessidade de convivência com os outros, não sente necessidade de comunicar, de se divertir com os outros”.
E, como refere o Digno Procurador Adjunto, “ (…) salvo melhor opinião, não descortinamos qualquer fundamento para que se considere esta expressão desonrosa. Trata-se de um adjetivo utilizado em todo o tipo de relações, sejam de amizade, sejam profissionais entre outras. É uma expressão absolutamente banal e que é socialmente aceite como algo que identifica uma pessoa que se resguarda e que tem dificuldades (ou nem sequer o pretende) em relacionar-se com outrem”.
A expressão em causa não reveste, pois, carácter desonroso, dado que é socialmente aceite e que há que respeitar o modo de viver e ser de cada um.
Assim os factos imputados ao arguido não constituem a prática do crime de difamação, pelo que se impõe manter o despacho recorrido.
Quanto ao pedido de indemnização civil formulado pelo assistente, no valor de € 1.500,00, teve por base a prática de um crime, reporta-se aos danos sofridos pelo assistente em consequência da imputada conduta ao arguido na acusação particular, pelo que subjacente lhe está o ilícito de natureza particular, sendo que se aquela acusação foi rejeitada, então o pedido também não pode ser admitido.

IV- Decisão
Termos em que acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente e em consequência mantém-se o despacho recorrido.
Custas pelo assistente com taxa de justiça que fixamos em três Ucs.
Notifique
Évora, 08.01.2019.
(texto elaborado revisto pelo relator, artº 94º, nº 2 do CPPenal)
José Martins Simão
Maria Onélia Vicente Neves Madaleno