Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
842/14.0T8SLV-B.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
Data do Acordão: 10/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A sentença, proferida em acção pauliana, que julgou ineficaz, em relação ao aí autor, a venda efectuada por um dos réus ao outro, constitui título executivo contra o réu comprador.
Esse título executivo confere, ao réu comprador, legitimidade passiva em acção executiva movida pelo autor com vista à satisfação de um crédito seu sobre o réu vendedor à custa dos bens cuja venda foi impugnada.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 842/14.0T8SLV-B.E1

*


(…) – Gestão e Inovação Turística, S.A., interpôs recurso de apelação do despacho que determinou que a presente acção executiva para prestação de facto, que fora extinta, por decisão do agente de execução, em 20.06.2018, com fundamento na inexistência de bens susceptíveis de penhora, se renovasse, prosseguindo contra si.

As conclusões do recurso são as seguintes:

A) Só por manifesto erro de julgamento e de leitura da sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM referido no douto despacho se pode admitir que o tribunal a quo considere que, com a referida sentença, se formou título executivo contra a recorrente, de modo a que a totalidade do seu património responda pelo valor em execução e esta prossiga contra a recorrente de modo a poder concretizar-se a prestação exequenda.

B) O que se decidiu na sentença foi declarar a ineficácia dos actos de alienação dos imóveis aí indicados e vendidos à recorrente, em relação aos autores, de modo a que eles possam executar os mesmos imóveis também no património da 2.ª ré. É por isso e não por outra razão que a sentença refere podendo executar os mesmos.

C) Estando os bens no património da recorrente, serão estes os bens que devem ser executados e não o património da ora recorrente como se tivesse contra ela um título executivo.

D) A execução não deve, pois, correr contra a recorrente por pura ausência de título, devendo antes ser penhorados os bens constantes da sentença sem necessidade de intervenção principal provocada ou de despacho que julgue ser a recorrente executada, uma vez que a venda se tornou ineficaz em relação aos autores.

E) Fez-se incorrecta aplicação do artigo 616.º, n.º 1, do Código Civil.

Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento da execução nos bens relativamente aos quais foi declarada ineficaz a venda feita à recorrente, revogando-se a decisão que julgou existir título executivo contra a recorrente como se prosseguisse em todo o seu património de forma a poder concretizar a prestação exequenda.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.


*


Considerando o teor das conclusões do recurso, as questões a resolver são as seguintes:

1 – Se a recorrente responde pela dívida exequenda com todo o seu património;

2 – Se o despacho recorrido determinou que a recorrente responde pela dívida exequenda com todo o seu património.


*


Os factos relevantes para a decisão do recurso, evidenciados pelos autos deste, são os seguintes:

1 – A presente execução foi extinta, por decisão do agente de execução de 20.06.2018, com fundamento na inexistência de bens susceptíveis de penhora.

2 – Condomínio do Edifício (…), (…) e (…), exequentes, requereram, nesta execução, em 25.04.2019, a intervenção provocada de (…) – Gestão e Inovação Turística, S.A., invocando a sentença proferida na acção declarativa n.º 2406/13.6TBPTM, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Cível de Portimão, transitada em julgado em 06.02.2019.

3 – A acção referida em 2 foi proposta por Condomínio do Edifício (…), (…) e (…) contra, entre outros, (…) – Construção Civil, Lda., e (…) – Gestão e Inovação Turística, S.A..

4 – O dispositivo da sentença referida em 2 é o seguinte:

“Pelo exposto, julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Declaro ineficaz em relação aos autores Condomínio do Edifício (…), (…) e (…) os seguintes actos de compra e venda efectuados pela 1.ª ré “(…)” em 21.05.2012 à 2.ª ré “(…)”:

- 9/44 (nove quarenta e quatro avos) – dos 10/44 alienados – da fracção autónoma designada pela letra “A” correspondente à garagem do prédio sito na freguesia e concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…);

- Fracção autónoma designada pela letra “C” correspondente ao rés-do-chão direito, constituído por loja com uso de dois terraços do prédio sito na freguesia de Linda-a-Velha e concelho de Oeiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º (…), inscrito a favor da sociedade denominada (…) – Gestão e Inovação Turística, S.A.

Podendo executar os mesmos também no património da 2.ª ré “(…)”, com vista a obter a satisfação do seu crédito sobre “(…)”, correspondente à prestação de facto a que se refere a sentença proferida no processo n.º 660/04.3TBPTM do extinto Tribunal da Comarca de Portimão e a € 80.000,00 (oitenta mil euros) devidos aos dois últimos autores … e … (€ 40.000,00 x 2), acrescido de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos, até efectivo e integral pagamento.

(…)”

5 – Foi interposto recurso de apelação da sentença referida em 2, tendo o Tribunal da Relação de Évora, através de acórdão proferido em 20.12.2018, revogado a mesma unicamente na parte referente à condenação da recorrente/demandada “(…)” como litigante de má-fé, mantendo-a na parte restante.

6 – A parte conclusiva do requerimento de intervenção principal referido em 2 tem o seguinte teor:

“Nestes termos e nos demais de direito, em face da procedência da acção de impugnação pauliana por sentença judicial transitada em julgado em 06.02.2019:

a) Requer-se a V. Exa. que seja admitido o presente incidente de intervenção provocada da requerida “(…) – Gestão e Inovação Turística, S.A.”, para que os seus bens possam responder pelas dívidas em execução e penhora no âmbito da presente acção executiva para a prestação de facto (cfr. artigos 616.º n.º 1 e 818.º ambos do CC e 316.º do CPC), únicos bens conhecidos pelos ora exequentes e passíveis de penhora;

b) Mais se requer a V. Exa. que, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 626.º do CPC, atendendo ao título executivo que serve de base à presente execução ser uma sentença judicial condenatória, sejam desde já efectivadas as diligências de penhora dos bens da requerida e supra identificados em 1.º do presente requerimento, pelo agente de execução já nomeado nos autos, Dr. (…), devendo a notificação da requerida ocorrer após a realização da penhora (cfr. artigo 626º, nº 2, CPC).”

7 – Os bens identificados no artigo 1.º do requerimento de intervenção principal referido em 2 são os descritos em 4.

8 – O despacho recorrido tem o seguinte teor:

“A presente execução para prestação de facto encontra-se extinta, por decisão do Sr. AE de 20.06.2018, com fundamento na inexistência de bens susceptíveis de penhora para se proceder à prestação de facto pela executada.

Pretendem agora os exequentes a intervenção principal provocada de (…) – Gestão e Inovação Turística, S.A., para que os seus bens possam responder pelas dívidas em execução e penhora, assim como, a realização da penhora previamente à notificação daquela.

Alegam, para tanto, e em suma, ter sido declarada, por decisão judicial passada em julgado, a ineficácia de actos de alienação efectuados pela executada àquela, relativamente a dois bens imóveis.

Analisada a decisão em causa, é desta que resulta propriamente a legitimação da intervenção da ora requerida.

Na realidade, leia-se a final da douta decisão, o seguinte segmento:

a) Declaro ineficaz em relação aos autores Condomínio do Edifício (…), (…) e (…) os seguintes actos de compra e venda efectuados pela 1.ª ré “(…)” em 21.05.2012 à 2.ª ré “(…)”:

- 9/44 (nove quarenta e quatro avos) – dos 10/44 alienados – da fracção autónoma designada pela letra “A” correspondente à garagem do prédio sito na freguesia e concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…);

- Fracção autónoma designada pela letra “C” correspondente ao rés-do-chão direito, constituído por loja com uso de dois terraços do prédio sito na freguesia de Linda-a-Velha e concelho de Oeiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º (…), inscrito a favor da sociedade denominada (…) – Gestão e Inovação Turística, S.A.

Podendo executar os mesmos também no património da 2.ª ré “(…)”, com vista a obter a satisfação do seu crédito sobre “(…)”, correspondente à prestação de facto a que se refere a sentença proferida no processo n.º 660/04.3TBPTM do extinto Tribunal da Comarca de Portimão e a € 80.000,00 (oitenta mil euros) devidos aos dois últimos autores … e … (€ 40.000,00 x 2), acrescido de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos, até efectivo e integral pagamento.

Afigura-se, pois, que não por força da verificação de fundamento de intervenção principal provocada, mas antes perante a própria existência de verdadeiro título executivo, a execução deve prosseguir contra a (…), por forma a poder concretizar-se a prestação exequenda.

Pelo exposto, o requerido pelos exequentes deve ter provimento, ainda que não com a exacta justificação jurídica por si alegada, mas com os mesmos efeitos essenciais, e pretendidos.

Assim também, renovando-se a execução nestes termos, porque se apura a existência de bens de modo a prosseguir as finalidades da execução, extinta com base na inexistência de bens que o permitissem, e sendo esta renovação, com indicação de novos bens, para prosseguir sobre o património da requerida, com base na sentença proferida no processo n.º 2406/13.6TBPTM, prosseguirá nos termos requeridos, atento o disposto no art.º 626.º do CPC, e uma vez que no requerimento executivo, ab initio, foi feita a liquidação da obrigação.

Destarte, considera-se renovada a execução, com fundamento nos artigos 850.º e 709.º a 711.º do Código de Processo Civil, para as respectivas finalidades, incluindo as resultantes do âmbito da decisão proferida no processo n.º 2406/13.6TBPTM.

(…)”


*


1 – Se a recorrente responde pela dívida exequenda com todo o seu património:

A resposta a esta questão é indubitavelmente negativa. A intervenção principal da recorrente foi requerida unicamente com fundamento naquilo que foi decidido na acção declarativa n.º 2406/13.6TBPTM, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo Central Cível de Portimão, cuja sentença transitou em julgado em 06.02.2019. Nesta sentença decidiu-se, não julgar a recorrente condevedora da executada, mas sim, como é próprio da impugnação pauliana (artigo 616.º, n.º 1, do Código Civil), declarar ineficaz, em relação aos recorridos, a venda, efectuada por “(…)” à recorrente, de 9/44 da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente à garagem do prédio sito na freguesia e concelho de Portimão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portimão sob o n.º (…), e da fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente ao rés-do-chão direito, constituído por loja com uso de dois terraços do prédio sito na freguesia de Linda-a-Velha e concelho de Oeiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º (…). Como corolário da referida ineficácia, a sentença determinou a possibilidade de os recorridos executarem os bens descritos – e apenas esses – no património da recorrente com vista a obterem a satisfação do seu crédito sobre “(…)”.

2 – Se o despacho recorrido determinou que a recorrente responde pela dívida exequenda com todo o seu património:

A recorrente interpreta o despacho recorrido como tendo determinado que ela responde pela dívida exequenda com todo o seu património, baseando-se na circunstância de se ter considerado, naquele despacho, que, com a sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM, se formou título executivo contra si, e que, consequentemente, ela, recorrente, passou a ter a qualidade processual de executada. Em consonância com tal interpretação do despacho recorrido, a recorrente pretende a revogação deste último e a sua substituição por decisão “que ordene o prosseguimento da execução nos bens relativamente aos quais foi declarada ineficaz a venda feita à recorrente, revogando-se a decisão que julgou existir título executivo contra a recorrente como se prosseguisse em todo o seu património de forma a poder concretizar a prestação exequenda.”

A interpretação que a recorrente faz do despacho recorrido não tem razão de ser. Nomeadamente, as asserções, constantes do mesmo, segundo as quais a sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM constitui título executivo contra a recorrente e, consequentemente, esta passa a ter a qualidade processual de executada, não legitimam tal interpretação. Passamos a demonstrar o acerto das referidas asserções e que as mesmas não possuem o significado que a recorrente lhes atribui.

Como o despacho recorrido expressamente refere, a sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM constitui título executivo na medida em que “é desta que resulta propriamente a legitimação da intervenção da ora requerida”. Precisamente porque esta última, ora recorrente, não consta, como devedora, do título executivo com base no qual a acção executiva foi instaurada, a sentença que, posteriormente, julgou procedente a acção pauliana relativamente à recorrente, aí demandada na qualidade de adquirente de bens da devedora/executada, constitui título executivo contra a mesma recorrente, legitimando o seu ingresso, como parte passiva, na acção executiva[1]. Isso não significa que, substantivamente, a recorrente passe a ser condevedora. Substantivamente, a situação da recorrente é aquela que foi fixada na sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM: terceira titular de bens que, por efeito da procedência da impugnação pauliana, passam a poder ser executados com vista à satisfação do crédito exequendo, nos termos dos artigos 616.º, n.º 1, e 818.º, 2ª parte, do Código Civil. Processualmente, a mesma sentença constitui título executivo para o efeito de legitimar o ingresso da recorrente na acção executiva como parte passiva, como executada. Porém, do ponto de vista substantivo e como não podia deixar de ser, a medida em que o património da recorrente responde, na acção executiva, pela satisfação do crédito dos exequentes, é estritamente aquela que resulta da sentença proferida no processo 2406/13.6TBPTM. É líquido que apenas os bens cuja compra e venda foi declarada ineficaz relativamente aos recorridos podem ser atacados, na acção executiva, através da penhora e subsequente venda, tendo em vista a satisfação do crédito exequendo. O despacho recorrido não determinou que todo o património da recorrente responda pela satisfação deste crédito. Se o fizesse, então sim, seria ilegal e teria de ser revogado.

Para que os bens cuja compra e venda foi declarada ineficaz relativamente aos recorridos possam ser penhorados e vendidos nesta execução, é indispensável que a recorrente assuma a posição processual de executada, como resulta, por analogia, do artigo 54.º, n.º 2, do CPC[2], bem como do artigo 735.º, n.º 2, do mesmo código. Daí não decorre que, substantivamente, a recorrente passe a ser devedora e, como tal, responda pela dívida exequenda com todo o seu património. A assunção da qualidade processual de executada por parte da recorrente visa apenas assegurar que os bens acima referidos sejam susceptíveis de penhora e venda com vista à satisfação do crédito exequendo. O restante património da recorrente está, obviamente, a salvo, pois, do ponto de vista substantivo, não responde pela dívida exequenda.

Conclui-se, assim, que a recorrente interpretou mal o despacho recorrido. Note-se que os recorridos requereram a intervenção principal da recorrente na acção executiva com fundamento na procedência da impugnação pauliana na parte em que foi deduzida contra aquela, invocando o disposto nos artigos 616.º, n.º 1, e 818.º do Código Civil, e, coerentemente, requereram também que a penhora incidisse sobre os dois bens cuja compra e venda foi declarada ineficaz relativamente a si (n.ºs 6 e 7 dos factos acima julgados provados). O despacho recorrido, por seu turno, também não ultrapassou esse limite, cingindo-se aos dois referidos bens e tendo sempre por referência o conteúdo da sentença proferida na acção pauliana. O mesmo despacho refere, nomeadamente que a acção executiva prosseguirá “sobre o património da requerida”, mas, como não podia deixar de ser, “com base na sentença proferida no processo n.º 2406/13.6TBPTM”, ou seja, tendo em vista a efectivação daquilo que nesta foi decidido e nada mais que isso.

Flui do exposto que o recurso não tem razão de ser. O despacho recorrido não sujeita a totalidade do património da recorrente à satisfação do crédito exequendo, antes se tendo contido nos limites fixados na sentença proferida na acção pauliana, pelo que deverá ser mantido, improcedendo, assim, o recurso.


*


Sumário:

(…)


*


Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pela recorrente.

Notifique.


*

Évora, 08 de Outubro de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata



__________________________________________________

[1] Neste sentido, Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 7.ª edição revista e actualizada, p. 61, e Rui Pinto, A Acção Executiva, p. 292.

[2] Neste sentido, Fernando Amâncio Ferreira, obra citada, p. 61, e José Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª edição, p. 148.