Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3204/18.6T8STR-E.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
CRÉDITO FISCAL
MORATÓRIA
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O plano de insolvência não pode impor uma moratória na satisfação de créditos fiscais que não seja autorizada pela administração fiscal. Se o fizer, será ineficaz no que concerne aos referidos créditos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3204/18.6T8STR-E.E1

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Por sentença proferida em 06.01.2020, foi homologado o plano da insolvência de (…) – Fundições do (…), S.A..

O Ministério Público, em representação do Estado/Fazenda Nacional, recorreu dessa sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 – No presente processo de insolvência foram reclamados e encontram-se admitidos créditos do Estado/Fazenda Nacional sobre a insolvente (…) – Fundições (…), S.A. no montante total de € 50.208,50.

2 – Nos termos do artigo 30.º, número 2, da LGT, o crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária, prevalecendo esta disposição sobre qualquer legislação especial, de acordo com o seu número 3.

3 – A indisponibilidade do crédito tributário é aplicável, nos termos do artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, aos processos de insolvência.

4 – Salvo lei expressa nesse sentido, não é possível ao Estado conceder perdões ou moratórias no pagamento dos créditos tributários (cfr. artigo. 103.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, 85.º do CPPT, 30.º, nº 2 e 36.º, nº 3, ambos da LGT.

5 – O plano aprovado está associado a uma condição de futuro incerto que equivale implicitamente a uma moratória, in casu, ilegal por não se encontrar expressamente prevista na lei (cfr. art.º 36.º da LGT).

6 – Acresce que a suspensão dos processos de execução fiscal após a homologação do plano até integral pagamento, com isenção de prestação de garantia, viola o disposto no art.º 52.º, n.º 4 da LGT e art.º 199.º n.º 3, 8 e 9 do CPPT, na medida em que a isenção da prestação de garantia depende de autorização do órgão fiscal e não da vontade do sujeito passivo.

7 – Prevalecendo estas disposições legais sobre quaisquer outras provenientes de legislação especial, dada a sua natureza imperativa, não deveria o tribunal a quo ter homologado o plano em causa, nos termos em que o foi.

8 – Deveria o tribunal a quo, nos termos do artigo 215.º do CIRE, ter recusado a homologação do plano de recuperação uma vez que se verifica uma violação das regras procedimentais e das normas aplicáveis ao seu conteúdo, como são as disposições legais da LGT e do CPPT acima citadas.

9 – Consequentemente, a douta sentença que homologou o plano de recuperação violou o disposto em normas imperativas, designadamente os artigos 30.º, n.º 2 e 3, 36.º, n.º 3 e 52.º da LGT, os artigos 85.º, n.º 3, 196.º e 199.º do CPPT, o artigo 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro e o artigo 215.º do CIRE.

Pelo que deverá a decisão proferida pelo douto tribunal a quo ser substituída por outra que recuse a homologação do plano de insolvência apresentado nos presentes autos, relativamente aos créditos fiscais, de acordo com o disposto no artigo 215.º do CIRE, ou, caso assim se entenda, que o declare ineficaz em relação aos créditos tributários».

A insolvente apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1 – O plano de insolvência devidamente aprovado e homologado não contém qualquer condição ou moratória para os créditos de que é detentora a recorrente.

2 – O concurso que se mostra estabelecido no plano de insolvência não se constitui, em relação aos créditos da recorrente ou de outros quaisquer credores, como uma condição para a realização dos pagamentos que são devidos realizar.

3 – Não existe qualquer moratória em relação aos créditos de que é detentora a recorrente, da mesma forma que não existe qualquer condição associada ao pagamento dos mesmos.

4 – A recorrida encontra-se numa situação de insolvência e, necessariamente, numa situação que pode e deve ser entendida como de extrema dificuldade económica.

5 – A matéria relativa à prestação de garantias, no âmbito de plano de insolvência, que tem por objectivo a suspensão das execuções fiscais existentes, está fora do campo de indisponibilidade do direito, devendo antes ter-se em consideração cada situação de forma casuística e levando em conta os interesses existentes entre a recuperação económica da devedora e a salvaguarda do interesse público na boa cobrança dos créditos fiscais.

6 – Sob pena de inconstitucionalidade, a diferenciação do pagamento da dívida da recorrente teria sempre de ser realizado no plano de insolvência. A consagração de garantias para a recorrente em detrimento de outras quaisquer dívidas substancialmente superiores pertencentes a outros credores, sempre seria violadora dos elementares princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade já que a total indisponibilidade dos créditos tributários não serve de justificação jurídica para a total disponibilidade de garantias em detrimento de outros credores.

7 – Se a recorrida propusesse a constituição de garantias para a recorrente e o não fizesse para credores com dívidas substancialmente superiores (10, 15 vezes superiores) a proposta de não constituição de garantias para esses mesmos credores violaria os princípios constitucionais, mormente o da igualdade, constante do artigo 194.º do CIRE, bem como dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da adequação.

8 – Portanto, o que a recorrente defende no seu recurso de fls.. é, outrossim, uma ilegalidade porque viola os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da adequação, sendo claramente uma interpretação inconstitucional dos artigos 52.º, n.º 4 da LGT e dos números 3, 8 e 9 do artigo 199.º do CPPT, o que se invoca.

9 – Uma tal interpretação seria igualmente violadora do princípio do tratamento igualitário dos credores pois que, sendo o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores e, uma vez que o património da ora recorrente é a garantia comum dos créditos, é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia e eles não consideraram que o fosse dando garantias à recorrente.

Assim, nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. melhor decidirão, deverá o recurso interposto ser indeferido, mantendo-se a sentença de homologação do plano de insolvência nos exactos termos em que se mostra exarada, assim se fazendo a costumeira Justiça.

O recurso foi admitido, com subida em separado e efeito meramente devolutivo.


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Está em causa saber se o conteúdo do plano de insolvência viola o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, consagrado no artigo 30.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (LGT), aplicável também em sede de processo de insolvência conforme disposto no n.º 3 do mesmo artigo e no artigo 125.º da Lei 55-A/2010, de 31.12.

O plano de insolvência prevê o pagamento dos créditos tributários “em regime prestacional nos termos do artigo 196.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) em 36 (trinta e seis) prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte à data da realização da assembleia de credores que aprovar o presente plano de insolvência” e que “não haverá qualquer redução de créditos fiscais, coimas e/ou custas nem qualquer moratória”.

Todavia, tal como o recorrente nota, também resulta do plano de insolvência que o início do efectivo pagamento dos créditos tributários, à semelhança dos restantes, está dependente da ocorrência de um facto futuro e incerto, o que, na prática, equivale a uma moratória no referido pagamento.

Atentemos nos trechos do plano de insolvência que em seguida sintetizamos:

- A proposta apresentada segue um critério misto à luz da alínea b) do n.º 2 do artigo 195.º do CIRE, pois, ao mesmo tempo que visa a continuidade da laboração tendo em vista a recuperação da empresa, estabelece uma solução de tentativa de transmissão da empresa a outra entidade com interesse para tal (p. 50);

- O concurso inicial terá a duração de 60 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de insolvência; nessa fase, o administrador da insolvência deverá procurar as melhores soluções para a venda da empresa (através da venda da totalidade das acções representativas do capital social da insolvente) ou para a cessão dos estabelecimentos industriais (p. 51-52);

- Na hipótese de cessão dos estabelecimentos industriais, a contrapartida paga pelo cessionário será constituída por uma prestação mensal que permitirá à insolvente cumprir o plano de pagamentos constante do ponto V (p. 54);

- O produto da eventual venda das acções representativas do capital social da insolvente será afecto, pelo administrador da insolvência, ao pagamento de responsabilidades fiscais e parafiscais (p. 52);

- O concurso complementar terá lugar na hipótese de, no concurso inicial, não haver a apresentação e aceitação de propostas de venda da insolvente. Durante este período e no pressuposto de que os estabelecimentos industriais já foram objecto de cessão, a insolvente estará a receber uma remuneração que lhe permite efectuar os pagamentos definidos no presente plano. Continuar-se-á a tentar vender a insolvente. Ainda que isso não seja possível, a insolvente prosseguirá a sua actividade mediante a manutenção da cessão dos estabelecimentos industriais. Apenas depois do cumprimento integral dos pagamentos aos credores nos termos do plano poderá a insolvente denunciar o contrato de cessão dos estabelecimentos industriais e retomar o controlo dos seus bens e da produção dos mesmos (p. 55-56);

- Com o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de insolvência e até à cessão dos estabelecimentos, a insolvente continuará a desenvolver a sua actividade, garantindo a constante laboração da empresa e a manutenção da laboração dos equipamentos industriais. (p. 55).

Resulta, assim, do plano de insolvência, que os créditos tributários apenas começarão a ser satisfeitos se e quando o administrador da insolvência conseguir vender as acções representativas do capital social da insolvente ou, quando menos, ceder a exploração dos estabelecimentos industriais desta. Até que um desses factos ocorra, não está previsto que a insolvente inicie o efectivo pagamento dos créditos tributários, até porque não terá capacidade financeira para o fazer. Daí concluirmos que, por efeito do plano de insolvência, os créditos tributários acabam por ficar sujeitos a uma moratória (seguida de um pagamento em prestações também não autorizado pela administração fiscal), cuja duração nem sequer é conhecida.

O estabelecimento de tal moratória no plano de insolvência sem aprovação do órgão da administração tributária competente viola o disposto nos artigos 36.º, n.º 3, da LGT, e 85.º, n.ºs 1 a 3, do CPPT. Estamos perante normas legais imperativas, pelo que deve entender-se que tal violação não é negligenciável para o efeito previsto no artigo 215.º do CIRE. É quanto basta para concluir que o plano de insolvência não podia ter sido homologado nos termos em que o foi, independentemente da questão da falta de prestação de garantias por parte da insolvente, também suscitada pelo recorrente.

Do exposto não decorre, porém, que a sentença recorrida deva ser pura e simplesmente revogada, ficando sem qualquer efeito a homologação do plano de insolvência. Deve, antes, entender-se que, se o estabelecido no plano de insolvência sobre os créditos tributários violar normas legais imperativas, a consequência é a mera ineficácia do referido plano relativamente a tais créditos – cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos desta Relação de 28.06.2012 (proc. n.º 1146/10.2TBALR.E1; relator: Paulo Amaral), 12.03.2015 (proc. n.º 2193/13.8TBABF.E1; relator: Bernardo Domingos), 28.05.2015 (proc. n.º 199/14.9TBACN-A.E1; relatora: Conceição Ferreira), 24.05.2018 (proc. n.º 939/16.1T8OLH-D.E1; relatora: Albertina Pedroso) e 02.10.2018 (proc. n.º 9/17.5T8OLH-B.E1; relator: Francisco Matos). Trata-se da solução mais equilibrada, pois salvaguarda a indisponibilidade dos créditos tributários sem, todavia, inutilizar o acordo da maioria dos credores no sentido da recuperação da insolvente, nos termos constantes do plano de insolvência.


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Sumário:

(…)


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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso procedente, declarando-se o plano de insolvência ineficaz relativamente aos créditos tributários. Em tudo o mais, mantém-se a sentença recorrida.

Custas pela massa insolvente.

Notifique.

Évora, 21 de Maio de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata