Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3611/22.0 T8FAR.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: SOCIEDADE ENTRE CÔNJUGES
PARTILHA DOS HAVERES SOCIAIS
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 01/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Comprovado nos autos que os sócios da sociedade autora, que tinham sido casados entre si, acordaram na dissolução da mesma, com a consequente liquidação do respectivo património, tendo delineado um pré-acordo de partilha, que envolveria também a divisão de activos e passivos comuns aos ex-cônjuges, a que procederiam de forma integrada, e tendo acordado, no âmbito do assim denominado pré-acordo, a constituição de uma conta cliente titulada pelas mandatárias de cada um na qual foi depositado o produto da venda dos bens da sociedade, não estamos perante uma deliberação social que esta vincule.
II. Tendo a sociedade autora reivindicado a restituição da quantia depositada após o termo do prazo previsto pelos sócios ex-cônjuges para dissolverem a sociedade e acordarem os termos da partilha, não actua em abuso de direito.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3611/22.0 T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Central Cível de Faro – Juiz 2


I. Relatório
(…) – Sociedade Agrícola e Turística, Lda. instaurou contra (…) a presente acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final:
a) fosse reconhecida como exclusiva proprietária das quantias em dinheiro (saldo) existentes na conta de depósito à ordem n.º (…) do Banco (…), S.A.;
b) fosse a Ré condenada a restituir à Autora a quantia de € 609.275,46, saldo este que se encontra depositado na conta n.º (…) do Banco (…), S.A, titulada pela Ré;
c) fosse a mesma Ré condenada ao pagamento das coimas e juros vencidos e vincendos a que a Autora se encontra obrigada, até efetivo e integral pagamento da quantia reclamada.
Em fundamento alegou, em síntese, ter por objecto social a gestão hoteleira, restauração, actividades turísticas hoteleiras e similares, desenvolvimento da exploração de projectos de turismo, alojamento local, agricultura, produção, transformação e comercialização de produtos hortícolas, encontrando-se o seu capital social dividido em duas quotas, uma no valor de € 3.000,00, titulada por (…), única gerente com poderes para obrigar a sociedade, e a outra, no valor de € 2.000,00, titulada por (…).
Os únicos sócios da autora foram casados entre si, casamento que veio a ser dissolvido por divórcio decretado em 29 de Abril de 2021.
Na sequência do divórcio, os sócios optaram por pôr fim à sociedade autora, tendo acordado proceder à venda dos imóveis por esta adquiridos, processo no qual se fizeram representar por advogados portugueses, cabendo a representação da sócia (…) à Dr.ª (…) e a representação do sócio (…) à aqui Ré, Dr.ª (…). Os aludidos imóveis pertencentes à sociedade autora foram vendidos em 27 de Dezembro de 2021 pelo preço global de € 935.000,00, quantia que foi depositada em conta bancária pela mesma titulada, sediada no Banco (…), SA.
No âmbito das negociações levadas a cabo para a dissolução da sociedade autora e distribuição pelos sócios dos bens e valores resultantes da liquidação, ficou decidida verbalmente a abertura de uma conta bancária conjunta, titulada pelas mandatárias dos dois sócios – conta cliente – e que só por ambas poderia ser movimentada, estando prevista a sua liquidação em meados de Março, com a dissolução e liquidação da sociedade autora. No âmbito do assim acordado, a sócia gerente da autora determinou a transferência para a aludida conta da quantia de € 685.000,00, tendo o remanescente sido afectado ao pagamento de empréstimos contraídos e despesas várias.
Sucede, porém, que os sócios desentenderam-se quanto à forma como iriam pôr termo à actividade da sociedade autora e partilha dos valores. Face a tal malogro, e tendo sido revogados os mandatos conferidos às Sr.ªs advogadas que os representavam, a autora notificou as mesmas para procederem à devolução da quantia em depósito na conta por ambas titulada, então no valor de € 609.275,46, para o que a Dr.ª (…) de imediato se disponibilizou, mas não a aqui ré, que vem retendo ilicitamente o aludido montante. Com tal conduta a Ré vem causando diversos prejuízos à ora demandante que, sendo a legítima dona da aludida quantia, tem direito à sua restituição, devendo ainda ser indemnizada pelos danos sofridos em consequência da privação da mesma.
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Citada, a Ré veio contestar nos termos da peça que consta de fls. 47 a 52, na qual esclareceu que se mantém como mandatária do sócio (…), cujos interesses tem o dever legal e contratual de proteger, sustentando que a quantia depositada já não pertence à autora, que a transferiu voluntariamente para conta titulada pelas Ils. mandatárias de cada um dos sócios, em ordem a garantir a sua posterior partilha pelos mesmos. Mais alegou que a constituição da aludida conta foi condição da venda dos imóveis, pois, caso contrário, o sócio (…) a tal se oporia, uma vez que, sendo a sócia (…) a única gerente da demandante, poderia dar às quantias em causa o destino que bem entendesse, frustrando o direito do outro sócio ao seu quinhão na partilha. Mantendo-se tal finalidade, uma vez que a partilha não ocorreu, sustenta ser lícita a retenção da quantia depositada.
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Teve lugar audiência prévia e nela o Tribunal anunciou a sua intenção de conhecer antecipadamente do mérito da causa, na consideração de que os autos continham os elementos necessários a tal proferimento, tendo convidado as partes a pronunciarem-se.
Foi de seguida proferido douto saneador sentença, nos termos do qual foi a acção julgada parcialmente procedente, tendo-se decidido:
“i. Declarar que a Autora (…) – Sociedade Agrícola e Turística, Lda. é proprietária exclusiva das quantias em dinheiro (saldo) existentes na conta de depósito à ordem n.º (…) do Banco (…), SA;
ii. Determinar que a Ré (…) restitua à Autora (…) – Sociedade Agrícola e Turística, Lda. o saldo da conta bancária referida em i. no valor de € 609.614,38;
iii. Absolver a Ré do demais peticionado.

Inconformada, apelou a ré e, tendo desenvolvido na alegação que apresentou os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“I. Pelo douto Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Faro – Juiz 2, foi proferido despacho saneador com valor de sentença, nos termos do artigo 595.º, n.º 3, do C.P.C., que decidiu julgar parcialmente procedente a acção, declarando que a Autora é proprietária exclusiva das quantias em dinheiro existentes na conta de depósito à ordem n.º (…) do Banco (…), S. A, determinando que a Ré restitua à Autora o saldo da referida conta bancária.
II. Não concordando a ora Recorrente com o teor da douta sentença proferida, vem da mesma interpor recurso.
Porquanto,
III. Nos termos da douta sentença proferida, foram considerados provados entre outros os seguintes pontos:
«9) No âmbito das negociações levadas a cabo por (…) e (…) foi decidido verbalmente a abertura de uma conta bancária, por forma a assegurar a repartição dos lucros da venda do imóvel.
11) Em 4 de janeiro de 2022, no âmbito destas negociações, a sócia (…) procedeu à ordem de transferência da quantia de € 685.000,00 (seiscentos e oitenta e cinco mil euros), directamente da conta da Autora para a referida conta, titulada pelas mandatárias.»
IV. O douto Tribunal a quo referiu que «… a convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada dos seguintes meios de prova:
c) No acordo das partes, nos termos do artigo 574.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, relativamente aos factos disponíveis em causa nos autos.
d) ) Nos documentos juntos aos autos … designadamente: - Certidão comercial da Autora, de fls. 10 e 11; - Contrato de sociedade relativo à Autora, de fls.12 a 14; - Certidões prediais relativas aos imóveis vendidos pela Autora, de fls. 14-vº a 17; - Ata de conferência de divórcio, de fls.18 a 20; - Escrituras de compra e venda dos prédios aqui em causa, de fls.2 – vº a 25; -Documentação bancária, de fls. 25-vº a 28.»
V. Nada se referindo quanto à restante prova / documentos juntos aos autos.
VI. O douto Tribunal a quo refere expressamente que a sua convicção alicerçou-se no acordo das partes e nos seguintes meios de prova e sendo eles enumerados taxativamente.
VII. Não consta destes documentos referência ao acordo verbal para a abertura da conta ou para a transferência efectuada pela sócia (…) para a conta titulada pelas mandatárias no dia 4 de janeiro de 2022.
VIII. E não existe acordo das partes quanto a este ponto, pelo que se desconhece em que meios de prova o douto Tribunal a quo alicerçou a sua convicção, efectuando uma análise crítica e ponderada, para considerar como provados os pontos 9 e 11, em concreto, que a decisão da abertura de uma conta bancária foi proferida verbalmente e que a transferência efectuada no dia 4 de janeiro para a conta das mandatárias foi efectuada no âmbito destas negociações.
IX. Na contestação deduzida, a Recorrente impugnou todos os factos constantes da petição inicial e todos os documentos juntos com a mesma, no seu ponto 1.º.
X. Tendo apresentando na sua contestação, como Doc. 4 um e-mail enviado pela sócia (…) ao cuidado do sócio (…), dos representantes do Banco (…), da sua mandatária, da ora Recorrente e dos agentes imobiliários, (…) e (…), onde responde a um e-mail do sócio (…), onde o mesmo refere que aceita a abertura da conta em nome das mandatárias para depósito da quantia proveniente da venda dos imóveis propriedade da sociedade (…) e aceita estar presente na escritura de venda, referindo a sócia (…) expressamente por escrito que neste contexto, dá instruções ao banco para os procedimentos referentes ao pagamento dos créditos constituídos junto destes.
XI. Mostrando a sócia gerente, claramente e por escrito, a sua concordância com tal decisão!
XII. Tendo a Recorrente impugnado os factos constantes da P.I. e juntou aos autos os Doc. 2 e 4, com indicação precisa das decisões e instruções por escrito relativamente às condições para a aceitação da venda dos imóveis, por parte dos dois sócios da Autora, (…) e (…), esta, sócia maioritária e gerente da Autora!
XIII. Não poderia ser considerado como facto provado, que “… foi decidido verbalmente a abertura de uma conta bancária …”.
XIV. Não existindo nos autos qualquer acordo das partes, no sentido de reconhecer que a decisão foi verbal!
XV. A fundamentação apresentada pelo douto Tribunal a quo para considerar como provado o ponto 9) não é válida, na medida em que refere que a decisão foi verbal, quando os factos argumentados por parte da Autora nesse ponto foram impugnados pela ora Recorrente, que apresentou prova em sentido contrário, nomeadamente que terá existido uma decisão por escrito nesse sentido, com instruções precisas!
XVI. A sentença proferida pelo douto Tribunal a quo sofre de nulidade, por falta de fundamentação dos concretos meios de prova considerados para incluir nos factos provados no ponto 9).
XVII. No presente caso, o douto Tribunal a quo não especificou devidamente os fundamentos de facto para considerar provados os factos assentes em 9) e nos quais assentou a sua convicção.
XVII. A decisão proferida deve ser fundamentada de facto e de direito.
XIX. E não foi devidamente fundamentada de facto.
XX. Constituindo nulidade nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C., todos os fundamentos de facto e de direito, têm que ser especificados.
XXI. Nulidade processual essa que ora se invoca.
XXII. A ora Autora é uma sociedade por quotas e como tal, pode esta perfeitamente tomar deliberações unânimes por escrito.
XXIII. Sem observância de formalidades prévias, desde que todos os sócios manifestem a vontade de que a assembleia se constitua e delibere sobre determinado assunto.
XXIV. Tal preceito consta do artigo 54.º, n.º 1, do C.S.C.
XXV. Por acordo escrito dos seus únicos sócios (sendo a sócia maioritária gerente), que vinculam a sociedade, foi pelos mesmos decidido por escrito, através de e-mail, a abertura de uma conta bancária pelas mandatárias, por forma a possibilitar a concretização da escritura de compra e venda.
XXVI. Tal deliberação é válida e deverá vincular a sociedade ora Autora.
XXVII. Se assim não for, a venda dos imóveis, terá que ser considerada nula e sem qualquer efeito!
XXVIII. Pois as condições para que esta fosse concluída não estão a ser cumpridas.
XXIX. A ora Autora está actuando claramente em “venire contra factum proprium” ao instaurar a presente acção.
XXX. A deliberação no sentido de proceder à abertura da conta bancária, foi tomada por unanimidade e por escrito, pelos sócios da sociedade, sendo esta condição essencial para a outorga da escritura de compra e venda, que caso contrário nunca se teria realizado, porque o sócio (…) nunca assinaria a escritura.
XXXI. Pretendendo a ora Autora, com a presente acção, reverter a situação, isto é, recuperar o valor da venda para o seu poder.
XXXII. O enquadramento jurídico efectuado pelo douto Tribunal a quo não é coerente com a situação de facto criada pela ora Autora, que pretendeu fazer desta uma acção de reivindicação.
XXXIII. Quando na realidade não é!
XXXIV. Claramente, os sócios da ora Autora, pretenderam vender os imóveis com vista à dissolução desta e partilha dos lucros.
XXXV. Tendo deliberado no sentido de assegurar que essa partilha seria feita correcta e justamente de acordo com os direitos de cada um dos sócios.
XXXVI. Tal deliberação é válida e obriga a sociedade ora Autora a respeitá-la.
XXXVII. Termos em que a nulidade da sentença ora proferida deverá ser declarada”.
Com os aludidos fundamentos concluiu pela procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida, “condenando a sociedade ora autora a cumprir a deliberação tomada pelos sócios de depósito na conta das mandatárias do montante proveniente da compra e venda.
Contra alegou a autora, pugnando naturalmente pela manutenção do julgado.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recuso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste tribunal:
i. indagar se a sentença padece de vício causador da sua nulidade e
ii. se ocorreu erro de julgamento quanto aos pontos 9. e 11. do elenco dos factos provados;
iii. determinar se foi validamente deliberada pela sociedade autora a abertura da conta-cliente titulada pelas Ils. Mandatárias que os representavam (e consequente necessidade de ambos os sócios estarem de acordo para a movimentar);
iv. decidir se a autora actua em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”.
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i. da nulidade da sentença
Sob a alegação de que o tribunal não especificou devidamente os fundamentos que o levaram a dar como provados os factos assentes em 9. e 11., ficando sem se saber que meios de prova considerou para o efeito, imputa a apelante à sentença recorrida a nulidade prevista nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, alegado vício de que cumpre conhecer.
As nulidades da sentença decorrem dos vícios taxativamente previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 615.º, a saber, e para o que ora releva, a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (alínea b), não estando em causa a indevidamente convocada alínea d), que se ocupa da omissão e do excesso de pronúncia.
A nulidade decorrente da falta de fundamentação resulta da violação do dever consagrado no artigo 154.º do CPC, por cujos termos se impõe ao juiz que fundamente as decisões proferidas sobre qualquer dúvida suscitada no processo ou qualquer pedido controvertido (vide n.º 1). Correspondendo a uma exigência constitucional – artigo 205.º da CRP –, é entendimento constante o de que só a absoluta, que não a deficiente ou pouco persuasiva fundamentação, recai na previsão legal, só se verificando o invocado vício quando tenham sido completamente omitidas as razões, de facto e de direito, que suportam a decisão. E omitir as razões de facto, ao invés do que a recorrente parece entender, é omitir – de todo – a indicação dos factos que suportam a decisão, situação diversa da violação do dever de especificação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador imposto pelo artigo 607.º do CPC.
Com efeito, relevando a distinção entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, aqueles não constituem causa de nulidade desta, considerando para além do mais o carácter taxativo do elenco do citado artigo 615.º, antes dando lugar a eventual remessa dos autos à 1.ª instância nos termos e para os efeitos prevenidos na alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, prerrogativa que, porém, a lei reserva agora apenas ao Tribunal da Relação e circunscreve aos factos essenciais.
No caso vertente, da leitura da motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto resulta ter a Sr.ª juíza revelado com suficiência as razões que foram decisivas para a formação da sua convicção, tendo apontado os meios de prova considerados e procedido à sua valoração. E tanto assim é que a agora apelante impugna a decisão proferida no que respeita aos factos que identifica por discordar que se verifique acordo das partes quanto à sua realidade, defendendo que foram desconsiderados documentos que determinam seja dado como assente que o acordo ali mencionado ficou firmado por escrito, o que é quanto baste para se concluir que nem se verifica nulidade da sentença nem ocorre deficiência ou insuficiência da decisão proferida sobre os factos.
Daqui não decorre, porém, que não tenha ocorrido erro na avaliação das provas, equívoco que, a verificar-se, consubstancia erro de julgamento, sindicável por este tribunal da Relação nos termos do antes citado artigo 662.º do CPC, e de que nos ocuparemos de seguida.
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ii. do erro de julgamento no que respeita aos factos assentes sob os n.ºs 9. e 11.
A apelante diz terem sido os identificados pontos da matéria de facto mal julgados, tendo sido indevidamente dados como assentes por acordo das partes quando, na verdade, com excepção do alegado nos artigos 1.º a 10.º da petição inicial, impugnou todos os restantes, defendendo que dos documentos que juntou sob os n.ºs 2 e 4 resulta estarmos perante um acordo escrito. Vejamos se lhe assiste razão.
Na contestação que apresentou a agora apelante, no artigo 2.º, declarou não corresponder à verdade o alegado pela A., com excepção dos artigos 1.º a 10.º da petição inicial. Todavia, não deixou de nos artigos seguintes dar a sua versão dos factos.
A propósito das modalidades de defesa, é possível distinguir entre a defesa por impugnação e a defesa por excepção (artigo 571.º do CPC): na primeira, que aqui nos interessa, o réu opõe-se à versão da realidade apresentada pelo autor, negando os factos alegados como causa de pedir na petição inicial (impugnação de facto) ou contradiz o efeito jurídico que o autor deles pretende extrair, questionando a determinação, interpretação ou aplicação da norma de direito feita naquela peça (impugnação de direito). Mas a impugnação dos factos constitutivos alegados pelo autor pode ser, conforme ensina o Prof. Lebre de Freitas[1], directa ou indirecta. “É directa quando o réu nega frontalmente os factos, dizendo que não se verificaram. É indirecta a) quando o réu, confessando ou admitindo parte dos factos alegados como causa de pedir pelo autor afirma, pro sua vez, factos cuja existência é incompatível com a realidade de outros também alegados pelo autor no âmbito da mesma causa de pedir, que assim desvirtua; b) quando alega factos instrumentais probatórios incompatíveis com factos alegados, como causa de pedir, pelo autor; c) quando com estes é incompatível (está em oposição) o conjunto dos factos alegados pelo réu ou a negação, pelo réu, de um dos factos alegados pelo autor, do qual os restantes dependem”.
Ora, analisada a contestação, verifica-se que, para lá da negação genérica do alegado pela autora a partir do artigo 11.º, a ré deu dos factos a sua própria versão – impugnação motivada – e da análise da factualidade alegada verifica-se que, em diversos pontos, inexiste qualquer incompatibilidade com o antes alegado pela autora, impondo-se ao juiz a sua consideração na sentença como factos assentes em obediência ao disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC.
Está em causa a seguinte matéria factual:
9. No âmbito das negociações levadas a cabo por (…) e (…), foi decidido verbalmente a abertura de uma conta bancária, por forma a assegurar a repartição dos lucros da venda do imóvel.
11. Em 4 de janeiro de 2022, no âmbito destas negociações, a sócia (…) procedeu à ordem de transferência da quantia de € 685.000,00 (seiscentos e oitenta e cinco mil euros), diretamente da conta da Autora para a referida conta, titulada pelas mandatárias.
Insurge-se a ré, como vimos, contra a consideração de que o acordo de abertura de conta tenha sido meramente verbal e ainda que a transferência da quantia mencionada em 11. ocorreu no âmbito dessas negociações, invocando para tanto os documentos que fez juntar sob os n.ºs 2 e 4.
Verifiquemos, antes de mais, o que é que foi alegado por A e Ré.
A autora alegou que i. na sequência do seu divórcio, os sócios acordaram pôr fim à sociedade autora, tendo envidado esforços para a dissolver (artigo 12.º); ii. acordaram proceder à venda dos bens imóveis pertença da sociedade (artigo 13.º); iii. no âmbito das negociações levadas a cabo para a dissolução da sociedade autora e para a distribuição de bens e valores, ficou decidido verbalmente, a conselho das mandatárias constituídas por cada um dos sócios, a abertura de uma conta bancária por forma a assegurar a repartição dos lucros da venda do imóvel (artigo 23.º) iv. na sequência do que foi aberta no Banco (…) conta conjunta, titulada pelas duas mandatárias, Dr.ª (…), que à data representava a sócia gerente (…), e a aqui Ré, mandatária do sócio (…), e que só por ambas poderia ser movimentada (artigo 24.º); v. os imóveis foram alienados em Dezembro de 2021 e a conta seria supostamente encerrada em meados de Março [de 2022], com a dissolução e liquidação da sociedade (artigo 29.º); vi. o contabilista preparou contabilisticamente o encerramento da sociedade (artigo 30.º); vii. em 4 de janeiro, no âmbito das referidas negociações, a sócia gerente (…) transferiu a quantia de € 685.000,00 para a conta titulada pelas duas mandatárias (artigo 31.º); viii. os sócios desentenderam-se quanto á forma como iriam pôr termo à actividade da autora e partilha dos valores que deveria ocorrer na sequencia da dissolução da sociedade.
A Ré, por seu turno, alegou, quanto a esta matéria, que: i. tendo-se divorciado, os sócios (…) e (…) decidiram iniciar o procedimento para partilha dos bens comuns, entre eles os pertencentes à sociedade, tendo em vista a sua posterior dissolução (artigo 5.º); ii. tendo sido perdida, face ao não entendimento dos sócios, uma anterior oportunidade de venda dos prédios da sociedade, o agente imobiliário propôs a abertura de conta bancária titulada pelas mandatárias de cada um, na qual seria depositado o produto da venda, sendo o remanescente, após pagamento do empréstimo ao Banco (…) e comissões devidas, dividido pelos sócios (artigos 7.º a 12.º); iii. o sócio (…), em email dirigido à aqui ré em 16 de Dezembro, com conhecimento ao agente imobiliário, a (…), à sócia gerente (…) e Il. Mandatária que então a representava, Dr.ª (…), declarou aceitar tal proposta e confirmou a sua presença na data agendada para a realização da escritura (artigos 13.º e 14.º e doc. n.º 2 junto com a contestação); iv. no dia 21/12/2021 a ora ré e a Dr.ª (…), seguindo as instruções dos respectivos mandantes, procederam à abertura de uma conta clientes conjunta no Banco … (artigo 15.º); v. os sócios (…) e (…) tinham outras situações paralelas que queriam resolver em conjunto com a partilha dos bens da sociedade autora, tendo dado instruções para que pelo produto da venda dos imóveis fosse pago um crédito detido pelo Banco (…) no Luxemburgo (artigos 17.º, 18.º e 19.º); vi. os bens foram vendidos e os cheques relativos ao preço foram depositados em conta da A., tendo a sócia gerente (…) transferido para a conta clientes em 4/1 a quantia de € 685.000,00, tendo os sócios acordado que do remanescente, que permaneceu naquela primeira conta, seriam pagas as comissões e restantes despesas comuns, conforme veio a ser feito (artigos 22.º, 25.º, 27.º, 28.º, 32.º e 33.º); vii. seguidamente, e conforme acordado com os clientes em início de Janeiro de 2022, iniciaram-se com sucesso as negociações para os sócios chegarem a acordo quanto à repartição dos lucros da autora e a sociedade seria encerrada até ao final do mês de Março e o dinheiro existente na conta clientes seria entregue aos sócios (artigo 34.º); viii. desta forma, os sócios aceitaram por acordo e com vista à formalização do acordo final, o encerramento da autora e que fossem efectuados outros pagamentos (artigo 35.º); viii. contudo, após reunião com o contabilista e preparação da documentação com vista à dissolução da sociedade, em meados de Março de 2022 os sócios desentenderam-se, “quebraram o acordo verbal a que tinham chegado e a sociedade não foi dissolvida nem os valores entregues aos sócios” (artigo 36.º).
Do confronto das versões apresentadas resulta evidente que, conforme foi dado como assente, e pese embora a impugnação feita no artigo 2.º, as versões das partes coincidem em diversos pontos, designadamente quanto à existência de acordo para a abertura da conta titulada pelas Ils. Advogadas que à data representavam cada um dos sócios – concludente nesse sentido é a actuação da sócia gerente (…) quando transferiu parte do produto da venda para essa mesma conta. Todavia, e apesar de as mensagens electrónicas convocadas pela impugnante revelarem a existência desse mesmo acordo, nem o documento n.º 2 junto pela apelante – email que lhe foi dirigido pelo seu cliente (…) em 16 de Dezembro, comunicando o seu acordo à proposta da iniciativa do agente imobiliário (…) – nem, adianta-se, o doc. n.º 4, fazem prova de que tenha ocorrido um acordo escrito nesse sentido, o que é certamente coisa diversa. Com efeito, estão em causa neste último documento duas mensagens electrónicas dirigidas pelos ex cônjuges (…) e (…) a (…) e (…), do banco … (no caso da primeira também endereçado a … e com conhecimento ao agente imobiliário e às duas advogadas, no caso do email remetido pelo segundo, com conhecimento aos restantes), dando instruções para efeitos de ser liquidado o empréstimo contraído junto daquela instituição bancária. E se é certo que neles se menciona que o reembolso do crédito será feito pelo produto da venda do imóvel pertença da sociedade, nada daqui se retira quanto à forma que revestiu o acordo de abertura de conta.
Por outro lado, e conforme a própria recorrente alega no antes citado artigo 36.º, ainda que pareça estar a referir-se ao acordo a que as partes teriam chegado no início de Janeiro de 2022 a respeito da repartição dos lucros da sociedade e de que se teriam mais tarde retratado, este acordo foi verbal, sendo certo que em parte alguma alegou ter sido formalizado por escrito qualquer acordo anterior, documento que, sublinha-se, não se mostra junto.
Em face do exposto, e porque os documentos agora invocados não fazem prova de que o acordo quanto à abertura da conta clientes titulada pelas Ils. Mandatárias de cada um dos sócios tenha sido celebrado por escrito, antes tudo se tendo desenrolado, mesmo no que respeita à decisão de vender prédios pertencentes à sociedade e pagamento de quantias apreciáveis, algumas das responsabilidade dos sócios, que não da sociedade, com notável informalidade, inexiste fundamento para modificar a redacção do impugnado ponto 9.
Por outro lado, resultando evidente que a transferência do dinheiro para a referida conta resultou das negociações havidas, pois de outro modo não se compreenderia e, de resto, resulta da própria alegação da agora impugnante, é igualmente de manter o ponto 11.
Improcede, pelo exposto, a impugnação deduzida contra a decisão da matéria de facto.

De outro lado, e porque o comando do artigo 607.º, n.º 4, se impõe igualmente a este Tribunal da Relação (cfr. artigo 663.º, n.º 2, do CPC), considerando que existe factualidade relevante que resulta demonstrada por acordo das partes e documentos juntos, determina-se o seu aditamento, estando em causa os seguintes factos:
- Na sequência do divórcio, os ex-cônjuges e sócios da autora (…) e (…) acordaram dissolver a mesma e, tendo em vista tal finalidade, acordaram proceder à venda dos imóveis que a esta pertenciam (acordo das partes – vide artigos 12.º e 13.º da petição e 4.º e 5.º da contestação).
- A dissolução e liquidação da sociedade ocorreria em Março de 2022, altura em que se procederia à repartição pelos sócios do remanescente existente na conta, encerrando-se a mesma (artigos 29.º e 30.º da pi, artigo 34.º da contestação e documentos juntos com a petição sob os n.ºs 12 e 13, não impugnados).

No que respeita ao ponto 13., interessa ainda aditar que, conforme resulta do acordo das partes e documentos juntos aos autos (cfr. artigo 33.º da petição, artigos 19.º, 20.º, 29.º da contestação e documentos 4, 6 e 7 juntos com este articulado), foi igualmente pago empréstimo contraídos pelos sócios em instituição bancária luxemburguesa.
Dá-se assim por assente, em conformidade com tais elementos probatórios e acordo das partes que:
13. Por acordo dos sócios, do remanescente que permaneceu na conta titulada pela sociedade e pelo produto da venda dos bens imóveis identificados em 4. foi liquidado, para além do mais, o valor em dívida de um empréstimo contraído pelos sócios em instituição bancária luxemburguesa e o empréstimo bancário contraído pela Autora junto ao Banco (…).

Resultando ainda dos documentos juntos pela ré, sem impugnação da autora, que outros pagamentos foram efectuados pelo produto da venda dos imóveis, mas desta feita mediante saques da conta clientes, dá-se como assente que:
- Da conta titulada pelas Ils mandatárias e com autorização dos respectivos clientes, foram efectuados os seguintes pagamentos:
- em 7/1/2022 o valor de € 23.001,00 para a agência (…);
- em 7/1/2022 o valor de € 23.001,00 para a agência (…);
- em 7/1/2022 o valor de € 533,50 para a (…);
- em 7/1/2022 o valor de € 9.385,24 e € 3.430,00 para pagamento dos honorários da Dr.ª (…);
- em 7/1/2022 o valor de € 8.820,00 para pagamento dos honorários da aqui Ré (documento n.º 18 junto com a contestação, não impugnado).
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II. Fundamentação
De facto
Estabilizada, lógica e cronologicamente ordenada, é a seguinte a factualidade a atender:
1. A Autora (…) – Sociedade Agrícola e Turística, Lda. tem por objeto a gestão hoteleira, restauração, atividades turísticas hoteleiras e similares, desenvolvimento da exploração de projetos de turismo, alojamento local, agricultura, produção transformação e comercialização de produtos hortícolas, tal como resulta de fls. 10 e 11, cujo teor se dá por integramente reproduzido.
2. O capital social da Autora é de € 5.000,00, estando dividido em duas quotas, sendo uma quota, com o valor nominal de € 3.000,00, titulada por (…) e a outra, com o valor nominal de € 2.000,00, titulada por (…).
3. A Autora obriga-se com a intervenção de um gerente, sendo que tal cargo está atribuído exclusivamente à sócia (…), tal como resulta de fls. 12 a 14, cujo teor se dá integralmente reproduzido.
4. A Autora tinha inscrita seu favor, pela Ap. (…), de 17-07-2017, a aquisição por compra do prédio misto, sito em (…) – (…), Freguesia de (…), Concelho de Loulé, descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), cuja parte rústica se encontrava inscrita na matriz sob o n.º (…) e a parte urbana sob o n.º (…), ambas das mencionadas freguesia e concelho e, pela Ap. o prédio urbano a que corresponde a parcela de terreno para construção, situado em (…), (…), freguesia da União das Freguesias de (…), (…) e (…), concelho de Loulé, descrito na Conservatória de Registo Predial de Loulé sob o n.º (…) e inscrito na respetiva matriz rústica da freguesia da União das Freguesias de (…), (…) e (…), sob o artigo matricial (…), tal como resulta de fls. 14 a 17, cujo teor se dá integralmente reproduzido.
5. Os sócios da Autora (…) e (…) foram casados entre si sob o regime da separação até 29 de abril de 2021, data em que foi decretado o divórcio de ambos, tal como resulta de fls. 18 a 20, cujo teor se dá integralmente reproduzido.
5.a) Na sequência do divórcio, os ex-cônjuges e sócios da autora (…) e (…) acordaram dissolver a mesma e, tendo em vista tal finalidade, acordaram proceder à venda dos imóveis que a esta pertenciam.
5.b) A dissolução e liquidação da sociedade ocorreria em Março de 2022, altura em que se procederia à repartição pelos sócios do remanescente existente na conta, encerrando-se a mesma (artigos 29.º e 30.º da pi, artigo 34.º da contestação e documentos juntos com a petição sob os n.ºs 12 e 13, não impugnados).
6. (…) foi representada pela Exma. Sra. Dra. (…), advogada com cédula profissional n.º (…), e o sócio (…) foi representado pela Ré (…), advogada com cédula profissional n.º (…).
7. (ponto 9. da sentença recorrida) No âmbito das negociações levadas a cabo por (…) e (…), foi decidida verbalmente a abertura de uma conta bancária, por forma a assegurar a repartição dos lucros da venda do imóvel.
8. (ponto 10. da sentença recorrida) A referida conta bancária foi aberta no dia 21 de Dezembro de 2021 no Banco (…), S.A., com o n.º (…), no nome da Ré e da Dra. …, como uma conta conjunta, só podendo ser movimentada pelas duas titulares, sendo que a ora Ré é a primeira titular (doc. 3 junto com a contestação).
9. (ponto 7. da sentença recorrida) Em 27 de dezembro de 2021, por escrituras públicas de compra e venda outorgadas no Cartório Notarial de Odivelas, os prédios referidos em 4. foram vendidos pelo preço global de € 935.000,00, passando ambos a pertencer a (…) e a (…), tal como resulta de fls. 20-vº a 25, cujo teor se dá integralmente reproduzido.
10. (ponto 8. da sentença recorrida) A Autora é titular de uma conta bancária sediada no Banco (…), S.A. com o n.º (…), tendo sido ali depositados no dia 28 de Dezembro de 2021 os valores resultantes da venda dos imóveis supra descritos, no montante global de € 935.000,00.
11. Em 4 de Janeiro de 2022, no âmbito das negociações havidas, a sócia (…) procedeu à ordem de transferência da quantia de € 685.000,00 (seiscentos e oitenta e cinco mil euros), diretamente da conta da Autora para a referida conta, titulada pelas mandatárias.
12. O remanescente da quantia produto da venda, no valor de € 250.000,00, permaneceu depositado na conta bancária da (…) para fazer face às despesas da Autora até à data prevista para a dissolução da sociedade, ou seja, março de 2022.
13. Por acordo dos sócios, do remanescente que permaneceu na conta titulada pela sociedade e pelo produto da venda dos bens imóveis identificados em 4. foi liquidado, para além do mais, o valor em dívida de um empréstimo contraído pelos sócios em instituição bancária luxemburguesa e o empréstimo bancário contraído pela Autora junto ao Banco (…).
13.a) - Da conta titulada pelas Ils. mandatárias e com autorização dos respectivos clientes, foram efectuados os seguintes pagamentos:
- em 7/1/2022 o valor de € 23.001,00 para a agência (…);
- em 7/1/2022 o valor de € 23.001,00 para a agência (…);
- em 7/1/2022 o valor de € 533,50 para a (…);
- em 7/1/2022 o valor de € 9.385,24 e € 3.430,00 para pagamento dos honorários da Dr.ª (…);
- em 7/1/2022 o valor de € 8.820,00 para pagamento dos honorários da aqui Ré (artigo 33.º da contestação, comprovado pelo teor do documento n.º 18, não impugnado).
14. Os sócios (…) e (…) desentenderam-se quanto à forma como iriam pôr termo à atividade da Autora e quanto à partilha dos valores que deveria ocorrer na sequência da dissolução da sociedade.
15. Em face do malogro das negociações, em 13 de setembro de 2022 a Autora endereçou uma carta à advogada Dra. (…), e outra à advogada Dra. (…), ora Ré, a reclamar o saldo depositado e existente na conta por ambas tituladas, tal como resulta de fls. 34-vº a 37, cujo teor se dá integralmente reproduzido.
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De Direito
Da existência de válida deliberação social e do exercício abusivo do direito
Conforme a nosso ver correctamente se considerou na sentença recorrida, a autora configurou a presente acção como de reivindicação, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a quantia monetária que se encontra depositada na conta cliente titulada pela Ré, Advogada, e a sua restituição. E tendo concluído que a quantia em saldo pertencia à autora, correspondendo ao produto da venda de imóveis que a esta pertenciam, na ausência de causa que justificasse a sua retenção pela ré – como ali também se refere, quando o reivindicante actua contra um detentor não tem de provar a ilegitimidade da detenção, sendo ao reivindicado que incumbe alegar e provar que detém a coisa com base num título oponível ao proprietário –, foi a mesma condenada na sua restituição.
Nesta via de recurso, não questionando já a propriedade da quantia depositada na conta por si titulada, questão que assim se mostra definitiva e, a nosso ver correctamente, resolvida nos autos, insiste a ré que a sua retenção é justificada, alicerçada em duas ordens de razões: existe deliberação da sociedade autora nesse sentido, que naturalmente a vincula - enquadramento jurídico que, sem ter sido invocado na contestação nestes precisos termos, se afigura consubstanciar uma das soluções plausíveis de direito face à factualidade invocada, daí inexistir obstáculo à sua apreciação nesta sede, tanto mais que a autora pôde exercer e exerceu o contraditório (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC); a autora actua em abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”. Trata-se, como é sabido, de excepção de conhecimento oficioso termos em que, tendo a apelada tido a possibilidade de exercer o contraditório nas contra alegações que apresentou, nada obsta ao seu conhecimento por este tribunal de recurso.
Feitas tais prévias precisões, importa começar por definir o que deve entender-se por deliberação social (dos sócios, na terminologia legal). Acolhendo-se a formulação do Prof. Pinto Furtado[2], deliberação social é a declaração unilateral, na maior parte das vezes uma declaração de vontade, formada como acto colegial do plenário dos sócios, segundo uma das formas admitidas por lei para o respectivo tipo social.
E quanto às formas de deliberar -não está em causa, faz-se notar, a forma da deliberação, mas antes o processo deliberativo- no âmbito das sociedades por quotas, caso da autora, relevam os artigos 53.º, que estabelece um numerus clausus, 54.º e 247.º, n.º 1, pertencendo todos os preceitos ao CSC[3], deles resultando que as deliberações podem ser tomadas i. em assembleia geral, forma tipicamente adoptada; ii. por voto escrito; iii. em assembleia universal ou iv. unanimemente por escrito.
Pretende a apelante que os sócios deliberaram, por escrito e de forma unânime, logo, validamente, a abertura da conta titulada pelas Ils. Mandatárias de cada um deles, deliberação que vincula a sociedade nos termos dos preceitos vindos de citar. Tal entendimento, todavia, não encontrou eco na factualidade apurada.
A respeito desta forma de deliberação -unânime por escrito-, concorda-se com o Prof. Pinto Furtado quando recusa a sua assimilação à deliberação por voto escrito que se saldou por uma votação unânime[4]. Conforme explica, “Com a transposição do tratamento das deliberações unânimes por escrito da área onde conviviam com as deliberações por voto escrito (…), para a sede em que definitivamente passaram a instalar-se, a par das assembleias universais (actual artigo 54.º, n.º 1), há uma nítida aproximação ao processo de formação a que chamamos de assembleia espontânea”, ou seja, aquela que se constitui sem qualquer formalidade prévia, como teria ocorrido no caso em apreço.
Aqui chegados, importa chamar à colação o disposto no artigo 63.º, n.º 1, nos termos do qual as deliberações dos sócios só podem ser provadas pelas actas das assembleias ou, quando sejam admitidas deliberações por escrito, pelos documentos onde elas constem. Partindo do entendimento que o preceito se refere tanto às deliberações por voto escrito como às unânimes por escrito, estas últimas deverão constar de um escrito avulso que, em regra, será um escrito particular, mas que poderá ser também um documento autêntico[5].
Ora, no caso dos autos, nenhum documento escrito contendo o teor daquilo que a autora pretende ter sido uma deliberação da sociedade foi apresentado, sendo certo que se trata de matéria a tal obrigatoriamente sujeita, dado que, para além do mais, resulta em alteração da forma de a obrigar prevista no pacto social, atendendo a que a movimentação da conta com fundos que à mesma pertenciam passaria a depender do acordo de ambos os sócios (cfr. artigo 246.º, n.º 1, alínea h)). É, pois, de recusar a asserção de que estamos perante uma deliberação da sociedade formada por escrito unânime.
Resta ainda indagar se, face à concludente conduta adoptada pela gerente da autora que, na sequência de acordo dos dois sócios, procedeu à transferência de dinheiros da sociedade para a aludida conta, não estaremos perante uma deliberação tácita no sentido de submeter a quantia transferida a uma sorte de “cativação”, em ordem a garantir o quinhão dos sócios na posterior partilha, e ainda a um regime de movimentação diverso daquele que resulta do pacto social.
A designação surge no n.º 2 do artigo 260.º (e também no n.º 2 do artigo 409.º), a propósito justamente da vinculação da sociedade. No entanto, e como explica o Prof. Pinto Furtado, na obra que vimos citando, a validade da chamada deliberação tácita só poderá ser admitida se for esta entendida como aquela que “terá por conteúdo uma regulamentação de interesses tão intimamente ligada à que corresponde ao teor de uma proposta anteriormente aprovada por uma deliberação expressa que, com esta aprovação, os votantes, embora por via indirecta ou oblíqua, terão mostrado querê-la também.” Ou, por outras palavras, “só as deliberações expressas serão susceptíveis de constituir facto concludente em que assente uma deliberação tácita, não podendo assumir esse significado o comportamento dos sócios “fora” da assembleia geral ou não traduzido numa deliberação escrita”[6].
No caso vertente inexistindo deliberação expressa que abrigasse no seu conteúdo a deliberação de abertura de conta titulada pelas Ils. Mandatárias de ambos os sócios, com as apuradas finalidade e regime de movimentação, impõe-se concluir no mesmo sentido, ou seja, inexiste deliberação neste sentido que vincule a sociedade.
Por outro lado, resultando evidente, face à matéria de facto apurada, que tendo os sócios acordado na dissolução da sociedade, com a consequente liquidação do respectivo património, tendo ainda delineado um pré-acordo de partilha, que envolveria também a divisão de activos e passivos comuns aos ex cônjuges, a que procederiam de forma integrada – após pagamentos vários, alguns de natureza pessoal, conforme se apurou, o remanescente do produto da venda dos imóveis da sociedade seria dividido por ambos[7] –, foi no âmbito desse assim denominado pré acordo que foi decidida a constituição da conta cliente titulada pelas mandatárias de cada um. E que com tal solução se visou salvaguardar essencialmente a posição do sócio Eric resulta também evidente, uma vez que, a manter-se o dinheiro da conta titulada pela sociedade, a sócia (…), única gerente da mesma, poderia livremente movimentá-la. Todavia, não só tal acordo não vincula a sociedade, como se afigura que o mesmo terá caducado em Março de 2022.
Visando a constituição da aludida conta, como referido, garantir que cada um dos sócios recebesse, após dissolução e liquidação da sociedade, o remanescente do produto da venda dos imóveis, tendo salvaguardado, através da quantia que permaneceu na conta da autora, o pagamento das obrigações societárias, incluindo as mais valias previsivelmente devidas (segundo cálculo efectuado pelo contabilista), as partes estabeleceram uma data para a dissolução, na circunstância, e como ficou demonstrado, Março de 2022, a que se seguiria a partilha do dinheiro em conta e encerramento da mesma. Sucede que, por não terem os sócios/ex cônjuges chegado a acordo, a sociedade não se dissolveu até hoje, o que implica, a nosso ver, a caducidade do referido acordo, determinando a falta de título justificativo para a retenção da quantia em saldo.
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Sustenta a apelante que ao vir pedir a restituição da quantia em saldo na conta por si titulada, a autora actua em manifesto abuso do seu direito, na modalidade de venire contra factum proprium, excepção cuja procedência conduziria à paralisação daquele direito.
Em tese geral, como sabido, a doutrina do abuso do direito tem a função de “obstar a injustiças clamorosas a que poderia levar, na espécie, a aplicação de determinações abstractas da lei a um caso concreto”[8].
Nos termos do artigo 344.º, o exercício de um direito é ilegítimo quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico destes. O abuso, sendo um instituto puramente objectivo, não depende da culpa do agente nem da verificação de qualquer elemento específico subjectivo; surgindo como concretização da boa-fé, apresenta-se afinal como uma “constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima”[9]. “Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa”[10].
Uma das modalidades em que se concretiza a figura é a do “venire contra factum proprium”, por violação do princípio da confiança, e que se pode basicamente delinear como sendo o caso de o direito ser exercido contra alguém que, com base em convincente conduta, positiva ou negativa de quem o podia exercer, confiou em que tal exercício não ocorresse e programou em conformidade a sua actividade. Dir-se-á, nessa hipótese, que o titular do direito opera o seu exercício no confronto de outrem depois de a este fazer crer, por palavras ou actos, que o não exerceria, ou seja, depois de gerar uma situação objectiva de confiança em que ele não seria exercido.
Parte-se, pois, da noção básica de que os comportamentos (assertivos ou até omissivos) e as declarações podem vincular, quer porque envolvem uma responsabilização pela pretensão de verdade que lhes é imanente, quer pelos efeitos que podem ter sobre a conduta dos outros que acreditam em tais declarações e/ou comportamentos, conformando a sua conduta na base dessa radical confiança. E o direito confere relevância de facto a esta auto-vinculação geradora de expectativas, através precisamente da tutela da confiança.
Para que se desencadeie o efeito jurídico próprio do instituto da tutela da confiança através da proibição do venire contra factum proprium é necessária a verificação de vários pressupostos: em primeiro lugar, para que a conduta em causa se possa considerar causal em relação à criação da confiança, é preciso que ela, directa ou indirectamente, revele a intenção do agente de se considerar vinculado a determinada atitude no futuro, sendo ainda necessário que a contraparte, com base na confiança criada, assuma disposições e faça planos, ou seja, faça um investimento na confiança, pois só então surge a necessidade da tutela do direito; depois, a confiança da contraparte só merece protecção jurídica quando a mesma esteja de boa-fé e tenha agido com o cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico[11].
Revertendo ao caso que nos ocupa, alega a apelante que o seu cliente só acedeu a intervir na escritura de venda dos prédios no pressuposto e confiante de que do produto da mesma ficaria salvaguardado o seu quinhão na partilha a que se iria proceder. Tal confiança, no entanto, impõe-.se precisar, não radica numa conduta consistentemente assumida pela sociedade apelada, mas antes num acordo celebrado com a sua sócia gerente que, conforme decidido, não vincula aquela.
Por outro lado, ainda a entender-se que a sociedade, num raciocínio de desconsideração da sua personalidade, ficava obrigada a respeitar tal acordo, atendendo ao tempo entretanto decorrido sem que as partes tenham dissolvido a sociedade e acordado na partilha, não viola a boa fé a circunstância de exigir a restituição da quantia que lhe pertence, sendo certo que, conforme não deixou de se referir na sentença apelada, desconfiando o cliente da apelante – segundo esta alega, com boas razões – da sócia gerente, a lei confere-lhe, enquanto sócio, o direito a lançar mão de providências tendentes a impedir que aquela disponha do dinheiro em causa contra os interesses da sociedade (podendo, designadamente , e conforme ali também se sugere, instaurar ação de destituição de gerente ou providência cautelar visando garantir que a quantia seja mantida na sociedade).
Improcedendo, nos termos expostos, todos os fundamentos recursivos, impõe-se confirmar a sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença apelada.
Custas a cargo da apelante.
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Sumário: (…)
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Évora, 11 de Janeiro de 2024
Maria Domingas Simões
Tomé de Carvalho
Ana Margarida Leite
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[1] ´”A ação declarativa comum à luz do Código Revisto, 2.ª edição, pág. 97, que mantém actualidade.
[2] In “Deliberações dos Sócios – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais”, Almedina, pág. 49.
[3] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[4] Obra citada, págs. 193 e seguintes, em particular pág. 200, contrariando a visão do prof. Brito Correia.
[5] Idem, pág. 203.
[6] “Deliberações dos Sócios”, págs. 162-163).
[7] O artigo 147.º do CSC, epigrafado de “Partilha imediata”, permite que nos casos em que a sociedade não tiver dívidas à data da dissolução, os sócios partilhem imediatamente “os haveres sociais, pela forma prescrita no artigo 156.º” (vide n.º 1). E nos termos do n.º 2 “As dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução não obstam à partilha nos termos do número anterior, mas por essas dívidas ficam ilimitada e solidariamente responsáveis todos os sócios, embora reservem, por qualquer forma, as importâncias que estimarem para o seu pagamento.”
[8] Prof. Manuel de Andrade, in Teoria Geral das Obrigações, Coimbra, 1958, a págs. 63- 64.
[9] Na síntese do Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectiva”, ROA 2005, ano 65, vol. II, acessível em https://www.oa.pt/conteudos/artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=45582&ida=45614.
[10] Idem.
[11] cfr., obra citada, a págs. 416 a 419, e desenvolvidamente sobre o abuso de direito nesta modalidade o AUJ de 5/7/2016, processo n.º 7523-F/1992.E1-A.S1-A, no DR I Série, 208, de 28/10/2016.