Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
518/22.4JAFAR.E1
Relator: MARGARIDA BACELAR
Descritores: REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS ADULTOS
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O artigo 4° do Regime Penal Especial para Jovens adultos, diz que se for aplicável pena de prisão deve o juiz atenuar especialmente a pena “quando tiver razões sérias para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado”, o que não obsta a que "as medidas propostas não afastam a aplicação – como ultima ratio – da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade", como se refere no ponto 7 do preâmbulo do citado diploma legal.
A decisão recorrida considerou que o arrependimento manifestado pelo arguido se prendia mais com as consequências que para si resultaram daquela noite do que com as consequências sofridas pela vítima, e ainda a circunstância de, antes de perfazer os 16 anos, o arguido já havia praticado factos qualificados como crime de ofensas à integridade física qualificada e incumprido sucessivamente as medidas tutelares não privativas da liberdade, acabando por ser determinado o seu internamento em regime semiaberto, o que é revelador de um claro desajustamento social e de uma personalidade violenta, que impõem uma reacção do ordenamento jurídico que não se compadece com os pressupostos subjacentes a uma atenuação especial da pena.

Ou seja, a decisão recorrida justificou, conforme lhe é exigível, as razões pelas quais em concreto, entendeu que, no caso sub judice, não deveria o arguido beneficiar do regime especial para jovem previsto no D.L.401/82 de 23.9.

Os argumentos aduzidos não merecem qualquer censura, atenta a gravidade da conduta delituosa do arguido ora recorrente, e são inequivocamente indiciadores de que, in casu, faltam as sérias razões para se poder crer que da aplicação do referido regime especial para jovens resultassem vantagens para a reinserção social do mesmo.

Efetivamente, às apontadas circunstâncias, acrescem razões de prevenção geral (tal a frequência com que se praticam crimes desta natureza especialmente violenta e, como tal, geradores de enormes sentimentos de indignação e intranquilidade na comunidade em que se insere), bem como de prevenção especial (necessárias para que o recorrente consiga interiorizar a pena concretamente aplicável, fazendo-lhe sentir que o seu comportamento desviante é grave e tem de ser punido de forma a que se possa redimir, encaminhando-se para novas e legítimas opções de vida).

Na verdade, e em desabono dos argumentos esgrimidos pelo arguido/recorrente, não se descortinam fundamentos que ancorem um juízo de prognose favorável à reinserção social do arguido, não merecendo censura o acórdão na parte em que se pronunciou pela inaplicabilidade de tal diploma legal ao arguido/recorrente.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo Central Cível e Criminal de …- Juiz …, mediante acusação do Ministério Público, foi julgado em processo comum, perante o tribunal colectivo, com documentação das declarações oralmente prestadas em audiência, e no que ora releva, o Arguido AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia e concelho de …, nascido a ….2004, solteiro, residente na Rua …, n.º…, em ….

A final, foi decidido julgar a acusação parcialmente procedente, e, em consequência:

a) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2, alínea i), 22.º n.º 1.º, 14.º n.º 1 e 26.º 1.ª parte, todos do Código Penal;

b) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, nº1 e art. 22.º, 23.º e 26.º do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

c) Condenar o arguido/demandado AA a pagar à UL.. a quantia de quatro mil e quarenta e seis euros e vinte e oito cêntimos, a que acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a notificação do demandado para contestar até integral pagamento;

d) Condenar o arguido AA, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 1º l), 67º-A nº.3, 82º-A do CPP e 16º nº.2 da Lei 130/2015, de 04 de Setembro, a pagar à vítima DD a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mora à taxa legal contados desde a presente data até integral pagamento.

Inconformado, o arguido AA, interpôs recurso da referida decisão, formulando as seguintes conclusões:

“I. No relatório da Polícia judiciária é informado que “o proprietário desta Associação, EE informou existir um sistema de videovigilância que é gerido por uma empresa de segurança.

2. No seu requerimento de prova, requereu o Arguido a apreensão dessas imagens e a sua exibição em audiência de julgamento.

3. Porém, essas imagens não foram exibidas como meio de prova porque o responsável da Associação veio informar que, afinal, o disco estava cheio e não gravou as imagens.

4 Facto cuja veracidade não foi investigada, impedindo-se a exibição do um meio de prova de importância elevada para o Arguido.

5. Nem se compreende que uma empresa de segurança não acautele a substituição do disco.

6. O que permite presumir que a não exibição das imagens foi muito conveniente para alguém.

7. Tendo todos os intervenientes sido identificados no próprio dia dos factos, não se compreende porque motivo o Arguido, o FF e o GG foram ouvidos nesse mesmo dia e os restantes apenas um mês e dois meses depois.

9. E que todos eles são amigos e residentes na mesma localidade.

10. Tiveram tempo suficiente para engendrar as suas próprias declarações.

11. Todas estas circunstâncias não foram suficientes para dar ao Tribunal uma perspectiva mais real dos acontecimentos.

12. em 2 dos factos provados, entendeu o Tribunal demonstrado que ao longo da festa o Arguido HH gerou conflitos entre o Recorrente c o grupo composto pelos restantes Arguidos.

13. A convicção do Tribunal assentou em exclusivo nas declarações da testemunha FF.

14. Testemunha que afirmou ter estado atrás do balcão a servir.

15. E foi a única testemunha que afirmou ter ouvido o Recorrente, durante a noite, dizer que “se alguém fizer mal A. minha família dou-lhe uma facada ou duas”.

16. Esta testemunha também afirmou ter ouvido conversas entre o HH e o Recorrente, do género “alguém se estava a meter com a namorada’.

17. Conversas que terão dado origem aos factos.

18. Considerando que a testemunha se encontrava atrás do balcão a servir, numa sala de dimensões razoáveis, cheia de pessoas e com a música a tocar, é pouco credível que a testemunha pudesse ter ouvido tudo o que afirma.

19. Mais incrível se torna pelo facto de grande parte dessas situações se terem passado no exterior do pavilhão.

20. Sendo esses Arguidos todos residentes na mesma localidade e amigos, as declarações prestadas pelo FF sofreram a influência desse grau de aproximação existente.

21. As declarações do FF são, ainda, contraditórias com as prestadas pelos outros intervenientes.

22. O Arguido II afirmou que o Recorrente, quando soube que o primo andava a arranjar confusão, afirmou: “eu já estou farto de o estar a ajudar e estar a não sei o quê, estar sempre a proteger. Já o avisei durante a noite toda que não era para estar a arranjar problemas e já não o vou proteger mais.

23. Disse, ainda, este Arguido que o grupo terá interpelado o Recorrente, dizendo-lhe “então não defendes o teu primo”

24. Isto é, valendo-se da superioridade numérica, o grupo provocou deliberadamente o Recorrente, com a intenção de partir para a violência.

25. Respondendo à pergunta se durante a noite tinha visto o Recorrente provocar alguém ou ter uma atitude desagradável para alguém, afirmou o Arguido: “O AA não. O HH, sim.

26. Ainda do depoimento deste Arguido, resulta evidente que no momento das facadas o DD encontrava-se frente ao Recorrente acompanhado dos restantes arguidos.

27. A pergunta do Tribunal, o Arguido respondeu que o DD se dirigiu ao Recorrente e “fios fomos todos atrai.

28. Tal como afirmou que o DD é que levou as facadas por ser o que estava à frente.

29.De igual modo, a testemunha JJ informou que, quanto às pessoas que foram atrás do DD:

“Não lhe sei dizer, mas devia estar muita gente, sim, de certeza. Quando eles abalaram lá para dentro fomos todos atrás.

30. Também esta testemunha, questionada, afirmou não ter ouvido o Recorrente afirmar, durante a noite, que espetava a faca em alguém.

31. A instância do Tribunal, a testemunha manteve a coerência, afirmando não ter ouvido o Recorrente proferido expressões agressivas como ‘'faço o mesmo ao próximo”.

32. Em todas as pessoas ouvidas, apenas a testemunha FF afirmou a matéria que o Tribunal entendeu provada em 2, 3, 8, 9 e 17 dos factos provados.

33. Ou seja, o Tribunal apenas deu crédito à testemunha que esteve durante a noite atrás do balcão a servir bebidas, num ambiente barulhento, com música e muitas pessoas.

34. Todos os restantes ouvidos na audiência contrariaram as afirmações desta testemunha.

35. Aliás, esta testemunha foi a única a afirmar que o Recorrente, após as facadas, terá gritado “O próximo que vier faço-lhe o mesmo”.

36. Afirmação desmentida pela testemunha JJ, que tirou a faca ao Recorrente, levou-o para a casa de banho e respondeu convictamente o Tribunal não ter ouvido o Recorrente ameaçar dar facadas, em momento algum.

37. Não é de acreditar que, após o confronto na rua, quando o Recorrente foge para o interior do pavilhão, não tenha sido perseguido por todo o grupo.

38. É essa perseguição que provocou o pânico no Recorrente, perante a perspectiva de ser violentamente agredido por todos os elementos do grupo.

39. É de concluir que face à prova produzida os factos que o Tribunal entendeu provados não refletem os acontecimentos relatados pelos restantes ouvidos na audiência de julgamento.

40. O douto acórdão recorrido traçou um retrato do Recorrente, fazendo deste um pré-assassino, ao arrepio da prova produzida.

41. Com excepção da testemunha FF, todos os restantes intervenientes foram peremptórios em afirmar que o Recorrente em toda a noite não teve qualquer acto ou expressão intimidatória para os restantes.

42. Os factos 2, 3, 8, 9 e 17, considerados provados, foram erroneamente assim considerados, devendo ser eliminados.

43. Em consequência, deverá substituir-se a pena aplicada por pena de prisão inferior, determinando-se a sua suspensão, esta subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta.

44. Entendeu o Tribunal não dever o Arguido beneficiar da atenuação especial da pena prevista no art.° 4° do D.L. 401 /82, de 23/09.

45. Decisão que teve por fundamento principal o facto de o Recorrente ter praticado factos qualificados como crime de ofensas á integridade física qualificada, ainda antes de atingir 16 anos de idade.

46. O que considerou revelador de um desajustamento social e de uma personalidade violenta.

47. Para tal decisão muito contribuiu a prova considerada pelo Tribunal e que, como se vê das transcrições dos testemunhos prestados, foram erroneamente valorados.

48. Isto apesar de afirmar ter considerado a ausência de antecedentes criminais e a manifestação de arrependimento em julgamento.

49. Com efeito, logo no início do julgamento o Recorrente dirigiu-se ao DD, tendo-lhe pedido desculpa pela sua acção, bem como aos seus familiares e amigos.

50. O que fez de forma sincera, honesta, demonstrando verdadeiro arrependimento.

51. Factos que não foram devidamente valorados pelo Tribunal.

52. De igual modo, não foi ponderado pelo Tribunal que os factos praticados pelo Recorrente antes dos 16 anos, tiverem na sua génese um percurso de vida difícil, após a perda da mãe, circunstâncias evidenciadas no relatório social junto aos autos.

53. Deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, substituir- se o douto acórdão recorrido por outro que determine:

a) A aplicação ao Recorrente do regime da atenuação especial da pena, previsto o art.° 4.° do D.L. n° 401/82, de 23 de Setembro;

b) A aplicação ao Recorrente de uma pena de prisão, suspensa na sua execução e subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta.

Com tanto, e com o Douto e Valioso suprimento de VV: Excelências, que se pede e espera, far-se-á JUSTIÇA”

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso.

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve Vista dos autos, emitindo parecer no sentido da improcedência do recurso.

O recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Colhidos os vistos e efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre apreciar e decidir.

FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS NO ACÓRDÃO RECORRIDO

São os seguintes os factos que o acórdão recorrido indica como estando provado:

“1. No dia 25 de Dezembro de 2022, pela 01H00, o arguido AA, acompanhado pela sua companheira KK, o seu amigo, o arguido HH, e LL, dirigiram-se à Associação Cultural e Recreativa de …, sita em … – …, onde decorria uma festa de Natal.

2. Ao longo da festa, que durou até de manhã, em circunstâncias não concretamente apuradas o arguido HH provocou discussões e gerou conflitos entre o arguido AA, que acorria em sua defesa, e o grupo composto pelos restantes arguidos.

3. O arguido AA, a dado momento, disse em voz alta “Se alguém fizer mal a ele ou à minha família dou cabo da minha vida e dou uma facada ou duas”.

4. Cerca das 7h00 da manhã, os membros da comissão organizadora da Associação disseram aos arguidos para abandonar as instalações, o que estes fizeram.

5. Alguns minutos depois, já no exterior das instalações da aludida Associação, os arguidos AA e DD confrontaram-se, na sequência do que este segundo desferiu um murro na face daquele, atingindo-o no nariz, causando-lhe um hematoma, tendo de imediato o arguido AA desferido um pontapé nas pernas de DD, provocando a queda do mesmo ao solo.

6. Após, o arguido AA correu para o interior das instalações da aludida Associação, tendo DD ido atrás dele.

7. Quando chegou ao interior do salão, DD dirigiu-se a AA e perguntou-lhe “quais são os problemas que tens comigo?” e levantou o braço.

8. Subitamente e de surpresa, o arguido AA sacou de uma faca com o cabo em madeira de cor castanha, com uma lâmina em inox de 8 cm de comprimento e a inscrição “…”, que trazia consigo escondida num bolso, e desferiu com ela dois golpes na direção de DD, atingindo-o na zona do abdómen e tórax do lado esquerdo, o qual, em consequência, caiu no chão.

9. Após, AA, exibindo a faca, disse em voz alta “o próximo que vier faço-lhe o mesmo!”.

10. Com a conduta acima descrita, o arguido AA causou em DD dois ferimentos perfurantes toracicoabdominais esquerdos: um na região torácica esquerda a nível da 6ª costela com cerca de 3 cm de comprimento e atingimento dos planos profundos, com saída de ar à expiração e hemorragia activa, hidropneumotorax de pequeno volume do lado esquerdo; e outro na região abdominal lateral esquerda, hipocôndrio esquerdo, na linha clavicular anterior com cerca de 6 cm de comprimento, com atingimento do plano muscular.

11. Ao ver o sucedido, JJ dirigiu-se junto do arguido AA e torceu-lhe a mão com a qual segurava a faca, acabando esta por cair no chão, e após empurrou-o até à casa de banho.

12. Na sequência dos golpes infligidos, o arguido DD permaneceu deitado no chão a aguardar a chegada da assistência médica, enquanto FF pressionava os golpes de modo a estancar o sangue.

13. O arguido HH permaneceu no local a rir e a troçar da situação.

14. Os arguidos II e GG, desagradados com aquela postura, agindo de forma conjunta, bateram no arguido HH, atingindo-o com dois murros e um pontapé, provocando a queda do mesmo ao solo, do que resultou traumatismo no lábio superior e ferida no crânio, lesões que lhe determinaram 3 dias para cura.

15. No dia 11 de Março de 2023, pelas 23:59 horas, o arguido HH, através da rede social Instagram, enviou uma mensagem privada ao arguido MM com o seguinte teor: “Deste pra esperto naquele dia tu e os teus sócios ne tu ate o outro olho vais ficar sem ele O resto logo vais ver nem sabes onde te metes te a tua hora vai chegar”.

16. Da descrita conduta do arguido AA em 10., resultaram para DD lesões que lhe determinaram 170 (cento e setenta) dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral por 30 dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional por 170 dias, com criação, em concreto, de perigo para a vida, bem como as seguintes sequelas permanentes:

- No tórax, cicatriz queloide de ferida torácica esquerda com 1,5 cm e cicatriz com queloide de ferida no hipocôndrio esquerdo ao nível do 7º arco costal com 3 cm;

- No abdómen, cicatriz com queloide de ferida no hipocôndrio esquerdo com 1,5 cm e cicatriz com queloide de ferida na linha medio abdominal de laparotomia com 10 cm.

17. O arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD, munido de uma faca que trazia escondida, atacando-o de surpresa, desferindo-lhe golpes na sua direcção nas zonas abdómen e tórax, sabendo que se tratam de zonas onde estão alojados órgãos vitais e, por isso, ciente de que ao agir do modo descrito, lhe provocaria a morte, o que apenas não conseguiu em virtude do imediato socorro e a intervenção médica urgente a que DD foi sujeito.

18. O arguido AA golpeou DD de surpresa, com uma faca que tinha escondida, apanhando-o desprevenido e sem possibilidade de esboçar qualquer gesto de defesa.

19. O arguido AA conhecia as características cortantes e perfurantes da faca que tinha na ocasião consigo e com que atingiu DD, a qual era idónea a causar ferimentos profundos e irreversíveis e até mortais.

20. O arguido DD sabia que o murro que desferia na face de AA era apto a provocar-lhe lesão no corpo e dor, não obstante, quis bater-lhe nos moldes supra descritos com o propósito, concretizado, de molestá-lo fisicamente.

21. Os arguidos II e GG, de forma conjunta e em comunhão de esforços, agiram com o propósito de molestar o corpo e a saúde do arguido HH, cientes que os murros e pontapé que lhe desferiram eram aptos a tal resultado.

22. O arguido HH sabia que as expressões que dirigiu e enviou ao arguido MM eram aptas a provocar-lhe medo, inquietação e a constrangê-lo na sua liberdade, no entanto, e pese embora disso estar ciente, pretendeu intimidá-lo e coagi-lo, fazendo-lhe crer que atentaria contra a sua integridade física de forma grave e contra a sua vida.

23. Os arguidos agiram de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram previstas e punidas por lei.

Mais se provou:

Do pedido de reembolso

24. A assistência médica prestada a DD pelo Hospital de … (UL..) na sequência da descrita acção do Arguido AA gerou para a referida Unidade uma despesa que ascende a € 4.046,28 (quatro mil e quarenta e seis euros e vinte e oito cêntimos), que ainda se encontra por liquidar,

25. A assistência médica prestada a HH pelo Hospital de … (UL…) na sequência da descrita acção dos Arguidos II e GGgerou para a referida Unidade uma despesa que ascende a € 211,52 (duzentos e onze euros e cinquenta e dois cêntimos), que ainda se encontra por liquidar.

Quanto ao arguido AA

26.Não tem antecedentes criminais.

27. Pediu desculpa ao DD, família e amigos.

28. Disse estar arrependido.

29. AA tem 19 anos de idade e, à data dos factos da presente acusação, residia numa aldeia das imediações de …, nomeadamente, em …, juntamente com a companheira, KK, com quem mantinha um relacionamento gratificante. O agregado habitava uma casa cedida por familiares, sem encargos habitacionais e subsistia dos rendimentos do casal. O arguido trabalhava como aprendiz de talhante e distribuir de carnes numa empresa familiar auferindo cerca de 40 euros/dia, sem contrato, sedeada em …, a qual, entretanto, encerrou a actividade, e a companheira trabalhava na …. É natural do …, mas a família de origem veio residir para o …, na procura de melhores condições de vida, quando o arguido tinha cerca de 3 anos de idade. Possui um irmão germano mais novo, actualmente com 16 anos de idade, que reside com o progenitor por decisão judicial, em razão da incapacidade da progenitora, mantendo relacionamento próximo com este. A progenitora possui problemática do foro psiquiátrico, e actualmente encontra-se a viver em casa da mãe idosa, no …, mantendo com a mesma uma relação fria e distante. Os progenitores do arguido separaram-se quando este tinha cerca de 14 anos de idade devido aos problemas de saúde da mãe, onde teriam ocorrido tentativas de suicídio. O progenitor reorganizou-se, entretanto, familiarmente, continua a residir em … e trabalha como motorista de longo curso internacional numa empresa sedeada em …, mantendo contactos regulares com o arguido, prestando-lhe também apoio financeiro na actualidade. AA possui mais 2 irmãos maiores, consanguíneos, fruto de 1º. relacionamento marital do progenitor, que se encontram autonomizados, com os quais nunca manteve relação. Possui ainda outros 3 irmãos uterinos, também de maioridade, 2 dos quais educados em instituições estatais por ordem judicial, mantendo contacto com apenas uma irmã maior que reside no …. AA frequentou o ensino em idade própria até ao 7º ano, que não concluiu por desmotivação e absentismo escolar. Após, inicia actividade laboral, inicialmente na apanha de bivalves/outros, que vendia a particulares e, em simultâneo, na área da construção civil, como indiferenciado. Possui também experiências profissionais como ajudante de mercearia/distribuidor, além de aprendiz de talhante, actividade que mantinha antes da reclusão, sem contratos de trabalho. Aos 16 anos inicia vida marital com KK, na altura menor de idade, irmã da actual madrasta, permanecendo o casal em casa da sogra e madrasta, alternadamente, durante cerca de 2 anos. Em Setembro de 2022, o casal veio viver para o …, morada que possuía antes da reclusão, em casa cedida por familiares da madrasta, com a intenção de se afastar de “más companhias em …”. Encontra-se no EP de … a título precário desde 26.09.2023, mantendo comportamento adequado às regras e normas institucionais, medicado com ansiolíticos. Cumpre prisão preventiva desde 27.12.2013, inicialmente no EP de …, foi posteriormente transferido para o EP de …. Cumpriu, entretanto, medida de coacção de OPHVE em casa de familiares no …, incumprindo as regras, voltando ao sistema prisional (por revogação da decisão inicial) para o EP de … e, posteriormente, transferido para o EP de ….

30. No âmbito do Proc. Tutelar Educativo nº. 282/19.4… do Juízo de Família e Menores de …, foi inicialmente aplicada ao arguido a medida tutelar de acompanhamento educativo pelo período de seis meses, em virtude de ter praticado, entre 20 de Novembro de 2018 e 13 de Dezembro de 2018, factos qualificados como três crimes de ofensa à integridade física qualificada. Posteriormente, com fundamento no incumprimento do projecto educativo, tal medida foi substituída por 40 horas de prestação de tarefas a favor da comunidade. Finalmente, uma vez mais por incumprimento do respectivo plano, veio a ser determinada a aplicação de medida de internamento em regime semiaberto pelo tempo estritamente necessário ao cumprimento do remanescente em falta de tarefas a favor da comunidade.

31. É tido pelos seus familiares como um jovem calmo, amigo, que não se mete em confusões.”

FACTOS CONSIDERADOS NÃO PROVADOS

“ Os arguidos AA e HH são primos;

- Ao longo da noite, o arguido HH, por diversas vezes, esbarrou e deu encontrões a diversas pessoas que ali se encontravam a festejar, o que fazia de forma propositada e, quando era repreendido pelo seu comportamento, reagia com agressividade;

- A dada altura, no interior das instalações da Associação enquanto a festa decorria, e após o arguido HH ter dado vários encontrões no arguido DD, este disse-lhe “piso a cabeça dele e a tua”;

- No exterior do estabelecimento o arguido AA abordou o arguido DD e disse-lhe com foros de seriedade “vamos acertar contas”, mas apenas o que resultou provado;

- O arguido AA atraiu o DD para ir ao seu encontro;

- O arguido MM dirigiu-se à casa de banho onde se encontrava o arguido AA e desferiu-lhe uma cabeçada na face, provocando-lhe dores.

- Os arguidos II e GG dirigiram-se junto do arguido HH e perguntaram-lhe onde estava o seu primo NN, ao que este respondeu que não conhecia o NN de lado nenhum.».

A MOTIVAÇÃO DA DECISÃO SOBRE MATÉRIA DE FACTO

PROFERIDA PELO TRIBUNAL “A QUO”

O Tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a sua convicção quanto aos factos que considerou provados:

“Concretizando, considerou-se desde logo a prova carreada em fase de inquérito, nomeadamente:

- Relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 340 a 342 e de fls. 520 a 522;

- Exame pericial de fls. 459 a 461;

- Relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 455 a 456; - Auto de apreensão de fls. 42;

- Relatório para a polícia de fls. 29, 31 e 33; - Auto de exame directo de fls. 54;

- Relatório de exame pericial de fls. 73 a 85; - Episódio de urgência de fls. 89 a 61;

- Fotogramas de fls. 213 e relatório de urgência de fls. 215 e 216; - Episódios de urgência de fls. 256 a 261;

- Fotograma de fls. 426; - Email de fls. 450/451.

Quanto à prova produzida em audiência de julgamento, temos que apenas os arguidos AA e II prestaram declarações. O primeiro começou por apresentar pedido de desculpas ao arguido DD, família e amigos, manifestando arrependimento. Porém, quanto aos factos apresentou uma versão distorcida dos acontecimentos, pretendendo fazer crer que foi compelido a desferir aquelas duas facadas para evitar que os outros “o matassem ali”, quando apenas procurava “divertir-se e fazer amigos” (expressões que utilizou). O segundo, admitiu que ele e o coarguido GG agrediram o arguido HH ao murro e pontapé porque este se estava a rir do estado em que se encontrava o DD após ter recebido as facadas, o que os deixou emocionalmente alterados. Quanto ao mais, a sua versão apresentou-se como atabalhoada, sem conexão espaciotemporal, o que se poderá dever ao facto de todos estarem sob influência, pelo menos, do consumo de bebidas alcoólicas.

Em termos de prova testemunhal, FF (responsável da Associação que organizou a festa, que durante toda a noite esteve a servir ao balcão) e JJ (que frequentou a festa e foi quem tirou a faca da mão do arguido AA), apresentaram versões absolutamente coerentes, objectivas, escorreitas e absolutamente seguras, que nenhuma reserva suscitaram quanto à sua inteira credibilidade, e que, por isso, permitiram infirmar a versão do arguido AA, bem como da testemunha KK, sua namorada, que se apresentou em julgamento disposta a mentir em benefício daquele, descrevendo os acontecimentos até de uma forma que o próprio AA não referiu, não merecendo assim qualquer credibilidade.

Assim,

A testemunha FF referiu que durante a noite foram surgindo alguns desaguisados entre os dois grupos (de um lado o AA, o HH e as duas raparigas que os acompanhavam; do outro os demais arguidos), tendo percebido que o HH era a fonte desses conflitos e provocações, para espicaçar o AA. A testemunha foi bastante incisiva quando referiu que mais do que uma vez ouviu o AA dizer em voz alta, claramente para se fazer ouvir, a frase que consta em 3. dos factos provados. Quando se apercebeu que a situação poderia assumir contornos mais graves, disse-lhes para irem para a rua, o que todos os arguidos acataram. Não viu o que se passou no exterior. Pelo que, quanto aos factos aí ocorridos, temos então o depoimento da testemunha JJ, que assistiu às agressões entre os arguidos AA e DD nos termos dados como provados, tendo, logo após o primeiro corrido para o interior daquelas instalações e o segundo no seu encalço.

Ora, neste ponto regressamos ao depoimento da testemunha FF que, uma vez mais, descreveu com precisão o que aconteceu, nos termos dados como provados, sendo que quando a testemunha JJ chegou à porta do estabelecimento o DD já se encontrava caído, ensanguentado, tendo de imediato ido ao encontro do AA, logrou tirar-lhe a faca e levou-o para a casa de banho.

Perante a clarividência destes depoimentos, ficou arredada a versão do AA de que: foi esmurrado e pontapeado pelo grupo de coarguidos quando se encontrava no exterior, e também “picado” (entenda-se, esfaqueado) numa perna; após, todos foram no seu encalço, inclusive o arguido GG munido de pedras; para os afugentar e causar-lhes receio, encostou-se ao balcão com a faca aberta na mão, exibindo-a; o DD avançou na sua direcção e deu-lhe um murro; só depois lhe deu as facadas.

Versão esta que, por si só, já se apresentava bastante frágil, desde logo porque seria manifestamente temerário alguém com as características (idade, estatura, integração social) do arguido DD procurasse esmurrar alguém que exibe e se apresenta disposto a usar uma faca. Depois, se a intenção do arguido AA fosse a de evitar ser agredido por quem dele se aproximou, o movimento que naturalmente realizaria com a faca seria no sentido de a brandir de um lado para o outro, com o que poderia provocar algum corte, e não cravá-la em profundidade.

FF foi claro: só o DD se aproximou do AA e ninguém percebeu que este estava munido de uma navalha, que necessariamente abrira previamente, até desferir os golpes que fizeram o DD cair ao chão e sangrar.

Quanto à concreta actuação do arguido GG em relação ao HH, valem contra o mesmo as declarações do coarguido II, conforme supra descrito, nos termos do disposto no art. 345º nº.4 do CPP.

Já quanto à actuação imputada ao arguido MM, nenhuma testemunha o viu a agredir o AA. Temos, assim, apenas as declarações deste que, como vimos, pecam por falta de credibilidade. Pelo que se consideraram não provados tais factos.

Finalmente, com respeito aos factos imputados ao arguido HH com relevância criminal, temos o “print” da mensagem de “Instagram” de fls. 451 que, na ausência de prova que possa suscitar alguma dúvida acerca da sua proveniência e autenticidade, demonstra ter sido aquele arguido o seu autor. Ademais, a mensagem é perfeitamente enquadrável com o dia daqueloutros acontecimentos, sendo ainda reveladora de um pormenor específico em relação ao visado MM, confirmado em audiência pelo arguido II, de que aquele só tem um olho “bom”, o outro é de vidro.

Quanto à intenção dos arguidos, na ausência de confissão (à excepção do arguido II), extrai-se da prova dos factos objectivos conjugados com as regras da experiência comum. Assim, o arguido DD, ao atingir a soco o AA, claramente visou molestá-lo fisicamente, o que logrou alcançar. De igual forma, o arguido GG ao agredir nos termos provados o HH, quis molestá-lo fisicamente em conjugação de esforços e vontades com o arguido II, o que lograram alcançar. O arguido HH ao dirigir aquela mensagem ao MM, ameaçando privá-lo do único olho “bom” que tem e de atentar inclusive contra a sua vida (“a tua hora vai chegar”), isto depois dos anteriores acontecimentos, concretamente o risco de vida corrido pelo DD, são claramente reveladores de uma intenção de causar receio e insegurança, resultado que foi alcançado precisamente pelo contexto em que foi enviada.

Quanto à intenção do arguido AA, inexiste qualquer dúvida de que o mesmo quis e procurou tirar a vida ao DD, o que só não logrou alcançar devido à pronta e eficaz assistência médica e cirúrgica que lhe foi prestada. E isto extrai-se de forma avassaladora do comportamento anterior, contemporâneo e posterior à acção do arguido. Concretizando, durante a noite já se havia feito ouvir: “Se alguém fizer mal a ele ou à minha família dou cabo da minha vida e dou uma facada ou duas”. Depois de se envolver em confronto físico com o DD afastou-se, necessariamente abriu a navalha, manteve-a oculta e, perante a aproximação daquele, sem lhe dar qualquer hipótese de defesa, desferiu-lhe dois golpes em profundidade, no abdómen e tórax, onde se alojam órgãos vitais. Após, ainda anunciou: “O próximo que vier faço-lhe o mesmo!”. Como supra se disse, se fosse outra a intenção do arguido AA, teria actuado de outra maneira.

Considerou-se ainda o teor dos CRC, relatórios sociais e elementos extraídos do Proc. Tutelar Educativo nº. 282/19.4… do Juízo de Família e Menores de …, juntos na fase de julgamento.

As testemunhas OO e PP, respectivamente irmã e “madrasta” do arguido AA, limitaram-se a dar a sua opinião e percepção relativamente ao comportamento e personalidade daquele, notoriamente contrastante com o que se pode extrair dos demais factos que lhe dizem respeito.

Quanto aos demais factos provados a que não se aludiu expressamente, não foi produzida que os sustentasse ou resultou provada coisa diferente.”

O OBJECTO DO RECURSO DO ARGUIDO

Perante os factos considerados provados pela 1ª instância, importa agora curar do mérito do recurso, tendo-se em atenção que é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer - Cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal” cit., págs. 74 e 93, nota 108; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363).«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal “ad quem” tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA, ibidem).

As questões essenciais suscitadas pelo Recorrente (nas conclusões da sua motivação) são as seguintes:

a) Se o acórdão recorrido valorou incorrectamente as provas produzidas, violando o princípio da livre apreciação da prova (artº 127º do C.P.P.).

b) Se o Acórdão condenatório recorrido devia ter aplicado o regime especial para jovens – art.º 4º do D.L.401/82 DE 23.09 – e atenuado a pena aplicada ao arguido ora recorrente, considerando a idade do mesmo.

c) A pretensa diminuição da pena de prisão concretamente aplicada e a eventual possibilidade de suspensão da respectiva execução.

O MÉRITO DO RECURSO

1) A PRETENSA AVALIAÇÃO INCORRECTA DA PROVA PRODUZIDA

Os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito (art.º 428º do CPP), o que significa que, em regra, e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

Porém, se o Recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):

- os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida”) (Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.);

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”) (Idem).

Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (loc.. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.

Este é um ponto que tem sido sublinhado na jurisprudência dos tribunais superiores e tem merecido geral aceitação: para provocar uma alteração da decisão em matéria de facto, não basta a existência de provas que, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o tribunal proferiu.

Como bem se faz notar no acórdão da Relação de Coimbra de 08.02.2012 (Des. Brízida Martins), disponível em www.dgsi.pt, “os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1.ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível) sem que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, porque nestes últimos a resposta dada pela 1.ª instância tem suporte na regra estabelecida no citado art.º 127.º, e, por isso, está a coberto de qualquer censura e deve manter-se”.

Por outro lado, duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.

O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre este ponto, cfr. os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em www. dgsi.pt).

O ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida exige que o recorrente indique, concretamente, as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes para a boa decisão da causa (n.ºs 4 e 6 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal). (Isto, é claro, quando se trata de prova pessoal. No caso de prova documental, exige-se, não só a identificação do documento, mas também a especificação do seu conteúdo que impõe decisão diversa da recorrida.)

Sendo curial que transcreva essas passagens (pois só assim é possível relacionar o conteúdo específico do meio de prova que, alegadamente, impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado), a tanto não o obriga a lei.

Importa recordar a jurisprudência uniformizada sobre esta matéria.

O cumprimento de tal ónus exige do recorrente que, por referência ao consignado na acta, indique concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (pois são estas que devem ser ouvidas, lidas ou visualizadas pelo tribunal) e pelo AUJ n.º 3/2012, de 08.03.2012 (DR, I, n.º 77, de 18.04.2012), o STJ manifestou o entendimento de que, para o efeito, basta “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.

No caso dos autos, porém, muito embora a prova oralmente produzida em audiência de julgamento tenha ficado registada por meios técnicos adequados e o ora Recorrente haja, pretendido impugnar (na sua motivação de recurso) determinados segmentos da matéria de facto considerada provada pelo tribunal de 1ª Instância, esta Relação já não pode, no presente recurso, conhecer amplamente da matéria de facto, sem prejuízo de poder e dever conhecer oficiosamente de qualquer um dos vícios elencados nas diversas alíneas do n.º 2 do Art.º 410º do C.P.P. (cfr. o Acórdão do Plenário das Secções Criminais do S.T.J., de 19-10-1995, publicado in D.R., I Série-A, de 28-12-1995 e também in BMJ 450º, pág. 72).

E dizemos isto porque o ora Recorrente, tendo embora pretendido impugnar a decisão sobre matéria de facto proferida pelo tribunal “a quo”, com fundamento num pretensa avaliação errónea das provas produzidas em audiência de julgamento, não observou a exigência legal constante do cit. art. 412º-3 e 4 do CPP - o arguido/recorrente especifica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados – os pontos de facto 2, 3, 8, 9 e 17. Porém, não individualiza as específicas passagens dessas declarações e depoimentos que alicerçam a impugnação com menção ao início e termo das mesmas, pois limita-se a assinalar o início e termo da integralidade de cada um das declarações e depoimentos referidos.

Nesta conformidade, não pode este Tribunal da Relação conhecer do recurso do ora Recorrente na parte em que impugna a decisão sobre matéria de facto, não havendo sequer lugar a qualquer convite no sentido do suprimento, pelo Recorrente, dessa inobservância da mencionada exigência legal, pois através deste mecanismo não pode ser modificado o âmbito do recurso fixado na motivação (n.ºs 3 e 4 do Art.º 417° do C.P. Penal) (1).

Porém, sempre se dirá, o que realmente resulta, das conclusões do recurso, é a divergência entre a convicção pessoal do Arguido/Recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o tribunal firmou sobre os factos, o que se prende com a apreciação da prova em conexão com o princípio da livre apreciação da mesma consagrado no artigo 127º, do CPP.

É que, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas que está deferido à 1ª instância, pelo que, a matéria de facto fixada em 1ª instância só pode ser alterada pelo tribunal de 2ª instância, no recurso de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, quando o registo da prova e os demais elementos existentes nos autos o permita com toda a segurança, isto é, quando a convicção expressa pelo tribunal recorrido não tenha suporte razoável naquilo que de probatório contêm os autos, quando a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido não tenha qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou esteja profundamente desapoiada face às provas recolhidas, não sendo, portanto, sequer uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência.

Ora, no caso sub judice, as razões expressamente invocadas pelo tribunal a quo, na fundamentação fáctica do acórdão recorrido para sustentar a sua convicção quanto à realidade dos factos dados como provados e não provados, é perfeitamente plausível e razoável.

De igual modo, existiu, in casu, a preocupação de esclarecer quais as razões que determinaram o percurso lógico, racional e objectivo que levou a que se concluísse pela valoração que se fez dos meios de prova.

O que foi efectivado de forma razoável e de acordo com o respeito pelas regras da experiência da vida, conforme justificadamente foi enunciado e esclarecido em sede própria.

Não se evidencia, pois, que o tribunal a quo tenha violado qualquer regra jurídica na apreciação da prova.

Efectivamente, o que se nos apresenta é uma diversa valoração dos meios de prova e a pretensão do Recorrente de sobrepor a sua própria avaliação àquela que o tribunal de 1.ª instância fez e à convicção que formou sobre os mesmos factos na base da prova produzida, mas essa divergência não justifica (não impõe) uma alteração da decisão sobre matéria de facto.

O presente recurso improcede, portanto, quanto à impugnação da matéria de facto (por violação do princípio da livre apreciação da prova) que se contém na motivação do Recorrente.

b) DA INDEVIDA NÃO APLICAÇÃO, NO ACÓRDÃO CONDENATÓRIO RECORRIDO, DO REGIME ESPECIAL PARA JOVENS – ARTº 4º DO D.L.401/82 DE 23.09 – CONSIDERANDO A IDADE DO ARGUIDO/RECORRENTE.

O Tribunal a quo, depois de ter plasmado (no elenco dos factos considerados provados) as circunstâncias atinentes às condições pessoais, sociais e aos antecedentes criminais do Arguido/Recorrente, retirou dos mesmos os corolários fácticos inerentes e decidiu que o arguido AA, não deveria beneficiar do regime especial para jovens previsto no D.L.401/82 de 23.9, porquanto: “ … Como se refere no Acórdão TRL de 24-10-2006, Proc. 7217/2006-5, disponível in www.dgsi.pt, «Para o juízo sobre a situação concorre o próprio facto criminoso, na medida em que é a revelação do maior ou menor desajustamento do jovem ao acatamento dos valores jurídicos, não devendo esquecer-se que as penas cumprem também finalidades de prevenção geral positiva que não podem ser postergadas para um nível comunitariamente intolerável pelo simples facto de se estar na presença de jovens condenados.

Daí que a atenuação especial em referência se justifique quando, no juízo global sobre os factos, se puder concluir que é vantajosa para o jovem, sem constituir desvantagem para a defesa do ordenamento jurídico.»

Acresce que, quanto ao crime cometido «(…) a natureza e modo de execução deste e seus motivos determinantes, são circunstâncias que não podem ficar alheias àquele juízo de prognose favorável à ressocialização, podendo condicioná-lo.» (idem)

Não ignorando a ausência de antecedentes criminais e a manifestação de arrependimento em julgamento, temos também que o arguido apresentou uma versão diferente da que resultou provada, procurando escudar-se numa situação de receio, até pânico, relativamente às agressões de que poderia vir a ser alvo quando, na verdade, resultou que perante as quezílias que foram surgindo durante a noite o arguido sempre esteve disposto a fazer uso da faca que possuía, não se coibindo de o anunciar. Ou seja, o arrependimento que manifestou prende-se mais com as consequências que para si resultaram daquela noite do que com as consequências sofridas pela vítima. Acresce que, ainda antes de perfazer os 16 anos, o arguido já havia praticado factos qualificados como crime de ofensas à integridade física qualificada, incumpriu sucessivamente as medidas tutelares não privativas da liberdade, acabando por ser determinado o seu internamento em regime semiaberto, o que é revelador de um claro desajustamento social e de uma personalidade violenta, que impõem uma reacção do ordenamento jurídico que não se compadece com os pressupostos subjacentes a uma atenuação especial da pena.”.

O artigo 4° do Regime Penal Especial para Jovens adultos, diz que se for aplicável pena de prisão deve o juiz atenuar especialmente a pena “quando tiver razões sérias para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado”, o que não obsta a que "as medidas propostas não afastam a aplicação – como ultima ratio – da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade", como se refere no ponto 7 do preâmbulo do citado diploma legal.

A decisão recorrida justificou, conforme lhe é exigível, as razões pelas quais em concreto, entendeu que, no caso sub judice, não deveria o arguido AA, beneficiar do regime especial para jovem previsto no D.L.401/82 de 23.9.

Os argumentos aduzidos não nos merecem qualquer censura, atenta a gravidade da conduta delituosa do arguido ora recorrente, e são inequivocamente indiciadores de que, in casu, faltam as sérias razões para se poder crer que da aplicação do referido regime especial para jovens resultassem vantagens para a reinserção social do mesmo.

Efectivamente, às apontadas circunstâncias, acrescem razões de prevenção geral (tal a frequência com que se praticam crimes desta natureza especialmente violenta e, como tal, geradores de enormes sentimentos de indignação e intranquilidade na comunidade em que se insere), bem como de prevenção especial (necessárias para que o recorrente consiga interiorizar a pena concretamente aplicável, fazendo-lhe sentir que o seu comportamento desviante é grave e tem de ser punido de forma a que se possa redimir, encaminhando-se para novas e legítimas opções de vida).

Na verdade, e em desabono dos argumentos esgrimidos pelo arguido/recorrente, não se descortinam fundamentos que ancorem um juízo de prognose favorável à reinserção social do arguido, não merecendo censura o acórdão na parte em que se pronunciou pela inaplicabilidade de tal diploma legal ao arguido/recorrente.

Eis por que o presente recurso improcede, fatalmente, quanto a esta questão.

c) A PRETENSA DIMINUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO CONCRETAMENTE APLICADA E A EVENTUAL POSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DA RESPECTIVA EXECUÇÃO.

No caso sub judicio, o arguido ora Recorrente AA, foi julgado e condenado, pela prática de um crime de homicídio simples na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, nº1 e art. 22.º, 23.º e 26.º do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Propugna, no entanto, o recorrente que deverá ser reduzida a pena concreta aplicada, devendo esta ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova, atentas as condições pessoais do arguido.

O tribunal a quo fundamentou do seguinte modo a escolha da pena concreta imposta ao Arguido/Recorrente:

“ - as fortíssimas exigências de prevenção geral quando se nos depara, como no caso, um crime que passa pela afectação de um valor indiscutível e fundamental - individual e socialmente - como é a vida, o bem jurídico primeiro, que sobreleva em relação aos demais, pois é a conditio sine qua non do gozo de todos os outros direitos; acresce que, recorrentemente vêm sendo noticiadas situações de agressões entre jovens, com consequências bastantes gravosas, sendo notório um fenómeno de crescente admiração por uma cultura de “gang”, que se reflecte no modo de vestir, estar, agir e falar, no constante desafio entre grupos, nos encontros para “acerto de contas”, na violência empregue, muitas vezes a níveis extremos, nas vinganças, com total ausência de empatia e remorso pelo sofrimento alheio, realidade esta a que os tribunais têm de dar uma resposta clara de absoluta intolerância;

- O dolo directo e bastante intenso, atendendo ao seu comportamento anterior (anunciando que dava facadas a quem fizesse mal aos seus), contemporâneo (actuando sub-repticiamente, apanhando a vítima desprevenida) e posterior (anunciando que faria o mesmo a quem mais o afrontasse);

- Desferiu as facadas depois de se afastar de uma troca de agressões, reflectindo sobre o que de seguida iria fazer, abrindo a navalha e mantendo-a escondida; isto conjugado com as consequências que da sua actuação resultaram para a vítima, causando-lhe risco concreto para a vida, apontam para um grau superior de ilicitude;

- a personalidade do arguido que se pode extrair dos factos, reveladora de uma baixa tolerância em lidar com situações em que se veja afrontado e, por outro lado, reveladora de uma necessidade de afirmação, de dominio, se necessário com recurso à violência;

- o que resultou provado quanto às condições de vida, não deixando de se atender à sua juventude.”

Da ponderação de todas as circunstâncias que se deixaram consignadas, fazendo relevar agudas necessidades de prevenção geral, impõe-se a aplicação de pena de prisão que satisfaça as finalidades da punição. Conforme se pondera no douto aresto do STJ de 25.9.1996, in BMJ 459, 304 “As expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, respeitando o limite da culpa. Se uma pena de medida superior à culpa é injusta, uma pena insuficiente para satisfazer os fins de prevenção constitui um desperdício”.

Assim, atenta a moldura penal abstracta aplicável ao crime praticado pelo arguido/Recorrente (de 1 ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão) e as circunstâncias supra enumeradas, nenhum reparo merece a pena concreta aplicada pelo Tribunal a quo ao ora recorrente.

A confissão do arguido, bem como o arrependimento que demonstrou – por si só, não justificariam a aplicação de pena inferior, conforme pugnado, se se tiver presente o contexto em que decorreram os factos, revelador duma assinalável audácia por parte do arguido, que tudo mostra à saciedade a justeza da pena concreta aplicada pelo Tribunal a quo.

Não se evidencia, portanto, a apontada excessividade da pena imposta ao ora recorrente.

Tanto basta para excluir liminarmente a possibilidade de tal pena vir a ser declarada suspensa na sua execução, nos termos do artº 50º, do Cód. Penal.

DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso do arguido AA, confirmando-se na integra o acórdão recorrido.

Custas a cargo do Recorrente, taxa de justiça: 4 (quatro) Ucs.

Évora, 23 / 01 / 2024

..............................................................................................................

1 Neste sentido, Ac. do STJ de 05-06-2008 (Proc. nº 1884/08, Relator Simas Santos, acessível em www.stj.pt):

“I- Se nas conclusões da motivação se não especificam os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados, pois que se dirige genericamente a toda a matéria provada…, apresentando antes a sua leitura subjectiva de todo o julgamento e que não contém qualquer referência aos suportes técnicos, deve entender-se que não foi cumprido o formalismo dos n.° 3 e 4 do art. 412° do CPP, por respeitar o recurso a matéria de facto.

II- E se essas especificações não constam do texto da motivação, não deve o recorrente ser convidado a corrigir as conclusões da motivação.

… …

VI- A recente Lei 48/2007, de 29-08, veio, aliás, consagrar esta posição na nova redacção dada ao art. 417.º do CPP. Estabelece no seu n.º 3 que, se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do art. 412°, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada. Mas logo esclarece, no n° 4, que tal aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.