Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | GOMES DE SOUSA | ||
Descritores: | OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA RISCO PERMITIDO TUTELA SUBSIDIÁRIA DE BENS JURÍDICOS | ||
Data do Acordão: | 01/24/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | I. Não há crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto no artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, ex vi als. a) e c) do artigo 144.º, al. a), se a lesão surge como o resultado produzido por uma ação empreendida com observância das leges artis da medicina e que não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido. II. A vida social comporta uma multidão ineliminável de riscos e perigos que são tolerados pela própria sociedade, associados a conquistas civilizacionais e a modelos de desenvolvimento de que a sociedade não pode, nem quer prescindir. III. Cumpre à ordem jurídica definir quais as regras a observar, quais as precauções e cuidados a ter na prática das atividades que por si mesmas comportam perigos para bens jurídicos, como sucede p. ex. no âmbito da circulação rodoviária, no uso de pesticidas na atividade agrícola, no uso de explosivos em pedreiras e construções, no manuseamento de vírus, de bacilos, de energia atómica, etc. IV. Dada a sua natureza de ultima ratio, de tutela subsidiária de bens jurídicos, o direito penal não sanciona os comportamentos decorrentes de uma ação que não tendo ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido, ainda assim produz uma lesão ao bem jurídico. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório: No ... Juízo do Tribunal Judicial ... - Juízo Local Criminal ... - Juiz ... - correu termos o processo comum singular supra numerado no qual é arguido: AA, filho de BB e de CC, nascido em .../.../1979, nacionalidade portuguesa, solteiro, médico, residente na Av. ..., ... ..., titular do cartão de cidadão n.º ..., pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo n.º 1 e 3 do art. 148.º ex vi al. a) e c) do art. 144.º, al. a) do art. 15.º e art. 26.º do Código Penal. *** A final e por sentença lavrada e depositada a 19 de Maio de 2022 veio a decidir o tribunal recorrido absolver o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência; p. e p. pelo n.º 1 e 3 do art. 148.º ex vi al. a) e c) do art. 144.º, al. a) do art. 15.º e art. 26.º do Código Penal. * A assistente DD, não se conformando com a decisão, interpôs recurso formulando as seguintes (transcritas) conclusões: a) O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos, a qual absolveu o arguido AA como autor material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo nº 1 e 3 do art. 148º ex vi al a) e c) do art. 144º al a) do art. 15º e artº 26º do Código Penal, cometido na pessoa da assistente aqui recorrente DD; * O MP junto do tribunal recorrido não apresentou resposta. O arguido apresentou resposta, concluindo: A.OpresenterecursotemporobjectoaSentençade19.05.2022emque:“Nostermosepelos fundamentos expostos, o Tribunal decide absolver o arguido AA da prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência; p. e p. peto nº 1 e 3 do art. 14ºº, ex vi al. a) e c) do art. t44,e, al. a) do art. 15.e e art. 26.e do Código penal”. B. No entender da Recorrente, a Sentença padece de censura, seja no julgamento que faz da matéria de facto, concretamente dos factos 12, 15 e 23, seja na aplicação que faz do Direito, por considerar que o Tribunal a quo não fez um exame e uma análise críticos da prova testemunhal, tendo apenas considerado as declarações do Arguido, ora Recorrido. C. Ora, o Recorrido discorda em absoluto deste entendimento. D. Com efeito, e como resulta de todo o exposto na presente peça processual, a sentença é clara e fundamentada, permitindo aos seus destinatários compreender perfeitamente o juízo e ponderação efectuados pelo Tribunal e o raciocínio que levou à formação da sua convicção e correspondente decisão. E. E da motivação de facto resulta claro que o Tribunal formou a sua convicção com base numa análise crítica de toda a prova produzida nos autos, nomeadamente documental, onde se incluem relatórios periciais, ponderada de acordo com o que é a experiência comum e a razoabilidade, obviamente no âmbito dos princípios da prova livre e da discricionariedade do juiz na apreciação probatória. F. A prova livre pressupõe uma interpretação da prova pelo juiz que estará na base da respectiva valoração, juntamente com a convicção que este formar, traduzindo-se na interpretação da prova para lhe atribuir um valor. G. Para que a fundamentação do juiz seja válida, é necessário que seja objectivável, para poder ser oponível a terceiros, o que aconteceu no caso dos presentes autos. H. Não está, pois, ferida de nulidade, a sentença do Tribunal a quo, que discrimina todos os motivos, de facto e de direito que levaram à decisão final, bem como os elementos de prova atendidos, permitindo compreender cabalmente o raciocínio efectuado para assim decidir. I. Nem padece de qualquer outro vício. J. O Tribunal a quo entendeu, e bem, que as declarações da Assistente revelavam fragilidade, pelas contradições e insegurança que as caracterizaram, e que ficaram expressas nas transcrições supra (depoimento prestado em 17.03.2022 e gravado em suporte digital). K. Já as declarações da testemunha EE (depoimento prestado em 17.03.2022 e Gravado em suporte digital) foram consideradas inócuas pelo Tribunal a quo, mais uma vez bem, dado que a mesma, nomeadamente sobre a informação prestada à Assistente após o procedimento, depois de um discurso confuso e contraditório, acabou por dizer que não se lembrava dos factos. L. Por fim, a testemunha GG (depoimento prestado em 22.03.2022 e gravado em suporte digital) não só contrariou as declarações da Assistente, ao afirmar taxativamente que a mãe tinha conhecimento do que eram tratamentos a laser, e até dos riscos dos mesmos para as peles mais escuras, como contrariou também as próprias declarações prestadas em sede de inquérito, numa clara tentativa de condicionar a valoração do tribunal, induzindo-o em erro. M. A verdade é que o Mmo. Juiz do Tribunal a quo terá entendido a falta de congruência desta testemunha, não considerando também as respectivas declarações. N. Por sua vez, andou bem o Tribunal a quo ao relevar as declarações prestadas pelo Recorrido, absolutamente consonantes com o que foram os esclarecimentos técnicos do Sr. Perito e também da testemunha FF, ambos médicos com a especialidade de dermatologia. O. Sendo que a decisão de condenação ou absolvição está dependente exclusivamente da actuação técnica do médico e da correctude da mesma, estes testemunhos e esclarecimentos eram fundamentais. P. E assim os considerou, mais uma vez bem, o Tribunal a quo. Q. Tendo resultado dos mesmos que o tratamento realizado era indicado para as patologias diagnosticadas, mesmo para peles mais escuras, exigindo nessas um maior cuidado, que o Recorrido demonstrou ter tido, saindo dos parâmetros da máquina, baixando-os. R. Ou seja, o Recorrido poderia ter utilizado mais energia e menos filtros, e adaptou a máquina, com prudência, demonstrando cuidado e zelo na sua actuação. S. Ambos explicaram que todas as peles reagem de forma diferente e que há características genéticas determinantes para a resposta dos doentes. T. E, apesar de descrita, esta complicação é bastante rara, mesmo em peles mais escuras. U. No entanto, é sabido que a pele da Assistente teve outra reacção, anos mais tarde, que a Testemunha FF classificou como bizarra, sendo o primeiro e único caso que conhece, e que é demonstrativa da respectiva hipersensibilidade e imprevisibilidade de resposta. V. De onde resulta que as lesões sofridas pela paciente não representavam uma consequência expectável, normal ou típica da conduta do Recorrido, pelo que não é possível fazer um juízo de imputação objectiva, pois seria necessário que, em abstrato, essa conduta fosse adequada a produzi-lo, tornando-o previsível. W. Ambos os médicos foram, por isso, taxativos ao afirmar que não houve violação da leges artis ou má prática. X. Tendo o Sr. Perito esclarecido que a ocorrência de um efeito adverso como estes é independente da actuação médica, ou seja, pode acontecer mesmo que cumpridas todas as regras de arte impostas decorrendo da resposta pessoal dos indivíduos, que os médicos não controlam nem podem controlar. Y. O Recorrido vinha pronunciado pela prática de um crime de ofensas à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal. Z. Os factos provados tinham, por isso, que preencher a tipicidade do crime em apreço, a saber: a violação de um dever objectivo de cuidado, a produção de um resultado lesivo típico, objectivamente previsível (imputação subjectiva), e a verificação de um nexo de imputação objectiva do resultado à conduta violadora do agente. AA. Como refere a sentença, “O crime de ofensa à integridade física negligente constitui, assim, um crime material, traduzindo-se o resultado na ofensa corporal, daí que tenhamos de atender, no plano do ilícito típico, à violação do dever objectivo de cuidado e à previsíbilidade objectiva da realização típica. Com o dever objectivo de cuidado visa-se acautelar o perigo para o bem jurídico protegido, resultante da conduta ou da omissão concreta, devendo ser aferido como cuidado a tomar perante a situação de perigo por um homem médio com a capacidade do agente, podendo este, segundo a experiência geral, prever o resultado como consequência possível do seu acto ou omissão.” (negrito nosso) BB. Explica ainda que “A previsibilidade do agente há-se estender-se, pois, ao nexo causal entre a acção e aquele resultado. (…) Ou seja, para que exista um nexo causal entre o resultado e a conduta não basta que aquele não se possa conceber sem esta (teoria da conditio sine qua non), é necessário que a conduta, em abstracto, seja idónea a causar o resultado, isto é, que seja uma consequência normal e típica daquela conduta (teoria da causalidade adequada). Só os resultados anómalos ou de verificação inusítada e/ou absolutamente imprevisível ficam fora deste nexo causal. CC. O juízo de adequação é levado a cabo mediante uma prognose posterior objectiva: DD. O aplicador do direito, situado no momento em que a acção se realiza, como se a produção do resultado não se tivesse ainda verificado (ex ante), deverá ajuizar - de acordo com as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias concretas do caso (juízo objectivo, enquanto juízo de experiência ou probabilidade), levando ainda em conta as circunstâncias que o agente conhecia efectivamente (a sua perspectiva) -, se aquele homem poderia e deveria ter previsto o resultado típico. Em tal juízo de prognose póstuma, haverá que indagar se era previsível, para uma pessoa média naquela situação, prever determinado acontecimento, tendo em atenção o resultado em concreto, tal como ocorreu; isto é, não se irá indagar se poderia ou não, por exemplo, advir o resultado lesão corporal por um processo possível, mas vai analisar-se se a lesão, tal como ocorreu, deverá ou não ser previsível, ou considerada consequência de determinado comportamento.” EE. Em suma, quando o agente, naquelas circunstâncias, podia ou devia, segundo as regras da experiência comum e as suas qualidades e capacidades pessoais (e profissionais), ter representado como possíveis as consequências da sua conduta, poder-se-á afirmar o conteúdo da culpa própria da negligência e punir-se quem, não obstante a sua capacidade pessoal, não usou o cuidado necessário para evitar o resultado cuja produção ele teve como possível ou podia ter previsto FF. Ou seja, para responsabilizar um agente criminalmente é necessário que esse agente, para além de ter praticado uma ação penalmente relevante, também mereça um juízo de censura, de culpa, sendo esta o fundamento e o limite da medida da pena, não sendo possível a aplicação de uma pena a quem não tenha agido com culpa. GG. No caso dos autos, o Recorrido actuou de acordo com as leges artis, com o cuidado e zelo a que estava obrigado, tendo sido particularmente cauteloso ao parametrizar a máquina abaixo do que era protocolado e, por isso, permitido e tido como bom para aquele Foto tipo. HH.Nãoestão,porisso,reunidososrequisitosparaaimputaçãodapráticadocrimedeofensas à integridade física por negligência ou de qualquer outro. II. Citando uma vez mais a sentença, “os factos provados não preenchem a tipicidade do crime ora em apreço, pelo que cumprirá absolver o arguido do crime de ofensa à integridade física por negligência”. JJ. Motivo pelo qual, a decisão não poderia ter sido outra que não a absolvição do Arguido. KK. Uma nota para a questão do consentimento informado, invocada pela Recorrente para sustentar o seu alegado desconhecimento, carece a mesma de fundamento legal, na medida em que não era obrigatória a assinatura de qualquer documentação formal de consentimento informado, e isso decorre directamente do ponto 6 da Norma 015/2013, da Direcção-Geral da Saúde, onde são elencados os procedimentos que exigem consentimento dado por escrito, não sendo o caso dos tratamentos a laser ou com luz pulsada. LL. Assim, não existia qualquer exigência legal nesse sentido, pelo que a respectiva omissão nunca consubstanciaria má prática ou erro médico. MM. Nem tão pouco é sinónimo de que a Recorrente não tenha sido informada ou esclarecida, ou estaríamos a assumir que todos os procedimentos ou actos médicos que dispensam o consentimento escrito são efectuados sem o conhecimento e anuência dos pacientes, o que não pode aceitar-se. NN. O que mais releva, na prática, da informação e do consentimento informado é o diálogo entre médico e doente, isto é, o processo comunicacional e interacção estabelecida entre ambos, que forma no doente a capacidade para anuir na realização do acto médico que lhe é proposto. OO. Sendo certo que, mesmo que não tivessem sido dados como provados os factos 12, 15 e 23, aqui em causa, tal não influenciaria a decisão pois não seria suficiente para a responsabilização criminal do Arguido. PP. Pelo exposto, entende o aqui Recorrido que andou bem o Tribunal a quo, carecendo o presente recurso de fundamento, porquanto resulta de toda a prova produzida que a actuação do Recorrido foi correcta, não lhe sendo imputável qualquer má prática. QQ. Não pode confundir-se duas coisas absolutamente distintas: a ocorrência de um efeito adverso da violação das leges artis. RR. Punir-se um médico pela ocorrência de um efeito adverso a um tratamento, que é algo que depende da resposta individual e genética do paciente e não está na disponibilidade do profissional, seria abrir um precedente grave que condicionaria toda a prática médica. SS. Aos médicos cabe fazer tudo o que está ao seu alcance e dentro das suas possibilidades, de acordo com os meios disponíveis e com a respectiva experiência e conhecimento, não lhes podendo ser exigido mais. TT. E foi exactamente isso que o Recorrido fez. UU. Ficou provado que parametrizou correctamente o aparelho deluz pulsada, de acordo com a sua vasta experiência, concretamente com peles escuras ou negras, cumprindo todos os protocolos, adaptando-os de forma zelosa, e mesmo assim o resultado não correspondeu ao preconizado e expectável. VV. Actuando assim, como actuou o Recorrido, não existe fundamento para a imputação da prática de qualquer crime. WW. Confia, por isso, o Recorrido que face à prova documental e testemunhal produzidas, manter-se-á a sentença recorrida, garantindo-se a aplicação de uma justiça que não é cega aos factos provados e aos princípios e normas subjacentes a uma condenação penal. * Não foi emitido, em tempo, parecer pelo MP pelo que se ordenou em 03-12-2022 a cobrança dos autos. Em 05-12-2022, foi aposto “visto” nos autos. Razões pelas quais se não deu cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal. * B - Fundamentação B.1.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: 1. O arguido desempenha actividade profissional como médico da especialidade de dermatologia, prestado serviço no Hospital ..., nas unidades de ... e .... * B.1.2 - E como não provados os seguintes factos: i) Ao agir da forma descrita o arguido não observou os procedimentos adequados para o uso da máquina de luz pulsada intensa tendo em consideração o tipo de pele da assistente como sabia e como se lhe impunha, ou seja, não observou as precauções e regras que pela mais elementar prudência de conduta profissional que lhe era exigida e que era capaz de adoptar para impedir a produção de um resultado que sabia ser previsível, mas que não previu, dando daí causa às lesões acima referidas; * B.1.3 – E fundamentou a sua apreciação de facto da forma seguite: «O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e conjugada, ponderada com juízos retirados da experiência comum e critérios de razoabilidade, dos meios de prova constantes dos autos e daqueles produzidos em julgamento. *
*** Cumpre conhecer B.2.1 – O objecto do recurso As balizas do objecto do recurso encontram-se, como se sabe, no teor das suas conclusões, por isso que a questão suscitada pela assistente se resume à invocação de nulidade de sentença por ausência do exame crítico da prova, o que se depreende da leitura de todas as suas conclusões t) a bb), não obstante o fundamento divirja [conclusões b) a t) e u) a bb)]. Cabe ainda salientar que na conclusão b) ocorre lapso pois a assistente refere sempre nas suas motivações a sua insatisfação quanto aos factos provados 12), 15) e 23) mas ali refere o facto provado 16), apesar de transcrever o facto provado 15). Entende-se, portanto, que a inconformidade da recorrente se centra nos factos dados como provados em 12), 15) e 23). * B.2.2 – Nulidade de sentença por ausência do exame crítico da prova A base argumentativa da recorrente para a alegação de inexistência de exame crítico da prova assenta nos seguintes considerandos: a) – o arguido não informou a assistente do tratamento a que iria ser submetida – conclusões d) a i); b) - o tribunal não considerou as declarações da assistente nem os depoimentos do seu marido, filha e assistente do próprio arguido – conclusões j) a t); c) – o tribunal não atendeu ao facto de o tratamento aplicado pelo arguido ser de risco, considerando as características físicas da assistente – conclusões u) a aa). a) - Relativamente ao primeiro ponto de inconformidade da recorrente o mesmo não altera a matéria dada como provada pois que o respectivo facto se encontra já provado no facto 24), nos seguintes termos: “A assistente não assinou qualquer documento formal de consentimento informado”. Ademais o próprio arguido reconhece, no dizer do próprio tribunal recorrido, esse erro de procedimento quando ali se afirma que «Admitiu também o arguido que a assistente não assinou qualquer documento formal de consentimento informado, o que considerou ter sido um erro de procedimento, ainda que o consentimento escrito não fosse obrigatório.» Logo, provada a inexistência de consentimento médico por escrito e a aceitação desse facto pelo arguido, não se vê como o tribunal recorrido – para além da sua própria inexistência e aceitação do principal interessado na sua apresentação – poderia fundamentar a inexistência de algo claramente assente pelas próprias declarações do arguido (que, aliás, são referidas na fundamentação factual). O que nos dispensa de entrar na análise, neste ponto, sobre a existência de consentimento tácito para a sujeição a tratamento. De qualquer forma, a existência de consentimento não é pressuposto do tipo de crime imputado, pelo que insistir num ponto claramente provado e fundamentado é despiciendo para o fim pretendido pela assistente. Provado e fundamentado o facto, ausente uma exigência de forma para o consentimento, a sua irrelevância jurídica é patente. Bem se pode afirmar que é manifesto que o recurso, nesta parte, não tem objecto. * b) – De outra banda assevera a recorrente que o tribunal não considerou as declarações da assistente nem os depoimentos do seu marido, filha e assistente do próprio arguido. O conceito de “consideração” assume aqui dois contornos, um quanto às declarações da assistente, outro quanto às três testemunha indicadas. Quanto às declarações da assistente o tribunal recorrido explica de forma cristalina as razões que sustentaram a sua não “consideração”, no sentido de aceitabilidade probatória, indicando de forma expressa tais razões: «Por seu turno, a assistente, compreensivelmente revoltada, disse em julgamento que nunca foi informada pelo arguido qual o tratamento que iria realizar – com LIP. Disse, também, a assistente, que imediatamente após tal tratamento, realizado no dia 28.02.2017, donde resultaram queimaduras na sua face, o arguido também não a informou que tipo de tratamento a mesma havia sido sujeita. Vistas as transcrições das declarações da assistente nas suas motivações de recurso, nada inculca a ideia de que a apreciação probatória efectuada pelo tribunal recorrido seja incorrecta, pois que as mesmas – ainda que se considasse que a recorrente pretende impugnar os factos dados como provados nos termos do disposto no art. 412º, nsº 3 e 4 do C.P.P. em 12), 15) e 23) – não impõem diversa decisão de facto. Relativamente aos depoimentos das outras três testemunha indicadas pela recorrente, o seu marido, sua filha e a assistente do arguido – lida a fundamentação de facto do tribunal recorrido – é evidente que as mesmas se inserem no trecho fundamentador dai constante, isto é, que «Os depoimentos das demais testemunhas inquiridas em julgamento mostraram-se inócuos para a decisão da causa». Pode considerar-se que tal texto é excessivamente genérico e que melhor ficaria a indicação precisa e concreta dos nomes das testemunhas, mas não pode concluir-se que tal corresponda a uma ausência ou, sequer, insuficiência de fundamentação. E, repetimo-nos, mesmo a considerar-se que a recorrente pretenderia impugnar os factos dados como provados nos termos do disposto no art. 412º, nsº 3 e 4 do C.P.P. em 12), 15) e 23), não se vislumbra que os mesmos imponham diversa decisão de facto. * c) – O tribunal não atendeu ao facto de o tratamento aplicado pelo arguido ser de risco, considerando as características físicas da assistente O apelo ao “risco” suscita uma prévia questão, a de saber se a recorrente se está a referir à análise factual, se está a invocar uma questão de direito, a saber, da inserção neste tipo de crime da teoria do “incremento do risco” de Roxin. Tal teoria defende que, se não for possível determinar com certeza que o risco criado pelo agente determinou o resultado, este ser-lhe-á imputado se tiver ultrapassado o risco permitido, aumentando a probabilidade da ocorrência de tal resultado, quando a acção tenha “criado, aumentado ou incrementado um risco proibido para o bem jurídico” tutelado pela norma. Sem consagração legal no ordenamento jurídico português, tal teoria enfrenta ainda as dificuldades de neste estar consagrada a teoria da causalidade adequada e de – como é opinião doutrinalmente consagrada – a imputação objectiva do resultado ao comportamento alternativo estar limitada à punibilidade pela tentativa, algo não inserível no caso concreto por se tratar de crime negligente e neste ser inviável a imputação por tentativa negligente – cf. art. 10º do CP. O que nos remete para a adequada fundamentação jurídica da decisão recorrida. Mas, vistas as conclusões da recorrente é evidente que esta centra a sua insatisfação na fundamentação de facto, o que decorre principalmente das suas conclusões y) e z). Recordemos que: § 24 (2) A imputação deverá ter-se igualmente por excluída quando o resultado tenha sido produzido por uma acção que não ultrapassou o limite do risco juridicamente permitido. Este critério está relacionado com o facto (já acima mencionado) de a vida social comportar uma multidão ineliminável de riscos e perigos tolerados pela própria sociedade, pois que estão associados a conquistas civilizacionais e a modelos de desenvolvimento de que a sociedade não pode, nem quer prescindir. Daí resulta que não pode o direito penal, dada a sua natureza de ultima ratio, sancionar comportamentos que tenham produzido a lesão de bens jurídicos em virtude da materialização de riscos que são tolerados de forma geral. E nesta sede, de fundamentação de facto efectuada pelo tribunal recorrido quanto ao risco permitido, a decisão recorrida não pode ser atacada com fundamento em ausência de análise crítica dos factos que permitam sustentar ou afastar que a conduta do arguido foi a adequada ao caso concreto da assistente, pois que de forma expressa se pronuncia sobre a adequação da conduta às legis artis aplicáveis e acrescenta-lhe um factor de imprevisibilidade raro que afasta a ocorrência de um risco proibido e previsível que permita a imputação do mesmo ao arguido. Recorde-se, do texto da sentença recorrida: «Indo, agora, mais directamente, ao que importou decidir – se o arguido observou, ou não, as precauções e regras de prudência profissional que lhe era exigida e que era capaz de adoptar para impedir a produção das lesões ocorridas na assistente -, o Tribunal considerou fulcrais os esclarecimentos peremptórios prestados em julgamento pelo perito, Professor Américo Figueiredo. O que nos permite concluir que se não ultrapassou o limite do risco permitido, como aliás se conclui das legis artis aplicáveis ao caso concreto. Razões que reconduzem à improcedência do recurso. * *** C - Dispositivo Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso. Évora, 24-01-2023. (processado e revisto pelo relator). João Gomes de Sousa Carlos Campos Lobo Ana Bacelar
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