Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
92/22.1TELSB-A.E1
Relator: NUNO GARCIA
Descritores: SEGREDO DE JUSTIÇA
CONSULTA DOS AUTOS
DIREITO DE DEFESA
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: No sentido de diligenciar-se uma investigação eficaz da criminalidade referida na última parte do n.º 6 do artigo 89.º do CPP, altamente lesiva de interesses fundamentais da sociedade e no consequente julgamento do(s) respetivo(s) agente(s), o titular do processo, Ministério Público, recorre a meios que, além de complexos, não dependem do próprio, nem dos órgãos de polícia criminal, e às vezes dependem mesmo de mecanismos de cooperação internacional, que são morosos, pelo que o prazo normal previsto para a realização do inquérito, ainda que acrescido do prazo de três meses, é exíguo.
Ora, fazendo um juízo prévio de ponderação entre a proporcionalidade da restrição ao direito de defesa da recorrente e o adiamento de acesso aos autos e a sua prorrogação, por tempo objetivamente indispensável à conclusão da investigação, há que ter em conta o tempo efetivamente necessário a tal objetivo, sem dependência do prazo rígido de três meses, previsto na primeira parte do artigo 89º, nº 6 do CPP.

Estando em causa um tipo de investigações em que as diligências de prova são complexas, implicando a análise de um volume elevado de documentação, perícias informáticas, financeira e contabilísticas, em suma, diligências muito morosas, entende-se que estão verificados os pressupostos para a prorrogação do segredo de justiça, nos termos do disposto no art.89º. nº6, do CPP.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito do processo 92/22.1TELSB, em 7/7/2023, foi proferido o seguinte despacho:

“Pelo requerimento de referência n.º … veio a AA requerer a consulta dos autos ou, em alternativa, que lhe seja dado acesso ao despacho do Ministério Público a promover a apreensão dos saldos bancários.

O Ministério Público veio promover o indeferimento do requerido, em virtude de ir requerer a prorrogação do segredo de justiça.

Cumpre decidir.

Compulsados os autos, verifica-se que foram sujeitos a segredo de justiça por despacho datado de 11.02.2022, confirmado judicialmente em 14.02.2022.

Preceitua o artigo 276.º, n.º 1 do Código de Processo Penal (doravante C.P.P.):

“O Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação, nos prazos máximos de seis meses, se houver arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, ou de oito meses, se os não houver.”

Do n.º 3, alínea a) do mesmo dispositivo legal decorre que

“O prazo de oito meses referido no n.º 1 é elevado: (…) a) Para 14 meses, quando o inquérito tiver por objecto um dos crimes referidos no n.º 2 do artigo 215.º”.

Acrescenta o número 4 que esse prazo se conta a partir do momento em que o inquérito tiver passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido.

Os factos em investigação são susceptíveis de integrar entre outros, o tipo de crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 215.º, n.º 2, do C.P.P.

Não obstante ter o Inquérito tido o termo do prazo no dia 11.04.2023, ao abrigo do artigo 276.º, há que ter em conta o disposto no artigo 89.º, n.º 6 do C.P.P, “findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se refere a alínea m) do artigo 1.º, e por um prazo objetivamente indispensável à conclusão da investigação.”

Em 29.03.2023 por despacho foi determinado o adiamento do segredo de justiça por três meses, nos termos do artigo 89.º, n.º 6, por referência ao artigo 276.º e art.º 1.º, alínea m), ambos do C.P.P, pelo que o prazo de adiamento terá o seu termo em 11.07.2023.

Mais adianta o Ministério Público que irá requerer a prorrogação do segredo de justiça por mais 18 meses.

Pelo exposto, tendo em conta que o presente inquérito ainda se encontra sujeito a segredo de justiça, ao abrigo dos dispositivos supra citados, indefere-se o requerido, pelo período em que o segredo se mantiver.

*

Veio o Ministério Público requerer a prorrogação do segredo de justiça por 18 meses.

Cumpre decidir.

Como acima exposto, decorre do artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal que “findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se refere as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.”

No caso vertente, entende o Tribunal que os fundamentos que se encontraram na base da sujeição do presente inquérito a segredo de justiça e ao adiamento do mesmo se mantêm inalterados, sendo ainda necessário realizar outras diligências que possibilitem esclarecer de forma mais cabal a factualidade denunciada, tanto que resulta do relatório da Polícia Judiciária que se encontra a ser analisada a vasta documentação bancária e fiscal relativamente aos intervenientes singulares e coletivos que se mostra necessária para delinear futuras diligências de investigação, que, com elevada probabilidade, envolverão a necessidade de recorrer à cooperação judiciária internacional para esclarecer os fluxos financeiros verificados nessas contas. Existe ainda a possibilidade das diligências de investigação que ainda importam realizar virem a assumir carácter intrusivo, pelo que se mostra essencial que os visados delas não tomem conhecimento antes da sua concretização.

De resto, neste tipo de investigações as diligências de prova são complexas, implicando a análise de um volume elevado de documentação, perícias informáticas, financeira e contabilísticas, em suma, diligências muito morosas.

Pelo exposto, de modo a continuar a acautelar as diligências probatórias a realizar e a descoberta da verdade material, o que sairia frustrado pelo eventual conhecimento das diligências e da prova recolhida por parte dos suspeitos ou de terceiros, decide-se prorrogar o acesso aos autos pelos intervenientes processuais pelo tempo necessário à realização das diligências de investigação que possam ser prejudicadas com o livre acesso aos autos, nos termos admitidos pelo disposto no artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 1.º, alínea m), do C.P. P., nomeadamente pelo prazo requerido de 18 meses.”

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Inconformada com o referido despacho, dele recorreu a AA, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“A. Dispõe a alínea d) do n.º 1 do artigo 401.º do CPP o seguinte: «Têm legitimidade para recorrer: aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afetado pela decisão» (negrito e sublinhado nossos).

B. Por Despacho de 07.07.2023 (Decisão Recorrida), decidiu o Meritíssimo Juiz de Instrução «prorrogar o acesso aos autos pelos intervenientes processuais pelo tempo necessário à realização das diligências de investigação que possam ser prejudicadas com o livre acesso aos autos, nos termos admitidos pelo disposto no artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 1.º, alínea m), do C.P.P., nomeadamente prazo requerido de 18 meses» (negritos e sublinhados nossos) - cfr. Despacho de 07.07.2023 junto como documento n.º 1.

C. Em virtude da Decisão Recorrida ficou a Recorrente impedida de aceder aos autos por mais 18 meses (aos quais se somam 14 meses, nos termos da alínea a) no n.º 3 do artigo 276.º do CPP – mais 3 meses, nos termos do n.º 6 do artigo 89.º do CPP), o que totaliza um período total de quase 3 anos (35 meses).

D. O acesso aos autos, o qual vem sendo negado à Recorrente desde o início do presente processo, constitui uma prerrogativa indispensável ao seu direito de defesa.

E. Acresce que, desde fevereiro de 2022 que a Recorrente, sem sequer saber qual o objeto da investigação, se encontra impossibilitada de movimentar o saldo da sua única conta bancária, não podendo, por isso, reagir.

F. Do exposto resulta que é manifesto que a decisão de prorrogar o acesso aos autos pelos intervenientes processuais por mais 18 meses afeta diretamente direitos da Recorrente, pelo que, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do CPP, tem esta legitimidade para dela recorrer.

II. DO OBJETO DO RECURSO

G. O presente recurso tem por objeto o Despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal em 07.07.2023 (Decisão Recorrida), que decidiu «prorrogar o acesso aos autos pelos intervenientes processuais pelo tempo necessário à realização das diligências de investigação que possam ser prejudicadas com o livre acesso aos autos, nos termos admitidos pelo disposto no artigo 89.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, por referência ao artigo 1.º, alínea m), do C.P.P., nomeadamente pelo prazo requerido de 18 meses”.

H. Sendo que, volvido mais de um ano e meio desde o início do inquérito, e pese embora a Recorrente já tenha por mais de uma vez demostrando a sua total disponibilidade para prestar declarações, a verdade é que, até ao momento, não houve qualquer resposta por parte do Ministério Público.

III. DO DIREITO

I. Ao exercer o poder previsto no n.º 6 do artigo 89.º do CPP, o juiz de instrução criminal está subordinado apenas a juízos de legalidade e não a juízos de oportunidade.

J. O juiz deve, pois, fazer uma ponderação entre os direitos processuais ou extraprocessuais dos vários intervenientes no processo e a necessidade da continuação do segredo interno.

K. Ora, a decisão de prorrogar o segredo interno por mais 18 meses resulta na manutenção do segredo por período global de praticamente 3 anos (!).

L. Como facilmente se compreende, o conhecimento dos elementos que constam do processo é imprescindível para o exercício de uma defesa eficaz.

M. Por força do segredo interno – que é estabelecido em prol da investigação – o direito de defesa da Recorrente encontra-se restringido.

N. Trata-se, pois, de uma restrição ao direito fundamental de defesa, previsto no artigo n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

O. Admitindo ser hoje pacificamente aceite na jurisprudência – por força do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 5/2010 – o entendimento de que «[o] prazo de prorrogação do adiamento do acesso aos autos a que se refere a segunda parte do n.º 6 do artigo 89.º do CPP, é fixado pelo juiz de instrução pelo período de tempo que se mostrar objetivamente indispensável à conclusão da investigação, sem estar limitado pelo prazo de três meses, referido na mesma norma», a verdade é que não pode essa prorrogação do segredo atentar contra os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade consagrados no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

P. Ora, a Decisão Recorrida viola, no caso concreto, os referidos princípios, sacrificando, de forma constitucionalmente injustificada, o direito fundamental de defesa da Recorrente.

Q. Não obstante a Recorrente já ter manifestado, por mais do que uma vez, a sua intenção de prestar declarações, a verdade é que, até à presente data, não houve qualquer resposta por parte do Ministério Público.

R. Encontrando-se a Recorrente, desde fevereiro de 2022, impossibilitada de movimentar o saldo da sua única conta bancária no montante global de cerca de € 1.000.000,00 (um milhão de euros), não pode esta, designadamente, pagar a colaboradores e fornecedores, vendo-se, assim, impedida de prosseguir a sua atividade.

S. Tendo-lhe sido recusada a consulta dos autos bem como, em alternativa, o acesso ao Despacho do Ministério Público que promoveu a apreensão do seu saldo bancário, não pode a Recorrente, sequer, reagir à apreensão.

T. Ou seja, por força da Decisão Recorrida permanecerá a Recorrente impedida, durante quase 3 anos, de aceder aos elementos do processo e, bem assim, de exercer o seu direito de defesa, designadamente, mas não só, em relação à apreensão do saldo bancário.

U. Sem prejuízo da necessidade de continuar a acautelar as diligências probatórias a realizar nos presentes autos invocada na Decisão Recorrida, a verdade é que um processo penal justo e equitativo exige uma concordância prática entre a necessidade de preservar a investigação e as garantias de defesa.

V. A sujeição do inquérito ao segredo de justiça constitui uma exceção ao princípio da publicidade.

W. E, como é evidente, a manutenção do segredo interno para além do prazo de duração máxima do inquérito (14 meses, in casu) assume um carater ainda mais excecional.

X. No caso sub judice, a decisão de prorrogar segredo interno por um período de mais 18 meses – que se traduz no adiamento da publicidade interna por um período total de 35 meses – configura uma restrição ao direito fundamental de defesa do Recorrente manifestamente desproporcional.

Y. É, pois, manifestamente desrazoável manter o segredo interno por um prazo de quase 3 anos.

Z. Ao que acresce que a Decisão Recorrida ao fundamentar o adiamento do acesso aos autos com base em diligências de investigação futuras que pressupõe poderem vir a ser necessárias, mas que, na realidade, não sabe se irão ou não realizar-se, viola o disposto no n.º 6 do artigo 89.º do CPP, por tais eventuais diligências não poderem preencher o critério do “objetivamente indispensável à conclusão da investigação”.

AA. Assim, salvo melhor entendimento, não pode a Decisão Recorrida subsistir no ordenamento jurídico por violar o disposto no n.º 6 do artigo 89.º do CPP e os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade consagrados no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.

Nestes termos e nos demais que V. Exas doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido e a decisão de prorrogação do adiamento do acesso aos autos por 18 meses ser revogada e substituída por uma outra que:

(i) Determine que a Recorrente pode consultar os Autos;

Subsidiariamente

(ii) Determine a prorrogação do segredo interno por prazo não superior a 3 (três) meses”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“I- Nos autos em apreço, decorrem diligências de investigação sobre factos, suscetíveis de integrar, em abstrato o tipo legal de crime de branqueamento de capitais, previsto e punido pelo artigo 368º-A do Código Penal, eventualmente, crimes de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 217º e 218º do Código Penal e 103º e 104º do RGIT e outros que a investigação, eventualmente, venha a revelar.

II- A concreta natureza dos factos em investigação faz antever como possível a realização de diligências, cujo conhecimento por parte do agente dos factos ou de terceiros, colocarão decisivamente em causa os interesses da investigação, designadamente, a definição da responsabilidade criminal, o apuramento da real configuração dos factos e a indispensável obtenção de provas.

III- O Ministério Público por despacho de 01-02-2023, a fls. 356, promoveu a apreensão do saldo bancário da conta da recorrente, tendo sido determinada a apreensão dos saldos bancários por despacho do Mmo Juiz de Instrução Criminal, em 06-02-2023 fls. 364.

IV- Em 22-03-2023 promoveu, o Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 89º, nº 6 por referência ao artigo 276º e artigo 1º, alínea m) do Código de Processo Penal, a prorrogação do segredo de justiça, que foi deferido por despacho da Mma. JIC, datado de 29-03-2023 (até 11-07-2023).

V- A 29-06-2023, com o mesmo fundamento legal, o Ministério Público, promoveu a prorrogação do segredo de justiça nos autos, pelo prazo mínimo de 18 meses, por ser necessário acautelar diligências de investigação em curso e a recolha de prova essencial para a descoberta da verdade material para o apuramento dos factos, tendo sido validado pela Mma. JIC a 07-07-2023, fls. 502 e 503.

VI- A Recorrente interpôs recurso alegando, em suma, a desproporcionalidade, inadequação e desnecessidade da prorrogação do segredo de justiça por 18 meses contrapondo ao direito de defesa e alegando que o despacho recorrido violou o disposto no artigo 89º, nº 6 do Código de Processo Penal e os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

VII- O crime de branqueamento, que fortemente se indicia, integra-se no âmbito da “criminalidade altamente organizada” como o elucida a alínea m) do artigo 1.º, do Código de Processo Penal.

VIII- A prorrogação do prazo constante no artigo 89º, nº 6 do CPP, para processos de natureza especial, relacionados com o terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente violenta e criminalidade altamente organizada, a prorrogação não tem prazo prefixo, podendo estender-se para além de três meses, consoante o tempo objetivamente indispensável para a conclusão do inquérito.

IX- Pois, no sentido de diligenciar-se uma investigação eficaz da criminalidade referida na última parte do n.º 6 do artigo 89.º do CPP, altamente lesiva de interesses fundamentais da sociedade e no consequente julgamento do(s) respetivo(s) agente(s), o titular do processo, Ministério Público, recorre a meios que, além de complexos, não dependem do próprio, nem dos órgãos de polícia criminal, e às vezes dependem mesmo de mecanismos de cooperação internacional, que são morosos, pelo que o prazo normal previsto para a realização do inquérito, ainda que acrescido do prazo de três meses, é exíguo.

X- Ora, fazendo um juízo prévio de ponderação entre a proporcionalidade da restrição ao direito de defesa da recorrente e o adiamento de acesso aos autos e a sua prorrogação, por tempo objetivamente indispensável à conclusão da investigação, há que ter em conta o tempo efetivamente necessário a tal objetivo, sem dependência do prazo rígido de três meses, previsto na primeira parte do artigo 89º, nº 6 do CPP.

XI- Por entendermos que se mostra necessária e proporcional ao caso concreto defendemos ser irrepreensível a decisão recorrida, devendo, por isso, manter-se assim, in totum, tal prorrogação do segredo de justiça.

XII- Não sendo o despacho recorrido contrário ao disposto no artigo 89º, nº 6 do Código de Processo Penal e aos princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade no artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa a que a Recorrente alude.

XIII- Por último cumpre apenas referir, quanto à alegada impossibilidade de a recorrente movimentar a sua conta bancária que tal não tem qualquer relação com a prorrogação do segredo de Justiça, sendo que tal conta se encontra judicialmente apreendida por despacho datado de 06.02.2023.

XIV- Sendo certo que, ainda que não tivesse sido prorrogado o acesso aos autos a apreensão dos saldos bancários sempre se manteria, pois, havendo fundadas suspeitas que tais valores, creditados na referida conta bancária, têm origem ilícita, não seria aceitável permitir que a recorrente os utilizasse e introduzisse na economia legítima, nomeadamente no desenvolvimento da “suposta atividade” da sociedade.

XV- Por tudo o exposto, entendemos, salvo melhor opinião, que não foram violadas quaisquer normas jurídicas, mormente as indicadas pelo recorrente, e o despacho recorrido fez correta interpretação das normas legais aplicáveis ao caso.

Nestes termos e nos demais que V. Exas doutamente suprirão, deverá ser julgado totalmente improcedente o presente recurso interposto pela recorrente “AA, mantendo-se a douta decisão que determinou a prorrogação do adiamento do acesso aos autos.

Mas Vossas Exas. farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA!”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada resposta.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa apreciar no presente recurso é a de saber se deve persistir o segredo de justiça, tal como se determinou no despacho recorrido e, em caso afirmativo se tal deve ocorrer pelo período de 18 meses, nos termos de tal despacho, ou por prazo inferior, tal como, subsidiariamente, pretende a recorrente (3 meses).

Interessa ter em conta o que dispõe o nº 6 do artº 89º do C.P.P.:

Artigo 89.º

Consulta de auto e obtenção de certidão e informação por sujeitos processuais

(…)

6 - Findos os prazos previstos no artigo 276.º, o arguido, o assistente e o ofendido podem consultar todos os elementos de processo que se encontre em segredo de justiça, salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º, e por um prazo objectivamente indispensável à conclusão da investigação.

A recorrente não põe em causa que o prazo do inquérito já findou e não põe em causa que se está perante criminalidade que permite a prorrogação do prazo do segredo de justiça nos termos da última parte do referido nº 6 do artº 89º do C.P.P..

O que a recorrente põe em causa é que se justifique essa prorrogação, pelo menos pelo prazo decidido de 18 meses, uma vez que a mesma:

- “… configura uma restrição ao direito fundamental de defesa do Recorrente manifestamente desproporcional.

- …é manifestamente desrazoável manter o segredo interno por um prazo de quase 3 anos.

- (…) o adiamento do acesso aos autos com base em diligências de investigação futuras que pressupõe poderem vir a ser necessárias, mas que, na realidade, não sabe se irão ou não realizar-se, viola o disposto no n.º 6 do artigo 89.º do CPP, por tais eventuais diligências não poderem preencher o critério do “objetivamente indispensável à conclusão da investigação.”

Está em causa a promoção do Ministério Público de 29/6/2023 que foi junta ao presente apenso de recurso em separado, tal como se determinou no despacho que admitiu o recurso.

Como é bom de ver, nem nessa promoção, nem no despacho judicial recorrido que a deferiu, estão referidas as diligências de investigação que se pretende no futuro levar a cabo, sejam elas já previsíveis neste momento, quer sejam as mesmas necessárias perante o decurso futuro do inquérito.

É certo que não se sabe exactamente quais são, ou poderão ser, tais diligências de investigação futuras, mas, como parece evidente, não é fácil, agora, determinar quais são, ou serão, uma vez que as mesmas dependem do desenrolar do inquérito.

Uma coisa é certa (conforme se confirmou pela consulta que se fez ao processo principal): estão em causa movimentações bancárias que envolvem outros países, sendo conhecido que tais diligências são por vezes morosas.

Entende-se, assim, que estão verificados os pressupostos para a prorrogação do segredo de justiça, nos termos da indicada disposição lega, tal como se determinou no despacho recorrido.

É evidente que o segredo de justiça não se pode eternizar, mas tal não acontecerá, uma vez que é certo que não pode ocorrer qualquer outra prorrogação (“… por uma só vez…”, refere-se no nº 6 do artº 89º do C.P.P., ou seja, só são possíveis duas prorrogações - uma pelo período máximo de 3 meses e outra sem limite máximo, mas sempre por prazo “objectivamente indispensável à conclusão da investigação”, tal como decidiu o ac. de fixação de jurisprudência n.º 5/2010, de 14/5).

Só haveria eternização do segredo de justiça se a prorrogação (segunda e última) fosse, genericamente, por período indispensável à investigação.

Mas não é isso que acontece: quem solicita a prorrogação do segredo de justiça tem que indicar o prazo que reputa adequado para a conclusão da investigação.

É certo que tal necessidade de prorrogação deve ser apreciada objectivamente por referência ao que em concreto se pretende realizar.

Porém, como também facilmente se compreende, nem sempre será possível, sob pena de se frustrar o que se pretende com a prorrogação, que se indiquem em concreto quais as diligências investigatórias que se pretende ainda levar a cabo ou indicar quais as que poderão resultar futuramente como úteis.

Desde logo, porque podem ainda nem se saber quais serão essas diligências e, por outro lado, o anúncio dessas diligências pode frustrar o que se pretende acautelar com o segredo de justiça.

É necessário, no entanto, que a decisão de prorrogação e a fixação de determinado prazo, tenha, ao menos, em conta o que está em causa no inquérito em concreto e o que é previsível que possa vir a ser necessário.

E o despacho recorrido refere-o (com realce nosso):

“… sendo ainda necessário realizar outras diligências que possibilitem esclarecer de forma mais cabal a factualidade denunciada, tanto que resulta do relatório da Polícia Judiciária que se encontra a ser analisada a vasta documentação bancária e fiscal relativamente aos intervenientes singulares e coletivos que se mostra necessária para delinear futuras diligências de investigação, que, com elevada probabilidade, envolverão a necessidade de recorrer à cooperação judiciária internacional para esclarecer os fluxos financeiros verificados nessas contas. Existe ainda a possibilidade das diligências de investigação que ainda importam realizar virem a assumir carácter intrusivo, pelo que se mostra essencial que os visados delas não tomem conhecimento antes da sua concretização.

De resto, neste tipo de investigações as diligências de prova são complexas, implicando a análise de um volume elevado de documentação, perícias informáticas, financeira e contabilísticas, em suma, diligências muito morosas”.

Entende-se, assim, que o despacho recorrido não viola qualquer preceito legal ou qualquer princípio dos referidos pela recorrente, justificando-se a prorrogação do prazo pelo período determinado de 18 meses (entretanto já decorreram mais de 6 meses desde o despacho recorrido).

Esta questão não tem que ver directamente com a impossibilidade de movimentação da conta bancária titulada pela recorrente, uma vez que mesmo a ser posto fim ao segredo de justiça, essa impossibilidade continuará, sendo até certo que a recorrente, em 9/5/2023, foi notificada do despacho que determinou a apreensão do saldo dessa conta.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente o recurso.

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Deverá a recorrente suportas as custas, com taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.

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Évora, 6 de Fevereiro de 2024

Nuno Garcia

J.F. Moreira das Neves

Margarida Bacelar