Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3612/17.0T8FAR.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: POSSE
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – A competência para o convite ao aperfeiçoamento do conteúdo das alegações de recurso, nos termos em que a lei o permite, cabe ao tribunal ad quem, mais precisamente ao relator, e não ao tribunal a quo.
2 – Perante o incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, nem sequer ao tribunal ad quem é permitido convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações.
3 – Não é possuidor nos termos do direito de propriedade quem, aproveitando a inércia dos titulares deste último, guarda objectos seus num armazém que também é utilizado, nas mesmas circunstâncias e para os mesmos fins, por outra pessoa.
4 – Tal coexistência de ocupações do mesmo armazém por pessoas diversas inculca que nenhum dos ocupantes exerceu, sobre o mesmo, os poderes típicos do direito de propriedade, com a inerente exclusão de terceiros, nem actuou com a intenção de se comportar como se fosse o titular desse direito real.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3612/17.0T8FAR.E1

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(…), (…), (…) e (…) propuseram a presente acção declarativa, com processo comum, contra (…), formulando os seguintes pedidos: A) Reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os prédios urbanos sitos na Rua da (…), n.ºs 2, 4 e 6, em Vila Real de Santo António, descritos na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António sob os n.ºs (…), (…) e (…) e inscritos na matriz predial urbana sob os artigos (…), (…) e (…), e condenação do réu a restituí-los livres de pessoas e bens; B) Decretamento de uma sanção pecuniária compulsória de valor não inferior a € 100,00 por cada dia de incumprimento pelo réu da ordenada desocupação dos prédios referidos em A), nos termos do disposto no artigo 829.º-A do Código Civil.

O réu contestou, pugnando pela improcedência da acção. Em reconvenção, pediu que seja declarado que ele, réu, adquiriu, por usucapião, os prédios urbanos correspondentes aos números de polícia 2 e 4 da Rua da (…), em Vila Real de Santo António, inscritos na matriz predial urbana da freguesia de Vila Real de Santo António sob os artigos (…) e (…) e descritos na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António sob os n.ºs …/20100429 e …/20100429, condenando-se os autores a reconhecê-lo como proprietário dos mesmos prédios. O réu requereu ainda a intervenção principal provocada de (…), como associado dos autores.

Os autores replicaram, pugnando pela improcedência da reconvenção.

Foi admitida a intervenção principal provocada de (…), como associado dos autores, o qual declarou fazer seus os articulados por estes apresentados.

Teve lugar audiência prévia, na qual foi admitida a reconvenção, foi proferido despacho saneador e se procedeu à identificação do objecto do litígio e ao enunciado dos temas de prova.

Realizou-se a audiência final, na sequência da qual foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção, reconheceu os autores como contitulares do direito de propriedade sobre os prédios descritos na petição inicial e condenou o réu a restituir-lhes, livres e devolutos de pessoas e bens, os prédios correspondentes aos números de polícia 2 e 4, bem como a pagar-lhes, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 100,00 por cada dia de atraso na entrega dos prédios, a contar do trânsito em julgado.

O réu interpôs recurso da sentença, tendo formulado as seguintes conclusões:

1. Recorre-se da douta sentença que declarou parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção do apelante que pretendia o reconhecimento do direito de propriedade sobre os prédios identificados nos autos, por aquisição por usucapião.

2. As declarações do réu (…) transcritas na motivação da decisão da matéria de facto da douta sentença representam versão oposta à apresentada pela autora (…).

3. Sem mais fundamentação, prevaleceu a versão apresentada pela autora (…), naturalmente interessada no desfecho do litígio.

4. Resultando o dito de 14 a 17 – factos provados – apenas com o recurso ao dito pela autora (…), sem se considerar os factos provados a partir de todos os meios de prova disponíveis com recurso à experiência comum.

5. O que constitui erro de julgamento.

6. A matéria constante do ponto 18 dos factos provados resultou do depoimento da testemunha (…), que o tribunal considerou fundado e isento.

7. A matéria descrita em 19 a 22 fundou-se nos depoimentos das testemunhas (…), (…), (…) e (…) e nas declarações do réu quanto à utilização dada pelo réu ao armazém e obras de reparação feitas para o efeito.

8. O depoimento da testemunha (…) considerado sério e credível pelo tribunal recorrido é contrariado pelas testemunhas (…), (…), (…) e (…).

9. Não andando bem o tribunal ao não considerar abalado e descredibilizada a testemunha sobre o qual aliás escorou o tribunal a sua decisão.

10. Perante o manancial probatório que o tribunal apreciou como relevante para a boa decisão e por isso credível, só podia o Tribunal concluir pela aquisição originária dos imoveis, por ter ficado provado testemunhalmente o alegado pelo aqui apelante.

11. Que usou, fruiu e dispôs da forma que entendeu os imóveis, manifestando o animus possidendi, actuando da forma correspondente ao exercício de um direito de propriedade, não de mero “OCUPA”.

12. Não teria o “OCUPA” limpado e arranjado o armazém, construído divisões, a casa de banho com esquentador, posto janelas, usado o mesmo para a sua actividade profissional, armazenando materiais e pernoitando durante anos empregados no local – tudo que consta da matéria assente.

13. O facto de o apelante não pagar impostos, nada mais pode o tribunal retirar a não ser que apelante não pretendia pagar impostos.

14. A douta sentença nos factos provados, considerou actos materiais que inequivocamente manifestam o animus e o corpus de uma aquisição originária por parte do réu.

15. Para os ignorar em sede de fundamentação e factos provados da sentença.

16. Nomeadamente e cita-se a motivação de direito. “Quando o Réu deu baixa da actividade de construção civil, e iniciou a actividade de exploração de bares, passou a usar o armazém para ali guardar bebidas e materiais relacionados com aquela actividade e alguns materiais de construção que restaram da anterior actividade. Para o efeito, o Réu realizou obras de reparação não concretamente apuradas nos prédios, actuando à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.”

17. Tudo que manifesta actuação em nome próprio de um direito de propriedade.

18. Tudo que foi ignorado em sede de decisão.

19. Nem do estado de degradação do imóvel dado como provado nada mais pode o tribunal retirar a não ser que apelante retira utilidade do armazém na forma que se encontra.

20. O meritíssimo juiz a quo, livre é certo de apreciar e valorar a prova, não pode, porém, e ao fazê-lo como fez viciou de morte a prova, e fez erro de julgamento.

21. O que constitui ilegalidade, por ser um erro grosseiro na apreciação da prova.

22. Existe nulidade da sentença, por contradição entre os seus fundamentos e a decisão, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam não ao resultado expresso na decisão mas a um resultado oposto.

23. Com as premissas de facto e de direito apuradas/provadas o juiz a quo, logicamente a decisão a proferir seria oposta à decisão tomada nos presentes autos e que se censura.

24. A divergência que daqui resulta não constitui um mero erro de julgamento, mas sim uma nulidade da sentença por os fundamentos referidos pelo tribunal conduzirem necessariamente a uma decisão de sentido oposto.

25. Tendo o juiz a quo o dever de participar na decisão do litígio participando na indagação do direito, mas não se pode abstrair da factualidade trazida ao processo pela parte.

26. Violando o juiz a quo o artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC.

27. Da motivação de direito ainda refere e cita-se: “Alega o Réu que é possuidor desde o ano de 1997 dos prédios urbanos correspondentes aos números de polícia n.ºs 2 e 4 da Rua da (…), em Vila Real de Santo António, por os ter adquirido por compra não reduzida a escrito ao (…), entretanto falecido, que se apresentava como familiar dos Autores e proprietário dos ditos prédios. (…)

28. Ora, contando tal prazo a partir de Abril de 1998 o decurso do prazo necessário à verificação da usucapião não se encontrava esgotado em 23-11-2017, data da propositura da acção. (…) Pelo que sempre improcederia, por este motivo, o pedido reconvencional deduzido.”

29. Desconhece o apelante a proveniência/origem da data aí referida de Abril de 1998, que serviu ao tribunal para a contagem da não verificação do prazo para a aquisição originária.

30. O tribunal, inopinadamente e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídica, para construção de argumentação, refere data – Abril de 1998 – que nunca foi alegada.

31. A douta sentença contém o vício de insuficiência de prova que tivesse habilitado o tribunal a considerar o início do prazo como sendo 1997.

Termos em que com o douto suprimento de V. Exas. se requer que seja revogada a douta sentença julgando-se como de direito e substituída por outra que melhor faça o entendimento da Lei.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, com as seguintes conclusões:

1ª O recorrente centra o seu recurso na discordância da matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo.

2ª Entende o recorrente que os n.ºs 10 a 17 da matéria de facto da sentença aqui em crise foram mal julgados, por se ter dado prevalência às declarações de uma das recorridas em detrimento das declarações que o próprio recorrente proferiu.

3ª As declarações da recorrida (…) são de facto bem mais merecedoras de crédito do que as que foram prestadas pelo recorrente, que apresentaram versões e justificações absolutamente implausíveis e destituídas de sentido, chegando mesmo a incorrer em contradições sucessivas.

Mas no entanto, e sem conceder,

4ª A 1ª instância baseou a sua resposta a estes pontos de facto não apenas nas indicadas declarações mas também em diversos outros elementos de prova.

Aliás,

5ª A sentença recorrida mostra-se exemplar e detalhadamente fundamentada, tendo o tribunal fundado a sua convicção “na análise crítica e conjugada, à luz das regras da experiência comum”, dos diversos elementos de prova carreados para o processo.

6ª Os pontos 10 a 17 da matéria de facto foram correctamente julgados e devem manter-se inalterados.

7ª E o mesmo se diga dos números 18 a 23, contra os quais o recorrente também se insurge.

De resto,

8ª O recorrente nem sequer concretiza o sentido em que pretendia que estes pontos fossem alterados, o que configura (nova) violação das normas processuais aplicáveis, e inviabiliza logo à partida a sua pretensão.

9ª Os recorridos são os legítimos proprietários dos imóveis identificados nos autos, tendo a propriedade a seu favor devidamente inscrita no registo predial.

10ª O recorrente alegou ter comprado os imóveis em 1997 mas o suposto vendedor, que diz chamar-se “(…)”, nunca constou de qualquer registo como proprietário.

11ª O recorrente afirma que pagou 2.500 contos pelo armazém, em numerário, e que não celebrou escritura pública, o que para além de ser inválido não é minimamente credível.

12ª O armazém pertence à recorrida … (em compropriedade com outros familiares) desde 1974 até aos dias de hoje pelo que nunca poderia ter sido vendido sem a sua intervenção.

13ª Desde 1974 (pelo menos) o imóvel nunca pertenceu a uma só pessoa e não pertenceu nunca a qualquer comproprietário que se chamasse (…).

14ª É inevitável concluir que o recorrente não comprou o armazém.

Do mesmo modo,

15ª O recorrente também não adquiriu a propriedade do armazém por usucapião.

16ª O recorrente não é possuidor e sim mero detentor.

17ª E mesmo que assim não fosse, a verdade é que não se completou o período mínimo de 20 anos para que a aquisição se pudesse consumar: nenhuma testemunha situou a detenção do armazém pelo recorrente em data anterior a 1998.

18ª A testemunha (…), por exemplo, que partilhou com o recorrente a utilização do armazém, bem sabia que este não era proprietário, apelidando-o de “ocupa”.

19ª Por não ser proprietário o recorrente nunca instalou fornecimento de energia nem de água no armazém, recorrendo a “puxadas” ilegais.

20ª O recorrente nunca pagou quaisquer impostos relativos ao armazém (Contribuição Autárquica e depois IMI).

21ª O próprio filho do Recorrente reconheceu perante a PSP, no âmbito de um suposto furto ocorrido no armazém, que o imóvel pertencia a outra pessoa que não o recorrente.

22ª O recorrente não comprou o armazém, não tem a seu favor o prazo para adquirir por usucapião, e nem tão-pouco inverteu o título da posse (que nem tinha já que era mero detentor).

23ª Por outro lado os recorridos sempre se comportaram como os proprietários que são.

24ª Foram fazendo partilhas que sempre abrangeram o armazém, foram mantendo o registo predial em dia e foram pagando os impostos devidos.

25ª Logo em 2014 os recorridos mandaram avaliar o imóvel para efeitos de novas partilhas.

26ª E nos anos de 2014/2015 a comproprietária (…), aqui recorrida, diligenciou junto do município de Vila Real de Santo António a obtenção de informação sobre a viabilidade de demolição das edificações existentes para posterior construção.

27ª Eis como, um a um, caem todos os fundamentos do recurso.

Assim e em suma,

28ª A sentença recorrida apreciou correctamente os factos e aplicou bem o Direito, impondo-se a sua manutenção nos precisos termos em que foi proferida.

O recurso foi admitido.


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As questões a resolver são as seguintes:

1 – Nulidade da sentença;

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

3 – Verificação dos pressupostos da usucapião.


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Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:

1. Os autores (…), (…), (…) e (…) têm inscrita a seu favor a aquisição por via sucessória, por apresentações de 29-04-2010, de 08-07-2016 e 09-09-2016, em comum e sem determinação de parte, de 62/72 avos do armazém sito na Rua da (…), n.ºs 2, 4 e 6, em Vila Real de Santo António, estando os restantes 10/72 avos inscritos a favor do chamado (…).

2. O referido armazém compreende três prédios urbanos, assim descritos:

a) Prédio urbano, composto por armazém e actividade industrial com quintal, sito em Rua da (…), n.º 2, em Vila Real de Santo António, na freguesia e concelho de Vila Real de Santo António, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo António sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…);

b) Prédio urbano, composto por armazém e actividade industrial com quintal, sito em Rua da (…), n.º 4, em Vila Real de Santo António, na freguesia e concelho de Vila Real de Santo António, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo António sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…); e

c) Prédio urbano, composto por armazém e actividade industrial com quintal, sito em Rua da (…), n.º 6, em Vila Real de Santo António, na freguesia e concelho de Vila Real de Santo António, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo António sob o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…).

3. Os autores e o chamado (…) foram adquirindo as quotas que hoje detêm nos identificados imóveis por via sucessória.

4. Sendo, nessa medida, os autores e o chamado (…) que pagam o IMI relativo aos armazéns.

5. Os autores, juntamente com o chamado (…), pretendem vender o identificado armazém.

6. Para esse efeito, “colocaram” o armazém na rede “ERA”, por meio da sociedade “(…) – Mediação Imobiliária, Lda.”, que ficou assim encarregue de procurar comprador.

7. Durante o mês de Maio de 2017 surgiu um interessado no armazém, com quem os proprietários acordaram o preço de venda de € 120.000,00 e com quem ajustaram inclusivamente em Junho os termos de um contrato-promessa tendo em vista a compra e venda do armazém.

8. Quando se ultimava a concretização do contrato-promessa os autores foram avisados pela sociedade mediadora de que existiriam objectos pertencentes a terceiros no interior do armazém, nomeadamente, uma moto e ferramentas antigas, e materiais de construção e bebidas.

9. Os autores e o chamado ignoravam em absoluto esta situação, até porque o armazém se encontra bastante degradado.

10. Feitas algumas indagações na zona, foi possível apurar que a moto e as ferramentas antigas pertenciam ao marido de uma senhora de nome (…).

11. E que os materiais de construção e as bebidas pertenciam ao réu (…).

12. Os autores solicitaram às pessoas referidas em 10 e 11 que promovessem a desocupação do armazém.

13. A Sra. (…) prontamente anuiu a esta solicitação, tendo retirado os pertences do seu marido do armazém.

14. O réu, porém, recusou-se a desocupar o armazém, sem apresentar para tanto qualquer justificação plausível.

15. Nos contactos que a este respeito manteve com os autores o réu chegou mesmo a invocar um suposto direito de preferência na venda do armazém, mas que não conseguiu comprovar nem justificar.

16. Desejosos de resolver a situação, os autores informaram-no do preço que tinham obtido para a venda do armazém (€ 120.000,00) e convidaram o réu a abordar a sociedade mediadora para formalizar uma oferta de valor semelhante.

17. O que o réu recusou fazer sob o argumento de que “não estava disposto a oferecer tanto”.

18. O réu utiliza os prédios urbanos com os arts. (…) e (…), correspondentes aos números de policia n.º 2 e 4 da Rua da (…), em Vila Real de Santo António, desde data não concretamente apurada do ano de 1998, mas posterior a Abril, sem oposição dos autores, que desconheciam que aquele utilizava os imóveis, nunca se assumindo perante os mesmos como dono.

19. O réu realizou obras de reparação não concretamente apuradas nos prédios referidos em 18.

20. O réu era empresário da construção civil e passou a usar os prédios urbanos para armazenar máquinas e materiais de construção civil, livremente entrando e saindo do armazém empregados seus, chegando a lá pernoitar empregados da construção civil seus.

21. Quando o réu deu baixa da actividade de construção civil, e iniciou a actividade de exploração de bares, passou a usar o armazém para ali guardar bebidas e materiais relacionados com a sua actual actividade e alguns materiais de construção que restaram da anterior actividade.

22. O réu praticou os factos referidos à vista de toda a gente, sem o conhecimento dos autores e sem oposição de ninguém, até ao descrito em 12.

23. Os prédios urbanos identificados em 2 encontram-se em mau estado de conservação.

A sentença recorrida julgou não provados os seguintes factos:

24. O marido de (…) e o réu alegaram que vinham usando o armazém com o conhecimento e tolerância do anterior proprietário.

25. Os autores nunca entraram nos prédios urbanos (armazém) identificado em 2.

26. O réu utiliza os prédios urbanos com os arts. (…) e (…), correspondentes aos números de policia n.º 2 e 4 da Rua da (…), em Vila Real de Santo António, desde 1997.

27. Em princípios de 1997, o réu adquiriu os prédios urbanos correspondentes aos números de policia n.º 2 e 4 da Rua da (…), em Vila Real de Santo António, por compra não reduzida a escrito ao Sr. (…), entretanto falecido, que se apresentava como familiar dos ora AA, e proprietário dos armazéns.

28. A quem pagou o preço de 2.500.000,00 Escudos.

29. O réu actua reiteradamente como se fossem seus os prédios urbanos com os artigos (…) e (…), correspondentes aos números de policia n.ºs 2 e 4 da Rua da (…), em Vila Real de Santo António.

30. Sendo por todos os vizinhos reconhecida a propriedade dos prédios urbanos.


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1 – Nulidade da sentença:

O recorrente afirma que a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º n.º 1, al. c), do CPC, por contradição entre os seus fundamentos e a decisão, porquanto, “com as premissas de facto e de direito apuradas/provadas o juiz a quo, logicamente a decisão a proferir seria oposta à decisão tomada nos presentes autos e que se censura. A divergência que daqui resulta não constitui um mero erro de julgamento, mas sim uma nulidade da sentença por os fundamentos referidos pelo tribunal conduzirem necessariamente a uma decisão de sentido oposto.”

Esta crítica do recorrente à sentença recorrida não tem razão de ser. Nomeadamente, os trechos da sentença a propósito citados nas alegações não contêm qualquer contradição lógica entre si e com o sentido em que a causa foi decidida, contradição essa que o próprio recorrente não identifica com rigor. O recorrente invoca a nulidade da sentença, mas não cuida de fundamentar devidamente tal invocação.

Não se verifica, pois, a nulidade da sentença recorrida que o recorrente invoca.

2 – Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

O recorrente interpôs recurso da sentença, apresentando as respectivas alegações. Após a apresentação, pelos recorridos, das suas contra-alegações, o tribunal a quo proferiu despacho com o seguinte teor: “Uma vez que o recorrente impugna decisão sobre matéria de facto com fundamento em depoimentos de testemunhas e declarações de parte, mostrando-se tais meios de prova gravados, convida-se o recorrente, no prazo de 10 dias, a indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, nos termos do artigo 640.º, n.º 2, al. b), do CPC.”

Este despacho é ilegal, por duas razões.

Em primeiro lugar, porque a competência para o convite ao aperfeiçoamento do conteúdo das alegações de recurso, nos termos em que a lei o permite, cabe ao tribunal ad quem, mais precisamente ao relator, e não ao tribunal a quo, como resulta dos artigos 639.º, n.º 3, 641.º, n.ºs 1 e 2, e 652.º, n.º 1, al. a), do CPC[1].

Em segundo lugar porque, tratando-se do incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC, como foi o caso, nem sequer ao tribunal ad quem é permitido convidar o recorrente a aperfeiçoar as alegações, como decorre dos n.ºs 1 e 2, al. a), desse artigo, ao estabelecerem que aquele incumprimento determina a imediata rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, em contraste com o regime do citado artigo 639.º, n.º 3. Sintomaticamente, o também citado artigo 652.º, n.º 1, al. a), prevê que o relator convide as partes a aperfeiçoar as conclusões das respectivas alegações nos termos do n.º 3 do artigo 639.º, mas não quando esteja em causa a falta de cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º[2].

Não obstante a evidente ilegalidade do despacho transcrito e em cumprimento do mesmo, o recorrente apresentou novas alegações, nas quais reformulou a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Todavia, nem assim o recorrente cumpriu todos os ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC.

O recorrente indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados: n.ºs 14 a 17, por um lado, e 18 a 23, por outro. Cumpriu, pois, o ónus estabelecido no n.º 1, al. a).

Em relação a cada um dos dois referidos grupos de factos, o recorrente indicou os concretos meios de prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre os referidos pontos de facto, transcrevendo os trechos que considerou relevantes e indicando os pontos da gravação onde os mesmos se encontram. Também cumpriu, portanto, os ónus estabelecidos nos n.ºs 1, al. b), e n.º 2, al. a).

Já o ónus estabelecido no n.º 1, al. c), não foi cumprido, pois o recorrente não indicou a decisão que, no seu entendimento, deve ser proferida sobre cada uma das questões de facto impugnadas, tendo-se limitado a concluir que o tribunal a quo cometeu um “erro de julgamento” e que a decisão recorrida “contém acrescidamente vício de insuficiência de prova”, sem mais.

Consequentemente, nos termos do n.º 1, não poderá o tribunal ad quem conhecer do recurso na parte em que o mesmo tem por objecto a decisão sobre a matéria de facto, mantendo-se integralmente aquela que foi fixada na sentença recorrida.

3 – Verificação dos pressupostos da usucapião:

O recorrente sustenta que o tribunal a quo devia ter concluído que ele adquiriu, através de usucapião, o direito de propriedade sobre os prédios com os números de polícia 2 e 4, pois usou, fruiu e dispôs destes últimos manifestando animus possidendi. Tanto assim foi, afirma o recorrente, que limpou e arranjou os imóveis, construiu divisões, fez uma casa de banho com esquentador e pôs janelas, utilizando os mesmos imóveis para a sua actividade profissional, armazenando materiais e tendo empregados seus a aí pernoitar durante anos. Relativamente ao tempo de duração dessa alegada posse, o recorrente observa que a data em que o tribunal a quo julgou que a mesma se iniciou, ou seja, Abril de 1998, nunca foi alegada.

A questão da verificação dos pressupostos da aquisição do direito de propriedade sobre os prédios com os números de polícia 2 e 4, pelo recorrente, através de usucapião, tem, como é óbvio, de ser apreciada à luz da matéria de facto que o tribunal a quo julgou provada e não daquela que o recorrente invoca nas suas alegações mas não integra aquela.

Os três prédios que os recorridos reivindicam constituem, no seu conjunto, um armazém, como resulta dos n.ºs 1 e 2 da matéria de facto provada. Quando, em Maio de 2017, pretenderam vender o armazém, que se encontrava bastante degradado, os recorridos souberam que ali se encontravam objectos pertencentes, uns ao recorrente, outros ao marido de uma senhora chamada (…), tendo, então, solicitado a ambos que procedessem à sua retirada. O recorrente recusou-se a fazê-lo, ao contrário da outra pessoa que guardava objectos no armazém, que prontamente acatou a solicitação feita pelos recorridos.

Está, portanto, provado que, em Maio de 2017, o recorrente não era o único ocupante do armazém. Uma outra pessoa guardava objectos neste último, à semelhança do recorrente.

Note-se que, da matéria de facto provada, não resulta que o recorrente e a outra pessoa que guardava objectos no armazém ocupassem áreas correspondentes a prédios diferentes. Resulta dos n.ºs 8, 10 e 11 daquela matéria que existiam objectos pertencentes a terceiros no interior do armazém, nomeadamente uma moto, ferramentas antigas, materiais de construção e bebidas; a moto e as ferramentas antigas pertenciam ao marido de (…); os materiais de construção e as bebidas pertenciam ao recorrente. É certo que, no n.º 18, se deu como provado que o recorrente utiliza os prédios urbanos com os artigos (…) e (…), correspondentes aos números de policia 2 e 4, desde data não concretamente apurada do ano de 1998, mas posterior a Abril. Porém, não ficou provado que apenas o recorrente utilizasse esses dois prédios. Ao invés, a ocupação levada a cabo pelo marido de (…) é sempre reportada à globalidade do armazém e não apenas ao prédio com o número de polícia 6 – cfr. os n.ºs 8 e 10 a 14.

Por si só, este facto põe em causa a tese do recorrente. Este não exercia, sobre o armazém, os poderes típicos do direito de propriedade, enunciados no artigo 1305.º do CC, pois a utilização por ele levada a cabo não ocorria com exclusão de outrem. Tal facto inculca que se tratava de um armazém ao abandono que foi ilicitamente ocupado por duas pessoas, que se aproveitaram da inércia dos seus proprietários, sendo o recorrente uma delas. Esses dois ocupantes do armazém coexistiram pacificamente até que um deles, a pedidos dos recorridos, cessou a sua ocupação.

Consequentemente, o recorrente não pode ser considerado um verdadeiro possuidor, no sentido previsto no artigo 1251.º do CC. Ele não exercia os poderes típicos do direito de propriedade sobre o armazém (corpus), nem, logicamente, actuava com a intenção de se comportar como tal (animus).

Nada, na matéria de facto provada, permite ir além da conclusão que acabámos de enunciar. Não o permite, nomeadamente, a circunstância de o recorrente ter realizado obras de reparação não concretamente apuradas no armazém. Aliás, tratou-se, certamente, de obras insignificantes, pois, como anteriormente referimos, o armazém encontra-se bastante degradado. As mesmas obras são perfeitamente explicáveis pelo contexto de utilização duradoura e desconhecida dos recorridos que o recorrente fazia do armazém. Em contraponto, eram os recorridos, como titulares inscritos no registo, quem pagava o IMI relativo ao armazém.

Ainda que se tivesse provado o corpus da posse invocada pelo recorrente sobre a área do armazém correspondente aos prédios com os números de polícia 2 e 4, a falta de prova do animus (cfr. os n.ºs 18, parte final, e 29 da decisão sobre a matéria de facto) sempre inviabilizaria o reconhecimento daquela posse.

Não podendo o recorrente ser considerado possuidor do armazém, nomeadamente dos prédios com os números de polícia 2 e 4 que o constituem, nunca poderia adquirir o direito de propriedade sobre o mesmo mediante usucapião, independentemente do tempo de duração da situação descrita (artigos 1287.º e 1290.º do CC).

Por outro lado, mesmo na hipótese de o recorrente exercer uma posse (ou seja, com corpus e animus) nos termos do direito de propriedade sobre o armazém, não teria decorrido o prazo de usucapião, que seria, no caso, de 20 anos, como se demonstrou na sentença recorrida e o recorrente não questiona. A única objecção que, a este propósito, o recorrente suscita, é a de a data em que o tribunal a quo julgou que a sua ocupação do armazém se iniciou (Abril de 1998) nunca ter sido alegada. Na realidade, essa data não foi alegada, mas foi aquela que, de acordo com a sentença recorrida, resultou da prova produzida, nos termos descritos na respectiva fundamentação de facto, constituindo um menos relativamente à alegação da recorrente segundo a qual começou a ocupar o armazém em princípios de 1997. A objecção feita pelo recorrente não tem, pois, razão de ser.

Ficam, assim, refutados todos os argumentos apresentados pelo recorrente com vista a sustentar a sua tese de que adquiriu o direito de propriedade sobre os prédios com os números de polícia 2 e 4 mediante usucapião. Resumindo, quer por não ser possuidor desses prédios, quer por não ter decorrido o prazo para o efeito exigido pelo artigo 1296.º do CC, aquela aquisição não ocorreu. Consequentemente, o recurso deverá ser julgado improcedente.


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Sumário: (…)

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Decisão:

Delibera-se, pelo exposto, julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.

Notifique.


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Évora, 14 de Julho de 2020

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

Mário Rodrigues da Silva

José Manuel Barata



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[1] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª edição, p. 148, nota 6 ao artigo 639.º.

[2] António Abrantes Geraldes, obra citada, p. 157, anotação 4 ao artigo 640.º.