Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1485/19.T8EVR-A.E1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
PERICULUM IN MORA
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A doutrina e a jurisprudência consideram como requisitos do decretamento de providências cautelares não especificadas: a probabilidade séria da existência do direito invocado; o fundado receio de que outrem lhe cause lesão grave e de difícil reparação; a adequação da providência solicitada à situação de lesão iminente do aludido direito; a não existência de providências específicas para acautelar esse direito; não exceder o prejuízo resultante da providência o dano que com ela se quer evitar.
2. Enquanto a aparência do direito se basta com um juízo de verosimilhança ou de probabilidade, o requisito de fundado receio de lesão grave e irreparável ou de difícil reparação exige, pelo contrário, um juízo de certeza - valorado em função das particularidades de cada caso em concreto - que se revele suficientemente forte para convencer o julgador acerca da necessidade de decretamento da providência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. 1485/19.T8EVR-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

I- RELATÓRIO:

(…) instaurou o presente procedimento cautelar comum contra (…), pedindo que:
1) Fosse reconhecida a existência de uma sociedade irregular entre requerente e requerido na exploração agropecuária e, consequentemente, reconhecer-se que o requerente é conjuntamente com o requerido, dono e legítimo possuidor das cabeças de gado bovino existentes nas Herdades da (…) e da Casa Branca do (…), abstendo-se o requerido de fazer qualquer tipo de negócio sobre o mesmo sem o consentimento do requerente;
2) Fosse o requerido condenado a abster-se de qualquer conduta que impeça o requerente de aceder às referidas herdades/explorações e ali exercer a atividade agropecuária, de tratar do gado e transportar cabeças de gado para outros locais, designadamente para a “Herdade da (…)”;
3) Fosse o requerente reconhecido como único dono e legítimo possuidor do pivot de 5 torres existente na Herdade da (…), abstendo-se o requerido de o usar ou dispor do mesmo seja de que forma for.
Alegou em síntese que é pai do requerido e que em 1983 tomou de arrendamento a herdade Casa Branca do (…), onde tinha as cabeças de gado de que era proprietário. A partir de 2003 passou também a ter gado bovino da Herdade da (…), cuja propriedade era sua e da sua mulher. Devido a avultadas multas administrativas, foi aconselhado a transferir, ficticiamente, para os seus filhos, a propriedade da Herdade da (…), o que veio a fazer em 2007. Por volta de 1993/1994, devido a projetos de jovens agricultores que começaram a surgir, o requerente passou o arrendamento da herdade da Casa Branca do (…) para o requerido, para que o mesmo se pudesse candidatar aos mesmos. Também as explorações detidas pelo requerente nas herdades e cabeças de gado tiveram que passar para o nome do requerido, em termos de registo. Quem continuou durante muitos anos a fazer despesas com a herdade e exploração, foi o requerente, que sempre se manteve na posse das herdades, aí exercendo a sua atividade agropecuária, designadamente de criação e venda de gado bovino. Por volta de 1995/1996, o requerente propôs sociedade ao filho para passarem a explorar em conjunto a atividade. Todo o investimento nas herdades, designadamente máquinas agrícolas, equipamentos e alfaias agrícolas, um pivot de 5 torres, searas, tratores e outros pequenos instrumentos afetos à atividade e que ainda aí se encontram, foram compradas com dinheiro do requerente. O requerido nunca entregou qualquer quantia ao requerente pelas mesmas, nem fez qualquer investimento na atividade com capitais próprios. Desde há cerca de aproximadamente um ano que o requerido, contra a vontade do requerente o vem afastando das explorações, procurando gerir a atividade sozinho, sendo que recentemente, vem impedindo o requerente de aceder às herdades, de tratar e movimentar o gado ou de fazer negócios com o mesmo. Embora saiba que o gado também é pertença do pai, o requerido continua a vender e comprar gado sem lhe dar qualquer conhecimento ou prestar contas, agindo como seu único e exclusivo dono, que não é. É da atividade agropecuária que sempre retirou os rendimentos à sua sobrevivência.
O requerido deduziu oposição, impugnando a maior parte dos factos alegados na petição inicial, sustentando em síntese que não reconhece a existência de qualquer sociedade com o requerente.
Concluiu, pedindo que seja julgado improcedente o procedimento cautelar instaurado por não provado, devendo o requerido ser absolvido dos pedidos.
Realizou-se audiência final.
Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
· “Julgo a presente providência cautelar parcialmente procedente, condenando o requerido a reconhecer que o requerente é conjuntamente com aquele, dono e legitimo possuidor das cabeças de gado bovino existentes nas Herdades da (…) e da Casa Branco (…), devendo abster-se de impedir que o requerente aceda às referidas herdades, que trate do gado e transporte parte das cabeças de gado para a “Herdade da (…)”.
· Julgo improcedentes as restantes pretensões, peticionadas pelo requerente.
· Não dispenso o requerente do ónus de propositura da ação principal.
Custas pelo requerente (art.º 527º do CPC).
Registe e notifique”.

Inconformado com o decidido, veio o requerido interpor recurso da matéria de facto e da matéria de direito, com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
a) No apuramento da factualidade julgada indiciariamente provada correspondente ao ponto 8 da fundamentação de facto, o Tribunal "a quo" atendeu apenas às declarações de parte do requerente;
b) A restante prova testemunhal arrolada pelo requerente a que o Tribunal atendeu, produzida por (…), (…) e (…), apenas corroborou, no entender do Tribunal, as ditas declarações de parte quanto aos negócios de venda do gado.
c) Assim, a fundamentação do Tribunal apenas se pode ater à questão de quem aparecia como vendedor – O requerente.
d) Quanto à prova testemunhal produzida por (…), outro filho do requerente, arrolado pelo requerido, cujo depoimento se requererá infra que seja reapreciado, o Tribunal "a quo" entendeu que a mesma rebateu, por completo, a tese do requerente.
e) Entendeu, assim, o Tribunal que a "simples ajuda" por parte do requerente ao requerido não seria compatível com os relatos das testemunhas, mas, no entanto, como se disse supra, citando a decisão posta em crise, as testemunhas (…), (…) e (…) apenas corroboraram a questão relativa a quem aparecia como vendedor do gado, o requerente, que agia como se fosse o seu dono, pelo que não se impugnam.
f) O depoimento de (…) não "rebateu por completo" a tese do requerido, pelo que não poderia o Tribunal entender, como entendeu, que "este testemunho" tivesse tido essa virtude!
g) Impugna-se, por isso, a decisão sobre a matéria de facto nessa parte, que não poderia extrair do que foi dito o que extraiu, requerendo-se a reapreciação da prova gravada no sentido de retirar tais conclusões do seu teor.
h) Por outro lado, o Tribunal "a quo" não apreciou devidamente o teor da declaração de parte do requerido que impunham decisão diversa, desvalorizando-a, o que conduziu a errada decisão quanto à matéria de facto.
i) Deve, assim, ser reapreciada a decisão relativa à matéria de facto, devendo considerar-se tais declarações tão credíveis quanto as produzidas pelo requerente, o que implica que as mesmas sejam igualmente consideradas consentâneas com as regras da lógica e da experiência comum, porque não são extravagantes nem invulgares as afirmações que delas resultam, o que se requer.
p) Tal consideração em nada contende com a aquisição de um Pivot por parte do requerente para instalação numa propriedade sua, nem com o arrendamento de uma propriedade por parte deste, que sempre poderá usar tais equipamentos para cultivo de pastagens, como, aliás, é usual na região.
q) Na verdade, é sabido que a maior parte das propriedades do Alentejo não tem sequer uma cabeça de gado!
r) Quanto ao facto 18 "A circunstância de não ter gado a pastar na Herdade da (…) põe em risco a subsistência do arrendamento por falta de utilização", considerado indiciariamente provado na decisão ora posta em crise, o mesmo não corresponde à verdade, uma vez que o dispositivo legal utilizado para fundamentar a decisão não impõe a exploração pecuária, antes determina que o senhorio só pode pedir a resolução do contrato se o arrendatário não utilizar apropriadamente e com regularidade o prédio ou o usar o mesmo para fins diferentes do estipulado no contrato, desconhecendo-se o que este estipula quanto à sua utilização e não se sabendo, sequer, se é apropriado para o apascentamento de gado.
s) Razão pela qual deve ser considerado um facto não provado, nem sequer indiciariamente.
t) Não se encontram, assim, preenchidos os requisitos legais para o presente procedimento cautelar proceder, não existindo qualquer prova da existência do direito tutelado, uma sociedade civil, nem sequer o fundado receio de que ao requerente seja causada lesão grave e dificilmente reparável, já que não é o facto de não se movimentar gado, especificamente o gado em apreço, para aquele prédio que conduzirá à denuncia do contrato de arrendamento em questão, uma vez que tal prédio poderá ser utilizado pelo requerente para qualquer outro fim agrícola, como é do conhecimento comum, sendo sim invulgar que um contrato de arrendamento rural imponha o apascentamento de gado.
Pelo exposto, com os fundamentos invocados, com o Douto Suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora, nos termos da lei e pelas razões aduzidas, vem requerer a V. Excelências, se dignem revogar a decisão recorrida, julgando totalmente improcedente o presente procedimento cautelar, dele absolvendo o ora Recorrente.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II- OBJETO DO RECURSO:
Nos termos dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 663º, nº 2, do CPC é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objeto do recurso e se delimita o seu âmbito, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Este Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, desde que prejudicadas pela solução dada ao litígio.
Face ao alegado nas conclusões das alegações, as questões a apreciar e a decidir são:
i) Impugnação da decisão da matéria de facto;
ii) Se verificam os requisitos para decretamento da providência cautelar não especificada requerida.

II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Factos considerados indiciariamente provados em 1ª instância:
1. O requerente é pai do requerido.
2. O requerente, com 89 anos de idade, dedicou-se toda a vida à atividade de criação de gado, designadamente de gado vacum.
3. Em 1983, a sociedade de que o requerente era sócio gerente, sociedade (…) e Irmãos, Lda., tomou de arrendamento a herdade denominada por Casa Branca (…), onde tinha as cabeças de gado de que era proprietário.
4. O requerido, que sempre teve gosto pela atividade desenvolvida pelo pai, ajudava-o na mesma.
5. Em 1994, devido a projetos de jovens agricultores que começaram a surgir, a sociedade de que o requerente era sócio gerente, Sociedade (…) e Irmãos, Lda., passou o arrendamento da herdade da Casa Branca (…) para o requerido, para que este pudesse candidatar-se aos mesmos.
6. Também as cabeças de gado que o requerente e a sociedade tinham, à data, tiveram de passar para o nome do requerido.
7. Não obstante as alterações relatadas em 5) e 6), o requerente continuou a exercer a atividade agropecuária como exercia antes dessas alterações, criando e vendendo o gado bovino.
8. Por volta de 1995/1996, apesar de nunca terem formalizado qualquer acordo de sociedade, pai e filho passaram a explorar e exercer a atividade conjuntamente, repartindo os lucros.
9. Trabalhavam na base da confiança, respeito e boa-fé que sempre existiu entre ambos.
10. Foi o requerente quem continuou a vender gado a terceiros.
11. A partir de 2003 o requerente passou também a ter gado bovino na denominada Herdade da (…), cuja propriedade adquiriu, juntamente com a sua mulher, naquele ano.
12. O requerente adquiriu, para aquela herdade, um pivot de rega, de 5 torres, que ainda hoje se encontra na Herdade da (…).
13. Devido a avultadas multas administrativas que lhe haviam sido aplicadas, o requerente transferiu para os seus filhos, por doação, a propriedade da Herdade da (…), o que veio a fazer em 2007.
14. Apesar da doação, o requerente continuou a exercer a atividade agropecuária naquela herdade.
15. Desde há cerca de, aproximadamente, um ano que o requerido, contra a vontade do requerente, o vem afastando das explorações e da atividade agropecuária.
16. Sendo que, desde o início do ano de 2019, vem impedindo o requerente de tratar e movimentar o gado ou de fazer negócios com o mesmo.
17. Em abril de 2019 chegou a chamar a GNR quando o requerente tentou carregar algum gado para uma herdade (Herdade da …) de que foi reconhecido como arrendatário por sentença proferida no âmbito dos embargos de terceiro que deduziu e que correm termos pelo Juízo de Execução de Montemor-o-Novo sob o n.º 2453/11.2TBEVR-C.
18. A circunstância de não ter gado a pastar na Herdade da (…) põe em risco a subsistência do arrendamento por falta de utilização.
19. O requerido continua a vender e a comprar gado sem lhe dar qualquer conhecimento ou prestar contas, agindo como seu único e exclusivo dono.
20. É da atividade agropecuária que o requerente retira e sempre retirou a maioria dos seus rendimentos.
21. O requerente aufere uma pensão de reforma.

Factos considerados indiciariamente não provados em 1ª instância:
A. Por volta de 1993/1994, o requerente era proprietário de mais de 300 cabeças de gado bovino.
B. Entre 1994/1995 o requerente tinha entre 400 e 500 cabeças de gado, algumas compradas por si e outras já fruto da reprodução das originárias.
C. Em 2007, entre as herdades da (…) e da Casa Branca (…), requerente e requerido tinham, pelo menos, 300 cabeças de gado bovino, a maioria delas compradas apenas pelo requerente.
D. O requerente só tem uma pensão de reforma de € 357,00.

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Vejamos, então, as questões suscitadas no recurso.
i) Impugnação da decisão da matéria de facto:
O Recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto incluída na decisão recorrida, considerando que os factos 8 e 18 indiciariamente dados como provados, devem ser dados como não provados.
De harmonia com o disposto no art.º 662º, nº 1, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
No âmbito da impugnação da decisão de facto de uma providência cautelar, a reapreciação da decisão proferida pela 1ª instância visa apurar se determinados factos foram incorretamente julgados, isto é, se forem indevidamente considerados indiciariamente provados, devendo ser julgados indiciariamente não provados, ou inversamente, se deveriam ter sido considerados indiciariamente provados e não foram.
A sentença recorrida baseou a sua decisão sobre a matéria de facto em acordo das partes, documentos, declarações de parte e em depoimentos de testemunhas, registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática (media studio).
Conforme refere Manuel Capelo (i) “a possibilidade da sua reapreciação em recurso traz consigo o desafio de, sempre que se julguem os factos na Relação, cada desembargador se não colocar no papel de julgador de primeira instância que já foi seu, mas antes no de julgar o que lhe é apresentado numa mundividência distinta e que é definida e caracterizada por um distanciamento da realidade do julgamento, impossível de encurtar, e despojada de todos “os aspetos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas são percecionados, apreendidos, interiorizados ou valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores”.
Procedeu-se à análise dos documentos juntos aos autos e à audição integral dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte do requerente e do requerido.
Quanto ao facto constante do ponto 8 - “Por volta de 1995/1996, apesar de nunca terem formalizado qualquer acordo de sociedade, pais e filho passaram a explorar e exercer a atividade conjuntamente, repartindo os lucros”.
A sentença recorrida fundamentou a sua convicção relativamente a este ponto da seguinte forma:
“Quanto aos restantes factos indiciariamente provados (nos quais se inclui o facto 8), os mesmos Quanto aos restantes factos indiciariamente provados (com excepção o da facto 18), os mesmos resultaram das declarações de parte do requerente, muito emotivas mas bastante credíveis, corroboradas na parte respeitante aos negócios de venda do gado pelas testemunhas (…), (…) e (…) tendo estas testemunhas corroborado a circunstância de sempre terem conhecido o requerente no negócio do gado, e de ser ele quem diligenciava pela venda do gado criado por ele e pelo filho, agindo nesses negócios como se de um verdadeiro dono se tratasse, nunca tendo – em nenhum dos negócios a que estas testemunhas assistiram – pedido autorização ao filho nos contratos de venda que acabou por celebrar; pela testemunha (…), filho do requerente, e que se encontra desavindo com o pai há algum tempo, não se tendo comprometido muito com o seu testemunho, mas não deixando de referir que o seu pai é uma pessoa com “personalidade difícil”, que sempre quis mandar em tudo, e que nunca aceitou “esmolas” de terceiros, tendo este testemunho rebatido, por completo, a ideia que o requerido, inicialmente, tentou “passar a este Tribunal”, de que o pai era sustentado pelo requerido, que todos os meses lhe dava o montante necessário para sobreviver e que desde 1994 – data em que a sociedade gerida pelo pai, (…) e Irmãos, Lda., deixou de ter atividade – o pai não tem quaisquer cabeças de gado, nem explora qualquer atividade agropecuária, tendo passado “apenas” a ajudar o requerido na criação e venda do gado que, na ótica do requerido era, desde tal data, exclusivamente de terceiros, que adquiriram o gado e, através de um negócio atípico, permitiram que o requerido adquirisse metade das cabeças de gado originadas por tais animais. Contudo, não só esta “simples ajuda” não é compatível com os relatos das testemunhas ouvidas, como não é, igualmente, compatível, com a circunstância de o requerente ter comprado, em 2003, a Herdade da (…), e mais tarde, um pivot de rega de 5 torres (algo que rondaria os milhares de euros), e ter arrendado a Herdade da (…). Todos estes dados objetivos, que não são negados pelo requerido, são muito melhor explicados pela versão trazida aos autos pelo requerente, isto é: que o mesmo tinha uma exploração agropecuária, que era desenvolvida pela sociedade (…) e Irmãos, Lda., de que o requerente era sócio gerente e que, a partir de 1994, com vista a candidatar-se aos projetos, para jovens agricultores, da União Europeia, colocou em nome do requerido “todo o negócio” que anteriormente a sociedade (…) e Irmãos, Lda. levava a cabo: passou para o requerido o arrendamento da herdade (…) e passou para o nome do requerido todas as cabeças de gado existentes, tendo mantido a mesma atividade, em termos idênticos à que anteriormente exercia com a sociedade “(…) e Irmãos, Lda.”, passando a existir uma sociedade informal entre ele e o filho – tratando o filho de toda a parte burocrática da exploração, e o requerente da criação e venda de gado. Só este “enquadramento factual” explica que em 2003 o requerente tivesse adquirido a Herdade da (…) , e mais tarde um pivot de rega (que, sabemos, tem um valor avultado) e que em 28/08/2008 (de acordo com sentença de embargos de terceiro proferida no proc. 2453/11.2TBEVR-C) tivesse celebrado um arrendamento rural da Herdade da (…), onde se encontrava o gado de ambos (pertença desta sociedade informal) e cuja titularidade, do pai e do filho, foi confirmada pelo requerido, em depoimento testemunhal, no âmbito do processo 2453/11.2TBEVR-C.
Pelo exposto, o Tribunal considerou muito mais credível a versão dos factos apresentada pelo requerente – porque mais consentânea com as regras da lógica e da experiência comum, atentos os factos que já se encontravam assentes e admitidos pelo requerido”.
Cumpre decidir:
Tendo por base a audição integral dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte, entendemos que este ponto da matéria de facto foi corretamente julgado, encontrando-se devidamente fundamentado de acordo com a prova produzida. Na verdade, as declarações de parte do requerente e os depoimentos das testemunhas, (…), (…), (…), permitem considerar indiciariamente provada esta factualidade.
Por fim quanto ao facto constante do ponto 18 - “A circunstância de não ter gado a pastar na Herdade da (…) põe em risco a subsistência do arrendamento por falta de utilização”.
A sentença recorrida fundamentou a sua convicção relativamente a este ponto da seguinte forma:
“Quanto ao facto 18), o mesmo decorre da circunstância do não uso do terreno, no caso do arrendamento rural, ser um dos fundamentos que permite a resolução do contrato de arrendamento rural, nos termos do art.º 17º/2, al. c), do DL nº 294/2009, de 13 de outubro”.
Cumpre decidir:
Na decisão sobre a matéria de facto apenas devem constar os factos provados e os factos não provados, com exclusão de afirmações genéricas, conclusivas e que comportem matéria de direito.
Na verdade, dispõe o art.º 607.º, n.º 4, do CPC, “Na fundamentação (da sentença) o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (…)” – os factos, repete-se, que não conclusões, generalidades ou matéria de direito. Assim sendo, e por se entender que o ponto 18 contém uma conclusão, elimina-se o mesmo do elenco dos factos indiciariamente provados.

ii) Se verificam os pressupostos para o decretamento da providência cautelar não especificada requerida:
Estando em causa um procedimento cautelar comum, no qual é requerido o decretamento de providência cautelar não especificada, cumpre atender ao regime constante dos artigos 362º a 375º do Código de Processo Civil.
Dispõe o artigo 362º do CPC:
1- “Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
2- O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
3- Não são aplicáveis as providências referidas no nº 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por algumas das providências tipificadas no capítulo seguinte.
4- Não é admissível na dependência da mesma causa, a repetição da providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado.
Por seu turno, preceitua o art.º 368º
A doutrina e jurisprudência têm esquematizado os requisitos do decretamento da providência cautelar não especificada, a saber:
a) Probabilidade séria (“fumus boni júris”), embora colhida a partir de análise sumária (“summaria cognitio”) e de um juízo de verosimilhança, de o direito invocado e a acautelar já existir ou de vir a emergir de ação constitutiva, já proposta ou a propor;
b) Fundado e suficiente receio de que outrem, antes de a ação ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável (“periculum in mora”) a tal direito (portanto, que a lesão não se tenha consumado);
c) Concreta adequação (ou potencialidade) da providência (como medida de tutela provisória) para remover a situação de lesão eminente e assegurar a efetividade do direito ameaçado;
d) Não existência na lei de outro tipo de providência específica que o acautele (principio da legalidade das formas processuais);
e) Que o prejuízo dela resultante para o requerido não exceda consideravelmente o dano que o requerente através dela pretende evitar (ii).
No que concerne ao requisito da probabilidade séria da existência, na titularidade da requerente, do direito invocado, considerou o tribunal a quo, que o mesmo está preenchido nos termos que se transcrevem “na medida em que os factos indiciariamente provados fazem pressupor a existência de uma sociedade civil entre pai e filho. Diz-nos o art.º 980º do CCivil que “Contrato de sociedade é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa atividade. Atenta a matéria considerada provada, verifica-se que tanto requerente como requerido, se obrigaram a contribuir com bens (gado, pivot, herdades, etc.) e serviços (criação e venda de gado) para o exercício da atividade agropecuária levada a cabo por ambos, a fim de beneficiarem- ambos- dos lucros dessa atividade, estando assim verificados os pressupostos desta figura. Pelo exposto, e de acordo com o regime aplicável às sociedades civis, verifica-se que ambos (requerente e requerido) tinham/têm a administração dos bens que fazem parte da sociedade (art.º 985º/1 “Na falta de convenção em contrário, todos os sócios têm igual poder para administrar”), não podendo o requerido obstar a que o requerente utilize os bens da sociedade para os fins da própria sociedade (criação e venda de gado)”.
O Recorrente entende que não existe qualquer prova do direito tutelado, uma sociedade civil.

Cumpre decidir:
São elementos do contrato de sociedade civil:
-Pessoas-duas ou mais pessoas (que se obrigam);
-Objeto-bens ou serviços (com que contribuem),
-Função eficiente-obrigação (de contribuição);
-Função económico-social-cooperação-contribuição para o exercício em comum de certa atividade;
-Circunstância (no caso, a finalidade da função económico-social) -finalidade de repartição de lucros (iii).
O elemento essencial e específico de uma sociedade, ainda que irregular, é a chamada " affectio societatis ", ou seja, a intenção de cada um se associar com outro ou outros, para formação de uma pessoa coletiva distinta da de cada um deles (iv).
No caso sub judice, todos os elementos supra descritos estão presentes nos factos dados como provados: duas pessoas (requerente e requerido) obrigaram-se a contribuir com bens (gado, pivot, herdades) destinados à exploração e exercício conjunto da atividade agropecuária, para obtenção e repartição de lucros pelos dois.
Relativamente ao prejuízo sério e dificilmente reparável entendeu a sentença recorrida que o mesmo existe para o requerente, devido à circunstância de o requerido o impedir de movimentar parte do gado para a Herdade da (…), ponto desta forma em risco o fim desse contrato de arrendamento rural, podendo dar azo à resolução do referido contrato e à perda daquela herdade para apascentar o gado desta “sociedade informal”.
O Recorrente entende que não se verifica o fundado receio de que ao requerente seja causada lesão grave e dificilmente reparável, já que não é o facto de não movimentar gado, especificadamente o gado em apreço, para aquele prédio que conduzirá à denúncia do contrato de arrendamento em questão, uma vez que tal prédio poderá ser utilizado pelo requerente para qualquer outro fim agrícola, como é do conhecimento comum, sendo sim invulgar que um contrato de arrendamento rural imponha o apascentamento de gado.

Cumpre decidir:
“Um dos principais fundamentos para o recurso à via cautelar reside no fundado receio de que outrem cause uma lesão grave e irreparável ou de difícil reparação de um determinado direito, quer pelos danos que possam advir dessa conduta, quer pela demora na tutela definitiva desse direito.
O periculum in mora é constituído por dois elementos essenciais: a demora e o dano decorrente dessa demora.
Relativamente à demora, o procedimento cautelar visa proteger o justo receio de alguém se ver prejudicado por uma conduta de terceiro, inquietação que poderia ser agravada de forma efetiva, com as delongas normais dum pleito judicial.
Já no que concerne ao dano, a providência cautelar só pode ser decretada desde que este seja grave e irreparável ou de difícil reparação, isto é, quando não seja viável a reintegração do direito de forma específica ou por equivalente no decurso de um juízo de mérito” (v).
A gravidade deve se aferida tendo em conta a repercussão na esfera jurídica do interessado.
“Para que o recurso à tutela cautelar possa ser considerado justificado é ainda necessário que o periculum in mora seja atual e iminente.
Em síntese, visando a providência cautelar evitar a lesão de um direito, esta não pode ser decretada, porque injustificada, se essa lesão já se tiver consumado, salvo se essa lesão fundamentar o receio de ocorrência de outras lesões idênticas e futuras, a produção de lesões de natureza continuada ou repetida ou o agravamento do dano. Isto porque a tutela cautelar pressupõe a alegação e demonstração de um “ato atual ao momento da entrega do requerimento”, de que irá ter lugar um “ato futuro, por parte do requerido, que será um ato ingerente, relevado pelos seus efeitos de facto”, bem como da existência de um nexo de causalidade entre o ato atual e o ato futuro.
No que concerne aos critérios que devem nortear a atuação do julgador na apreciação deste requisito, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a entender que não bastam simples dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ou precipitados, assentes numa apreciação ligeira da realidade.
Com efeito, enquanto a aparência do direito se basta com um juízo de verosimilhança ou de probabilidade, o requisito do fundado receio de lesão grave e irreparável ou de difícil reparação exige, pelo contrário, um juízo de certeza – valorado em função das particularidades de cada caso em concreto – que se revele suficientemente forte para convencer o julgador acerca da necessidade de decretamento da providência, cabendo ao requerente a demonstração da gravidade do dano e da sua natureza irreparável ou de difícil reparação.
Por conseguinte, uma providência cautelar será injustificada se o periculum in mora nela invocado fundar-se num juízo hipotético, genérico, abstrato, futuro ou incerto, ou num receio subjetivo, sustentado em meras conjeturas.
O periculum in mora pressupõe, assim, um juízo qualificado ou um temor racional, isto é, deve assentar em factos concretos e consistentes que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e a atualidade da ameaça, bem como a necessidade de serem adotadas medidas urgentes, que permitam evitar o prejuízo. O mesmo é dizer que só a presença de um prejuízo atual, concreto e real, reconhecido como efetivamente grave, iminente e irreparável, resultante da demora da sentença definitiva de mérito, pode justificar o acolhimento do pedido apresentado pela via da urgência. Exige-se, no fundo, um juízo de probabilidade “forte e convincente”, a ser valorado pelo julgador segundo um critério objetivo” (vi).
Ora, revertendo ao caso em apreço, cumpre dizer, desde já, não decorre da matéria de facto indiciariamente provada factos concretos e consistentes, que permitam, afirmar com objetividade, a seriedade e a atualidade da ameaça.
Discordamos assim da sentença recorrida quando entendeu que devido à circunstância de o requerido impedir o requerente de movimentar parte do gado para a Herdade da (...), põe desta forma em risco o fim do contrato de arrendamento rural relativo a essa herdade, podendo dar azo à resolução do referido contrato e à perda daquela herdade para apascentar o gado desta “sociedade informal”.
Não é, pois, possível justificar o periculum in mora com a possibilidade de “dar azo à resolução do contrato de arrendamento rural e à perda da herdade para apascentar o gado da sociedade informal, porquanto trata-se de um juízo hipotético, genérico, abstrato, futuro ou incerto, ou, num eventual receio subjetivo do ponto de vista do requerente.
Em suma, não se mostra verificado este pressuposto, pelo que a sentença deve ser revogada e substituída por outra, que julgue improcedente o presente procedimento cautelar, com a consequente absolvição do requerido dos pedidos formulados.

Sumário (art.º 663º, nº 7, do CPC):
(…)

V- DECISÃO:
Com fundamento no atrás exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e substituição por outra que julga improcedente o presente procedimento cautelar e absolve o requerido dos pedidos deduzidos contra si.
Custas pelo Apelado (art.º 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC).
Évora, 21 de Novembro de 2019
Mário Rodrigues da Silva - relator
José Manuel Barata
Conceição Ferreira

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(i) Processo Civil – Julgamento da matéria de facto em segunda instância, uma história “cem futuro”, p. 53, in Estudos em Comemoração dos 100 anos do Tribunal da Relação de Coimbra, Almedina.
(ii) Ac. do TRG de 21-09-2017, proc. 1483/17.5T8BCL.G1, relator José Amaral, www.dgsi.pt.
(iii) Higina Castelo, Sociedade irregular. Contrato de sociedade. O acordo a que se reporta o artigo 36.º, 2, do Código das Sociedades Comerciais – Natureza e validade, verbo jurídico, págs. 9/10, www.verbojuridico.net.
(iv) Ac. do STJ de 8-11-2005, 05A2740, relator Azevedo Ramos, www.dgsi.pt.
(v) Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2015, Almedina, pp. 197, 198, 202.
(vi) Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2015, Almedina, pp. 206-213.