Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
880/12.7TALLE.
Relator: FELISBERTO PROENÇA DA COSTA
Descritores: VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
COMPROPRIETÁRIO
CHAVE FALSA
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - O portador do bem jurídico tutelado pelo crime de violação de domicílio é aquele a quem assiste o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação, seja qual for o seu fundamento jurídico, desde que aquela posição tenha sido adquirida de forma conforme ao direito.
2 - Comete o crime de violação de domicílio previsto no n. 1 do artigo 190º do C.P. o comproprietário não residente.

3 - Para os efeitos do n. 3 do artigo 190º do C.P. são chaves falsas - como estas são definidas pelo art.º 202.º, al.ª f), II, do Cód. Pen. – as chaves e o comando verdadeiros usados sem autorização do residente.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
Nos presentes autos, com o n.º 880/12.7TALLE., a correrem termos pelo Tribunal de L- Instrução Criminal -, NM, constituída assistente nos autos, veio, no seguimento do despacho de arquivamento do Ministério Público e ao abrigo do que se dispõe no art.º 287.º, n.º 1, al,ª b), do Cód. Proc. Pen., requerer a abertura da instrução para, em sua decorrência, virem ser Pronunciados os arguidos EJM, DM e AS pela prática de um Crime de Violação de Domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Pen., e de um crime de Furto, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 204.º, n.º 1, al.ª f), 22.º e 23.º, n.º 1, do Cód. Pen.

Declarada aberta a instrução, realizaram-se as diligências admitidas e ordenadas, vindo, no seu seguimento, a ter lugar o debate instrutório.

Finda a instrução, o M.mo Juiz de Instrução veio, ao abrigo do que se dispõe no art.º 308.º, n.º 2, in fine, do Cód. Proc. Pen., decidir não pronunciar os arguidos EJM, DM e AS pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal e do crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 12.º, 23.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea f), todos do Código Penal, que lhe são imputados no requerimento de abertura da instrução apresentado pela Assistente NM.

Inconformada com o assim decidido traz a assistente NM o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1- O presente recurso vem interposto do despacho de não pronúncia que foi proferido nos autos.
2- Atenta da natureza do bem jurídico protegido – protecção da reserva da vida privada – dos elementos constantes dos autos e de jurisprudência consolidada quanto a esta matéria, resulta claro que existem indícios suficientes para que os arguidos tivessem sido pronunciados pelo referido crime de violação de domicílio previsto e punido pelo artigo 190, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
3- Ao não ter decidido assim o tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 308, n.º 1, do Código de Processo Penal, e artigo 190, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e o mesmo ser substituído por decisão que pronuncie os arguidos pelo crime de violação de domicílio previsto e punido pelo artigo 190, n.ºs 1 e 3 do Código Penal, nos moldes indicados no requerimento de abertura de instrução.

Respondeu ao recurso a Magistrada do Ministério Público, dizendo:
1. Foi o presente recurso interposto da douta decisão instrutória, datada de 11 de Abril de 2014, que não pronunciou os arguidos EJM; DM e AS, pelo crime de violação de domicílio, p. e p. nos termos do art. 190º, n.º1s, 1 e 3, do Código Penal.
2. Considera a recorrente que se encontra suficientemente demonstrado que, no dia 17/02/2012, pelas 08:50 horas, os arguidos DM e AS, seguindo instruções do arguido EJM, acederam ao interior da residência da assistente sita no lote 32, Q sem o consentimento desta e contra a sua vontade, o que era do conhecimento dos arguidos.
3. Por sua vez, a Meritíssima Juiz de Instrução considerou que os arguidos, ao praticarem os factos imputados, não preencheram os elementos quer objectivos, quer subjectivos do referido ilícito.
4. No que concerne aos elementos objectivos deste crime, entendeu a Meritíssima Juiz de Instrução que a habitação em causa nos autos integra a comunhão matrimonial de bens do arguido EJM e da recorrente, tendo constituído a casa de morada de família de ambos enquanto casal. Deste modo a referida habitação era pertença de ambos, não podendo o EJM figurar como terceiro em relação a tal imóvel.
5. Assim ao entrar na referida habitação, a qual ainda lhe pertencia, a fim de lá retirar alguns bens, não violou o mesmo qualquer direito, encontrando-se na verdade a exercer um direito tão legítimo quanto o que exerce a Assistente ao ali entrar e residir.
6. Mais, ao praticar tais factos e por se encontrar convencido da legalidade da sua conduta, actuou o arguido, assim como os restantes arguidos, mesmo sem dolo, traduzindo-se este no conhecimento e vontade de praticar os elementos constitutivos do tipo.
7. E pese embora possa partilhar de uma interpretação jurídica distinta da assistente, a decisão em causa não merece qualquer censura, encontrando-se bem estruturada e fundamentada.

Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado improcedente e a douta decisão recorrida mantida na íntegra.

Também os arguidos DM e EJM responderem ao recurso, dizendo:
1. Interpôs a Recorrente recurso do douto despacho de não pronúncia do tribunal “a quo” que decidiu não pronunciar os Arguidos, ora Recorridos, limitando o objecto do seu recurso à não pronúncia dos arguidos pela prática de um crime de violação de domicílio p. e p. pelo artigo 190º, n.º 1 e 3 do Código Penal.
2. Mas não assiste razão à Recorrente.
3. Ficou provado que o imóvel onde reside a Recorrente faz parte da comunhão de bens desta com o arguido EJM.
4. Também ficou provado que os arguidos apenas tiveram acesso à garagem da moradia em causa, e não à residência propriamente dita, sendo que para o fazerem estavam munidos das chaves do portão de entrada e do comando da garagem.
5. As chaves do portão e o comando da garagem não eram falsos, e tinham sido entregues pelo arguido EJM ao seu filho, DM, bastante antes da prática dos factos dos autos.
6. Não está preenchido o elemento objectivo do crime de violação de domicílio quanto ao arguido EJM, pelo facto do imóvel ao qual pertence a garagem à qual tiveram acesso os outros dois arguidos, a seu pedido, ser um bem comum do casal – Assistente e arguido.
7. Não está preenchido o elemento subjectivo do crime de violação de domicílio quanto aos arguidos DM e AS, pelo facto de terem procedido como fizeram a pedido do arguido EM e de terem prévio conhecimento de que o imóvel a cuja garagem acederam também era propriedade daquele.
8. Muito menos se encontra preenchido o elemento objectivo da agravante prevista no n.º 3 daquela norma, pois as chaves e comando utilizados eram verdadeiros e genuínos.
9. Não violou o Tribunal a quo qualquer norma nem fez uma incorrecta aplicação do direito aos factos que foram dados como provados.

Termos em que deverão os Ex.mos. Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora negar provimento ao recurso e, consequentemente, manter a decisão recorrida, assim se fazendo a tão costumada justiça!

Nesta Instância, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É do seguinte teor o despacho recorrido (na parte que a estes autos importa):
Declaro encerrada a instrução.
I. Relatório
O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para a acção penal.
Não existem nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
Findo o inquérito o Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, proferiu despacho de arquivamento, ao abrigo do disposto no artigo 277º., n.º 2 do Código de Processo Penal, no que concerne aos factos denunciados por NM e imputados aos arguidos DM, AS e EJM, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, susceptíveis de integrar em abstracto a prática, em de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea f), ambos do Código Penal.
Inconformado com tal despacho de arquivamento, a Assistente NM veio requerer a abertura de instrução, alegando existirem nos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos de um crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal e de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 12.º, 23.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea f), todos do Código Penal.
(…)
II. Dos Factos
Factos que se indiciam suficientemente
Do conjunto da prova produzida no âmbito do inquérito e da instrução, foram recolhidos indícios suficientes da prática dos seguintes factos:
1. O Arguido EJM e a Assistente NM contraíram entre si casamento civil no dia 11 de Novembro de 1993, na República Dominicana.
2. O Arguido EJM e a Assistente NM viveram juntos na residência sita no lote 32, Q até há cerca de 4 anos a esta data, momento no qual o arguido EJM saiu dessa residência, tendo nela permanecido a Assistente.
3. A aquisição do referido imóvel encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de L, pela Ap. 45, de 2004/03/01, a favor de cit. “EJM, casado com NM no regime de comunhão geral”.
4. No dia 17 de Fevereiro de 2012, pelas 08h50m, data na qual ainda o arguido EJM e a Assistente NM se mantinham casados, o arguido DM, filho do arguido EJM, e o arguido AS, seguindo instruções do arguido EJM e aproveitando a ausência da Assistente a fim de obstar ao surgimento de conflitos, dirigiram-se à residência referida em 2. para dali retirarem do interior da garagem os bens móveis que haviam constituído o recheio de uma outra casa do arguido EJM, a fim de para aí os transportarem, o que fizeram sem o consentimento e contra a vontade da Assistente.
5. Para o efeito os arguidos DM e AS acederam àquela residência através da abertura do portão de acesso ao logradouro do imóvel e, uma vez no seu interior, procederam à abertura dos portões da garagem sita no rés-do-chão, portões esses que se encontravam fechados e dos quais o arguido DM tinha respectivamente a chave e o comando.
6. Uma vez no interior da referida garagem os arguidos DM e AS, seguindo instruções do arguido EJM começaram a proceder à remoção daqueles bens móveis que ali se encontravam, tais como um sofá vermelho, cadeiras, um colchão e um saco de golfe, para os subtrair à posse da Assistente e o arguido EJM deles se apossar.
7. Esse propósito todavia não foi conseguido, por razões alheias à vontade dos arguidos, devido à intervenção das forças policiais, que compareceram naquele local no seguimento do accionamento do alarme de intrusão, na sequência do que os arguidos DM e AS repuseram na garagem os objectos que se encontravam a remover daquele local.
8. Os arguidos DM e AS agiram com o consentimento do arguido EJM e convictos de que os bens que intentaram remover eram pertença do arguido deste e de que por tal a sua conduta não era proibida e punida por lei.
9. O arguido EJM agiu convicto de que tais bens lhe pertenciam e de que lhe assistia o direito a entrar na moradia que era sua pertença e na qual havia residido com a Assistente para daí os remover.
Factos que se não indiciam suficientemente
Dos presentes autos, com interesse para a decisão a tomar, para além dos factos supra descritos, não se indiciam suficientemente quaisquer outros factos, concretamente o mais alegado pelo arguido, designadamente não se mostram suficientemente indiciados os seguintes factos:
10. Que os arguidos DM e AS tenham actuado com o conhecimento de que agiam sem o consentimento de quem de direito.
11. Que os arguidos EJM, DM e AS actuaram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei penal.
Consideram-se os referidos factos suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados com base nos meios de prova colhidos em sede de inquérito e de instrução, analisados conjugadamente e criticamente apreciados à luz das regras da experiência comum e da normalidade dos factos da vida, designadamente com base nos seguintes elementos probatórios carreados para o processo:
Na descrição da ocorrência do accionamento do alarme da residência e diligências efectuadas nessa sequência, elaborado por JL e dirigidos à Assistente e junto a fls. 42.
No relatório elaborado pela empresa de segurança junto fls. 43 a 45.
Nos bilhetes de viagem ao estrangeiro em nome da Assistente juntos a fls. 46.
Nas fotografias de várias peças de mobiliário juntas a fls. 47 a 50, que se desconhece quando foram tiradas.
Nos comprovativos de rescisão de contratos de fornecimento de electricidade e gás à moradia em nome do Arguido EJM juntos fls. 51 e 52 que datam de 2010.
No relato de ocorrência elaborado a 17.02.2012 pela GNR (fls. 72 a 73), dando nota da deslocação dos militares LM e FV à moradia na sequência do reporte do accionamento do respectivo alarme de intrusão, onde se refere terem sido encontrados os arguidos DM, filho de um dos proprietários da moradia, e AS, condutor do veículo de caixa aberta com a matrícula NG-94-64, no interior da garagem do piso inferior carregando algumas mobílias para o interior desse veículo, tendo o arguido DM informado ter autorização de seu pai para o efeito e ter este na sua posse os comandos remotos de abertura das portas, tendo ambos abandonado o local sem subtrair qualquer objecto.
No auto de inquirição da testemunha JJ(fls. 81), de cujas declarações nada de relevo se extrai para a matéria ora em análise.
No auto de inquirição da testemunha WJ (fls. 82), que no essencial declarou ter-se deslocado à moradia no dia 17.02.2012 na sequência do accionamento do alarme de intrusão aí constatando encontrarem-se indivíduos, um jipe e uma viatura ligeira de mercadorias com algumas mobílias, tendo-se um dos indivíduos identificado como filho da proprietária da residência dizendo estar a carregar as mobílias pertença do pai a pedido deste, deixando o assunto entregue à GNR que ali se deslocou;
No auto de interrogatório do arguido AS (fls. 125 e ss.), o qual no essencial referiu que o arguido DM o contactou a solicitar a sua ajuda para ir à moradia retirar alguns objectos para levar para uma casa de seu pai em V, posto que estava para regressar e a mesma estava vazia, referindo desconhecer toda a situação que envolvia os intervenientes e que ao fazê-lo incorria em crime, confirmando ter DM ter com o comando aberto a garagem que tinha camas, sofás, cadeiras, tapetes, candeeiros e que pensa que já estiveram na casa de V e terem de lá sido retirados e colocados na garagem quando a casa foi alugada; que retirou da garagem um sofá, cadeiras e um colchão e que voltou a colocar todos os objectos no lugar após a chegada da GNR, extraindo das suas declarações ser alheio a existência de qualquer conflito e convicto de que a sua consulta nada tinha de ilícito por apenas estar a prestar um serviço a pedido do seu patrão para efectuar o transporte de bens do pai deste para outra casa do mesmo.
No auto de interrogatório do arguido DM (fls. 136 e ss.), filho do arguido EJM, o qual no essencial referiu que o pai e a Assistente se encontram em processo de divórcio e que a moradia também pertence a seu pai, sendo que este há 3 anos atrás lhe pediu para retirar toda a mobília de uma outra casa em V para a alugar a qual foi colocada na garagem da moradia em questão nos autos e que se lá deslocou para ir buscá-la a pedido de seu pai que estava para regressar estando a casa de V vazia, tendo-se lá deslocado para o efeito com o arguido AS que é jardineiro e trabalha para si e que o fez quando soube que sua madrasta na estava em casa para evitar confrontos; que abriu a garagem com o comando e dali retiraram um sofá vermelho, cadeiras, em saco de golf e pensa que um colchão; que a GNR ordenou que os pusesse no lugar e que os questionou o porquê de tal se eram de seu pai, tendo-lhe sido respondido que se não o fizesse incorria num crime, pelo que contactou o seu advogado que o aconselhou a colocar as coisas no lugar, o que fez, desconhecendo que estava a incorrer num crime, extraindo-se das suas declarações que agiu convicto de que a sua conduta nada tinha de ilegítimo pois que apenas se limitou a pedido de seu pai ir buscar bens deste para os levar para uma outra casa do mesmo.
No auto de inquirição de NM (fls. 147 e ss.), a qual no essencial referiu ser sua convicção de que os assaltantes terão aberto as duas portas das três garagens de sua residência, as quais têm ligação para o interior daquela; que foram retirados dois colchões de uma cama de um dos quartos cuja fotografia junta a fls. 150, confirmando serem os bens retratados a fls. 47 a 49 os que os arguidos já tinham carregado – sendo aqui de salientar que conforme resulta das declarações da própria se encontrava ausente de Portugal na data da ocorrência pelo que não possui conhecimento directo de tais factos, suscitando-se-nos dúvidas de que tenham sido retirados colchões de um dos quartos, quando os arguidos DM e S que admitiram ter entrado na garagem de onde foram vistos a retirar móveis negaram ter acedido ao interior da moradia e quando é notório o conflito existente entre a Assistente e EJM que admitiu ter pedido ao filho para lá ir buscar bens que considerava serem seus-; que a 16.12.2010 instalou nas portas das garagens e no portão de entrada códigos de abertura novos não sendo possível a sua abertura senão com o comando que possui, juntando cópia de relatório efectuado pela empresa que o fez, da planta da moradia e um documento a fls. 152 cuja data nada tem a ver com a dos factos em causa nos autos.
A cópia junta a fls. 159 e ss. de despacho de arquivamento proferido no processo de Inquérito n.º 000/00.0VVV, no qual é queixosa a Assistente e arguido EJM, que tinha por objecto a prática de um crime de violência doméstica e onde se descreve todo um litígio envolvendo o casal, nomeadamente quanto à moradia em causa nos autos;
A lista de objectos de fls. 189 junta pela Assistente, que refere estarem a ser alvo de furto e que se mostra já bem alongada em relação ao anteriormente pela mesma reportado;
O auto de interrogatório do arguido EJM (fls. 191 e ss.), o qual no essencial refere ter abandonado a moradia há cerca de 4 anos na sequência de inquérito que lhe foi instaurado pela prática de um crime de violência doméstica, ter pedido ao filho DM para ir buscar os móveis que se encontravam na garagem eram necessários para outra casa e eram exclusivamente dele, pois foram por ele adquiridos e o regime de casamento era de separação de bens, admitindo como possível ter também pedido para que trouxesse roupa sua e os tacos de golfe seus, sendo no seu confronto com as declarações prestadas pela Assistente em sede de Instrução notório o dissenso entre ambos quanto ao regime de bens de casamento e propriedade dos bens, extraindo-se das declarações do arguido a sua convicção de que actuou na convicção de que os bens lhe pertenciam e de que ao pedir para serem retirados daquela que fora a casa de morada de família exercia um direito seu.
A certidão permanente de fls. 231 e ss. respeitante à moradia em causa nos autos;
A cópia de documento exibido em sede de instrução pela Assistente relativo ao seu casamento, que se mostra junta a fls. 313 e ss.
As declarações tomadas à Assistente em sede de instrução, a qual no essencial referiu ter contraído matrimónio civil com o arguido EJM na Republica Dominicana e também na América, descreveu os litígios e decisões que referiu virem a ser tomadas por tribunais no estrangeiro quanto ao seu regime de bens de casamento que referiu ser de comunhão de adquiridos; que na ocasião dos factos estava na Tailândia; que tentaram tirar da garagem mobília e bens pessoais, referindo que o que estava na garagem provinha de uma outra casa adquirida em nome do arguido EJM, tratando-se de bens adquiridos em nome de ambos conforme factura que referiu ter mas que não juntou aos autos e provirem daquela casa quando a mesma foi alugada; que é ela quem reside na moradia em causa nos autos.
As declarações da testemunha WJ prestadas em sede de instrução, que no essencial referiu ter-se deslocado à moradia na sequência de reporte de disparo do alarme e que ali viu dois indivíduos a carregarem móveis que estavam na garagem, que entraram com comandos do portão de acesso à casa e da garagem; que não havia sinais de arrombamento.
As declarações prestadas em sede de instrução pelas testemunhas LM e FV, militares da GNR que no essencial referiram ter-se deslocado à moradia na sequência do reporte do accionamento do alarme, que ali encontraram os arguidos DM e AS a tirar móveis de uma garagem, que um disse ser filho do proprietário, ter autorização do mesmo para o efeito e que o mesmo tinha o comando da garagem onde os bens foram recolocados e que fechou com o comando, não detectando sinais de arrombamento, reforçando as declarações destes arguidos e descredibilizando as conjecturas da Assistente quanto ao modo como entraram na moradia.
III. Enquadramento Jurídico-penal
1. Da Autoria
Nos termos do disposto no artigo 26.º do Código Penal, “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros e, ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.”
Nesta norma prevê-se, nomeadamente, a autoria imediata e mediata e, ainda, a co-autoria material.
2. Dos tipos legais de crime
(…)
2.2.Do crime de violação de domicílio
Dispõe o artigo 190.º do Código Penal, sob a epígrafe “Violação de domicílio ou perturbação da vida privada”, o seguinte:
1 - Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel.
3 - Se o crime previsto no n.º 1 for cometido de noite ou em lugar ermo, por meio de violência ou ameaça de violência, com uso de arma ou por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa, ou por três ou mais pessoas, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
O bem jurídico protegido pela norma ora em análise é a privacidade/intimidade, visando a salvaguarda de uma área de reserva pessoal delimitada: a habitação.
Assim, o objecto da acção é a habitação, entendida como espaço fisicamente fechado e efectivamente reservado ao alojamento de uma ou várias pessoas, não se esgotando na casa, podendo integrar a noção de habitação um quarto de hotel, um quarto arrendado, uma tenda de campismo, uma caravana, uma roulotte ou mesmos um barco ou um automóvel nos quais se alojem pessoas.
A acção típica compreende duas modalidades de conduta: i) a entrada sem consentimento – pressupondo a entrada física ou corporal do agente na habitação, embora não necessariamente a entrada total, sem o consentimento (e não apenas, mais restritamente, contra a vontade) daquele a quem assiste o domínio e a disposição daquele espaço; ii) a permanência depois de ser intimado a retirar-se – pressupondo uma introdução e permanência em princípio lícitas, que se tornam ilícitas a partir da intimação a retirar-se, que tendo que resultar concludente, não tem de ser necessariamente expressa ou sequer provir do portador concreto do bem jurídico.
Devem aqui tratar-se como habitação todas as divisões pertinentes a uma casa de habitação, como o sejam, por ex., o hall, corredores, casas de banho, casas de máquinas e outras, assim como os espaços fechados a ela associados e nela fisicamente integrados, como o sejam, por ex., garagens, ginásios, saunas.
A concordância do portador do bem jurídico afasta a responsabilidade do agente a título de violação de domicílio, em qual das duas modalidades supra referidas.
Conforme salienta Manuel de Andrade, “Há casos em que a habitação pertence em comum a várias pessoas (v.g. cônjuges, membros da mesma família, dois estudantes que partilham o mesmo quarto, etc.). O princípio é aqui a igualdade tanto no plano interno como externo: o consentimento de qualquer um dos titulares será bastante para – só por si mesmo com a oposição de outro ou outros – legitimar a entrada de terceiro.”, acrescentando que “Só assim não será quando não seja exigível impor aos demais co-titulares do direito que suportem a entrada ou permanência de terceiro”, citando como exemplo o caso de um cônjuge, contra a vontade do outro, impor a entrada no domicílio do amante, e salientando que só deverá considerar-se preenchida a factualidade típica se a oposição à entrada de terceiro (por parte do co-titular do direito) for expressa e exteriormente reconhecível, não bastando a mera falta de consentimento (Cfr. o autor cit. in Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, p. 705).
No que ao tipo subjectivo concerne, estamos perante um tipo de ilícito doloso, bastando-se o seu preenchimento com o dolo eventual e reclamando na primeira modalidade o conhecimento pelo agente de que se está a agir sem consentimento e na segunda modalidade o conhecimento da intimação para se retirar.
No n.º 3 do artigo 190.º do Código Penal, prevêem-se circunstâncias que integram a forma qualificada deste ilícito, a qual se preenche quando se verifique que o crime foi cometido: com o uso da violência; com a ameaça de violência; de noite ou em lugar ermo; como uso de arma; por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa; por três ou mais pessoas.
Tendo presente o supra exposto e no seu confronto com a factualidade indiciada, e tendo ainda presente o disposto no artigo 28.º do Código Penal, importa desde logo concluir que a conduta dos arguidos não preenche, um dos elementos do tipo base do crime de violação de domicílio, posto que conforme resulta indiciado nos autos a habitação em causa nos autos integra a comunhão matrimonial de bens do arguido EJM e da Assistente, tendo constituído a casa de morada de família de ambos enquanto casal, sendo que a decisão daquele de sair da casa a dado momento não importa tão pouco que este tenha abicado do direito de a habitar ou usufruir, não sendo o mesmo um terceiro em relação a tal imóvel, sendo que se nos afigura que ao ali pretender aceder a fim de lá retirar alguns bens não está a exercer um abuso sobre a coisa, mas antes a exercer um direito tão legítimo quanto o que exerce a Assistente ao ali entrar e residir e ao unilateralmente mudar o códigos do alarme de intrusão (vide neste sentido, entre outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 06.03.2005, Processo 0414177 e de 29.01.2003, Processo 0241383)
Cumpre salientar, de resto, que também aqui se não verifica indiciado o preenchimento pelas condutas dos arguidos do tipo subjectivo do ilícito em apreço.
Como assim, somos a concluir, face aos factos indiciados, que se não verifica uma possibilidade razoável de, em sede de julgamento, virem os arguidos a ser condenados pela prática dos ilícitos penais em causa, pelo que não resta senão proferir despacho de não pronúncia.

III. Decisão
Por todo o exposto e ao abrigo do disposto no artigo 308.º, n.º 2, in fine, decide-se:
A. Não pronunciar os arguidos EJM, DM e AS pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal e do crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 12.º, 23.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea f), todos do Código Penal, que lhe são imputados no requerimento de abertura da instrução apresentado pela Assistente NM.
B. Condenar a Assistente nas custas devidas pela realização da instrução, fixando-se a taxa de justiça em 2UC – cfr. artigos 515º., nº. 1, alínea a), 8.º, n.º 2, do Regulamento das Custas processuais.
Notifique.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso.
A assistente NM veio reagir ao despacho de não pronúncia proferido pelo Tribunal recorrido interpondo o presente recurso.
E por via dele, pretende seja revogado aquele despacho e, em consequência, pronunciados os arguidos EJM, DM e AS pela prática do crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artigo 190.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
Tudo, por, em seu entender e atenta a natureza do bem jurídico protegido com o crime em apreço, existirem nos autos indícios suficientes da prática pelos arguidos do mencionado crime.
Como consabido, a instrução é formada pelo conjunto de actos de instrução (art.º 289.º,n.º1, do Cód. Proc. Pen.) tendentes á comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou arquivar o inquérito, conforme decorre do disposto no art.º 286.º, do mesmo diploma adjectivo.
Só sendo de proferir despacho de pronúncia caso se tenham recolhido indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, cfr. art.º 308.º, n.º1, do Cód. Proc. Pen.
A lei define o que se deve considerar por indícios suficientes, considerando-se, como tal, aqueles de que resulte “uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança”, ver art.º 283.º, n.º2, do Cód. Proc. Pen.
No ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, a respeito, refere-se que nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos e antes e tão só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido.
Na pronúncia o Juiz não julga a causa; verifica se se justifica, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, que o arguido seja submetido a julgamento (…).
A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulta uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força delas, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 283.º, n.º2), não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgador a final[1].
No mesmo sentido, vemos o Ac. Relação do Porto[2], de 20.01.1993, onde se escreveu que para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige que a prova, no sentido de certeza moral, da existência do crime, bastando-se com a exigência de indícios, de sinais, dessa ocorrência.
Isto, porém, não significa que a lei confira aos mencionados despachos um estatuto de ligeireza.
E prossegue o dito aresto, a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências, morais, quer jurídicas; submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo se não mesmo um vexame.
É por isso que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de “condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa”: o Juiz só deve pronunciar quando, por elementos de prova recolhidos nos autos, forma a convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido ou “os indícios são suficientes quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Como refere a Prof. Fernanda Palma, a relação entre os indícios e a possibilidade de condenação é que caracteriza os indícios.
Com efeito, os indícios de que resulta a possibilidade de condenação são indícios suficientes para a condenação, o que significa que revelam uma espécie de causalidade para aquele resultado, mas tal qualificação não se refere directamente á natureza dos indícios, nomeadamente a sua caracterização como fortes, fracos ou de média intensidade. Na lógica do Código de Processo Penal, os indícios que justificam a acusação (ou a pronúncia) são, segundo me parece, necessariamente graves ou fortes, no sentido de serem factos que permitem uma inferência do tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável.
E é, assim, porque só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, justificam um juízo normativo de “possibilidade razoável” da condenação[3].
No ensinamento de Jorge Noronha e Silveira, para a suficiência dos indícios não deve bastar uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição. Só uma forte ou alta possibilidade pode justificar a dedução da acusação ou a prolação de um despacho de pronúncia. Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta á particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do principio da presunção de inocência do arguido.
E prossegue, por todas estas razões, afirmar a suficiência dos indícios de pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção o M.P. deve arquivar o inquérito e o Juiz de Instrução deve lavrar despacho de não pronúncia[4].
No fundo, a indicação suficiente é, no dizer do Supremo Tribunal, a verificação suficiente de um conjunto de fatos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos do crime/da infracção porque os agentes virão a responder.[5]
Ou como referia Luís Osório, por indícios suficientes se devem ter aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado.[6]
Com base nos ensinamentos expostos vejamos, pois, se é, ou não, de manter o despacho de não pronúncia prolatado e aqui posto em crise com o presente recurso.
O crime de violação de domicílio mostra-se contemplado no art.º 190.º, n.º 1, do Cód. Pen., onde se diz que quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
Na lição do Prof.º Costa Andrade, o bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade. Que só é protegida face a agressões qualificadas pela exigência de violação de uma esfera pessoal espacialmente limitada e fisicamente assegurada: a habitação.
Analisando-se o bem jurídico numa dupla dimensão:
- Uma dimensão formal (a ultrapassagem de um espaço fisicamente assegurado e hoc sensu a violação da posição de domínio que confere ao portador concreto o direito de admitir e excluir);
- Uma dimensão material, correspondente aos valores ou interesses pertinentes à privacidade/intimidade.[7]
Para Nelson Hungria, citado por Simas Santos e Leal Henriques, o que se protege com esta incriminação ” não é o domicílio civil, isto é, o lugar de residência com ânimo definitivo, o centro de ocupações habituais ou o ponto central de negócios…, mas a casa de moradia, o home, o chez soi, a habitação particular, o local reservado à vida íntima do individuo ou à sua actividade privada, seja ou não coincidente com o domicílio civil. É o mesmo domicílio cuja inviolabilidade a nossa constituição assegura… O direito penal, aqui, é sancionador do direito constitucional e não do direito privado. Tutelando a casa de habitação, está a lei penal defendendo um dos redutos da liberdade individual.[8]
O Tribunal Constitucional tem arredado integrar no conceito de domicílio, para efeitos do disposto no art.º 34.º, n.º 1, da C.R.P., o conceito técnico de domicílio, como este vem definido no Código Civil, v.g., art.º 80.º, por ser demasiado restrito, tendo em vista o sentido e a função da tutela constitucional. Daí que nesse conceito se venha abarcar qualquer local de habitação, seja ela principal, secundária, ocasional, em edifício ou em instalações móveis.
E dimensionando e moldando o domicílio a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar – como tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CR – assim acautelando um núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem consentimento do próprio titular do direito.
Entendendo-se que o bem protegido com a inviolabilidade do domicílio e o étimo de valor que lhe vai associado têm a ver com a subtracção aos olhares e ao acesso dos outros da esfera espacial onde se desenrola a vivência doméstica e familiar da pessoa, onde ela, no recato de um espaço vedado a estranhos, pode exprimir livremente o seu mais autêntico modo de ser e de agir.[9]
Daí que a protecção legal recaia sobre a liberdade individual no âmbito habitacional e não sobre a posse ou a propriedade do habitáculo em si.[10]
Face ao conceito alargado de domicílio aí se deve incluir qualquer construção utilizada, permanente ou transitoriamente, para moradia individual ou familiar, e também os espaços fechados integrados fisicamente na morada, como sejam as garagens e os anexos, mas já não os pátios, os jardins ou similares desde que não fechados e portanto não integrados na construção em si que serve de habitação.
O crime em apreço nestes autos prende-se com a primeira parte do n.º 1, do art.º 190.º, do Cód. Pen., introdução na habitação de outra pessoa sem consentimento.
O que cabe decidir é quem é o portador do bem jurídico, no dizer do Professor Costa Andrade, no caso vertente.
Como ensina este Insigne Professor, o portador do bem jurídico tutelado pelo crime de violação de domicílio é aquele a que assiste o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação, seja qual for o seu fundamento jurídico (…). Decisivo é apenas que aquela posição tenha sido adquirida de forma conforme ao direito.[11]
O que se entende, porquanto o domicílio tem de ser visto como uma projecção espacial da pessoa que reside em certa habitação, uma forma de uma pessoa afirmar a sua dignidade humana, e só a ela, pois, assistir o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação.[12]
No caso vertente teve-se por suficientemente indiciado que o arguido EJM e a assistente NM contraíram entre si casamento civil no dia 11 de Novembro de 1993.
Que viveram juntos na residência sita no lote 32, Q até há cerca de 4 anos a esta data, momento no qual o arguido EJM saiu dessa residência, tendo nela permanecido a assistente.
Como se teve por suficientemente indiciado que a dita residência se encontra inscrita na Conservatória do Registo Predial de L, pela Ap. 45, de 2004/03/01, a favor de “EJM, casado com NM no regime de comunhão geral”.
Não é pelo facto de o arguido EM ser co-proprietário da dita residência - mas nela não residindo, vai para quase quatro anos - que lhe confere o direito de nela entrar, sem o consentimento da assistente. Sendo o arguido aí um estranho, em termos de vivência doméstica e familiar, já que o seu centro de vida se situa fora dessa habitação; violando, com a sua entrada não autorizada, o direito da assistente à sua privacidade e reserva da intimidade da vida familiar.
Ou dito de outro modo, corporizando tal direito o domínio e a disposição sobre o espaço, sobre a habitação, e nela exercendo esse direito a assistente, e só ela, por nela residente, a ela cabe, pois, decidir sobre as entradas ou permanências no espaço habitacional[13].
E sempre pelas razões enunciadas se não entende o fazer-se apelo à manutenção do dever de coabitação enquanto durar a separação de facto e não seja decretada a separação judicial de pessoas e bens, como decorre do disposto no art.º 1795.º A, do Cód. Civ. Sendo certo que essa manutenção do dever de coabitação a outros níveis tem relevo, v.g. apuramento de culpa e seu reflexo ao nivel dos interesses patrimoniais daí decorrentes, mas que não o de tornar lícita a actuação do arguido.
O que impõe a conclusão do cometimento pelo arguido EM do crime de Violação de Domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.º 1, do Cód. Pen.
Cabe descortinar se, face ao que consta do facto indicado sob o n.º 9, é de manter, ou não, a imputação ao arguido, como sobredito. Tudo, por o despacho sindicado ter entendido que se não mostrava indiciado o preenchimento do elemento subjectivo do ilícito em apreço.
Diz-se no apontado número, e na parte que ora importa, que o arguido EJM agiu convicto de que lhe assistia o direito a entrar na moradia que era sua pertença e na qual havia residido com a assistente.
O que nos conduz a fazer apelo ao que se dispõe no art.º 17.º, do Cód. Pen., que versa sobre o erro sobre a ilicitude.
Onde se diz no seu n.º 1, que age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.
E no n.º 2, que se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.
Importa descortinar, pois, se o erro em que incorreu o arguido se se deve ter, ou não, por censurável.
Como ensina José António Veloso, o art.º 17.º, refere-se aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida, e não é desculpável que não seja conhecida, de todos os cidadãos normalmente socializados. Estes crimes são os chamados “crimes naturais”, “crimes em si” ou mala in se. Todos os crimes previstos no código Penal são mala in se.[14]
Na Lição do Professor Figueiredo Dias, a falta de consciência do ilícito será não censurável sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamenta em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deva responder. Também a personalidade que erra sobre o sentido de uma valoração jurídica se mantém substancialmente “responsável”, parecendo por isso dever arcar com a culpa pelo ilícito-típico cometido. Pode acontecer, no entanto que, apesar do “erro de valoração” em que incorreu, a personalidade do agente venha ainda a revelar-se essencialmente conformada e exigida pela ordem jurídica. Em caso tais (…) fica excluída a censurabilidade da falta de consciência do ilícito e, por aí, a culpa do agente (art.17.º-1).[15]
Sendo censurável a falta de consciência da ilicitude quando revele uma atitude de indiferença pelos valores jurídico-penais.
Por sua vez, o Professor Taipa de Carvalho entende que o erro sobre a ilicitude será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade (de uma atitude ética pessoal jurídica) indiferente perante o dever-ser jurídico-penal, isto é, perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente. Sendo revelador dessa atitude ético-pessoal de indiferença, o agente responderá por crime doloso; não o sendo (caso de condutas cuja licitude ainda não está interiorizada pela consciência ético-social – o que pode acontecer com maior frequência no chamado direito penal secundário), afirmar-se-á a exclusão da culpa e, portanto não haverá responsabilidade penal.[16]
Sabe-se, a respeito, cfr. ponto 4., da factualidade tida como suficientemente indiciada, que os restantes arguidos- DM e AS-, seguindo instruções do arguido EJM e aproveitando a ausência da assistente a fim de obstar ao surgimento de conflitos, dirigiram-se à residência, para dali retirarem do interior da garagem os bens móveis que haviam constituído o recheio de uma outra casa do arguido EJM, a fim de para aí os transportarem, o que fizeram sem o consentimento e contra a vontade da Assistente.
Perante tal factualidade impõe-se concluir pela censurabilidade da conduta do arguido EM, face ao modo como ordena a ida à dita residência, aproveitando a ausência da assistente, o que indicia, que, com a presença desta, a entrada nunca lhe seria autorizada, ou pelo menos teriam de pedir autorização para tanto.
Pelo menos, o arguido tinha a obrigação de suspeitar se aquele acto era realmente ilícito ou lícito e, em sua consequência, deveria informar-se e verificar se assim era ou não.[17]
O mesmo se diga da actuação do arguido DM, atentas as suas declarações, como decorre do despacho sindicado. Quando refere, no essencial, que aí se deslocou a pedido de seu Pai, o arguido EJM, e na ausência do assistente, para evitar confrontos.
Outra tem de ser a decisão quanto ao arguido AS.
Desde logo, por, como refere nas suas declarações, se ter deslocado à moradia, por solicitação do arguido DM, desconhecendo toda a situação que envolvia os intervenientes. Sendo que trabalha como jardineiro para este arguido.
Aqui temos de concluir não ser censurável o erro, devendo manter-se quanto ao arguido AS o despacho de não pronúncias nos seus precisos termos.
Por fim, importa decidir se se deve ou não, qualificar o crime de violação de domicílio, pelo n.º 3, do citado art.º 190.º, do Cód. Pen. Normativo onde se diz que se o crime previsto no n.º 1 for cometido de noite ou em lugar ermo, por meio de violência ou ameaça de violência, com uso de arma ou por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa, ou por três ou mais pessoas, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Face ao narrado no ponto 5., dos factos indiciados - procederam à abertura dos portões da garagem sita no rés-do-chão, portões esses que se encontravam fechados e dos quais o arguido DM tinha respectivamente a chave e o comando-, importa concluir pelo uso de chaves falsas, como estas são definidas pelo art.º 202.º, al.ª f), II, do Cód. Pen.
Devendo alterar-se, em conformidade, o teor dos pontos 10.e 11., dos factos não suficientemente indiciados.
Pelo que se deve proferir despacho que Pronuncie os arguidos EJM e DM pela prática de um Crime de Violação de Domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Pen; mantendo-se o despacho de não Pronúncia, nos seus precisos termos, relativamente ao arguido AS.

Termos são em que Acordam em conceder, parcial, provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido o qual deverá ser substituído por outro que venha pronunciar os arguidos EJM e DM pela prática de um Crime de Violação de Domicílio, p. e p. pelo art.º 190.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Pen., nos termos mencionados; no mais, confirmar o despacho recorrido, quanto à não pronúncia pelo crime de violação de domicílio relativamente ao arguido AS.
Sem custas, por não devidas.
(texto elaborado e revisto pelo relator).
Évora,
(José Proença da Costa)
(Gilberto Cunha)



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[1] Ver, Curso de Processo Penal, Vol. II, págs. 182 e segs..
[2] Na C.J., ano XXIII, tomo IV, págs. 261.
[3] Cfr. Da Acusação e Pronúncia num Direito Processual Penal de conflito entre presunção de inocência e a realização da Justiça punitiva, págs. 121-123, in I Congresso de Processo Penal.
[4] Ver, o Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, págs.171.
[5] Ver, Ac. de 10.12.92, no Processo n.º 427747.
[6] Ver, Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, págs. 411.
[7] Ver, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, págs. 701-702.
[8] Ver, Código Penal Anotado, 2.º Volume, págs. 530.
[9] Ver, Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 593/2008, de 10.12.2008, no Processo n.º 397/08, 2.ª Secção e Acórdão do mesmo Tribunal n.º 67/97.
[10] Ver, Simas Santos e Leal Henriques, in Ob. Cit., págs. 531.
[11] Ver, Prof.º Costa Andrade, in Ob. Cit., págs. 703.
[12] Ver, no mesmo sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 126/2013, de 27.02.2013, no Processo n.º 850/12, da 3.ª Secção e o Acórdão do mesmo Tribunal, n.º 507/94.
[13] Ver, a respeito, Miguez Garcia, in O Direito Penal Passo a Passo, Volume I, págs. 383-384.
[14] Ver, Erro em Direito Penal, 1999, págs. 24.
[15] Ver, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pág.585.
[16] Ver, Direito Penal Parte Geral, II, Teoria Geral do Crime, 2006, Universidade Católica, Porto, p. 328 a 331.
[17] Ver, Professor Cavaleiro de Ferreira, in Lições de Direito Penal, I, Editorial Verbo, págs. 220 a 222.