Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
76/12.8TBMCQ-A.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: VALOR DA CAUSA
RECURSO PARA A RELAÇÃO
ALÇADA
Data do Acordão: 10/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Se o recurso do saneador-sentença que, além de conhecer do mérito da causa, fixou o valor desta última, for interposto e admitido ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. b), do CPC, e o tribunal ad quem concluir que o valor da causa não excede a alçada do tribunal a quo, o recurso deverá ser imediatamente julgado improcedente, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente.
2 – À petição de embargos de executado é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 552.º do CPC, nomeadamente na al. f) do seu n.º 1, pelo que o embargante deverá indicar o valor dos embargos. Na falta dessa indicação, considera-se que o embargante aceita, como valor dos embargos, o da acção executiva.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 76/12.8TBMCQ-A.E1


(…) deduziu os presentes embargos de executado contra (…) – Importação e Exportação, Lda.

Os embargos foram recebidos.

A embargada contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.

O embargante respondeu à contestação, na parte em que a embargada lhe imputou litigância de má-fé.

Realizou-se audiência prévia, na qual foi proferido saneador-sentença que, após fixar o valor da causa em € 3.457,00, julgou os embargos improcedentes.

O embargante, além de requerer, ao próprio tribunal a quo, a reforma do saneador-sentença, nomeadamente no que concerne ao valor da causa neste último, interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

1 – A Mma. Juíza a quo não notificou as partes para se pronunciarem e/ou exercerem o contraditório quanto a uma eventual decisão imediata da causa, não sendo esse cenário sequer equacionado pelas partes, tendo as mesmas sido notificadas a 25.09.2018 para a realização da audiência prévia que visaria as finalidades previstas no n.º 1 do artigo 591.º do CPC.

2 – Tendo em consideração o que veio a suceder em sede de audiência prévia, o saneador-sentença configura uma verdadeira “decisão-surpresa”.

3 – A Mma. Juíza a quo, ao fixar o valor da causa em € 3.457,00, auto-legitimou-se a, em exclusivo, decidir a presente lide, sem qualquer hipótese de recurso.

4 – À data da prolação do saneador-sentença, já o tribunal deveria dar cumprimento ao artigo 297.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, onde se refere que: “mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos”.

5 – Haverá que notar que, em 27.10.2010, em requerimento de injunção, foi peticionado o valor global de € 4.631,32 (tal qual se conclui pelo teor dos factos 1 e 2 dados como provados no saneador-sentença recorrido), pelo que, à data da audiência prévia, o valor dos juros vencidos, nos termos e para os efeitos do artigo 297.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, é de € 1.482,53 (calculados à taxa de 4%) e, por isso, o valor da causa deveria ser de € 6.113,85. E, logo por aí, estaria viabilizado o recurso de apelação, que deverá ser admitido sem reservas.

6 – O que se referiu anteriormente já é pressuposto factual da ocorrência de matéria para decretamento da nulidade da audiência prévia, tal e qual foi conformada, uma vez que ela foi uma total surpresa para o aqui recorrente, nunca lhe tendo sido dada indicação, para contraditoriamente a isso se opor, que a decisão da lide iria ocorrer por simples saneador-sentença.

7 – Igualmente se esqueceu o espírito do sistema jurídico português, que, em não tão poucas situações, permite ao devedor subsidiário substituir-se ao devedor principal, exercendo todas as prerrogativas que lhe assistem, quando, por qualquer motivo, ele não o possa e esteja em curso alguma acção ou omissão potencialmente atentadora do objecto de negócio jurídico, aliás, em concretização deste espírito, vejam-se as soluções que encontramos nos artigos 522.º, 525.º, 585.º, 592.º, 593.º, 1037.º, n.º 2, 1125.º, n.º 2, 1133.º, n.º 2 e 1188.º, n.º 2, do Código Civil.

8 – O aqui recorrente – ao contrário do que é referido pela Mma. Juíza a quo –, por força do regime substantivo, poderia, naturalmente, exercer os direitos do originário e devedor principal, mormente, como o fez, deduzindo embargos e invocando o pagamento da obrigação principal, tal qual fez.

9 – A decisão recorrida enferma, igualmente, de vício de violação da lei, quer substantiva, quer processual civil, como, infra, teremos oportunidade de desenvolver. Na verdade, o espírito do sistema jurídico português impede decisões formais, alheias ou postergadoras da verdade material, pois, exigindo-se posturas processualmente válidas, também não é negável que as decisões judiciais não devem, sem melindrar o princípio da legalidade e o “efeito-surpresa”, negar as soluções legislativas (im)postas pelo próprio espírito do sistema, ex vi artigo 9.º do Código Civil e artigo 3.º, n.º 3, do CPC.

10 – O princípio do aproveitamento processual, imposto pelo dever de gestão processual e pelo geral princípio da proibição do excesso, a que se alude, respectivamente, nos artigos 6.º do CPC e 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, seriam de molde a que a actuação do executado subsidiário fosse típica daquela situação processual posta no artigo 49.º do CPC, surgindo o devedor principal como parte legítima.

11 – Por outro lado, nunca poderia o recorrente equacionar que a pretensão da Mma. Juíza a quo seria conhecer imediatamente do mérito da causa, até porque não fora dada a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a eventual decisão imediata da causa que, sem que as partes pudessem contraditar, veio a ser proferida.

12 – A Mma. Juíza a quo, ao proferir um saneador-sentença sem que fizesse referência expressa a tal intenção aquando do despacho judicial que designou a data da realização da audiência, bem como ao negar o contraditório ao recorrente, proferiu uma “decisão-surpresa”, impondo-se a sua anulação.

13 – Esta questão é pacífica entre a jurisprudência, vide o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 1048/14.3TBPBL.E1, de 22.02.2018; o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 9217/15.2T8VNF.G1, de 01.03.2018; o acórdão da Relação de Lisboa, processo n.º 1386/13.2TBALQ.L1-7, de 05.05.2015; e, por último, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo n.º 10442/15.1T8STB-A.E1, de 24.05.2018.

14 – A Mma. Juíza a quo, ao não informar as partes da sua pretensão e ao não conceder às partes a oportunidade para se pronunciarem adequadamente, violou o princípio do contraditório e o dever de informação, impondo-se a anulação da audiência prévia nos termos do disposto no artigo 195.º do CPC.

15 – Há que reconhecer os apontados vícios de nulidade do despacho de fixação do valor, substituindo-se ou rectificando-se o mesmo em conformidade com o supra referido, e de violação do princípio do contraditório com o saneador-sentença proferido, bem como reconhecer-se a legitimidade (directa ou substitutiva, a título de gestão de negócios) do recorrente e, consequentemente, conhecer-se dos embargos de executado deduzidos, julgando-os procedentes, por provados.

Posteriormente à interposição do recurso, o tribunal a quo proferiu despacho sobre o pedido de reforma do saneador-sentença. No que concerne ao valor da causa, reconheceu que o mesmo estava errado e fixou-o em € 1.195,02.

Através de despacho proferido ulteriormente, o recurso foi admitido.


*


Importa começar por resolver a questão do valor da causa, que constitui objecto do recurso.

Os factos relevantes para esse efeito, resultantes dos autos, são os seguintes:

1 – A recorrida instaurou a acção executiva em 13.11.2012;

2 – O título executivo é constituído por um requerimento de injunção ao qual foi conferida força executiva;

3 – De acordo com o requerimento de injunção referido em 2, o executado, (…), devia à recorrida a quantia de € 4.631,32;

4 – No requerimento executivo, a recorrida alegou que, da referida quantia de € 4.631,32, o executado lhe pagou € 3.436,30, devendo-lhe apenas € 1.195,02, valor este cuja cobrança pretende, acrescido de juros de mora vincendos, custas, despesas e honorários do agente de execução e demais encargos com esta última;

5 – No requerimento executivo, a recorrida indicou, como valor da execução, € 1.195,02;

6 – Na petição de embargos, o recorrente não indicou o valor da causa.


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O n.º 1 do artigo 629.º do CPC (diploma ao qual pertencem as normas doravante referenciadas sem menção da sua origem) estabelece a regra de que o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa. O n.º 2 do mesmo artigo prevê excepções a esta regra. Nomeadamente, nos termos da al. b), é sempre admissível recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre. Trata-se aqui de «uma aplicação do princípio que o Prof. Castro Mendes designa como “tutela provisória da aparência”, na medida em que, na dúvida sobre o valor de um processo, se trata a situação como se o valor fosse superior ao da alçada do tribunal a quo, permitindo-se o recurso»[1].

O presente recurso foi interposto e admitido ao abrigo desta norma excepcional. Logo, caso se conclua que o valor dos presentes embargos de executado não excede a alçada do tribunal a quo, o recurso deverá ser imediatamente julgado improcedente, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente. Por outras palavras, o conhecimento, pelo tribunal ad quem, das questões subsequentes à do valor da causa está dependente de se concluir que este último permite o recurso nos termos estabelecidos no n.º 1 do artigo 629.º.

O recorrente baseia a sua tese sobre o valor dos embargos, desde logo, em pressupostos de facto manifestamente errados. Temos em vista a conclusão 5.ª, na qual aquele afirma que, em 27.10.2010, em requerimento de injunção, foi peticionado o valor global de € 4.631,32, pelo que, à data da audiência prévia, o valor dos juros vencidos, nos termos e para os efeitos do artigo 297.º, n.º 2, 2.ª parte, é de € 1.482,53 (calculados à taxa de 4%) e, por isso, o valor da causa deveria ser de € 6.113,85. Estaria assim, segundo o recorrente, viabilizado o recurso.

Não é assim. O valor indicado no requerimento de injunção foi de € 4.631,32, mas, no requerimento executivo, a recorrida, reconhecendo que, entretanto, o executado lhe pagara € 3.436,30, alegou que a dívida era, naquele momento, de apenas € 1.195,02, valor este cuja cobrança pretendia, acrescido de juros de mora vincendos, custas, despesas e honorários do agente de execução e demais encargos com esta última. Em conformidade, a recorrida indicou, como valor da execução, € 1.195,02. Logo, mesmo de acordo com a forma de cálculo proposta pelo recorrente, nunca o valor em dívida na data em que a audiência prévia se realizou excederia € 5.000,00, que é o valor da alçada do tribunal a quo, nos termos do artigo 44.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).

O recorrente também labora em erro de direito.

Os embargos de executado constituem uma acção declarativa enxertada no processo executivo, uma contra-acção através da qual o embargante pretende obstar à agressão do seu património através deste último. Não se trata de uma contestação integrada no próprio processo executivo, mas sim de uma acção declarativa estruturalmente autónoma, proposta através da apresentação em juízo de uma petição inicial. Se esta petição for liminarmente recebida, o exequente/embargado será notificado para contestar, dentro do prazo de 20 dias, seguindo-se, sem mais articulados, os termos do processo comum declarativo (artigo 732.º, n.º 2). A procedência dos embargos extingue a execução, no todo ou em parte (n.º 4 do mesmo artigo).

À petição de embargos é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 552.º, nomeadamente na al. f) do seu n.º 1. Ou seja, o embargante deverá indicar o valor da causa.

Os artigos 296.º a 310.º, que regulam o incidente de verificação do valor da causa, não estabelecem um regime específico para a fixação do valor dos embargos de executado, pelo que tem de se lhes considerar aplicável o disposto no n.º 1 do artigo 304.º do mesmo código, que dispõe que o valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque nesse caso o valor é determinado em conformidade com os artigos anteriores, bem como no n.º 1 do artigo 307.º, que estabelece que, se a parte que deduzir qualquer incidente não indicar o respectivo valor, se entende que aceita o valor dado à causa.

Na petição de embargos, o recorrente não indicou o valor da causa. Consequentemente, por força dos citados artigos 304.º, n.º 1, e 307.º, n.º 1, considera-se que o recorrente aceitou, como valor dos embargos, o da execução, sendo acertada a decisão do tribunal a quo de atribuir, aos primeiros, o valor da segunda. Sendo esse valor de € 1.195,02, não excede o da alçada do tribunal de 1.ª instância e, consequentemente, nos termos do n.º 1 do artigo 629.º, o saneador-sentença recorrido não era, afinal, susceptível de ser objecto de recurso de apelação, ficando, assim, prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pelo recorrente. Deverá, pois, o recurso ser julgado improcedente.

Sumário:

(…)

Decisão:

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente.

Custas pelo recorrente.

Notifique.

Évora, 10 de Outubro de 2019

Vítor Sequinho dos Santos (relator)

José Manuel Barata

Conceição Ferreira

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[1] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lisboa, 1992, páginas 154-155.