Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
484/18.0T8ORM.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
VELOCÍPEDE
CAPACETE DE PROTECÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ASCENDENTE
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - O não uso de capacete pelo autor, não constitui causa de agravamento dos danos por ele sofridos em consequência do embate entre o veículo automóvel e o velocípede, quando tais danos ocorreram em maior escala noutras zonas do corpo, nomeadamente no membro superior esquerdo e nos membros inferiores, sendo nessas zonas que ficaram as maiores sequelas do acidente, pelo que não se justificaria in casu reduzir a indemnização devida, nos termos do nº 1 do artigo 570º do CC, considerando, ademais, que o condutor do automóvel foi o único culpado na eclosão do acidente.
II – Num quadro factual em que o autor sofreu traumatismos no membro superior direito e membros inferiores, ferimentos no couro cabeludo, nas pernas e braço esquerdo e uma fratura exposta da diáfise femoral à esquerda; foi submetido a duas intervenções cirúrgicas; esteve cerca de um mês em repouso absoluto e teve necessidade de se deslocar com o auxílio de canadianas; foi acompanhado em consultas externas e deixou de realizar todas as atividades físicas e desportivas; passou a sofrer de um défice funcional permanente de 2 pontos; sofreu um quantum doloris no grau 5 e um dano estético permanente no grau 2, ambos numa escala de 7; sofreu fortes dores e uma enorme angústia e aflição e sentiu-se diminuído e frustrado durante os 9 meses em que esteve com limitações, tem-se como ajustado fixar uma indemnização pelos danos não patrimoniais devidos ao autor no valor de € 18.000,00.
III - Ao dano biológico não pode ser conferida autonomia enquanto tertium genus e, por esse motivo, todas as variantes do dano-consequência terão de traduzir-se sempre num dano patrimonial e/ou num dano não patrimonial.
IV - O dano-consequência tratado nos autos não se insere em nenhuma das vertentes do dano patrimonial, porquanto o autor, que à data do acidente tinha12 anos de idade, não tinha (e continua a não ter) qualquer atividade profissional, o que não impede, porém, que ocorra uma valoração autónoma e independente dos danos não patrimoniais que emergem das lesões que determinaram o défice genérico permanente de 2 pontos.
V – Os pais do menor lesado não têm direito a ser indemnizados por danos não patrimoniais, considerando que o nº 4 do artigo 496º do Código Civil limita aos casos de morte da vítima a indemnizabilidade de tais danos, e não ser aplicável ao presente caso a jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2014, de 09.01.2014. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
P…, G… e T… instauraram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra … Companhia de Seguros, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar aos autores, a título de indemnização, as seguintes quantias:
a) ao autor T… a quantia de € 25.500,67;
b) à autora P… o quantitativo de € 6.779,52;
c) ao autor G… o montante de € 3.219,60;
d) juros de mora de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.
e) ao autor T… os danos futuros que se venham a apurar em sede de liquidação ulterior de sentença.
Alegaram, em síntese, que no dia 16 de agosto de 2015, na Rua dos Calços, sita no lugar e freguesia de Atouguia, concelho de Ourém, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula …11, conduzida por J…, por conta, sob a direção e responsabilidade da sua proprietária, “C…, Lda.”, um velocípede da marca DS, pertencente a N… e por ele conduzido, e o velocípede da marca “B… conduzido por R… e pertencente ao autor T…, que nele se fazia transportar, tendo o acidente ocorrido por culpa do condutor do DG que circulava na faixa de rodagem no sentido de Alvega para Atouguia, a uma velocidade superior a 50 Km/h e a 60 km/h, e ao efetuar a curva à direita existente no local, aumentou o arco da trajetória necessária para contornar a curva, invadindo a via de trânsito destinada ao sentido oposto, na qual circulavam os velocípedes acima identificados, vindo a embater num primeiro momento no velocípede da marca DS e imediatamente e quase em simultâneo, embateu também no velocípede da marca Berg do autor T….
Do acidente resultaram para os autores os danos alegados, dos quais se querem ver ressarcidos, sendo que à data do acidente a responsabilidade civil por danos ocasionados pela circulação do veículo DG se encontrava transferida para a ré.
A ré contestou, impugnando parte da factualidade alegada pelos autores, contrapondo que o autor Tomás é, também, em parte, responsável pela ocorrência do acidente e pelas lesões por si sofridas, porquanto no seu velocípede seguiam duas pessoas e o mesmo circulava no meio da estrada, concluindo pela improcedência da ação e, na medida dessa improcedência, a sua absolvição dos pedidos formulados pelos autores.
Foi dispensada a realização de audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
A audiência prévia veio, porém, a realizar-se, considerando a posição manifestada pelos autores de pretenderem apresentar reclamação contra o objeto do litígio identificado pelo Tribunal, de procederem ao aditamento de prova, e de requererem a realização de prova pericial.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, sendo a final proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente, por provada, a presente acção e decide-se condenar a R. em parte dos pedidos apresentados pelos AA. Designadamente, determina-se a condenação da R.:
1-) No pagamento ao A. T…, a título de indemnização:
a-) Do montante de 123,67 euros, referente aos danos patrimoniais por ele sofridos em resultado do acidente de viação em causa nos autos.
b-) Do valor dos juros de mora que se venceram e se vencerem até integral pagamento, contados desde da data da citação da R. para a presente acção, calculados sobre o montante da indemnização descrito na alínea a), à taxa legal dos juros civis, sendo que é a de 4% que se encontra actualmente em vigor.
c-) Da quantia de 10.000 euros, correspondente ao valor dos danos não patrimoniais sofridos pelo A. T… em resultado do acidente de viação em causa nos autos e das lesões que lhe advieram em consequência do mesmo.
d-) Do valor dos juros de mora que se vencerem contados desde o trânsito em julgado da presente sentença até integral pagamento, calculados sobre o montante da
indemnização descrito na alínea c), à taxa legal dos juros civis, sendo que a de 4% é a que se encontra actualmente em vigor.
e-) Do valor do valor do velocípede pertencente ao A. T…, de marca Berg, que ficou totalmente destruída em consequência do acidente de viação em causa nos autos. Esta indemnização será liquidada em incidente a instaurar para o efeito e terá como limite máximo o montante de 377 euros, não podendo assim ultrapassar este limite.
f-) Do valor dos juros de mora que se vencerem contados desde a data do trânsito em julgado da decisão que proceder à liquidação do valor referido em e) até integral pagamento, calculados sobre o montante da indemnização descrito na alínea e), à taxa legal dos juros civis, sendo que é a de 4% é a que se encontra actualmente em vigor.
*
2-) No pagamento à A. P…, a título de indemnização:
g-) Do montante de 280 euros, referente aos danos patrimoniais por ela sofridos em que se encontram descritos supra.
h) Do valor dos juros de mora que se vencerem contados desde o trânsito em julgado da presente sentença até integral pagamento, calculados sobre o montante da indemnização descrito na alínea g), à taxa legal dos juros civis, sendo que a de 4% é a que se encontra actualmente em vigor.
*
Por outro lado, decide-se declarar improcedente a restante parte da presente acção em relação aos outros pedidos formulados pelos AA. nos presentes autos.
Consequentemente, decide-se absolver a R. da restante parte dos pedidos deduzidos pelos AA. por se considerar os mesmos improcedentes por não provados.
Condenam-se os AA., de um lado, e a R., de outro, no pagamento das custas da presente acção em razão do decaimento ( cfr. artigo 527º, do Código de Processo Civil). Fixa-se a proporção da responsabilidade dos AA. nas custas em 70% e a proporção da responsabilidade da R. nessas custas em 30%.»

Inconformados, autores e ré apelaram da sentença, tendo finalizado as respetivas alegações com as seguintes conclusões:
Recurso dos autores:
«1º Os recorrentes não se conformam com a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância relativamente à matéria de facto e matéria de direito. Porquanto:
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
2º O Tribunal a quo entende, e bem, que prova pericial consistente em exame médico-legal, efetuada por médico que trabalha para um Instituto do Estado mobilizando conhecimentos técnicos, que escapam ao conhecimento do julgador, goza de um elevado grau de credibilidade e de garantia quanto à sua veracidade.
3º No entanto, incompreensivelmente, decidiu julgar como não provados os factos constantes das alíneas B, C e D (pág. 11 da sentença, in fine).
4º Esquecendo que do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal elaborado em 05/01/2017, consta que, naquele dia, o membro inferior esquerdo do Recorrente T… apresentava, além do mais “dismetria de um centímetro em medição efetuada desde as espinhas ilíacas antero-superiores”.
5º Por conseguinte, foi feita prova clara e inequívoca do facto constante da alínea C), tendo ficado efetivamente demonstrado que em 2017 T… tinha uma dismetria de um centímetro nos membros inferiores.
6º Para além disso, do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil, elaborado em 10/08/2019 e esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito em 24/10/2019 consta que: a) “O examinando sofreu uma fratura da diáfise femoral esquerda (tratada cirurgicamente), isto é, a fatura não envolveu a placa de crescimento nem as superfícies articulares do membro, pelo que, não é expectável que condicione o crescimento do examinando de forma apreciável.”; b) “Tratando-se de um caso de lesão ortopédica em criança, está preconizada a reavaliação aos 18 a 20 anos
7º Ou seja, a fratura irá condicionar o crescimento do Recorrente T…, embora não seja de esperar que esse condicionamento seja muito notável, mas só com o final do crescimento, por volta dos 18, 19, 20 anos de idade, é que é possível tomar conhecimento de todos os efeitos e sequelas que a lesão ortopédica trouxe ao recorrente T…, apesar de ter tido alta clínica em momento anterior, por já não se encontrar doente.
8º Assim, em relação às alíneas B e D da factualidade julgada não provada, deveria ter sido considerado assente e demonstrado que:
B) A fratura do fémur esquerdo irá condicionar o crescimento do examinado, embora não seja expetável que o faça de forma apreciável.
D) Tratando-se de um caso de lesão ortopédica em criança, é indicada a reavaliação aos 18 a 20 anos.
QUANTUM INDEMNIZATÓRIO ARBITRADO AO RECORRENTE TOMÁS BAPTISTA:
9º Na fixação do quantum indemnizatório devem ser mobilizados os critérios de equidade fixando-se uma compensação adequada, apurada casuisticamente, e que tenha em consideração o grau de culpa do agente, a gravidade e intensidade do impacto das lesões sofridas, a sua duração, a situação patrimonial do lesado e do lesante.
10º A compensação indemnizatória não deverá ser miserabilista e terá ainda de ter em conta o princípio da igualdade, que implica a procura de uma uniformização de critérios jurisprudenciais.
11º Nos presentes autos, importa considerar que o acidente ocorrido no dia 16 de agosto de 2015 deveu-se a culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula …11, que tripulava a viatura distraído em relação aos demais veículos que circulavam pela via por onde seguia, a uma velocidade superior a 50 KM/h, tendo invadido a totalidade da hemifaixa esquerda de rodagem onde circulava o autor Tomás Baptista, e que após o embate, prosseguiu a sua marcha, não tendo parado, ausentando-se do local do sinistro (cfr. factos provados constantes das alíneas 2), 11), 14) e 15).
Para além disso, tendo presente toda a factualidade julgada provada constante das alíneas 13), 20), 21), 22), 23), 24), 25), 26), 27), 28), 29), 30), 31), 32) 33), 34), 35), 36), 37) 38), 39), 40), 41), 42), 43), 44), 45), 46), 47), 48), 49), 50), 52), 53), 54), 55),56) sentença proferida, relativa aos tratamentos, lesões e demais danos sofridos pelo Autor T… e que, por uma questão de economia, aqui se dá por integralmente reproduzida,
12º Tem necessariamente de concluir que o quantum indemnizatório dos danos não patrimoniais por si sofridos fixado na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância em € 10.000,00 peca ostensivamente por defeito.
13º O Tribunal Recorrido refere que os danos de natureza não patrimonial são fixados de acordo com a equidade, e ponderou decisões tomadas pelos tribunais superiores para situações semelhantes invocando vários acórdãos proferidos em 2004, 2005, 2006, 2009, 2010, 2012 e um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2014.
14º Valorou assim, para casos que considerou similares, decisões jurisprudênciais todas com mais de 8 anos, completamente desfasadas da realidade atual dos nosso Tribunais, esquecendo que o cálculo das indemnizações por danos causados por acidentes de viação deve visar a igualdade tendencial dos sujeitos lesados, não criando disparidade entre os sinistrados para casos semelhantes, tendo em conta o critério da contemporaneidade.
15º Assim, essa ponderação deve ser realizada em relação a decisões jurisprudenciais recentes e não com referência a decisões dos Tribunais proferidas há mais de 8, 10 e 15 anos, como se fez na sentença recorrida.
16º É que, temos de atender aos padrões da indemnização adotados na jurisprudência e às flutuações do valor da moeda por forma a obter-se uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 06/12/2018, Proc. nº 6311/13.8TBSTB.E1, relatado pelo Sr Dr Juiz Desembargador Tomé Ramião, disponível em www.dgsi.pt e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 13/02/2020, no Proc. nº 346/18.7T8VCT.G1, relatado pelo Sr Dr Juiz Desembargador Paulo Reis, publicado em www.dgsi.pt.
17º Procedendo-se a uma interpretação atualista da lei, considerando os autuais parâmetros: “a progressiva melhoria da situação económica individual e global, a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente à União Europeia, o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, sem se esquecer que o contínuo aumento dos prémios de seguro se deve também repercutir no aumento das indemnizações” – cfr Acórdão proferido em 30/05/2019, no Proc. nº 1760/16.2T8VCT.G1, relatado pela Srª Drª Juíza Desembargadora Margarida Sousa, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
18º Por conseguinte, mesmo para situações “iguais”, sempre os montantes indemnizatórios atuais teriam de ser superiores aos montantes indemnizatórios fixados com recurso à equidade há 8, 10 e 15 anos.
19º E, tendo em consideração a Jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à quantificação dos danos não patrimoniais no âmbito de acidente de viação, em situações idênticas à dos presentes autos, designadamente os seguintes Arestos:
1- Acórdão proferido em 14/03/2019, Revista Revista n.º 9913/15.4T8LSB.L1.S1 - 7.ª Secção, relatado pelo SR DR Juiz Conselheiro Nuno Pinto Oliveira
2- Acórdão proferido em 23/05/2019, Revista n.º 2476/16.5T8BRG.G1.S2 - 7.ª Secção, relatado pela Srª Drª Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza;
3- Acórdão de 06/06/2019, Revista n.º 1209/16.0T8CBR.C1.S1 - 7.ª Secção, relatado pela Srª Drª Juíza Conselheira Maria do Rosário Morgado;
4- Acórdão proferido em 05/11/2019, Revista n.º 7053/15.5T8PRT.P1.S1 - 1.ª Secção, relatado pela Srª Drª Juíza Conselheira Maria Clara Sottomayor
5- Acórdão proferido em 07/06/2018, Revista n.º 418/13.9TBCDV.L1.S1 - 2.ª Secção, relatado pela Srª Drª Juíza Conselheira Rosa Tching,
6- Acórdão proferido em 25/09/2018, Revista n.º 2172/14.8TBBRG.G1.S1 - 1.ª Secção, relatado pelo Sr Dr Juiz Conselheiro Roque Nogueira
7- Acórdão de 27/11/2018 ,Revista n.º 125/14.5TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, relatado pelo Sr Dr Juiz Conselheiro Roque Nogueira,
Cujos sumários se encontram disponíveis em www.stj.pt (boletins Anuais de 2018 e 2019 – Sumários das Secções Cíveis) e transcritos na motivação das presentes alegações e, por uma questão de economia, aqui se dão por integrados,
20º É evidente que a quantia indemnizatória fixada nos presentes autos é manifestamente insuficiente para real e efetiva compensação dos danos sofridos pelo A. Tomás Baptista.
21º Basta atentar no teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/03/2019, proferido no processo 837/17.1T8TMJ.L1-1, publicado em www.dgsi.pt, no qual se achou que “(…) 2.– É equilibrada a fixação de uma indemnização no valor de 12.000,00€ para ressarcir os danos não patrimoniais resultantes do acidente, quando se apurou um quantum doloris de 3 numa escala crescente até 7 e que decorridos 15 dias após o acidente o autor já tinha alguma autonomia e não tinha dores, não resultando do acidente quaisquer sequelas, pese embora a necessidade de intervenção cirúrgica a uma vista.”, para se concluir que tendo o recorrente Tomás Baptista sofrido um quantum doloris de 5 e um défice total de 45 dias e um défice parcial de 203 dias, num total de 248, a indemnização de € 10.000,00 fixada pelo Tribunal a quo é miserabilista.
22º Acresce que, o Tribunal recorrido aquando da fixação da indemnização, não valorou devidamente dois factos que, salvo melhor opinião, são de sobeja importância, a saber: À data do acidente, o recorrente T… tinha 12 anos de idade e era estudante.
23º Tais factos devem ser devidamente valorados para a fixação do montante indemnizatório do dano biológico sofrido pelo recorrente T… e na fixação da indemnização dos danos não patrimoniais por si sofridos.
24º Sucede que, o Tribunal Recorrido decidiu não arbitrar qualquer indemnização pelo dano biológico devido ao facto do lesado não ter “qualquer atividade laboral produtora de rendimentos na altura em que ocorreu o acidente de viação em causa nos autos (…) mantendo-se essa situação atualmente.”, concluindo que, sendo estudante, as sequelas resultantes do acidente não provocaram qualquer perda no seu rendimento, nem tiveram qualquer repercussão em qualquer atividade profissional produtora de rendimentos. (cfr. sentença, pág. 89, segundo parágrafo).
25º Nos autos ficou efetivamente demonstrado que o lesado T… sofreu um dano biológico, uma vez que, em consequência do acidente passou a sofrer um défice funcional permanente da integridade física, referente à afetação definitiva da integridade física ou psíquica da pessoa, com repercussões nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, independentemente das atividades profissionais, fixado em 2 pontos e as sequelas sofridas por este autor, são compatíveis com o exercício das atividades escolares habituais, mas implicam esforços suplementares (alíneas 47) e 48) dos factos provados).
26º Este dano biológico, é suscetível de ser indemnizado como dano de natureza não patrimonial, apesar do recorrente não desempenhar qualquer atividade profissional. Neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/10/2016 proferido no Proc. nº 866/11.9TBABT.E1, relatado pela Srª Dtª Juíza Conselheira Albertina Pedroso e publicado em www.dgsi.pt.
27º Na realidade, o dano biológico, enquanto afetação da capacidade funcional de uma pessoa, não se esgota nem se anula pela indemnização do dano patrimonial futuro, sendo antes um deficit que lhe acresce e que se reporta ao esforço mais intenso para o lesado desempenhar a sua atividade geral e/ou profissional, podendo por isso mesmo ser ressarcido como dano patrimonial (dano emergente e lucro cessante) ou como dano não patrimonial – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/10/2015 (Proc. nº 8791/11.1TBVNG.P1, relatado pelo Sr Dr Juiz Desembargador Tomé Ramião, in. www.dgsi.pt)
28º In casu, o dano biológico sofrido pelo autor, embora não lhe tenha proporcionado uma quebra de rendimentos devido ao facto do mesmo não desempenhar qualquer atividade profissional, deve ser ressarcido a título de dano não patrimonial, enquanto compensação pelo um esforço acrescido para o desempenho das tarefas do dia-a-dia, incluindo as familiares e sociais.
29º Mesmo que se considere o dano biológico é apenas ressarcível a título de natureza patrimonial, deveria ter sido computado nos presentes autos por se enquadrar no pedido formulado pelos AA na petição inicial.
30º Na realidade, apesar do lesado T… não ter sofrido qualquer perda de rendimentos, sempre terá de ser devidamente valorada a perda de capacidade de ganho intrinsecamente ligada ao défice funcional permanente de 2 pontos.
31º Com efeito, em tudo similar ao caso dos autos, para uma criança de 12 anos, com um défice funcional permanente de 3 pontos, o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão proferido no dia 06/12/2016, no Proc. nº 2194/12.3TBGDM.P1, relatado pelo Sr Dr Juiz Desembargador Vieira e Cunha, in www.dgsi.pt) decidiu ressarcir dano biológico, de natureza patrimonial a par dos padecimentos morais.
32º Por todo o exposto, é indeclinável que o montante indemnizatório peticionado no articulado inicial no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) é realista e perfeitamente ajustado ao ressarcimento de todos os prejuízos que o acidente de viação causou ao menor T…, incluindo o dano biológico e demais danos de natureza não patrimonial.
33º Tanto mais se tivermos presentes as decisões judiciais proferidas em relação a danos sofridos por crianças e adolescentes de 18, 15 e 12 anos de idade nos seguintes Arestos:
a) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 04/07/2019. (Revista n.º
633/14.8TBPFR.P1.S1 - 1.ª Secção, relatado pelo SR DR Juiz Conselheiro Pedro Lima Gonçalves, in www.stj.pt)
b) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/11/2018 (Revista n.º 2236/14.8T8GMR.G1.S2 - 2.ª Secção, relatado pelo Sr DR Juiz Conselheiro Tomé)
c) Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/12/2018 (Proc. nº 6311/13.8TBSTB.E1, relatado pelo Sr DR Juíz Desembargador Tomé Ramião e disponível em www.dgsi.pt)
34º Mais, considerando que a) o recorrente T… tinha 12 anos à data do acidente e era estudante; b) o acidente deu-se por culpa exclusiva do condutor do veículo segurado pela ré; c) o recorrente sofreu traumatismos no membro superior direito e membros inferiores, ferimentos no couro cabeludo, nas pernas e braço esquerdo e teve uma fratura exposta da diáfise femoral à esquerda, grau II; d) Foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, uma transfusão de sangue e internamento hospitalar; e) Esteve cerca de um mês em repouso absoluto e teve necessidade de se deslocar com o auxílio de canadianas; f) Foi acompanhado em consultas externas e deixou de realizar todas as atividades físicas e desportivas; g) Ficou com as sequelas resultantes das lesões, descritas na alínea 43) dos factos provados que são compatíveis com as atividades escolares habituais, mas implicam esforços suplementares; h) Teve alta clínica, cerca de 9 meses depois do acidente, padecendo de um défice funcionário total por 45 dias e parcial, por 203 dias, com repercussão nas atividades escolares; i) Passou a sofrer de um défice funcional permanente de 2 pontos; j) Sofreu um quantum doloris no grau 5 e um dano estético permanente no grau 2, ambos numa escala de 7; l) Sofreu fortes dores no corpo e na cabeça, uma enorme angústia e aflição e sentiu-se diminuído e frustrado durante o longo tempo (9 meses) em que esteve com limitações; m) Nos meses seguintes ao acidente, necessitou de ser auxiliado para tomar banho, a vestir-se, comer e beber, afigura-se justa e equitativa a fixação do valor da indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo recorrente e dano biológico na vertente de dano moral, a quantia de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).
DANOS FUTUROS
35º Por resultar inequivocamente da prova pericial produzida, deveria ter sido julgado como provado que: 1) Em 2017 T… tinha uma dismetria de um centímetro nos membros inferiores; 2) A fratura do fémur esquerdo irá condicionar o crescimento do examinado, embora não seja expetável que o faça de forma apreciável. 3) Tratando-se de um caso de lesão ortopédica em criança, é indicada a reavaliação aos 18 a 20 anos.
36º Assim, nos termos do artigo 564º nº 2 do Código Civil, o pedido formulado pelo autor no sentido da ré ser condenada a reparar os danos futuros que se venham a apurar em sede de liquidação ulterior ou em execução de sentença, deveria ter sido julgado procedente.
37º Na verdade, todos os danos futuros, que configurem danos emergentes das lesões sofridas no acidente de viação são imediatamente indemnizáveis, desde que sejam suficientemente previsíveis, isto é, desde que seja possível efetuar um juízo de prognose no sentido de que o dano irá ocorrer no futuro mediato, seja ele mais ou menos longínquo.
38º No caso em apreço, a fratura sofrida pelo T… no fémur esquerdo irá condicionar o seu crescimento, embora não se saiba em que medida, esperando-se que não seja de forma apreciável, mas apenas se poderá apreciar a real amplitude desse dano com toda a certeza aquando da reavaliação a realizar aos 18/20 anos.
39º É previsível que crescimento do recorrente seja afetado embora não saiba ainda em que medida, mas sempre se traduzirá num dano grave que acresce às lesões graves que já foram diagnosticadas e, portanto, merecedor de tutela jurídica.
40º Por isso, deveria a Ré ter sido condenada a reparar esse dano futuro (crescimento condicionado), relegando-se para momento posterior a fixação do quantum indemnizatório, após a reavaliação a realizar em 2020/2022, considerando que o recorrente nasceu em 29/10/2002 (cfr. assento de nascimento junto à petição inicial).
DANOS NÃO PATRIMONIAIS DOS ASCENDENTES
41º Os Recorrentes P… e G…, sofreram os danos de natureza não patrimonial evidenciados nas alíneas 54), 59), 60), 61) e 62) dos factos provados, considerando que são titulares do direito à indemnização de tais danos. Porquanto:
42º O âmbito subjetivo do direito a ser indemnizado com fundamento em responsabilidade civil extracontratual é delimitado pelo nº 1 do artigo 483º do Código Civil, admitindo esta norma a ressarcibilidade dos danos sofridos pelos pais de T…, pois a referência literal à “violação do direito de outrem e aos interesses alheios” permite incluir os danos sofridos pelos familiares do lesado direto no instituto da responsabilidade civil.
43º Com efeito o nº 1 do artigo 496º do Código Civil, apenas diz respeito à definição dos danos indemnizáveis e tem de ser conjugado precisamente com o nº 1 do artigo 483º do mesmo diploma legal, para determinar a titularidade do direito à indemnização, nomeadamente nas situações em que estamos perante danos resultantes de danos diretamente sofridos por familiares.
44º E, do disposto no nº 1 do artigo 496º do Código Civil, não resulta que sejam apenas indemnizáveis a título de danos não patrimoniais os decorrentes das lesões corporais sofridas pela vítima de acidente de viação.
45º O Código Civil apenas prevê expressamente no nº 2 do artigo 496º que, em caso de morte da vítima, certos familiares tenham direito a ser indemnizados por danos que essa morte lhes tenha causado.
46º E, como se pode ver no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 16 de janeiro de 2014, proferido no Proc. nº 6430/07.0TBBRG.S1, tem vindo a ser sustentado por parte da doutrina e da jurisprudência que o direito à indemnização por danos não patrimoniais deve ser reconhecido aos casos graves, mas nos quais não ocorreu a morte da vítima.
47º Daqui resulta que, em abstrato, a indemnização por danos não patrimoniais pode ser estendida aos familiares contemplados no nº 2 do artigo 496º do Código Civil.
48º A forma como o artigo 496º do CC se encontra estruturado, não permite que se faça uso do nº 2 para se limitar, por essa via, o âmbito de aplicação do nº 1 e não tendo o legislador previsto expressamente a indemnização dos familiares da vítima de lesão corporal, foi porque considerou que esta situação está incluída na regra geral do nº 1 do artigo 496º.
49º Ora, não tendo o recorrente T… filhos, o direito à indemnização por danos não patrimoniais próprios dos familiares pertence aos autores Patrícia e Gonçalo, que se enquadram no elenco dos familiares previstos no nº 2 do artigo 496º do Código Civil.
50º É que, os danos “reflexos” sofridos pelos autores P. e G…, não só não são excluídos pelo artigo 496º, nº 1 do Código Civil, como se enquadram no nº 1 do artigo 483º do mesmo diploma legal, porque a conduta do segurado da ré, foi adequada a violar os direitos de personalidade destes recorrentes.
51º Não podemos esquecer que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita à sua personalidade física e moral, nos termos do artigo 70º do Código Civil, sendo o fundamento da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais dos lesados mediatos, ora recorrentes P… e G…, precisamente a violação do direito de personalidade de que são titulares.
52º Na verdade, o sofrimento e as alterações de vida sentidas pelos progenitores P… e G…, que ficam obrigados a cuidar do lesado, devem ser ressarcidos porque as lesões da vítima originam em relação aos progenitores, perturbações aos familiares, perturbações da vida social, deterioração da qualidade de vida, alteração das rotinas diárias, sofrimento impossibilidade de realização de atividades em família, ou seja, há sempre uma violação dos direitos de personalidade dos familiares, no caso, os ascendentes.
53º Portanto, é violado um concreto bem da personalidade, como seja, o direito a um relacionamento familiar sadio, tranquilo e pleno, tutelado pelo nosso ordenamento jurídico com o reconhecimento de um direito subjetivo de personalidade (art. 70º do CC).
54º Daí que, assista aos recorrentes P… e G… o direito à indemnização dos prejuízos por si sofridos que foram causa direta e necessária do acidente sofrido pelo seu filho T…, nos termos do nº 1 do artigo 483º e 496º, nº 1, conjugados com o artigo 70º, todos do Código Civil, devendo ser efetuada uma interpretação atualista destas normas.
55º Tanto mais se tivermos em conta que hodiernamente, é reconhecida a tutela dos danos morais no âmbito da responsabilidade contratual, que não tem qualquer correspondência com a letra do nº 1 do artigo 496º do Código Civil e no âmbito da proteção dos donos de animais (art. 493ºA do Código Civil).
56º Portanto, as angústias, ansiedade, nervosismo e preocupações sentidas pelos Recorrentes ao longo de aproximadamente nove meses, tal como resulta da factualidade provada, são danos que pela sua gravidade merecem a tutela do direito, não se tratando de meros transtornos ou incómodos sem relevância jurídica.
57º Por todo o exposto, e sempres com o devido respeito, no que respeita à matéria de direito, a decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 496º, nº 4 e 494º do Código Civil, artigos 564º, nº 2 e artigos 483º, nº 1, 496º, nº 1 e 70º, todos do mesmo diploma legal.»
Recurso da ré:
1. A douta decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, adiante-se desde já, apreciou erradamente a matéria de facto e aplicou incorretamente o direito.
2. Resulta à saciedade dos autos que o acidente a que se reportam os autos é composto por dois momentos.
3. O primeiro momento ocorre no embate entre o veículo seguro e o velocípede DS colidem no eixo da faixa de rodagem.
4. O segundo momento ocorre no embate entre o veículo seguro e o velocípede BERG, conduzido por R…, onde o A. T… se fazia transportar.
5. Resultou do depoimento do militar da GNR e das testemunhas J… e A… que o condutor do veículo seguro e o velocípede DS (conduzido por N…) colidem no eixo da via.
6. Na sequência, o condutor do veículo seguro perde o controlo e invade a via de trânsito onde circula o velocípede DS e guina para a direita (pois se seguisse trajetória iria atropelar o condutor do velocípede DS que se encontrava no chão) e colhe o velocípede BERG onde o A. T… se fazia transportar, conduzido por R….
7. Os embates ocorrem em segundos atendendo às velocidades dos intervenientes e proximidade dos velocípedes 1 ou 2 metros.
8. Andou mal o douto tribunal a quo ao dar como provados os factos dos pontos 2, 3, 4, 8, 10, 11, 12 e 15.
9. Em respeito à prova produzida, deveriam ter sido dados como provados os seguintes factos:
2- Nessa ocasião, o veículo …11 circulava a uma velocidade não concretamente apurada.
3- Na mesma data, hora, e via, referidas em 1), no sentido de trânsito oposto ao veículo … 11, ou seja Atouguia-Alvega, circulava um velocípede da marca “DS”, pertencente a N…, junto ao eixo da via.
4- Ainda na mesma data, hora e via, referidas em 1), no sentido de trânsito oposto ao veículo …11, ou seja Atouguia-Alvega, circulava alguns metros mais atrás do velocípede DS, um outro velocípede da marca “Berg”, conduzido por R…, pedalando em pé, transportando atrás sentado no selim o A. T…, e a este pertencente, do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de trânsito, mas no meio da via.
8- Após começar a descrever a curva referida em 1), o veículo …11 colidiu com o velocípede DS no eixo da via, despistou-se e invadiu a hemi-faixa da esquerda, contrária à sua, atento o sentido por onde circulava, embatendo no velocípede BERG onde o A. T… se fazia transportar.
10- O embate no velocípede DS ocorre no eixo da faixa de rodagem, próximo do nº 147, da Rua dos Calços.
11- Na sequência, o veículo …11 despistou-se, invadiu na sua totalidade a hemi-faixa esquerda de rodagem, atento o seu sentido de marcha, guinou para o lado DIREITO, tendo ido embater com a parte da frente do lado direito no velocípede Berg.
12- O embate referido em 11) ocorreu na hemi-faixa direita de rodagem, atento o sentido de circulação do velocípede Berg, próximo do nº 147, da Rua dos Calços, no meio.
10. Atendendo aos fatos que deveriam ter sido dados como provados, conclui-se que o acidente não ocorreu exclusivamente por culpa do condutor do veículo seguro, ao arrepio do que foi decidido na 1ª Instância.
11. A ora Recorrente concluiu que o condutor a viatura segura terá contribuído para a eclosão do acidente, numa percentagem de culpa da ordem de 50%.
12. Face ao exposto e no estrito cumprimento das regras constantes do Capítulo III do Decreto Lei nº 291/2007 de 21 de agosto, a Recorrente considera que o A. T… ao fazer-se transportar num velocípede sem as devidas condições de segurança, agravou, de modo decisivo, as suas lesões sequelas (tendo em conta o disposto nos artigos 494º, 496 nº 4, 563º, 566º, 570º e 572º do Código Civil), como adiante se demonstrará.
13. O condutor do velocípede onde se fazia transportar o A. T…, fazia uma condução em completa insegurança, uma vez conduzia o referido veículo de pé, reservando o selim para o A. T….
14. Nos termos do artigo 11º nº 1 do Código da Estrada, “todo o veículo que circule na via pública deve, durante a sua condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança” e, nos termos do artigo 24º “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atento… às características… do veículo, à carga transportada possa, em condições de segurança, executaras manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
15. Acrescentando que, nos termos do artigo 91º nº 2 do Código da Estrada o velocípede “só podia transportar o respetivo condutor” uma vez que o velocípede em causa não tinha as condições previstas nas alíneas a) b) e c), para circular com duas pessoas.
16. A ora Recorrente aceita que, para efeitos de se determinar o nexo de causalidade adequado do acidente, a manobra do condutor do veículo de matricula …11 terá contribuído, para a eclosão do acidente, mas não se aceita que a sua conduta tenha sido a conduta exclusiva, que determinou o acidente.
17. Também é censurável a conduta do condutor do velocípede – R… - ao transportar um ocupante no selim da bicicleta, desvirtuando as condições de segurança na condução e no transporte legalmente descritas, pondo em perigo a sua vida e a do ocupante que se fazia transportar.
18. Da prova produzida em audiência de julgamento, verificou-se que o acidente ocorre ainda por culpa do condutor do velocípede DS, conduzido por N…, já que é em virtude do primeiro embate que o condutor do veículo seguro se despista e colhe o A. T… e o R….
19. Na repartição de culpas, deverá igualmente ser tida em consideração a conduta do condutor do velocípede DS.
20. No entanto, ambos os condutores dos velocípedes contribuíram, pela sua conduta, para a produção do resultado – o acidente - sendo, no entanto, de graduar de modo diferente a conduta de cada um.
21. O menor T…, ao tomar a iniciativa de se fazer transportar no selim do velocípede, enquanto o seu amigo conduzia a mesma de pé, contribuiu igualmente e de fora decisiva, para o agravamento das suas lesões corporais e sequelas funcionais.
22. Em matéria de concurso do facto culposo do lesado para a produção dos danos ou para o seu agravamento, tal como refere a Douta Sentença, dever-se-á atender ao disposto no artigo 570º do Código Civil.
23. Fazer-se transportar nas condições descritas e aceites é gravemente censurável, atento o facto de que estamos perante uma situação de perigo iminente, com as consequências que daí possam advir, na medida em que se expõe o próprio corpo a todas as vicissitudes que possam ocorrer num trajeto, ainda que curto, desde lesões leves, até à morte.
24. Pela pesquiza de Decisões Jurisprudências, a Recorrente não encontrou nenhum caso que tivesse merecido tratamento análogo a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, isso não obsta a que, se tenha de julgar com justiça, atentas as condutas em presença.
25. Veja-se a propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (processo nº 2044/06.0TJVNF.P1.S1 de 21 de fevereiro de 2013) em que se atribuiu 15 a 20% de contribuição do lesado, por falta de cinto de segurança.
26. Já o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de janeiro de 2008 (processo nº 07A3014) atribuiu 40% de responsabilidade ao lesado, pelo facto do mesmo não usar capacete, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de maio de 2014 (processo nº 1070/11.TBVCT.G1.S1, reduziu em 1/3, pelo mesmo motivo.
27. No caso concreto, o A. T… ao fazer-se transportar, nas condições descritas na douta petição inicial e aceites pela ora contestante, contribuiu para o agravamento do dano causado pelo acidente em si próprio, e, por essa via, deverá a indemnização, ser reduzida, porque se trata de um a conduta claramente reprovável, ostensivamente reveladora da inobservância de cuidado (sendo menor, obviamente, é aplicável o regime especial da menoridade, com responsabilidade dos pais, por inerência do vínculo).
28. Os pais do A. T…, à data do evento menor, não cuidaram ou preservaram integridade física do seu filho, independentemente da conduta do condutor do veículo automóvel ou do condutor do velocípede e essa sua atitude foi idónea a causar as lesões corporais sofridas e as sequelas daí resultantes, tivesse o acidente ocorrido por culpa exclusiva do condutor da bicicleta, ou culpa exclusiva do condutor do veículo automóvel.
29. Tal atitude de sujeição, tem de ter direta repercussão na redução dos inerentes danos provocados e direta repercussão na redução do correspondente montante indemnizatório, tal como exige o artigo 570º do Código Civil.
30. Pois é nessa medida que se deve aferir (por presunção judicial) que a conduta omissa dos pais do menor Tomás (alicerçada na sua própria conduta) determinou um agravamento de danos,
31. A atitude do menor (à data dos factos) – imputável aos seus ascendentes por omissão do dever de auxilio - é parecida com alguém que sabendo não poder caminhar por cima dos resguardos laterais de uma ponte, teima, em assumir tamanha barbaridade com a anuência dos pais: a qualquer momento pode cair
32. Daí que a Recorrente entenda que a indemnização deva ser reduzida, em pelo menos, 30%, respeitando assim o disposto no artigo 570º do Código Civil.
33. Deve assim a douta Sentença ser revogada e substituída por outra que efetue uma repartição da responsabilidade pelo acidente e reduza em pelo menos, 30% o valor indemnizatório a ser pago pela Recorrente, respeitando assim o disposto no artigo 570º do Código Civil.»

Os autores responderam ao recurso da ré, defendendo a sua improcedência.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
- se o autor T… teve culpa na produção do acidente que justifique a redução da indemnização arbitrada;
- se os danos não patrimoniais do autor T…, incluindo nestes o dano biológico, devem ser valorados em montante superior ao que foi fixado na sentença;
- se devem ser considerados danos futuros;
- se os autores P… e G… (pais do autor T…) têm direito a uma indemnização por danos não patrimoniais.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1 - No dia 16 de Agosto de 2015, pelas 17 horas, o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula …11, de marca e modelo: Seat Ibiza, pertencente à empresa C…, Lda., conduzido por J…, circulava pela Rua dos Calços, na localidade e freguesia de Atouguia, concelho de Ourém, na área de competência deste Tribunal de Ourém, no sentido Alvega-Atouguia, na direção de uma curva existente na via por onde circulava, com visibilidade condicionada pela existência de uma vedação com uma sebe com cerca de 2 metros de altura, a descrever para a sua direita, atento o seu sentido de trânsito.
2 - Nessa ocasião, o veículo …11 circulava a uma velocidade superior a 50 km/hora.
3 - Na mesma data, hora, e via, referidas em 1), no sentido de trânsito oposto ao veículo …11, ou seja, Atouguia-Alvega, circulava um velocípede da marca “DS”, pertencente a N…, e a este pertencente, do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de trânsito, junto ao eixo da via.
4 - Ainda na mesma data, hora e via, referidas em 1), no sentido de trânsito oposto ao veículo …, ou seja, Atouguia-Alvega, circulava alguns metros mais atrás do velocípede DS, um outro velocípede da marca “Berg”, conduzido por R…, pedalando em pé, transportando atrás sentado no selim o A. T…, e a este pertencente, do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de trânsito, junto à berma.
5 - No local a faixa de rodagem tem 5,80 metros de largura, tem duas vias de trânsito, uma em cada sentido de marcha, com 2,90 metros de largura, cada uma delas, sem marcas rodoviárias.
6 - O piso da faixa de rodagem é de asfalto e encontra-se em razoável estado de conservação.
7 - Não se encontrava a chover e o piso estava seco.
8 - Após começar a descrever a curva referida em 1), o veículo …11 saiu da hemi-faixa direita, por onde circulava, e invadiu e entrou parcialmente na hemi-faixa da esquerda, contrária à sua, atento o sentido por onde circulava.
9 - Na sequência, o veículo …11 foi embater com a parte da frente do lado esquerdo, no velocípede DS.
10 - O embate referido em 9) ocorreu na hemi-faixa direita de rodagem, atento o sentido de circulação do velocípede DS, próximo do nº 147, da Rua dos Calços, junto ao eixo da via.
11 - Na sequência, o veículo …11 despistou-se, guinou para o lado esquerdo, invadiu na sua totalidade a hemi-faixa esquerda de rodagem, atento o seu sentido de marcha, tendo ido embater com a parte da frente do lado direito no velocípede Berg.
12 - O embate referido em 11) ocorreu na hemi-faixa direita de rodagem, atento o sentido de circulação do velocípede Berg, próximo do nº 147, da Rua dos Calços, junto à berma do lado direito.
13 - Na sequência do embate referido em 11), o A. T… embateu no capô e no vidro do para-brisas do veículo …11, e foi projetado para a valeta do lado direito, atento o sentido de marcha do velocípede Berg.
14 - Após o embate referido em 11), o veículo …11 prosseguiu a sua marcha, não tendo parado, ausentando-se do local do sinistro.
15 - Na ocasião o condutor do veículo …11 tripulava esta viatura distraído em relação aos demais veículos que circulavam pela via por onde seguia.
16 - Na data referida em 1), o proprietário da viatura havia transferido para a R. a responsabilidade pelos danos causados a terceiros em resultado de acidente de viação da responsabilidade do veículo de matrícula …11, através da celebração de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, com a apólice n.º 4512697.
17 - Em resultado do embate referido em 11) o velocípede Berg sofreu estragos, que a destruíram por completo, tornando inviável a sua reparação.
18 - Na sequência do embate referido em 11), o telemóvel, de marca Nokia Lumia 630, que o A. T… trazia consigo embateu no chão, ficando com o ecrã “touch” e a tampa da bateria partidos.
19 - A reparação do ecrã e da tampa da bateria do telemóvel referido em 18) tem o custo total de 96,70 euros.
20 - Na sequência do embate referido em 11), o A. T… sofreu traumatismo no membro superior esquerdo e nos membros inferiores.
21 - Após o sinistro, o A. T… foi transportado de ambulância para o Serviço de Urgência do Hospital Pediátrico do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.
22 - No hospital referido em 21) foi diagnosticado ao A. T… uma fatura exposta da diáfise femoral à esquerda, grau II, sem compromisso neuro-vascular.
23 - Na sequência do embate referido em 11), o A. T… sofreu ferimentos no couro cabeludo, na perna direita e no braço esquerdo.
24 - No serviço de urgência do hospital referido em 21) procederam à desinfeção do couro cabeludo e aplicaram cola na ferida que o A. T… tinha.
25 - No mesmo serviço de urgência procederam à suturação com pontos reabsorvíveis da ferida inciso-contusa que o A. T… tinha na face anterior da perna direita.
26 - Ainda no mesmo serviço de urgência procederam à lavagem e desbridamento da ferida da face dorsal do antebraço esquerdo.
27 - No dia 17-8-2015, o A. T… foi submetido a uma intervenção cirúrgica no bloco operatório do hospital referido em 21) para desbridamento cirúrgico e encavilhamento do fémur esquerdo com cavilha pedinal, bloqueio estático proximal com parafuso de 4,5 x 50 mm e distal com parafuso 4,5 x 30 mm.
28 - No dia 19-8-2015 foi efetuada uma transfusão de sangue ao A. T….
29 - No dia 20-8-2015, o A. T… iniciou levantamento e primeiro treino de marcha.
30 - O A. T… permaneceu internado no hospital referido em 21) até ao dia 23-8-2015.
31 - Durante o período de internamento, foi ministrada ao A. T… medicação variada, incluindo antibiótico endovenoso.
32 - Após a saída do hospital referido em 21), o A. T… continuou a fazer pensos no antebraço esquerdo da extensão da Atouguia do Centro de Saúde de Ourém, e a tomar anti-inflamatório e antibiótico no domicílio.
33 - Depois da saída do hospital referido em 21), o A. T… podia andar e tocar com o pé esquerdo no chão, sem que pudesse apoiar esse pé no chão.
34 - O A. T… permaneceu em repouso absoluto no seu domicílio até ao início do ano letivo de 2015/2016, em meados de Setembro de 2015.
35 - Foram adquiridas duas canadianas, pelo preço de 18 euros, que o A. T… utilizou para se deslocar até ao dia 10-11-2015.
36 - O A. T… foi observado em três consultas externas de ortopedia geral e de ortopedia infantil, sendo acompanhado na altura por ambos os progenitores, os AA. P… e G….
37 - Por indicação médica, o A. T… deixou de realizar todas as atividades físicas e desportivas.
38 - Em 4-3-2016, o A. T… foi sujeito a nova intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido retirada a cavilha pedinal do fémur esquerdo.
39 - O A. T… teve alta hospitalar no da 5-3-2016, tendo o médico lhe prescrito que deambulasse com o apoio de canadianas e carga parcial do membro inferior esquerdo conforme tolerância.
40 - O A. T… utilizou novamente as canadianas para se deslocar até ao dia 19-4-2016.
41 - No dia 19-4-2016, o A. T… foi sujeito a consulta médica, apresentando nessa altura marcha sem claudicação, mobilidade simétricas das ancas e joelhos sem dor, sem dismetria relevante, discreta atrofia muscular do membro inferior esquerdo.
42 - Na data referida em 41), foi concedida alta clínica ao A. T…, com a indicação de que apenas poderia retomar as atividades desportivas em Maio de 2016.
43 - O A. T… ficou com as seguintes sequelas resultantes das lesões provocadas pelo embate referido supra: a) Na cabeça: cicatriz hipocrómica na região frontal esquerda, recoberta por cabelos, medindo 2 cm de comprimento por 0,5 cm de largura; b) membro superior esquerdo: várias cicatrizes hipocrómicas na face posterior do antebraço, a maior localizada no terço distal, medindo 4 cm de comprimento por 1 cm de largura, e a menor medindo 2 cm de comprimento por 1 cm de largura; c) no membro inferior direito: vestígio cicatricial hipocrómico no terço distal da face anterior da perna, medindo 4 cm de comprimento; d) membro inferior esquerdo: duas cicatrizes hipocrómicas de características cirúrgicas, longitudinais, no terço proximal da face lateral da coxa, a maior medindo 7 cm de comprimento e a menor medindo 2 cm de comprimento; cicatriz hipocrómica no terço médio da face anterior da coxa, medindo 4 cm de comprimento; vestígio cicatricial hipocrómico no terço distal da face lateral da coxa, medindo 2 cm de comprimento; ausência de amiotrofia da coxa e perna, e de dismetria clínica do membro, comparativamente ao contra lateral, mobilidades da anca, joelho e tornozelo/pé indolores, conservadas e simétricas.
44 - A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo A. T… ocorreu em 19-4-2016, data em que recebeu alta clínica.
45 - O A. T… esteve em situação de défice funcionário temporário total pelo período de 45 dias, e em défice funcional temporário parcial pelo período de 203 dias.
46 - O A. T… teve uma repercussão temporária nas atividades escolares parcial devido às lesões que sofreu na sequência do sinistro referido supra pelo período de 248 dias.
47 - O A. T… passou a sofrer um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, referente à afetação definitiva da integridade física ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, independentemente das atividades profissionais, fixado em 2 pontos.
47-a) Em 2017, o autor T… tinha uma dismetria de um centímetro nos membros inferiores.
47-b) A fratura do fémur não envolveu a placa de crescimento nem as superfícies articulares do membro, pelo que não é expectável que condicione o crescimento do examinando de forma apreciável.
47-c) Tratando-se de um caso de lesão ortopédica em criança, é indicada a reavaliação do autor aos 18 a 20 anos[1].
48 - As sequelas sofridas pelo A. T… são compatíveis com o exercício das atividades escolares habituais, mas implicam esforços suplementares.
49 - O A. T… sofreu um quantum doloris fixado no grau 5, numa escala de 7.
50 - O A. T… passou a sofrer de um dano estético permanente fixado no grau 2, numa escala de 7.
51 - O A. T… não ficou com sequelas que implicassem dano permanente nas atividades desportivas e de lazer.
52 - Na data referida em 1), o A. T… tinha 12 anos de idade, e era estudante.
53 - Após o embate referido em 11), o A. T… sofreu fortes dores no corpo e na cabeça, uma enorme angústia e aflição.
54 - Nos meses seguintes ao sinistro referido supra, a A. P… auxiliou o A. T… a tomar banho, vestir-se e dava-lhe água e comida quando ele necessitava.
55 - O A. T… não realizou aulas de educação física até Maio de 2016.
56 - Durante o período temporal em que esteve com limitações físicas, o A. T… sentiu-se frustrado e diminuído.
57 - O A. T… ficou desgostoso pelo facto da sua bicicleta ter ficado destruída na sequência do sinistro referido supra.
58 - Os medicamentos que o A. T… teve de tomar para tratamento às suas lesões tiveram o custo total de 8,97 euros.
59 - Entre os dias 21-9-2015 e 10-11-2015, e entre os dias 7-3-2016 e 18-4-2016, a A. P… levou e trouxe o A. T…, em veículo próprio, da sua residência, sita em Casal Novo, Atouguia, até ao estabelecimento escolar que ele frequentava, designadamente o Colégio de São Miguel, sito em Fátima, sendo que esses dois locais distam 8,6 quilómetros um do outro.
60 - Os AA. P… e G… sofreram enorme angústia e profunda ansiedade e nervosismo logo que tomaram conhecimento do sinistro, por desconhecerem o estado de saúde do A. T….
61 - Os AA. P… e G… mantiveram-se preocupados com o estado de saúde do A. T… e da sua recuperação física até ele receber alta médica.
62 - Durante o período 16-8-2015 a 23-8-2015, a A. P… permaneceu diária e consecutivamente no Hospital Pediátrico de Coimbra, aí fazendo as suas refeições, chegando a dormir numa cadeira, para poder acompanhar o A. T….
E considerou não provados os seguintes factos:
A - O A. T… tinha adquirido o velocípede Berg dois dias antes da data referida em 1), pelo preço de 377 euros.
B - A fratura do fémur esquerdo irá condicionar o crescimento ósseo desse osso da perna do A. T….
C - Em 2017, o A. T… tinha uma dismetria de um centímetro nos membros inferiores.
D - A dismetria referida em C) irá acentuar-se no decurso do tempo enquanto o A. T… estiver em crescimento[2].
E - Na data referida em 1), o A. T… era uma criança forte, saudável, alegre e bem-disposta, sociável com adultos e crianças, passava grande parte do tempo em brincadeiras no exterior com amigos e em atividades ao ar livre.
F - Na altura da realização das duas intervenções cirúrgicas foi evidente o estado de nervosismo, ansiedade e doloroso do A. T….
G - Nas semanas seguintes às intervenções cirúrgicas, o A. T… sentiu profundas e contínuas dores ao nível da perna esquerda e mal-estar físico devido aos ferimentos que sofreu na cabeça e nos membros, que o impediam de se movimentar, dormir e descansar adequadamente.
H - A realização da higiene pessoal causava dores e mal-estar físico ao A. T….
I - No ano letivo de 2015/2016, o rendimento escolar do A. T… foi prejudicado pelo facto de ter de faltar às aulas para comparecer em consultas médicas nos dias 8 e 29 de Setembro e 20 de Novembro de 2015 e 19 de Abril de 2016, e para ser submetido a intervenção cirúrgica no dia 4 de Março de 2016.
J - As atividades de jogar futebol, basquetebol e corridas, com os colegas de estudo e amigos que o A. T… realizava antes do sinistro, foram suspensas.
K - Após o sinistro, o A. T… ficou mais introvertido e menos sociável, começando a passar longos períodos dentro de casa, isolando-se dos colegas e amigos e receando brincar com os mesmos na rua.
L - Durante o período de internamento do A. T… no Hospital Pediátrico de Coimbra, ou seja, de 16-8-2015 a 23-8-2015, o A. G… deslocou-se do seu domicílio àquele hospital, para dar apoio ao seu filho, regressando depois a casa.
M - Nas deslocações referidas em L), o A. G… despendeu a quantia de 132 euros na aquisição de combustíveis, e a quantia de 87,60 euros no pagamento de taxas de portagem.
N - Os AA. P… e G… mantiveram-se num estado de enorme angústia e profunda ansiedade e nervosismo, de forma ininterrupta, até ao dia 17-8-2015, devido à intervenção cirúrgica a que o A. T… foi sujeito nesse dia, e ainda nos meses subsequentes, por se sentirem impotentes para colmatar as dores que o A. T… padecia, devido aos ferimentos que sofreu.
O - Os AA. P… e G… tinham um enorme receio que a fatura da perna pudesse deixar sequelas ao A. T…, que se projetassem para o seu futuro, como por exemplo coxear, dismetria dos membros inferiores, ou atrofia muscular.
P - O A. G… sofreu desgaste e cansaço psicológico devido às deslocações diárias ao hospital durante o internamento do A. T… e para as consultas de ortopedia.
Q - A A. P… cancelou as suas férias pessoais, que iriam começar no dia 17-8-2015, para acompanhar o A. T… durante o período do seu internamento.
R - Para realizar o acompanhamento do A. T…, a A. P… chegou muitas vezes atrasada ao seu local de trabalho, e faltou nos dias em que foi necessário levar o seu filho às consultas e tratamentos.
S - A situação em causa provocou um enorme desgaste físico e psicológico à A. P…, com muito cansaço, nervosismo, ansiedade, aflição e desgosto.
T - Na ocasião referida em 1), o velocípede Berg referido em 4) circulava junto ao meio da faixa de rodagem, em paralelo com o velocípede DS referido em 3).

Da reapreciação da prova gravada em resultado da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto: prova documental, prova pericial declarações de parte e depoimentos testemunhais registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que os recorrentes/autores cumpriram formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificaram os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgado, indicaram os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por eles propugnados e referiram a decisão que no seu entender deveria sobre ele ter sido proferida, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto[3].
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Infere-se das conclusões dos recorrentes que estes estão em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto relativa às alíneas B), C) e D) dos factos não provados.
E têm razão. Senão vejamos.
Como referem os recorrentes, tendo o Tribunal a quo entendido, e bem, que a prova pericial consistente em exame médico-legal, efetuada por médico que trabalha para um Instituto do Estado mobilizando conhecimentos técnicos, que escapam ao conhecimento do julgador, goza de um elevado grau de credibilidade e de garantia quanto à sua veracidade, não podia deixar de considerar provada a matéria de facto constante das mencionadas alíneas, até porque, acrescentamos nós, não foi produzida qualquer outra prova que permitisse inferir aquele juízo técnico-científico.
Com efeito, consta do Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal, elaborado em 05.01.2017, que o membro inferior esquerdo do autor T… apresentava, além do mais «dismetria de um centímetro em medição efetuada desde as espinhas ilíacas antero-superiores», pelo que não há qualquer dúvida que foi feita prova do facto constante da dita alínea C), isto é, que «[e]m 2017, o A. T… tinha uma dismetria de um centímetro nos membros inferiores.».
No que concerne à factualidade constante das alíneas B) e D) dos factos não provados, há que ter em consideração o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil, elaborado em 10.08.2019, assim como os esclarecimentos prestados pelo Senhor Perito em 24.10.2019, dos quais consta que «o examinando sofreu uma fratura da diáfise femoral esquerda (tratada cirurgicamente), isto é, a fratura não envolveu a placa de crescimento nem as superfícies articulares do membro, pelo que não é expectável que condicione o crescimento do examinando de forma apreciável»[4], e que «tratando-se de um caso de lesão ortopédica em criança, está preconizada a reavaliação aos 18 a 20 anos»[5].
Daqui pode extrair-se que a identificada fratura irá condicionar o crescimento do autor T…, ainda que não seja expetável que esse condicionamento seja muito apreciável, e que só com o final do crescimento, por volta dos 18 a 20 anos de idade, seja possível conhecer todos os efeitos e sequelas que a lesão ortopédica trouxe ao autor, não obstante este ter tido alta clínica em 19.04.2016, por já não se encontrar doente.
Assim, devem ser eliminadas dos factos não provados as alíneas B), C) e D) e aditados ao elenco dos factos provados os seguintes pontos:
47-a) Em 2017, o autor T… tinha uma dismetria de um centímetro nos membros inferiores.
47-b) A fratura do fémur não envolveu a placa de crescimento nem as superfícies articulares do membro, pelo que não é expectável que condicione o crescimento do examinando de forma apreciável.
47-c) Tratando-se de um caso de lesão ortopédica em criança, é indicada a reavaliação do autor aos 18 a 20 anos.

A ré/recorrente impugnou também a decisão relativa à matéria de facto, cumprindo os ónus de impugnação respetivos, tendo inclusivamente indicado com exatidão as passagens da gravação nas quais funda o recurso, transcrevendo até excertos do que disseram as testemunhas que convocou a propósito, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso nesta parte.
Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito do Tribunal a quo, espelhada na fundamentação da decisão de facto vertida na decisão recorrida.
Infere-se das conclusões da recorrente que esta está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto relativa aos pontos 2, 3, 4, 8, 10, 11, 12 e 15 dos factos provados, referente à dinâmica do acidente.
O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto aos mencionados pontos nos seguintes termos[6]:
«(…), para efeito de prova dos factos referidos nos pontos 1), 2), 3), 4), 5), 6), e 7), o Tribunal levou em consideração o auto de notícia junto de fls. 184 e 185, a participação do acidente de viação que se encontra junta aos autos de fls. 186 a 191, e ainda o relatório da investigação realizada pela GNR, que se encontra junto de fls. 192 e 193. Designadamente consta nestes documentos quais os veículos intervenientes no acidente de viação, designadamente as suas características, os respectivos condutores e os respectivos proprietários. Consta ainda a data, hora e local onde ocorreu o acidente de viação. Para além disso, foi possível verificar as características do local onde ocorreu o acidente, e o sentido por onde circulavam o veículo segurado pela R., e os velocípedes, na altura em que ocorreu o acidente de viação. Consta ainda desses documentos que a estrada onde ocorreu o acidente tem dois sentidos opostos de trânsito e ainda a largura da faixa de rodagem. Também consta da participação o estado do tempo quando ocorreu o acidente. A testemunha António Silva, que foi o militar da G.N.R. que acorreu ao local e que elaborou relatório, confirmou o teor do mesmo. Designadamente, veio confirmar que os elementos que constam da participação e do relatório estão totalmente correctos não tendo cometido qualquer erro quanto às mesmas. Além disso, constam ainda da participação as medidas da estrada, o estado do pavimento, e ainda as condições climatéricas.
Por outro lado, para a prova dos factos referidos nos pontos 1), 2), 3), 4), 8), 9), 10), 11), 12), 13), 14), levou-se em consideração o depoimento da testemunha A…, que seguia numa outra bicicleta à frente dos velocípedes que foram envolvidos no acidente de viação em causa nos autos, e ainda das testemunhas A… e J…, que se encontravam no interior de um veiculo, à entrada de um entroncamento a poucos metros do local onde ocorreu o acidente. Na verdade, todas elas demonstraram ter conhecimento directo dos factos e realizaram um depoimento lógico e credível, que resultou assim convincente para o Tribunal. Na verdade, vieram tais testemunhas confirmar as características dos veículos intervenientes no acidente de viação. Referiram ainda que o veículo automóvel circulava a uma velocidade superior a 50 km/hora quando começou a descrever uma curva existente no local, que tem pouca visibilidade, na medida em que se encontra tapada por uma vedação. Que no sentido oposto seguia o velocípede conduzido pelo N…, que circulava junto ao eixo da via. Alguns metros mais atrás seguia o velocípede do A. T…, onde este era passageiro e que era conduzido pelo R…. Que o velocípede do A. T… seguia na hemi-faixa direita, atento o seu sentido de trânsito, junto à berma desse lado. Que, ao descrever a curva, o veículo automóvel invadiu parcialmente a hemi-faixa esquerda de rodagem e foi embater na bicicleta do N…. Que, devido a esse embate e ao excesso de velocidade, o condutor do veículo automóvel perdeu o controlo do mesmo. Na sequência o veículo automóvel entrou em despiste invadiu por completo a hemi-faixa esquerda de rodagem, atento seu sentido de trânsito e foi embater no velocípede do A. T…. Na sequência desse embate, o A. T… embateu no capô e no para-brisas do veículo automóvel, e foi projectado para a valeta do lado direito. Que após os embates o veículo automóvel prosseguiu a sua marcha, não tendo parado, e ausentando-se do local do sinistro.»
Depois de ouvirmos integralmente todos os depoimentos prestados em julgamento, e não apenas os excertos transcritos pela recorrente no corpo alegatório, afigura-se-nos inteiramente correta a apreciação da prova efetuada pelo Sr. Juiz a quo, a qual denota ter sido feita uma análise crítica, conjugada e concatenada dos depoimentos das testemunhas inquiridas, com o auto de notícia, a participação de acidente de viação, o relatório de investigação realizado pela GNR, e o recurso às regras da experiência comum.
Vejamos, pois, cada um dos factos impugnados.
No ponto 2 deu-se como provado que no momento que antecedeu o acidente, o veículo automóvel DG circulava a uma velocidade superior a 50 km/hora.
Entende a recorrente que devia ser dado como provado que «[n]essa ocasião, o veículo …11 circulava a uma velocidade não concretamente apurada».
Mas não tem razão, sendo bem elucidativos os depoimentos das testemunhas que depuseram sobre tal matéria.
Assim, a testemunha A…, que se encontravam no interior de um veículo à entrada de um entroncamento, a poucos metros do local onde ocorreu o acidente, afirmou que o carro vinha rápido, possivelmente a mais de 50Km/hora.
A testemunha A…, que seguia numa outra bicicleta à frente dos velocípedes que foram intervenientes no acidente de viação em causa nos autos, referiu que a velocidade do carro era alta, mais de 50 Km/h, pois quando o DG passou por si, já fora de mão, percecionou que o mesmo circulava a grande velocidade, e por isso gritou “carro”.
Por sua vez, a testemunha A…, militar da GNR, que confirmou o teor do relatório por si elaborado e junto aos autos, explicou que o condutor do veículo ia a abrir a curva e que caso circulasse a uma velocidade de 50 km/h, teria conseguido travar ou desviar-se para a direita, se tivesse optado por estas manobras.
Mantém-se, assim, intocado o ponto 2 dos factos provados.
Analisaremos de seguida, em conjunto, os pontos 3, 4, 8, 10, 11 e 12, dada a sua ligação entre si.
No ponto 3 foi dado como provado que «[n]a mesma data, hora, e via, referidas em 1), no sentido de trânsito oposto ao veículo …11, ou seja, Atouguia-Alvega, circulava um velocípede da marca “DS”, pertencente a N…, e a este pertencente, do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de trânsito, junto ao eixo da via».
Defende a recorrente que deve ser retirado do ponto 3 que o velocípede de marca DS circulava do lado direito da faixa de rodagem.
Por sua vez, no ponto 4 deu-se como provado que «no sentido de trânsito oposto ao veículo …11, ou seja, Atouguia-Alvega, circulava alguns metros mais atrás do velocípede DS, um outro velocípede da marca “Berg”, conduzido por R…, pedalando em pé, transportando atrás sentado no selim o A. T…, e a este pertencente, do lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de trânsito, junto à berma».
Segundo a recorrente devia dar-se como provado que o velocípede no qual seguia o autor Tomás circulava no “meio da via” e não junto à berma.
No ponto 8 foi dado como provado que «[a]pós começar a descrever a curva referida em 1), o veículo …11 saiu da hemi-faixa direita, por onde circulava, e invadiu e entrou parcialmente na hemi-faixa da esquerda, contrária à sua, atento o sentido por onde circulava».
Segundo a recorrente devia ser dado como provado que após descrever a aludida curva, «o veículo …11 colidiu com o velocípede DS no eixo da via, despistou-se e invadiu a hemi-faixa da esquerda, contrária à sua, atento o sentido por onde circulava, embatendo no velocípede BERG onde o A. T… se fazia transportar».
No ponto 10 está dado como provado que «[o] embate referido em 9, isto é, o embate do veículo DG, com a parte da frente do lado esquerdo, no velocípede DS, «ocorreu na hemi-faixa direita de rodagem, atento o sentido de circulação do velocípede DS, próximo do nº 147, da Rua dos Calços, junto ao eixo da via».
Entende a recorrente que devia dar-se como provado, que o embate no velocípede DS ocorreu no eixo da faixa de rodagem e não na hemi-faixa direita de rodagem.
No ponto 11 está dado como assente que nessa sequência, o veículo DG «despistou-se, guinou para o lado esquerdo, invadiu na sua totalidade a hemi-faixa esquerda de rodagem, atento o seu sentido de marcha, tendo ido embater com a parte da frente do lado direito no velocípede Berg».
Segundo a recorrente devia acrescentar-se que o veículo DG, antes de ter ido embater no velocípede onde seguia o autor, “guinou para o lado direito”.
E no ponto 12 deu-se como provado que o referido embate «ocorreu na hemi-faixa direita de rodagem, atento o sentido de circulação do velocípede Berg, próximo do nº 147, da Rua dos Calços, junto à berma do lado direito».
Sustenta a recorrente que o embate não se deu junto à berma do lado direito, mas “no meio”.
Ora, em nenhum destes pontos da matéria de facto impugnados assiste razão à recorrente, sendo inequívocos a este respeito os depoimentos das já referidas testemunhas A…, Na…, Ant…, bem como o depoimento da testemunha J…, que se encontrava no interior do mesmo veículo onde estava a testemunha A…, e é isso que também resulta das declarações de parte do autor T….
A testemunha A… afirmou que a bicicleta da frente (DS) ia mais a meio da estrada e a de trás – onde seguia o autor T… - mais para o lado direito a um ou dois metros de distância, e que o veículo automóvel vinha meio fora de mão, mais do lado esquerdo do que do lado direito, tendo embatido na primeira bicicleta (DS) e foi mais para o lado esquerdo, embatendo na segunda bicicleta e quase vai bater no veículo onde seguia a testemunha.
A testemunha Na… disse que o velocípede onde seguia o autor T… ia na borda junto à berma e o do N… estava na “nossa faixa mais para o meio” e que quando o veículo passou pela testemunha já vinha fora de mão e não travou.
A testemunha J… referiu que o veículo DG circulava fora de mão, a invadir a faixa contrária, onde circulavam as bicicletas, sendo a distância entre elas de dois ou três metros.
A testemunha Ant… explicou que as marcas existentes no alcatrão são provocadas pela queda do segundo velocípede, sendo visível nas fotografias do relatório que tais marcas estão próximas da berma da estrada e não no meio, como pretende a recorrente.
Por sua vez, em declarações de parte o autor T… afirmou que a bicicleta onde seguia ia do lado direito da estrada junto à berma e a bicicleta de N… seguia à frente próxima do meio da estrada, sendo que o veículo DG que vinha em sentido oposto “assim saído para fora” a entrar na faixa onde circulavam as bicicletas.
Como bem aduzem os autores nas contra-alegações, «uma coisa é a convicção objetiva do julgador e, outra manifestamente diferente, é a vontade subjetiva da recorrida, no sentido de alcançar a sua própria verdade, invocando para o efeito fragmentos dispersos de parte da prova testemunhal produzida nos autos».
Com efeito, para que seja alterada a decisão sobre a matéria de facto, não basta invocar algumas afirmações feitas pelas testemunhas no sentido das alterações pretendidas. Os depoimentos das testemunhas têm de ser analisados no seu conjunto e pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão e às máximas da experiência.
Nenhuma alteração há, pois, que fazer aos pontos 3, 4, 8, 10, 11 e 12 do elenco dos factos provados.
Vejamos, por último, o ponto 15 no qual se deu como provado que no momento do embate, «o condutor do veículo …11 tripulava esta viatura distraído em relação aos demais veículos que circulavam pela via por onde seguia».
Não resulta do corpo das alegações nem das conclusões qual a decisão, que no entender da recorrente, deve ser proferida sobre esta concreta questão de facto, deixando assim a recorrente incumprido o ónus a que estava obrigada, previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 640º do CPC, pelo que bem poderia ser rejeitado o recurso nesta parte.
Seja como for, independentemente da relevância ou não que tal facto tem para a decisão do recurso (e da causa), resulta implícito da alegação da recorrente que tal facto devia ser considerado não provado. Mas não tem razão a recorrente.
A este respeito louvamo-nos nas seguintes considerações expendidas na sentença recorrida:
«(…), o Tribunal deu como provado que o condutor do veículo segurado pela R. seguia distraído e sem atenção aos demais veículos que circulavam na via por onde seguia, conforme consta do ponto 15), recorrendo para o efeito às regras da experiência comum para dar tal facto como provado. Na verdade, só assim se explica que tendo em conta que estava a começar a descrever uma curva apertada e sem visibilidade e com a possibilidade de surgir de repente um veículo a circular no sentido oposto ao seu, cuja presença não poderia conferir, tivesse invadido a hemi-faixa contrária na altura que entrou nessa curva. Se o condutor do veículo segurado pela R. estivesse atento à condução e aos demais veículos que circulavam na mesma estrada, não teria invadido a hemi-faixa contrária, atento o seu sentido de trânsito ao iniciar a passagem por uma curva sem visibilidade, na medida em que sabia que tal manobra seria destituída de segurança e poderia provocar um perigo para os outros utentes da via pública. Era, assim, totalmente previsível para o condutor do veículo seguro pela R. que se invadisse a hemi-faixa contrária ao seu sentido de trânsito e se estivesse algum veículo a circular nesse sentido oposto ao seu, como acontecia com os dois velocípedes referidos supra, poderia provocar um embate entre as viaturas, como efectivamente ocorreu.»
No presente caso o recurso à presunção judicial mostra-se plenamente justificado.
Nos termos do artigo 349º do CC, presunções são ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, esclarecendo o artigo 351º do mesmo Código que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
Trata-se de uma prova de primeira aparência, em que o julgador faz apelo às regras de experiência comum - o id quoad plerumque accidit - para, a partir de um facto conhecido, inferir um facto desconhecido.
Nas palavras de Vaz Serra[7], «[e]stas presunções são afinal o produto de regras de experiência: o juiz, valendo-se de certo facto e de regras de experiência, conclui que aquele denuncia a existência de um outro facto. Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode utilizar o juiz a experiência da vida, da qual resulta que um acto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra de experiência ou, se se quiser, vale-se de uma prova de primeira aparência».
Ora, foi exatamente isto que o Sr. Juiz a quo fez, como se colhe do excerto da sentença acima transcrito, pelo que nenhuma censura merece o recurso à presunção para dar como assente a matéria do ponto 15 dos factos provados.
Resulta, assim, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou o Sr. Juiz a quo na decisão sobre a matéria de facto referente aos pontos 2, 3, 4, 8, 10, 11, 12 e 15 do elenco dos factos provados, a qual, por isso, permanece intacta.

Da culpa
Na sentença recorrida considerou-se que o acidente dos autos se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo DG.
Já a recorrente, embora aceite que a manobra do condutor do referido veículo contribuiu para a eclosão do acidente, não aceita que a conduta do mesmo tenha sido a única causadora do acidente, pois entende que também é censurável a conduta do condutor do velocípede onde seguia o autor Tomás e a este pertencente, ao transportar um ocupante no selim da bicicleta, o que constitui contraordenação, nos termos do artigo 91º, nº 2, do Código da Estrada, segundo o qual o velocípede só podia transportar o respetivo condutor, já que o mesmo não reunia as condições previstas nas alíneas a) b) e c) daquele preceito, para circular com duas pessoas.
Entende ainda a recorrente que o facto de seguirem duas crianças no velocípede pertencente ao autor T… e deste não usar capacete, contribuíram para o agravamento dos danos sofridos pelo autor.
Entende assim a recorrente que deverá atender-se ao disposto no artigo 570º do CC, devendo a indemnização ser reduzida em pelo menos 30%.
Entendemos que não lhe assiste razão.
Prescreve o artigo 570º, nº 1, do CC:
«Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade da culpa de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída
Esta norma só teria aplicação no caso concreto se o ato do lesado – o autor T… tivesse sido uma das causas do dano, de acordo com o princípio da causalidade adequada.
Ora, o facto de o velocípede transportar duas crianças em nada contribuiu para a produção do acidente, o qual ocorreu apenas porque o condutor do veículo DG invadiu a totalidade da faixa de rodagem contrária, tendo indo embater naquele velocípede, inexistindo, por conseguinte, qualquer nexo de causalidade entre a infração imputada ao velocípede e a eclosão do acidente, já que não foi o facto de seguirem duas crianças no velocípede que originou o acidente, mas sim o facto do referido condutor circular em excesso de velocidade e desatento ao trânsito, que o fez invadir a faixa de rodagem por onde circulava o dito velocípede.
Assim, apesar de o velocípede circular com duas pessoas, em violação do disposto no artigo 91º, nº 2, do Código da Estrada, segundo o qual «[o]s velocípedes só podem transportar o respetivo condutor», o facto é que o autor T… em nada contribuiu para a eclosão do acidente, como bem se ajuizou na sentença recorrida
Mas será que o facto de seguirem duas crianças no velocípede, contribuiu para o agravamento dos danos que o mesmo sofreu?
Entendemos que não.
Podemos mesmo dizer que o facto de o autor T… seguir no velocípede atrás do respetivo condutor, «funcionou como “escudo de proteção” evitando que o embate tivesse sido diretamente efetuado no corpo do recorrido, com o consequente agravamento das lesões corporais», como bem referem os autores na resposta ao recurso da ré.
Ademais, não encontra arrimo na factualidade provada o alegado no corpo das alegações, isto é: i) que o condutor do velocípede onde se fazia transportar o autor T…, fazia uma condução em completa insegurança, uma vez que conduzia o veículo de pé, reservando o selim para o autor; ii) que ao serem transportadas duas pessoas, a condução do velocípede altera por completo, a bicicleta torna-se mais pesada, difícil de manobrar perdendo agilidade; iii) que a pessoa transportada é impotente e nem pode abandonar o velocípede, já que está “presa” entre os braços daquele que está a praticar a condução.
Parece olvidar a recorrente que a velocidade a que circulava o veículo DG era muito superior aquela que é possível imprimir a qualquer velocípede, o que inviabilizava ou tornava extremamente difícil qualquer manobra de recurso face à aproximação do dito veículo que invadiu por completo a faixa de rodagem em que circulava o velocípede.
Acresce que o autor Tomás circulava atrás do condutor do velocípede, não estando “preso” e, mesmo que assim não fosse, não é expectável nem minimamente exigível que durante a condução o condutor de qualquer velocípede abandone a bicicleta em movimento, “atirando-se” para o chão, como bem observam os autores na resposta ao recurso.
Quanto ao não uso de capacete, tal constitui uma contraordenação por violação do disposto no artigo 82º, nº 3, do Código da Estrada, segundo o qual, «[o]s condutores e passageiros de ciclomotores, motociclos com ou sem carro lateral, triciclos e quadriciclos devem proteger a cabeça usando capacete de modelo oficialmente aprovado, devidamente ajustado e apertado».
Afigura-se indiscutível que a finalidade primacial da imposição do uso de capacete – tal como do cinto de segurança - é a de preservar a integridade física do respetivo obrigado, sendo a sua falta idónea a causar um agravamento dos inerentes danos provocados, com direta repercussão na redução do correspondente montante indemnizatório, filiada na concorrência de um facto culposo do lesado para o agravamento dos danos.
Portanto, o que releva a esta luz, face ao disposto no nº 1 do citado artigo 570º, é a circunstância de a falta de colocação do capacete ter (ou não) contribuído para o agravamento dos danos causados pelo acidente dos autos.
Só que, no caso concreto, não há sequer que discutir tal matéria, pois não resulta da matéria de facto provada que o autor Tomás circulasse sem capacete.
Sem prejuízo, sempre se dirá que, in casu, o eventual não uso de capacete pelo autor, não constituiria causa de agravamento dos danos por ele sofridos em consequência do embate entre o veículo automóvel e o velocípede, até porque tais danos ocorreram em maior escala noutras zonas do corpo, nomeadamente no membro superior esquerdo e nos membros inferiores (cfr. ponto 11 dos factos provados), sendo nessas zonas que ficaram as maiores sequelas do acidente (cfr. ponto 43 dos factos provados), pelo que não se justificaria in casu reduzir a indemnização devida, nos termos do nº 1 do artigo 570º do CC.
Por último, não encontra o mínimo respaldo na matéria de facto provada o alegado pela recorrente na conclusão 18, pelo que não pode ser assacada qualquer culpa ao condutor do outro velocípede (DS) na eclosão do acidente, o qual se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na recorrente.

Dos danos não patrimoniais/dano biológico do autor T…
No caso vertente é pacífico que, pela sua gravidade, os danos sofridos pelo autor Tomás em consequência do acidente dos autos merecem ser indemnizados. Está apenas em causa o montante de € 10.000,00 fixado na sentença a título de danos não patrimoniais, que segundo os recorrentes/autores deve ser fixado em € 25.000,00, valor que os mesmos consideram «realista e perfeitamente ajustado ao ressarcimento de todos os prejuízos que o acidente de viação causou ao menor T…, incluindo o dano biológico e demais danos de natureza não patrimonial».
A obrigação de indemnização neste âmbito decorre do disposto no artigo 496º, nº 1, do CC que estabelece que «na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito».
Dispõe o artigo 496º, nº 4, que «o montante da indemnização será fixado equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º». Isto é, a indemnização por danos não patrimoniais, deve ser fixada de forma equilibrada e ponderada, atendendo em qualquer caso (quer haja dolo ou mera culpa do lesante) ao grau de culpabilidade do ofensor; à situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso, como por exemplo, o valor atual da moeda. Como dizem Pires de Lima e Antunes Varela, «o montante de indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas de criteriosa ponderação da realidade da vida»[8].
Como tem sido entendido de forma uniforme, o valor de uma indemnização neste âmbito, deve visar compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico[9].
A indemnização por danos não patrimoniais é, mais propriamente, uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objetivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos, e não o de o recolocar “matematicamente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e nessa exata medida, irreparáveis) é uma reparação indireta, comandada por um juízo equitativo que deve atender às circunstâncias referidas no artigo 494º.[10]
Este recurso à equidade não afasta, porém, «a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias do caso»[11].
Ora, no caso em análise, com particular relevo para a decisão desta questão, há que ter em consideração, nomeadamente, que o autor T… sofreu traumatismos no membro superior direito e membros inferiores, ferimentos no couro cabeludo, nas pernas e braço esquerdo e teve uma fratura exposta da diáfise femoral à esquerda, grau II; foi submetido a duas intervenções cirúrgicas, uma transfusão de sangue e internamento hospitalar; esteve cerca de um mês em repouso absoluto e teve necessidade de se deslocar com o auxílio de canadianas; foi acompanhado em consultas externas e deixou de realizar todas as atividades físicas e desportivas; ficou com as sequelas resultantes das lesões, descritas no ponto 43 dos factos provados, que sendo embora compatíveis com as atividades escolares habituais, implicam esforços suplementares; teve alta clínica, cerca de 9 meses depois do acidente, padecendo de um défice funcionário total por 45 dias e parcial, por 203 dias, com repercussão nas atividades escolares; passou a sofrer de um défice funcional permanente de 2 pontos; sofreu um quantum doloris no grau 5 e um dano estético permanente no grau 2, ambos numa escala de 7; sofreu fortes dores no corpo e na cabeça, uma enorme angústia e aflição e sentiu-se diminuído e frustrado durante o longo tempo (9 meses) em que esteve com limitações; nos meses seguintes ao acidente, necessitou de ser auxiliado para tomar banho, a vestir-se, comer e beber.
Neste contexto, afigura-se escasso o montante de € 10.000,00 fixado na sentença a título de danos não patrimoniais, tendo-se como mais equitativo o valor de € 18.000,00.
A este montante deve ainda acrescer uma indemnização a título de dano biológico, como reclamado pelos recorrentes, pois a lesão corporal sofrida pelo autor, bem evidenciada na matéria de facto dada como provada, constitui em si um dano real ou dano-evento, designado por dano biológico, na medida em que afeta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”. Trata-se de um “dano primário”, do qual podem derivar, além das incidências negativas não suscetíveis de avaliação pecuniária, a perda ou diminuição da capacidade do lesado para o exercício de atividades económicas, como tais suscetíveis de avaliação pecuniária[12].
Escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.2019[13]:
«É largamente maioritária a jurisprudência no sentido de não conferir autonomia ao dano biológico, enquanto tercium genus, com natureza bem específica, que não se esgota num qualquer dano patrimonial em sentido estrito (com repercussões na actividade laboral) nem num simples dano não patrimonial. A realidade normativa de que emergiu, na doutrina e na jurisprudência italianas, essa modalidade autónoma de dano, não encontra paralelo no ordenamento jurídico português. Essa a razão pela qual todas as variantes do dano-consequência terão de traduzir-se sempre num dano patrimonial e/ou num dano não patrimonial.
Assim, o défice funcional, ou dano biológico, representado pela incapacidade permanente resultante das lesões sofridas em acidente de viação, é susceptível de desencadear danos no lesado de natureza patrimonial e/ou de natureza não patrimonial.
Serão do primeiro tipo, quando a incapacidade, total ou parcial, se repercuta negativamente no exercício da actividade profissional habitual do lesado, e, consequentemente, nos rendimentos que dela poderia auferir; serão ainda desse primeiro tipo quando, embora sem repercussão directa e imediata na actividade profissional e na obtenção do ganho dela resultante, implique um maior esforço no exercício dessa mesma actividade ou limite significativamente as possibilidades de o lesado optar por outras vias profissionais ao longo da sua vida activa.»
Ora, o dano-consequência tratado nos autos não se insere em nenhuma daquelas vertentes do dano patrimonial, porquanto o autor, que à data do acidente tinha12 anos de idade, não tinha (e continua a não ter) qualquer atividade profissional, o que não impede, porém, que ocorra uma valoração autónoma e independente dos danos não patrimoniais que eventualmente emirjam das lesões que determinaram esse défice genérico permanente[14].
Importa, assim, neste contexto, considerar que as limitações de que o autor ficou a padecer, em consequência do acidente, correspondem a um défice funcional de 2 pontos, a partir de 19.04.2016, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, independentemente das atividades profissionais.
De considerar ainda que, naquela data, o autor tinha 12 anos de idade, sendo a sua esperança de vida de cerca de 55 anos, visto a esperança média de vida da população portuguesa, fixada, por referência ao ano de 2012, e tendo em conta os dados constantes de www.pordata.pt e atualizados em 28.05.2020, ser para os homens de 76,9 anos.
Daí que tudo ponderado, sem esquecer o tempo decorrido entre a data da alta médica (19.04.2016) e a data da sentença (18.09.2020), tem-se como razoável valorar o referido dano biológico, na respetiva vertente não patrimonial, no montante de € 7.000,00 (sete mil euros), tido por atualizado à data da sentença, o qual se mostra consentâneo com os padrões jurisprudenciais habitualmente utilizados em casos que podem apresentar alguma similitude com o dos autos[15].
Procede, nesta parte, o recurso dos autores.

Dos danos futuros
A este respeito importa considerar a alteração da matéria de facto acima efetuada na sequência da impugnação dos autores, tendo passado a constituir matéria de facto assente que:
- Em 2017, o autor T… tinha uma dismetria de um centímetro nos membros inferiores.
- A fratura do fémur não envolveu a placa de crescimento nem as superfícies articulares do membro, pelo que não é expectável que condicione o crescimento do examinando de forma apreciável.
- Tratando-se de um caso de lesão ortopédica em criança, é indicada a reavaliação do autor aos 18 a 20 anos
Assim, nos termos do artigo 564º, nº 2, do CC, o pedido formulado pelos autores no sentido de a ré ser condenada a reparar os danos futuros que se venham a apurar em sede de liquidação ulterior ou em execução de sentença, não pode deixar de ser atendido.
Com efeito, todos os danos futuros que configurem danos emergentes das lesões sofridas no acidente de viação são imediatamente indemnizáveis, desde que sejam suficientemente previsíveis, isto é, desde que seja possível efetuar um juízo de prognose no sentido de que o dano irá ocorrer no futuro mediato, seja ele mais ou menos longínquo.
Ora, no caso vertente, a fratura sofrida pelo autor T… no fémur esquerdo irá condicionar o seu crescimento, ainda que seja expetável que não de forma apreciável, mas apenas se poderá apreciar a real amplitude desse dano, em toda a sua extensão, aquando da reavaliação a realizar entre os 18 e os 20 anos de idade.
É, pois, previsível que crescimento do autor venha a ser afetado, embora não saiba ainda em que medida, mas sempre se traduzirá num dano que acresce às lesões e sequelas que já foram diagnosticadas e, portanto, a merecerem tutela jurídica.
Deverá, assim, a ré ser condenada a indemnizar o autor por esse dano futuro, relegando-se para momento ulterior a fixação do respetivo quantum, após a reavaliação a realizar até outubro de 2022, considerando que o recorrente nasceu em 29/10/2002 (cfr. assento de nascimento junto com a petição inicial).
Também nesta parte merece provimento o recurso dos autores.

Dos danos não patrimoniais dos autores dos autores P… e G… (pais do autor T…)
Quanto aos danos não patrimoniais reclamado por estes autores, considerando que o nº 4 do artigo 496º do CC limita aos casos de morte da vítima a indemnizabilidade dos danos não patrimoniais sofridos pelas pessoas indicadas nos n.ºs 2 e 3, tem-se levantado a questão da ressarcibilidade desses danos em casos de lesão corporal de que não proveio a morte, considerando que as graves lesões corporais sofridas pela vítima que sobreviveu, e respetivas sequelas, podem afetar profundamente essas pessoas, causando-lhes desgosto e sofrimento tão intensos como aqueles que resultariam da sua morte, bem como alterações relevantes à respetiva rotina e ao projeto de vida que idealizaram.
A controvérsia jurisprudencial que se gerou em torno da compensabilidade dos danos não patrimoniais sofridos por outrem, nos casos em que a vítima sobrevive, conduziu à prolação, pelo Plenário das Secções Cíveis do STJ, do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2014, de 09.01.2014 – publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 98 (2014-05-22) –, a fixar a seguinte jurisprudência:
«Os artigos 483.º, n.º 1 e 496.º, n.º 1 do Código Civil devem ser interpretados no sentido de abrangerem os danos não patrimoniais, particularmente graves, sofridos por cônjuge de vítima sobrevivente, atingida de modo particularmente grave».
O acórdão debruça-se sobre um caso em que o cônjuge da autora sofreu, em resultado de acidente de viação, graves lesões, passando a precisar da ajuda permanente de terceira pessoa, tendo a autora, após a alta hospitalar, passado a cuidar dele e a viver exclusivamente em função do mesmo, sentindo-se triste, confrangida e amargurada.
Extrai-se da fundamentação do acórdão que a interpretação assumida tem como pressuposto que os danos do lesado sejam particularmente graves e que tenham determinado no outro sofrimento muito relevante. Esclarece-se, ainda, que, para além do cônjuge, outros podem e devem beneficiar da tutela deste tipo de danos, não podendo a referência ao cônjuge ser interpretada no sentido de excluir outros, considerando que, face ao objeto do processo, não compete determinar quais, dos chegados ao lesado, podem pedir compensação pelo sofrimento próprio.
Na sequência deste acórdão, várias decisões do STJ têm reconhecido ao cônjuge do sinistrado sobrevivente o direito a compensação por danos não patrimoniais decorrentes da situação em que essa pessoa ficou após o acidente.
Veja-se, por exemplo, o Acórdão de 28.03.2019[16] em cujo sumário se consignou que «[o]s danos não patrimoniais sofridos pelo cônjuge do lesado em acidente de viação sobrevivente só merecem a tutela do direito, a coberto do artigo 496.º, n.º 1, do CC, à luz do firmado no AUJ do STJ n.º 6/2014, de 09/01/2014, em casos de elevada gravidade dupla, ou seja, quanto às lesões da vítima sobrevivente e quanto ao sofrimento do respetivo cônjuge»[17].
Ainda assim, no caso concreto, o Acórdão
Será possível, no vigente quadro legal, ir mais longe e proceder a uma interpretação atualista dos artigos 483º e 496º, nº 2, do CC, como defendem os recorrentes nas suas alegações de recurso, de modo a reconhecer também aos pais do lesado sobrevivente o direito a indemnização por danos não patrimoniais?
Respondendo a esta questão, num caso em que os filhos de lesado sobrevivente reclamaram uma indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreram em virtude das ofensas à integridade físico-psíquica sofridas pelo seu pai, pronunciou-se o Acórdão do STJ de 17.10.2019[18] nos seguintes termos:
«Deve, desde já, afirmar-se que, se o critério decisório assentar apenas na existência do sofrimento de terceiros, a porta que a jurisprudência abrir para a compensação dos danos morais decorrentes do sofrimento dos filhos do lesado não pode ser fechada aos enteados, aos pais, aos irmãos ou a outras pessoas com profunda ligação vivencial e afetiva com esse lesado.
As normais regras de experiência em sociedade permitem concluir que, em certos casos, o sofrimento causado aos familiares e amigos mais próximos de um sinistrado grave, decorrente do estado em que essa pessoa fica após o acidente, pode ser mais profundo do que o sofrimento causado pela morte. Desde logo, por se tratar de um sofrimento permanente e prolongado, decorrente do convívio diário com aquela pessoa, que não é atenuado pelo decurso do tempo, como seria em caso de morte.
Todavia, como foi justificado na sentença recorrida, e como é aprofundadamente referido na motivação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.6/2014 (sem necessidade de aqui repetir essa argumentação), a questão não foi ignorada pelo legislador do Código Civil, que optou por não consagrar essa extensão indemnizatória (que havia sido proposta por Vaz Serra nos trabalhos preparatórios do CC).
De todo o modo, cabe indagar se a porta aberta pelo AUJ n.6/2014 ao cônjuge do lesado não pode ser aberta aos filhos (ou a outras pessoas), dado que esta decisão não excluiu tal possibilidade.
(…).
(…) Subjacente a esta solução excecional (assente na factualidade provada nesse caso) está a ideia de que a situação em que o cônjuge marido ficou, após o acidente, afetou gravemente aquilo que seria o curso normal da vida da sua mulher, nomeadamente pelo facto de esta lhe passar a prestar assistência permanente (afirmando-se, na factualidade provada, que ela passou a viver para o marido, o qual não tinha qualquer autonomia).
Este tipo de afetação da vida do terceiro (que passa a ter o sinistrado a seu cargo) não tem correspondência no caso concreto, pois, pela diversidade de situações, os filhos menores da vítima não sofrem um tipo de afetação equiparável àquele que esteve subjacente ao AUJ n.6/2014.
Os filhos menores seguirão o seu desenvolvimento e formação, acompanhados por familiares ou tutores, como acontece no caso concreto. É, todavia, inquestionável que serão sempre afetados, de algum modo, no normal desenvolvimento da sua personalidade, pela privação do afeto e do amparo do pai no seu processo de crescimento.
Todavia, este nível de afetação da vida dos terceiros não é aquele que está subjacente à doutrina emanada do AUJ n.6/2014, o qual exige uma alteração tipologicamente grave do modo de vida do terceiro afetado, como acontece com o cônjuge do sinistrado que passa a dedicar grande parte da sua vida a cuidar do sinistrado sobrevivente.
(…).
À jurisprudência não cabe apoiar ou rebater construções doutrinais. Cabe-lhe fazer justiça, mas também ser prudente.
A ampliação do âmbito subjetivo dos terceiros beneficiários de compensação por danos morais decorrentes das consequências de um facto ilícito (ou de responsabilidade objetiva), sofridos por um familiar ou até por outra pessoa de grande proximidade afetiva, é uma tarefa que, pelas dificuldades próprias da delimitação das suas fronteiras, deve caber, em primeiro lugar, ao legislador.
Trata-se de uma matéria que não pode ser perspetivada apenas do ponto de vista da tutela dos lesados (diretos ou indiretos), mas também do ponto de vista de saber até onde se pretende levar a punição (em sentido amplo) dos lesantes.
Esta equação do equilíbrio dos fatores de tutela e de punição das relações em sociedade cabe, em primeiro lugar, ao legislador. Tal como deve caber ao legislador a definição dos mecanismos de compensação dos terceiros afetados: se a indemnização fica a cargo do património do lesante; se, e quando, é coberta por seguros; ou se deve existir um fundo nacional para prover a indemnização a esses terceiros.»
Assim, embora se compreenda, numa perspetiva humanista, a situação dos autores, não existe, no quadro legal vigente, e face à jurisprudência emanada do AUJ n.6/2014, aplicada ao caso concreto, fundamento que permita reconhecer-lhes o direito à indemnização peticionada.»
Concorde-se ou não a argumentação deste último aresto, o certo é que a situação dos autos não constitui manifestamente um caso de elevada gravidade dupla, ou seja, quanto às lesões da vítima sobrevivente e quanto ao sofrimento dos seus pais, não existindo no quadro legal vigente, e face à jurisprudência emanada do AUJ nº 6/2014, aplicada ao caso concreto, fundamento que permita reconhecer-lhes o direito à indemnização peticionada.
E, ainda que se acolhesse o entendimento expresso na declaração de voto do supra citado Acórdão do STJ de 28.03.2019, no sentido de rever a posição «quanto à amplitude da relevância dos danos não patrimoniais reflexos sofridos por familiares próximos de vítimas directas não mortais, quando estiver em causa sinistro ocorrido após a entrada em vigor do inovador regime do art. 493º-A, aditado ao Código Civil pela Lei nº 8/2017, de 3 de Março, cujo nº 3 prevê que seja atribuída indemnização por danos não patrimoniais ao proprietário do animal“[n]o caso de lesão de animal de companhia de que tenha provindo a morte, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção», no caso concreto continuariam os autores Patrícia e Gonçalo, pais do autor Tomás, a não ter direito à indemnização reclamada, considerando que o acidente dos autos ocorreu em 16.08.2015.
Termos em que improcedem, nesta parte, as razões dos autores.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso dos autores e improcedente o recurso subordinado do autor e, em consequência, alteram a sentença recorrida, decidindo-se:
a) Condenar a ré a pagar ao autor T… a quantia de € 18.000,00 (dezoito mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da sentença em 1.ª instância;
b) Condenar a ré a pagar ao autor T…, a título de indemnização pelo dano biológico, na sua vertente não patrimonial, a quantia de € 7.000,00 (sete mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, desde a data da sentença em 1.ª instância;
b) Condenar a ré a pagar ao autor T… a quantia que se venha a apurar em incidente de liquidação relativamente ao dano futuro acima referido, correspondente à factualidade vertida nos pontos 47-a), 47-b) e 47-c) dos factos provados; c) Manter a sentença recorrida no mais aqui impugnado, bem como nos respetivos juros de mora.
As custas da ação, na parte alterada, ficam a cargo de autores e ré, na proporção dos respetivos decaimentos.
A ré suportará as custas do recurso por si interposto, sendo as do recurso dos autores a cargo de ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento.
*
Évora, 11 de fevereiro de 2021
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Tomé Ramião (1º adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2º adjunto)
_______________________________________________

[1] Os pontos 47-a), 47-b) e 47-c) foram aditados infra por esta Relação, na sequência da parcial procedência da impugnação da matéria de facto deduzida pelos autores/recorrentes.

[2] As alíneas B), C) e D) foram eliminadas na sequência da procedência da impugnação da matéria de facto deduzida pelos autores/recorrentes, passando a fazer parte dos facto provados, ainda que com redação não totalmente coicidente.

[3] Não tendo os recorrentes fundado o recurso na prova testemunhal produzida, mas apenas na prova pericial realizada, não tinham que indicar quaisquer passagens de gravação.

[4] Cfr. ponto 2 da “Discussão” do relatório e ponto 26 dos esclarecimentos.

[5] Último parágrafo do ponto 5 da “Discussão” e última conclusão do relatório.

[6] Com exceção do ponto 15 que será analisado mais adiante.

[7] Provas, BMJ 110º-190.

[8] Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, p. 474.

[9] Cfr., inter alia, o Acórdão do STJ de 19.04.2012, proc. 3046/09.0TBFIG.S1, disponível, como os demais adiante citados sem outra indicação, em www.dgsi.pt.

[10] Cfr. Acórdão do STJ de 02.03.2011, proc. 1639/03.8 TBBNV.L1.

[11] Acórdão do STJ de 03.02.2011, proc. 605/05.3TBVVD.G1.S1.

[12] Cfr., a este propósito, as doutas considerações do Acórdão do STJ de 21.03.2013, proc. 565/10.9TBVL.S1.

[13] Proc. 7614/15.2T8GMR.G1.S1.

[14] Cfr., inter alia, o Acórdão do STJ citado na nota anterior, e o Acórdão desta Relação de 06.10.2016, proc. 866/11.9TBABT.E1.

[15] No acórdão do STJ de 27.02.2018, proc. 3901/10.4TJNF.G1.S1, refere-se um caso decidido por aquele Tribunal, com alguns contornos idênticos ao dos presentes autos, nomeadamente em termos de sequelas anátomo-funcionais que se traduziram num défice funcional de integridade físico-psíquica fixado em 2 pontos, em que se considerou adequado fixar uma indemnização de € 6.000,00 a título de dano biológico.

[16] Proc. 1120/12.4TBPTL.G1.S1.

[17] No Acórdão entendeu-se, porém, que os demonstrados sofrimentos do autor pelas lesões sofridas por sua mulher em consequência do acidente em causa não traduziam um padrão de elevada gravidade e persistência merecedores da tutela do direito a coberto do artigo 496º, nº 1, do CC, à luz do entendimento jurisprudencial firmado no AUJ n.º 6/2014.

[18] Proc. 1082/17.1T8VCT.S1.