Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
256/18.2EAFAR.E1
Relator: MARIA CLARA FIGUEIREDO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
CONTRADITÓRIO
NOTIFICAÇÃO
NULIDADE
Data do Acordão: 04/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A densificação da estatuição do artigo 50.° do RGCO impõe a conclusão de que o processo contraordenacional deverá garantir o efetivo exercício do direito ao contraditório prévio à decisão, desiderato que apenas se conseguirá realizar na sua plenitude mediante a comunicação integral dos factos imputados, o que implicará a sua descrição objetiva, localizada no espaço e no tempo, assim como a sua caracterização subjetiva, elementos que se reputam imprescindíveis à identificação e recorte do comportamento contraordenacionalmente relevante.
II - Tendo o órgão instrutor optado, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGCO, pela audição escrita do arguido, e não lhe tendo fornecido em tal notificação a indicação dos factos atinentes ao elemento subjetivo do tipo contraordenacional, encontra-se a mesma ferida de nulidade sanável, em conformidade como o disposto nos artigos 283.º, n.º 3, do CPP e 41.º, n.º 1, do RGCO.
II - Porém, uma vez que a impugnação judicial da decisão administrativa não se limitou a arguir a nulidade, tendo-se o impugnante prevalecido, na impugnação judicial, do direito preterido – tendo abarcando na sua defesa os aspetos de facto ou de direito omissos na notificação, mas presentes na decisão/acusação – a nulidade encontra-se sanada, em conformidade com o disposto nos artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do CPP e 41.º, n.º 1 do RGCO.
(Sumário da relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.
Nos presentes autos de recurso de contraordenação que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Tavira, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com o n.º 256/18.2EAFAR.E1, foi a arguida DEL, S.A., pessoa coletiva n.º (…), com sede na Rua (…) , condenada pela prática da contraordenação prevista nos artigos 3.º e 4.º, nº 1, alíneas a) e b) do n.º 2 do capítulo I, alíneas b) e c) do Capítulo II, tudo do anexo do Regulamento (CE) n.º 852/204, de 29 de abril, conjugado com as alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 124.º do regime aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro, e punível pela subalínea iii) da alínea b) do n.º 2 do artigo 143.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 124.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2015, de 16 de Janeiro, na coima de € 8.300,00 (oito mil e trezentos euros).
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Inconformada com tal decisão, veio a arguida interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:
“I–Da invocada nulidade do auto de notícia.
1 – Os factos de que vinha acusada a arguida e constantes da notificação para apresentar defesa, e que se consideraram provados são os que constam do auto de notícia e deste auto não consta nenhuma circunstância que consubstancie a consciência da ilicitude dos factos imputados e a intenção de os praticar, ou seja, os elementos do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional - veja-se, neste sentido, sobre a necessidade de indicação das circunstâncias suprarreferidas, o Ac.do S.T.J., de 06-11-2008, relatado pelo Colendo Juiz Conselheiro Rodrigues da Costa e disponível em www.dgsi.pt.
2 – Assim, sem a indicação destes elementos, não é possível chegar à conclusão de que “(…) se considera que agiu com dolo eventual (…)”, não podendo, por conseguinte, a arguida ser punida pela prática da infração a título de dolo eventual.
3 – Por outro lado, ainda que se considerasse que os elementos do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional não constavam da acusação, mas constam da decisão ora impugnada, no ponto V.2 da mesma (V- Determinação da medida da pena 2 – Da culpa do agente), ter-se-ia de concluir que não foi assegurada à arguida a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe era imputada, ao contrário do que prescreve o artigo 50.º do RGCO, que dispõe que “não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”- v., nesse mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Outubro 2011, pág. 208 e também 212 e 213.
4 – A dignidade constitucional do princípio do contraditório, bem como do direito de audição e defesa, garantidos no artigo 32.º, n.ºs 5 e 10, respetivamente, da C.R.P., impõe que a notificação à arguida para exercício do direito de audição e defesa deve ser feita condignamente- veja-se, neste sentido, António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral in Notas ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Almedina, 3.ª Edição, Maio, 2009, págs. 151 e 152.
5 – No caso sub judice, a notificação feita à arguida para exercício do direito de audição e defesa não lhe forneceu os elementos necessários para que ficasse a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, quanto à matéria de facto, por se ter limitado a identificar as circunstâncias objetivas da prática da alegada infração, tendo omitido quaisquer circunstâncias subjetivas que consubstanciassem a consciência da ilicitude dos factos imputados e a intenção de os praticar - o mesmo é dizer: os elementos do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional, pelo que a notificação da arguida para exercício do direito de audição e defesa é nula, nos termos do disposto nos artigos 283.º, n.º 3, do C.P.P., ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO.
6 – Sendo a nulidade arguida sanável, nos termos do disposto nos artigos 120.º, n.º 1, do C.P.P., ex vi artigos 41.º, n.º 1, do R.G.C.O., deverá a mesma ser declarada, anulando-se a decisão impugnada e ordenando-se a reparação e a repetição da notificação da arguida para exercício do direito de audição e defesa, como prescreve o artigo 122.º, n.º 2, do C.P.P., ex vi artigo 41.º, n.º 1, do RGCO.
Se assim não for entendido:
II. - Nulidade da douta sentença, prevista na primeira parte da alínea c), do nº 1, do art.379.º CPPenal, por falta de pronúncia sobre a questão constante da conclusão II do recurso de impugnação judicial, desenvolvida e integrada pelas conclusões 7.ª e 8.ª, que aqui se reiteram.
7 – Não existem nos autos, da fase administrativa, quaisquer meios de prova que permitam sustentar a afirmação que é feita na parte final do o ponto V.2 da decisão impugnada judicialmente (pág. 7 da decisão), a saber: “Ora, no caso sub judice, o (a) arguido (a) sabia , previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigado (a) a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, pelo que se considera que agiu com dolo eventual” (vide decisão ora impugnada, pág. 7). Tanto assim é que, na decisão ora impugnada, não são indicados os meios de prova que serviram de base a essa afirmação - ao contrário do que sucede em relação aos factos expostos no auto de notícia, os quais, segundo o 2º parágrafo da pág. 6 da citada decisão, “serviram, assim, para formar a convicção desta autoridade quanto aos factos acima dados como provados a informação constante do auto de notícia.”
8 – Não existem nesses autos quaisquer meios de prova que permitam chegar à conclusão de que “(…) se considera que agiu com dolo eventual ” ou a qualquer outro título, não havendo, por conseguinte, nos autos elementos que permitam concluir pela verificação do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional -seja a título de dolo, seja a título de negligência -, pelo que deverá o mesmo ser considerado não provado e, por conseguinte, a arguida absolvida da prática da alegada contraordenação, revogando-se a decisão ora impugnada, com todas as consequências legais”.
9 – A douta sentença recorrida acrescentou aos factos constantes do auto de notícia, que suportaram e constituíram fundamento da decisão administrativa (e que são os factos elencados sob os n.ºs 1, 2 e 3 dos Factos Provados, constantes da “III. Fundamentação de Facto” da sentença), acrescentou, dizia-se, os factos elencados sob os nºs 4 e 5.
10 – Esse suprimento revela a necessidade de tais factos para consubstanciar a consciência da ilicitude dos factos imputados e a intenção de os praticar e, assim, dos elementos do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional, cuja falta se apontava à impugnada decisão administrativa, porque, como se dizia na referida conclusão 7.ª “…na decisão ora impugnada, não são indicados os meios de prova que serviram de base a essa afirmação - ao contrário do que sucede em relação aos factos expostos no auto de notícia, os quais, segundo o 2.º parágrafo da pág. 6 da citada decisão, “serviram, assim, para formar a convicção desta autoridade quanto aos factos acima dados como provados a informação constante do auto de notícia”.”
11 – Daqui decorre que, tratando-se de uma questão prévia, a douta sentença ora recorrida deveria ter-se pronunciado pela carência desses factos, ou seja, deveria ter-se pronunciado no sentido da falta absoluta de prova de quaisquer circunstâncias que consubstanciem a consciência da ilicitude dos factos imputados e a intenção de os praticar e, assim, dos elementos do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional e, em consequência, absolver a arguida, ora recorrente, ao invés de suprir a falta de tais factos para servirem de fundamento à sua condenação por sentença, aliás, douta, mas, salvo o devido respeito, enfermando da apontada nulidade, o que deverá conduzir à sua revogação com a consequente absolvição da arguida ora recorrente.
Se assim não for entendido:
II.3 – Nulidade da douta sentença, prevista no art. 379. ,1, b), primeira parte, do CPPenal – prevista na primeira na alínea b), do nº 1, do art.379.º CPPenal, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e das condições previstas nas arts 358.º do CPPenal.
12 – Para além dos factos constantes da acusação, na fase administrativa, a douta sentença ora recorrida, acrescentou os factos elencados sob os itens 4 e 5 dos Factos Provados, a saber:
“4.Os factos supra descritos revelam uma atitude de desrespeito pelas normas jurídicas que regem a sua actividade, mas sobretudo algum desprezo pelos consumidores que elegeram a Recorrente como prestadora de um serviço de restauração e bebidas e confiam nesse serviço em termos de segurança e higiene alimentares.
5.A Recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que era obrigada a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, agindo com dolo eventual.”
13 – Estes factos não constavam da acusação da notificação escrita da arguida na fase administrativa, ou seja, o elemento subjetivo da infração não constava da dita notificação da arguida e foi com base neles que a douta sentença condenou a arguida ora recorrente, como decorre deste passo do 2.º § da penúltima página da sua Fundamentação de Direito:
“Assim, dúvidas não existem de que a Recorrente praticou a infração que lhe foi imputada, quer no seu elemento objetivo, quer no seu elemento subjetivo, pois estava ciente das condições em que o local se encontrava, da necessidade de efectuar obras/reparações e que a realização das mesmas impedia a que no local se confecionassem alimentos e se distribuíssem as correspondentes refeições.” – negrito nosso.
14 – A arguida foi, assim, condenada por tais factos, que são diversos dos descritos na acusação, ou seja, na notificação dirigida à arguida na fase administrativa para se defender, e foi-o fora das condições previstas no art. 358 do CPPenal, pois que não foi comunicada tal alteração à arguida para se defender como o impõe o art. 358º,n º1 do CPPenal, e como se verifica pela ata da audiência, pelo que se verifica a nulidade apontada, prevista na alínea b), do n.º 1, do art. 379.º do CPPenal.
Deverá, pois, ser julgada verificada esta nulidade e, em consequência, revogada a douta sentença em apreço e o processo devolvido ao tribunal recorrido.
Se assim não entendido:
III. 4 – A situação em apreço, foi causada exclusivamente pela chuva.
15 – A situação em causa, que se resume, essencialmente, nos factos elencados sob o nº 2 dos factos provados, foi causada pela chuva, intensa e muito abundante, que a douta sentença qualificou de intempérie, como se lê no 3.º § da antepenúltima página da Fundamentação de Direito, onde se escreve:
É verdade que tais irregularidades se agravaram com a intempérie ocorrida nos dias antecedentes à fiscalização. Porém, resultou provado que a mesma não foi a causa – única e exclusiva - das mesmas, dado que o estabelecimento era antigo e encontrava-se já algo degradado, impondo a realização de obras.” o negrito é nosso.
16 – Reconhece, assim a douta sentença que a intempérie foi causa dessas irregularidades, como, aliás, resulta da própria água da chuva que pingava e alagava o chão e que causou a intervenção no teto falso com a sobreposição das placas para reparação da avaria elétrica causada pela chuva, como se retira dos depoimentos das testemunhas Ang e Seg.
17 – Quando naquele passo da douta sentença se diz que a intempérie ocorrida não foi a causa única e exclusiva das ditas 3 irregularidades porque, “,…dado que o estabelecimento era antigo e encontrava-se já algo degradado , impondo a realização de obras “ tal razão não encontra suporte nos factos provados, onde , salvo erro ou omissão, não se encontra assente tal facto (que o estabelecimento estivesse degradado ou impusesse a realização de obras, que obviasse às consequências da chuva intensa e abundante), pelo que resta apenas a intempérie como causa das irregularidades que constituem o fundamento da aplicação das normas em que a douta sentença funda a condenação da arguida.
18 – A douta sentença considera que as “condições climáticas tenham sido causa agravante das irregularidades detetadas (e mesmo causa originária, no que à infiltrações respeita),…” o negrito é nosso, para sublinhar que atribui aí á chuva a origem das infiltrações e não a qualquer comportamento censurável da arguida.
19 – A situação observada pela fiscalização representa o rescaldo da intempérie. Isso mesmo refere a douta sentença, neste passo: “Ora, cotejados todos os depoimentos prestados, constata-se que nenhum deles revela contradições. Todos foram prestados de forma verosímil e credível. Assim, dúvidas não restam que os factos ocorreram numa altura em que se verificaram condições atmosféricas anormais e, naturalmente, fora do controle da Recorrente. ……Admite-se como provável que a forte pluviosidade tenha agravado uma situação pré-existente, mas não foi a sua única causa”.
20 – Note-se que a própria sentença reconhece que os factos ocorreram numa altura em que se verificaram condições atmosféricas anormais e, naturalmente, fora do controle da Recorrente.
21 – Se a recorrente não podia controlar a situação, parece que a sua culpa deve ser excluída, pois que, face à situação de intempérie que ficou bem patente e face aos factos assinalados pela fiscalização, deverá concluir-se que que toda situação sub judice foi causada pela chuva muito intensa e abundante, pela anormal pluviosidade, assinalada pelas testemunhas, e não por uma de atitude de desrespeito pelas normas jurídicas que regem a atividade da recorrente, nem de qualquer desprezo pelos seus trabalhadores, que eram os consumidores a que esse facto de refere e a ausência de culpa deverá conduzir à sua absolvição, nos termos do disposto no art. 8º do RGCO.”

Termina pedindo que se declare verificada a nulidade da notificação da arguida para exercício do direito de audição e defesa, ou, subsidiariamente, que se declare verificada a nulidade da sentença, ou, subsidiariamente, que que absolva a recorrente da prática da contraordenação, revogando-se a decisão impugnada.
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O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, o Ministério Público pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1. Não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, que julgou improcedente o recurso e manteve a decisão administrativa, a Arguida/Recorrente veio alegar a nulidade do auto de notícia.
2. A douta decisão proferida apreciou a invocada nulidade e concluiu pela sua não verificação, fundamentando a sua convicção, quer na Jurisprudência, quer na Doutrina, não merecendo reparo.
3. De facto, como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 26.04.2016, Proc. n.º 463/15.0T8STC.E1, disponível in www.dgsi.pt: «1 - Em lado algum se exige que o auto de notícia contenha os elementos subjectivos do tipo contra-ordenacional. Esses elementos subjectivos retiram-se naturalmente da ilicitude material constante do auto.
2 - O direito contra-ordenacional é um direito “novo” que se pretendia mais expedito e com decisão sedeada em entidades várias de carácter administrativo, mas com consagração de direitos – uns “minimum rights” - à imagem processual penal. Mas essa “imagem” processual penal não é, não pode ser, uma cópia do processo penal. E onde não deve ser “igual” é na necessidade de existência de uma “acusação” para que uma entidade administrativa decida, sob pena de estarmos a atribuir a esta uma “imagem” judicial plena.
3 - Assim, não há que falar em “alteração de factos” entre o teor do auto de notícia e a decisão administrativa, para além da constatação de que o auto de notícia deve conter factos e que a decisão não deve extravasar a materialidade constante do ou dos autos de notícia e a eventualmente apurada na instrução dos autos.»
4. Não se verifica a nulidade por falta de pronúncia, tendo a decisão ora recorrida analisado todas as questões controvertidas.
5. A Douta Decisão fundamentou os factos dados como provados, motivando de facto e de direito a sua decisão, valorando a prova produzida em sede de audiência e discussão de julgamento, ao abrigo e nos termos disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
6. Por outro lado, a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo não condenou a Recorrente em factos diversos dos descritos na acusação (leia-se decisão administrativa).
7. Analisada a decisão administrativa verifica-se que a mesma continha os elementos objectivos e subjectivos do ilícito contra-ordenacional e encontrava-se fundamentada de facto e de direito, indicando a prova documental e testemunhal.
8. A douta decisão do Tribunal a quo não acrescentou factos novos e diversos dos descritos na decisão administrativa, tendo os factos 4. e 5. da matéria de facto dada como provada resultado “do cotejo da matéria objectiva dada por provada com a regras da experiência comum (…) Com efeito, a Recorrente sabia estar obrigada a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento, não o tendo feito, conformando-se com o resultado daí adveniente.”
9. Em matéria contra-ordenacional o Tribunal da Relação funciona como Tribunal de revista só conhecendo de direito, tendo em conta o que se dispõe no artigo 75.º, do RGCO.
10. Não se vislumbram da leitura das conclusões da Arguida/Recorrente que esta invoque quaisquer dos vícios constantes do artigo 410.º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal.
11. Da leitura da douta decisão ora recorrida não se alcança que a matéria de facto dada como provada se revele insuficiente para a decisão, que exista contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem que se esteja perante um erro notório na apreciação da prova.”
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Tendo tido vista do processo, a Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal, apôs o seu visto.
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Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação.
II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412.º n.º 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
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O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância em processo de contraordenação encontra-se estabelecido nos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC).
Importa convocar nesta sede o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2019, in DR 124/2019, série 1 de 2019-07-02, no qual se estatuiu que:
“Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa”.
Da análise do regime legal acima referido e, bem assim, do estatuído no citado acórdão de fixação de jurisprudência decorrem, relativamente aos processos de contraordenação, duas conclusões:
- A impugnação da decisão da autoridade administrativa não assume a natureza de um verdadeiro recurso, sendo antes a causa retirada do âmbito administrativo e entregue a um órgão independente e imparcial, o tribunal;
- O Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada – podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal, sempre sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC – e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito.
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Delimitado o âmbito dos recursos de contraordenação e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, todas (com exceção da última) invocadas pela arguida como causas de nulidades ou dos atos administrativos ou da sentença recorrida:
1 – Apreciação da nulidade da notificação da arguida para exercício do seu direito de audição e defesa na fase administrativa do processo, por falta de indicação dos elementos do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional, concretamente de quaisquer circunstâncias que consubstanciem a consciência da ilicitude dos factos imputados e a intenção de os praticar.
2 – Apreciação da nulidade da sentença recorrida, prevista no artigo 379.º, nº 1, alínea c), primeira parte, do CPP, por omissão de pronúncia relativamente a factos e a argumentos invocados pela recorrente na impugnação da decisão administrativa.
3 – Apreciação da nulidade da sentença recorrida, prevista no artigo 379.º, nº 1, alínea b) do CPP, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º do CPP.
4 – Apreciação da responsabilidade da arguida pelos factos que lhe vêm imputados com sindicância do juízo probatório.
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II.II - A decisão recorrida.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que conheceu da nulidade da decisão administrativa arguida pela recorrente, julgando-a improcedente e condenou a mesma pela prática da contraordenação que lhe vinha imputada.
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Com base na documentação constante dos autos e na prova produzida em audiência, a sentença recorrida que deu como provados os seguintes factos:
“1. No dia 10 de Abril de 2018, pelas 10h35, a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica efectuou uma acção de fiscalização levada no estabelecimento comercial denominado Rest, sito no (…), em Tavira, explorado pela Recorrente;
2. No decurso da inspecção, foram detectadas as seguintes irregularidades na cozinha e na sala de refeições dos funcionários:
- Na cozinha, parte da superfície do tecto e paredes, apresentava-se em mau estado de conservação, com tinta a descolar;
- Numa zona de tecto falso, as placas estavam sobrepostas, não protegendo a totalidade do tecto, permitindo uma exposição dessa zona a uma área do tecto conspurcada, com grande acumulação de pó e sujidades diversas, constituindo um potencial foco de contaminação;
- Na sala de refeições para os colaboradores da empresa, localizada ao lado da cozinha, constatou-se a existência de infiltrações nos tectos e nas paredes, da água da chuva, que pingava por cima das mesas, cadeiras e chão, ficando este alagado;
3. Encontrava-se presente Seg, que se identificou como o director da empresa, e informou serem servidas refeições aos colaboradores da mesma, as quais eram preparadas e confeccionadas nas instalações do estabelecimento de restauração sito no identificado aldeamento, que se encontrava em pleno funcionamento, e que a sala de refeições se encontrava ao lado da cozinha e era de uso exclusivo dos trabalhadores;
4. Os factos supra descritos revelam uma atitude de desrespeito pelas normas jurídicas que regem a sua actividade, mas sobretudo algum desprezo pelos consumidores que elegeram a Recorrente como prestadora de um serviço de restauração e bebidas e confiam nesse serviço em termos de segurança e higiene alimentares;
5. A Recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia estar obrigada a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, agindo com dolo eventual.
Com relevância para a decisão da causa, resultou ainda provado que:
6. Nos dias que antecederam a fiscalização, caiu chuva intensa e muito abundante;
7. As placas existentes no tecto foram sobrepostas a fim de reparar e substituir a instalação eléctrica, danificada em consequência da chuva;
Dos antecedentes contra-ordenacionais da Recorrente:
8. A Recorrente foi condenada pela prática de uma contraordenação, no âmbito do (…) (nome do empreendimento diferente do aprovado);
Das condições sócio-económicas:
9. No ano fiscal de 2018, a Recorrente apresentou um lucro tributável de €305.585,38;
10. No ano fiscal de 2020, a Recorrente apresentou um lucro tributável de €323.176,65;
11. No ano fiscal de 2021, a Recorrente apresentou um lucro tributável de €19.825,45.

(ii)Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos.”

II.III - Apreciação do mérito do recurso.
Vejamos então cada uma das questões acima enunciadas.
1 – Da nulidade da notificação da arguida para exercício do seu direito de audição e defesa na fase administrativa do processo, por falta de indicação dos elementos do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional, concretamente de quaisquer circunstâncias que consubstanciem a consciência da ilicitude dos factos imputados e a intenção de os praticar.
Como parâmetro constitucional da questão em análise convocamos o artigo 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa, que dispõe: “Nos processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa.”.
De tal preceito não decorre, porém, a exigência de que no processo contraordenacional, enquanto processo sancionatório, sejam assegurados, de forma exatamente igual, todos os procedimentos e todas as garantias previstas no processo criminal. “Na verdade, a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o às mais “rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal”.[1]
A orientação do Tribunal Constitucional tem sido no sentido de evitar a inteira correspondência entre as normas processuais dos ilícitos contraordenacional e criminal, mas salvaguardando-se a defesa de princípios comuns a esses dois ramos do direito.
Em processo penal, o arguido pode resguardar-se no exercício do direito ao silêncio, direito reconhecido nos artigos 61.º, n.º 1, al. d), 132.º, n.º 2, 141.º, n.º 4, a), e 343.º, n.º 1 do CPP e pacificamente considerado como de tutela constitucional implícita. Em direito contraordenacional, não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade, de num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre – cfr. artigo 50.º RGCO.
O procedimento contraordenacional, com a subdivisão entre fase administrativa e fase judicial, mesmo nesta última fase, constitui um procedimento administrativo, ressalvadas as disposições legais específicas que remetem para o processo penal[2].
Consabidamente, o direito contraordenacional tem sofrido um incremento sancionatório que é necessário reequilibrar com o respeito pelos deveres e pelos direitos atribuídos aos arguidos durante as fases administrativa e judicial, aproximando-o das soluções e prerrogativas adotadas em direito penal. Assim, o direito de audiência do arguido no processo contraordenacional e no processo penal constitui a aproximação à tutela da reação individual contra os poderes públicos, expressão máxima do Estado de Direito Democrático.
Deveremos, porém, reter que “o processo contra-ordenacional tem […] uma estrutura complexa, porque, no essencial, resultou da fusão de um verdadeiro processo administrativo do tipo sancionador (desde a instauração até à decisão) com um autêntico processo jurisdicionalizado do tipo criminal (a partir da impugnação contenciosa da decisão administrativa).”[3]
Com a consagração no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição do direito de defesa, com expressão na legislação ordinária, entre outros, no artigo 50.º do RGCO, o legislador pretendeu assegurar o conhecimento pelo arguido dos factos que lhes são imputados para o exercício pleno do referido direito.
Reporta-se o artigo 50.º do RGCO à prerrogativa de conformação subjetiva da decisão sancionatória ao abrigo do ius imperii, impondo a necessidade de audição prévia do arguido antes de ser proferida a decisão, competindo à autoridade administrativa realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade. É à entidade que dirige a investigação e instrução do processo contraordenacional que cabe escolher quais os meios de prova a utilizar para prova dos factos cujo conhecimento releve para a decisão. E, como contraponto, conforme se estabelece no mencionado artigo 50.º do RGCO, pode o arguido requerer a realização de diligências.
A temática do direito à audição, e da sua amplitude no processo contraordenacional, entronca na questão suscitada pelo recorrente e que agora constitui o objeto da nossa análise.
A respeito da concretização do direito de audição em processo contraordenacional encontramos vasta doutrina e jurisprudência, aliás citada na decisão recorrida, nas alegações da recorrente e nas contra-alegações do recorrido, importando, antes de mais, convocar a jurisprudência obrigatória constante do Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003 de 16-10-2002, in DR I Série A de 27-02-2003, com o seguinte conteúdo:
“Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contraordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contraordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afetado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado/notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no ato de impugnação da subsequente decisão/acusação administrativa.”
Radica o cerne da questão colocada pela recorrente, e na qual a mesma faz assentar a arguição da nulidade consubstanciada na violação do direito de audição previsto no artigo 50.º do RGCO, na delimitação do que deverá entender-se por “todos os elementos necessários para que este [o arguido] fique a conhecer a totalidade dos aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito” nos termos estabelecidos no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência que acabámos de citar.
A este propósito se pronunciou já amplamente a doutrina[4] e a jurisprudência dos tribunais superiores, formando entendimento, que subscrevemos – e que cremos ser maioritário – no sentido de que a densificação da estatuição do artigo 50.° do RGCO impõe a conclusão de que o processo contraordenacional deverá garantir o efetivo exercício do direito ao contraditório prévio à decisão, desiderato que apenas se conseguirá realizar na sua plenitude mediante a comunicação integral dos factos imputados, o que implicará a sua descrição objetiva, localizada no espaço e no tempo, assim como a sua caracterização subjetiva, elementos que se reputam imprescindíveis à identificação e recorte do comportamento contraordenacionalmente relevante.[5]
No mesmo sentido tem vindo a confluir a jurisprudência do Tribunal Constitucional, aqui se convocando, atendendo à sua clareza, o acórdão do TC n.° 99/09, relatado pelo Conselheiro Moura Ramos, disponível em tribunalconstitucional.pt, no qual podemos ler:
-“(…) dos direitos de audição e de defesa consagrados no artigo 32°, n.°10, da CRP, e densificados no artigo 50° do RGCO, extrai-se com toda a certeza que qualquer processo contraordenacional deve assegurar ao visado o contraditório prévio à decisão; que este só poderá ser plenamente exercido mediante a comunicação dos factos imputados; que a comunicação dos factos imputados implica a descrição sequencial, narrativamente orientada e espácio-temporalmente circunstanciada, dos elementos imprescindíveis à singularização do comportamento contraordenacionalmente relevante; e que essa descrição deve contemplar a caracterização, objetiva e subjetiva, da ação ou omissão de cuja imputação se trate."[6]
Tal posicionamento, corresponde, a nosso ver, ao entendimento formulado no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003 de 16.10.2002 e encontrava-se, desde logo, plasmado no acórdão fundamento que esteve na origem da oposição de julgados (acórdão da Relação de Lisboa de 22.03.2001).
Questão diversa, e igualmente revelante na situação que agora apreciamos, se reporta à definição das consequências jurídico-processuais da violação do direito de audição ou do deficiente cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGCO, como sucedeu no caso dos autos.
Analisemos um pouco mais de perto a fundamentação do referido Acórdão do STJ Fixação de Jurisprudência, que passamos a transcrever parcialmente por se nos afigurar de primordial importância a sua leitura para compreensão do posicionamento fixado em tal aresto no que tange à questão que nos ocupa. Aí se refere, entre o mais, e no que releva no que à referida matéria diz respeito, que:
“ (…) 11.3 - Em suma, a decisão administrativa de aplicação de uma coima só virtualmente constituirá uma «condenação», pois que, se impugnada, «tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação».
(…)
11.5 - Na outra hipótese, ou seja, na de impugnação judicial da «decisão administrativa», já os «preceitos reguladores do processo criminal» a haverão de encarar como se de uma «acusação» se tratasse. Donde que a equiparação da instrução contra-ordenacional ao inquérito criminal deva conduzir a que a preterição do «direito de audição» no decurso daquela (assemelhável ao incumprimento, neste, da obrigatoriedade de interrogar como arguido a pessoa determinada contra quem corra o inquérito - artigo 272.º, n.º 1, do actual Código de Processo Penal)(ver nota 34) haja de ser tratada, simplesmente, como «insuficiência do inquérito» [artigo 120.º, n.º 2, alínea d)], implicando, por isso, «nulidade dependente de arguição» (artigo 120.º, n.º 1) em prazo limitado (ver nota 35).
(…)
11.8 - De qualquer modo, a eventual preterição, no decurso da instrução contra-ordenacional, do «direito (processual) de audição» garantido pelo artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações haveria de ficar «sanada» (ver nota 39) - por força do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal - se o arguido viesse a prevalecer-se, na impugnação judicial da «acusação» administrativa, do direito (de defesa) «a cujo exercício o acto anulável se dirigia».
11.9 - Com efeito, não faria sentido (e seria, mesmo, processualmente antieconómico) (ver nota 40) anular a «acusação» (a não ser que a impugnação se limitasse a arguir a correspondente nulidade) se o «participante processual interessado» aproveitasse a impugnação (da «decisão administrativa» assim volvida «acusação») para exercer - dele enfim se prevalecendo - o preterido direito de defesa, em ordem (cf. artigo 286.º, n.º 1) à «comprovação judicial» (negativa) (ver nota 41) da «decisão de deduzir acusação».
11.10 - Com essa excepção (sanação do vício por os participantes processuais se terem prevalecido da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia), «o legislador procura evitar a anulação do processado por motivos de mera forma, contribuindo para a construção de um sistema menos formalista e mais preocupado com a justiça material. Se o acto, apesar de imperfeito, cumpriu os objectivos para os quais foi pensado pelo legislador [...], não se justifica a sua repetição» (ver nota 42).
12 - Deficiente cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGC-O
12.2 - Se - em caso de impugnação judicial da decisão administrativa - constitui nulidade (sanável) a omissão (absoluta) da audição do arguido na instrução contra-ordenacional, a deficiente satisfação, por parte da administração, desse direito do arguido (nomeadamente, em caso de audiência escrita, por a notificação do interessado «para dizer o que se lhe oferecer» não lhe conceder um «prazo razoável» (ver nota 43) ou não lhe «fornecer os elementos necessários para que fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito») (ver nota 44), também não poderá constituir - mesmo que se equipare essa «notificação» à «acusação» que, em processo penal, necessariamente precede a «decisão condenatória» (ver nota 45) - um vício formal (ver nota 46) mais gravoso que a «nulidade» (sanável) (ver nota 47) cominada, pelo artigo 283.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, para a acusação penal que não contenha «a indicação das disposições legais aplicáveis» [alínea c)] ou «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena [...], incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» [alínea b)].
12.3 - «Neste domínio são de realçar os deveres de diligência e de boa-fé processuais [...]. O segundo impede que os sujeitos processuais possam 'aproveitar-se de alguma omissão porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um trunfo para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado' (Tribunal Constitucional, acórdão n.º 429/95, de 6 de Julho, Diário da República, 2.ª série, de 10 de Novembro de 1995). [...] O legislador português [...] criou um sistema responsabilizador e progressivo, onde os sujeitos processuais são convidados a participar na marcha processual e a denunciar, com prontidão, as infracções cometidas e onde as possibilidades de sanação do vício vão aumentando à medida que o processo se afasta do acto imperfeito e se aproxima do seu epílogo [...]. No fundo, o legislador estruturou o processo penal em etapas sucessivas que servem de barreiras à propagação de certos defeitos do acto processual penal. Ultrapassados aqueles prazos fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos. Regime que, embora seja uma clara manifestação do princípio da conservação dos actos imperfeitos, se destina também a evitar que o interessado, em vez de arguir de imediato a nulidade, guarde esta possibilidade para utilizar no momento mais oportuno, se e quando for necessário. Conduta processual que, para além de ser muito reprovável, teria como consequência necessária a inutilização de todo o processado posterior, muitas vezes apenas na sua fase decisiva e no fim de uma longa marcha, que só com muito custo poderia ser refeita» (João Conde Correia, ob. cit., pp. 146, nota 328, e 177 a 179). (…)”[7]
Extrai, finalmente, o mencionado acórdão, da sua fundamentação, as seguintes conclusões, em tudo relevantes e determinantes para a resolução da questão que nos encontramos a apreciar:
“(…) 13 - Conclusões (ver nota 48)
I - Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGC-O, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido (ver nota 49), notificá-lo-á para - no prazo que o regime específico do procedimento previr ou, na falta deste, em prazo não inferior a 10 dias - dizer o que se lhes oferecer (cf. artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo) (ver nota 50).
II - A notificação fornecerá os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito (artigo 101.º, n.º 2) e, na resposta, o interessado pode pronunciar-se sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos (artigo 101.º, n.º 3)(ver nota 51).
III - A omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida «acusação», o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo «acusado», no acto da impugnação [artigos 120.º, n.os 1, 2, alínea d), e 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações] (ver nota 52). Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].
IV (ver nota a) - Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.º, n.º 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações)(ver nota 53). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].”[8]
*
De acordo com o regime estabelecido no artigo 445.º do Código de Processo Penal, que regula a eficácia de decisão dos recursos extraordinários de fixação de jurisprudência, como é o caso do indicado Acórdão do STJ n.º 1/2003, concretamente nos termos do seu nº 3 “A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.”
Ora, não descortinamos qualquer divergência relativamente à jurisprudência fixada em tal acórdão e subscrevemos integralmente os argumentos expendidos na sua fundamentação, que, por clareza de exposição e atendendo à sua relevância para o caso dos autos, optámos por transcrever em grande parte.
Assim, subsumindo a situação em análise no recurso à jurisprudência fixada, temos que:
- Tendo o órgão instrutor optado, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGCO, pela audiência escrita do arguido, conforme resulta da notificação constante de fls., notificou-o fornecendo-lhe apenas os elementos constantes do auto de notícia, nos quais se não incluiu a indicação dos factos atinentes ao elemento subjetivo do tipo contraordenacional necessários para que o notificando ficasse a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito.
- Não tendo a referida notificação fornecido todos os elementos necessários para que o interessado ficasse a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, encontra-se a mesma ferida de nulidade sanável, em conformidade como disposto nos artigos 283.º, n.º 3, do CPP e 41.º, n.º 1, do RGCO, devendo o tribunal recorrido tê-la considerado verificada.
- Tal nulidade é arguível pelo interessado/notificado no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração ou, judicialmente, no ato da impugnação da decisão administrativa, nos termos preceituados conjugadamente pelos artigos 120.º, n.º 1 e n.º 3, alínea c) e 105.º, n.º 1 do CPP e 41.º, n.º 1 do RGCO.
- Uma vez que a impugnação judicial da decisão administrativa não se limitou a arguir a nulidade, não deveria o tribunal “a quo” ter invalidado a instrução administrativa conforme vem defendido pelo arguido no recurso, uma vez que, tendo-se o impugnante prevalecido na impugnação judicial do direito preterido – tendo abarcando na sua defesa os aspetos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação, concretamente os atinentes aos elementos subjetivos do tipo contraordenacional que lhe vinha imputado – a nulidade se encontra sanada, em conformidade com o disposto nos artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do CPP e 41.º, n.º 1, do RGCO.
Nesta conformidade, pese embora se considere ter-se verificado a nulidade decorrente da violação do direito de audição previsto no artigo 50º do RGCO arguida pelo recorrente, improcede o recurso nesta parte no que diz respeito à consequência processual a extrair de tal verificação, uma vez que tal nulidade deverá considerar-se sanada por força do Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003 de 16.10.2002, o que se decidirá.
*
2 – Da nulidade da sentença recorrida, prevista no artigo 379.º, nº 1, alínea c), primeira parte, do CPP, por omissão de pronúncia relativamente a factos e a argumentos invocados pela recorrente na impugnação da decisão administrativa.
Nas suas conclusões alega a recorrente que:
“Nulidade da douta sentença, prevista na primeira parte da alínea c), do nº 1, do art.379.º CPPenal, por falta de pronúncia sobre a questão constante da conclusão II do recurso de impugnação judicial, desenvolvida e integrada pelas conclusões 7ª e 8ª, que aqui se reiteram.
7 – Não existem nos autos, da fase administrativa, quaisquer meios de prova que permitam sustentar a afirmação que é feita na parte final do o ponto V.2 da decisão impugnada judicialmente (pág.7 da decisão), a saber: “Ora, no caso sub judice, o (a) arguido (a) sabia , previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigado (a) a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, pelo que se considera que agiu com dolo eventual” (vide decisão ora impugnada, pág. 7).
(…) a douta sentença ora recorrida deveria ter-se pronunciado pela carência desses factos, ou seja, deveria ter-se pronunciado no sentido da falta absoluta de prova de quaisquer circunstâncias que consubstanciem a consciência da ilicitude dos factos imputados e a intenção de os praticar e, assim, dos elementos do tipo subjetivo de ilícito contraordenacional e, em consequência, absolver a arguida, ora recorrente, ao invés de suprir a falta de tais factos para servirem de fundamento à sua condenação por sentença, aliás, douta, mas, salvo o devido respeito, enfermando da apontada nulidade, o que deverá conduzir à sua revogação com a consequente absolvição da arguida ora recorrente.”
Não lhe assiste, a nosso ver, razão, pois que a leitura da sentença recorrida, mormente da parte em que aprecia a completude do auto de notícia em conjugação com a motivação da convicção probatória permite claramente constatar que o tribunal “a quo” analisou não só o auto de notícia, como a decisão administrativa impugnada e ainda todas as provas produzidas na instrução dos autos contraordenacionais, tendo concluído que os autos continham meios de prova que permitiam sustentar a convicção probatória constante da decisão administrativa e reiterada na sentença, relativamente aos elementos subjetivos do tipo contraordenacional imputado à arguida.
Recordamos a argumentação acima expendida relativamente às especificidades do ilícito contraordenacional quando comparado com o direito penal, das quais resulta que, não obstante enquanto processo sancionatório o mesmo dever assegurar ao arguido um conjunto de garantias equivalentes às previstas no processo criminal, tal processo não se encontra onerado com o mesmo grau de rigor e exigência de explanação, impostos à sentença penal.
De acordo com esta linha argumentativa, quanto ao elemento subjetivo, em sede de factos provados é usual o recurso a expressões vagas e diretamente reconduzíveis à norma de imputação subjetiva da contraordenação, pelo que, para a determinação do elemento subjetivo de uma infração contraordenacional será necessário que dos factos se consiga retirar o alcance subjetivo da conduta.
Reiterando que em sede de ilícito contraordenacional não se colocam com a mesma profundidade e grau de exigência as necessidades de fundamentação impostas à elaboração da sentença penal, citamos o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.09.2007, lavrado no Proc. 0711693 e disponível em www.dgsi.pt, no qual podemos ler:
“Tal decisão insere-se numa fase administrativa do processo de contra - ordenação, razão pela qual lhe são aplicáveis os princípios fundamentais de direito e do processo administrativo. Com efeito, o legislador ao distinguir duas fases - a administrativa e a judicial - certamente, não teve em mente a aplicação dos princípios processuais penais à fase administrativa. Por outro lado, atentos os princípios fundamentais do direito administrativo e o disposto no artº 58º do RGCOC, o que se deve exigir numa decisão administrativa (…), é o respeito por três princípios essenciais, que são: a suficiência, a clareza e a congruência.
Assim, o que se impõe é que a correspondente fundamentação, de facto e de direito, ainda que sucinta ou por remissão para todos os factos do processo contraordenacional, transcreva a respetiva factualidade, indique as normas jurídicas violadas e a coima aplicada, possibilitando, assim, um conhecimento perfeito dos factos e normas imputadas. Acresce, que a culpa nas contraordenações não se baseia em qualquer censura ético - penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do facto ao agente.”
Sufragando este entendimento, entendemos que a decisão administrativa, sindicada na sentença recorrida, está suficientemente fundamentada, dentro da lógica processual que a enforma, peça que a arguida recorrente, aliás, revelou ter entendido, o que resultou demonstrado pelo teor da sua impugnação judicial.
Tendo presentes tais especificidades e escusando-nos a novas considerações sobre tal matéria, diremos apenas que a factualidade provada, bem como a sua motivação, constantes da decisão administrativa, analisada na sentença recorrida, se nos afigura suficiente para proceder à imputação à arguida da contraordenação em causa nos autos.
Nenhuma omissão de pronúncia descortinamos assim no caso concreto, devendo, pois, improceder igualmente a arguição de tal nulidade.

3 – Da nulidade da sentença recorrida, prevista no artigo 379.º, nº 1, alínea b) do CPP, por condenar por factos diversos dos descritos na acusação fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 359º do CPP.
Sustenta a arguida no recurso que:
“(…)12 – Para além dos factos constantes da acusação, na fase administrativa, a douta sentença ora recorrida, acrescentou os factos elencados sob os itens 4 e 5 dos Factos Provados, a saber:
“4.Os factos supra descritos revelam uma atitude de desrespeito pelas normas jurídicas que regem a sua actividade, mas sobretudo algum desprezo pelos consumidores que elegeram a Recorrente como prestadora de um serviço de restauração e bebidas e confiam nesse serviço em termos de segurança e higiene alimentares.
5.A Recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que era obrigada a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, agindo com dolo eventual.”
13 – Estes factos não constavam da acusação da notificação escrita da arguida na fase administrativa, ou seja, o elemento subjetivo da infração não constava da dita notificação da arguida e foi com base neles que a douta sentença condenou a arguida ora recorrente, como decorre deste passo do 2º§ da penúltima página da sua Fundamentação de Direito:
Também quanto a esta nulidade não assiste razão à recorrente.
Efetivamente, constatamos que na decisão administrativa, concretamente no ponto IV – Fundamentação da Matéria de Facto e no Ponto V. 2, se consignou o seguinte:
“Resulta dos autos que o arguido(a) não cumpria os requisitos gerais e específicos de higiene a que se encontrava obrigado(a), atendendo ao estado de conservação e as condições higiénicas em que se encontrava o estabelecimento.
A situação verificada revela uma atitude de desrespeito pelas normas jurídicas que regem a sua actividade, mas sobretudo algum desprezo pelos consumidores que ao elegerem o arguido como prestador de um serviço de restauração e bebidas confiaram nesse mesmo serviço em termos de segurança e higiene alimentares.
Ao deixar de cumprir com tais requisitos, o arguido violou a lei, o que constitui um facto ilícito típico, tendo prosseguido com a sua acção, mesmo sabendo que lesava os bens jurídicos que as normas visavam proteger”. (…).
Ora no caso sub judice, o(a) arguido(a) sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia que estava obrigado(a) a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, pelo que se considera que agiu com dolo eventual”.
Por seu turno, na sentença ora recorrida deu-se como provado que:
“4. Os factos supra descritos revelam uma atitude de desrespeito pelas normas jurídicas que regem a sua actividade, mas sobretudo algum desprezo pelos consumidores que elegeram a Recorrente como prestadora de um serviço de restauração e bebidas e confiam nesse serviço em termos de segurança e higiene alimentares;
5. A Recorrente sabia, previu e aceitou a realização dos factos ilícitos, na medida em que sabia estar obrigada a cumprir os requisitos gerais e específicos de higiene no seu estabelecimento, optando por não o fazer e conformando-se com o resultado daí adveniente, agindo com dolo eventual.”
E motivou tal decisão considerando que a prova de tais factos resultou “do cotejo da matéria objetiva dada por provada com a regras da experiência comum”.
Nesta conformidade, quanto à arguição da nulidade em apreciação, acompanhamos a posição apresentada pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, considerando-se que a sentença recorrida não acrescentou quaisquer factos à decisão administrativa, nem condenou por factos diversos dos constantes de tal decisão, uma vez que, “pese embora a diversa arrumação ou sistematização dos factos” na decisão administrativa, o certo é que aqueles que foram sinalizados pela recorrente – concretamente os factos 4 e 5 dos Factos Provados – já constavam da aludida decisão. E nem se diga que a tal conclusão obsta a circunstância de a mencionada factualidade se encontrar deslocalizada no corpo da decisão administrativa, relevando novamente, em detrimento de tal objeção, o menor nível de exigência associado a tal decisão de que acima demos nota.[9]

4 – Da apreciação da responsabilidade da arguida pelos factos que lhe vêm imputados.
Finalmente, nas suas conclusões alega a recorrente que:
“15 – A situação em causa, que se resume, essencialmente, nos factos elencados sob o nº 2 dos factos provados, foi causada pela chuva, intensa e muito abundante, que a douta sentença qualificou de intempérie.
(…)
21 – Se a recorrente não podia controlar a situação, parece que a sua culpa deve ser excluída, pois que, face à situação de intempérie que ficou bem patente e face aos factos assinalados pela fiscalização, deverá concluir-se que que toda situação sub judice foi causada pela chuva muito intensa e abundante, pela anormal pluviosidade, assinalada pelas testemunhas, e não por uma de atitude de desrespeito pelas normas jurídicas que regem a atividade da recorrente, nem de qualquer desprezo pelos seus trabalhadores, que eram os consumidores a que esse facto de refere e a ausência de culpa deverá conduzir à sua absolvição, nos termos do disposto no art. 8º do RGCO.”
Parece-nos pretender a recorrente impugnar a matéria de facto dada como provada.
Ora, reiterando-se que, nos termos dos artigos 73.º a 75.º RGCO, nos recursos de contraordenação o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada – podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal, sempre sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC – e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito, não enfermando a sentença recorrida de nenhum dos vícios previstos no artigo 410º do Código de Processo Penal, encontramo-nos impedidos de conhecer do recurso nesta parte.
***
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso, julgando inexistentes as nulidades arguidas pela recorrente e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9 / Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).
***
(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 5 de abril de 2022
Maria Clara Figueiredo (relatora)
Maria Margarida Bacelar (1.ª adjunta)
Gilberto da Cunha (presidente)





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[1] cf. Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, “Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social” in “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol. XXXVII 2. 1996. pág. 564.
[2] Acórdão RE de 28 de outubro de 2008, relatado pelo Desembargador João Gomes de Sousa, proferido no processo 1441/08-1, disponível www.dgsi.pt.

[3] cf. Mário Gomes Dias, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, pp. 130-133.

[4] Em anotação ao artigo 50.° do RGCO, afirmam Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, pag 363: “O n.º 10 garante ao arguido em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar, ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e, possa defender-se das imputações que lhe são feitas. A defesa pressupõe a prévia acusação. A Constituição proíbe absolutamente a aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a possibilidade de se defender.”.
No mesmo sentido, Leones Dantas, no seu estudo “Os direito de audição e defesa no processo das contraordenações”, in Revista do CEJ, 2. ° semestre 2010, n.º 14, páginas 298, 299 e 331, reportando-se ao momento a que alude o disposto no artigo 50.° do RGCO, qualifica-o como o "espaço processual por excelência para o arguido ser confrontado com a factualidade que lhe é imputada no processo e respetiva qualificação o jurídica".
[5] No mesmo sentido se pronunciaram, entre outros, os seguintes acórdãos dos tribunais superiores, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Acórdão da Relação de Coimbra de 16.05.2018, relatado pela Desembargadora Brízida Martins; Acórdão Relação de Lisboa de 09.04.2019, relatado pela Desembargadora Ana Sebastião; Acórdão Relação de Guimarães de 25.03.2019, relatado pela Desembargadora Cândida Martinho.
[6] Sublinhado acrescentado atendendo à relevância da asserção para o caso concreto.
[7] Negritos acrescentados.
[8] Negritos acrescentados.
[9] Neste sentido, cfr., entre outros, também o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11.11.2020, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário podemos ler: “Em matéria contra-ordenacional, o elemento intelectual do dolo, ou conhecimento dos elementos objectivos do tipo, surge-nos em moldes substancialmente distintos dos que são próprios do domínio penal, já que estamos num domínio de ilícitos axiologicamente neutros, podendo o agente não ter conhecimento da proibição abstractamente aplicável na sua descrição jurídica e contudo possuir a consciência do ilícito relevante para efeitos de culpa.
A censurabilidade do comportamento, ínsita na culpa em sede de infracção contraordenacional, reside aqui fundamentalmente na imputação do facto a um comportamento responsável do seu autor.
Não é de exigir em sede de decisão administrativa o rigor formal, nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial.
Ainda assim, a omissão de rigor na arrumação desses elementos não afectou as garantias de defesa, nem dificultou o exercício do direito de impugnação judicial, uma vez que são compreensíveis as razões pelas quais - atentos os factos descritos, as provas obtidas e as normas violadas, a entidade administrativa considera que a Arguida, por intermédio dos seus representantes, incorreu no cometimento da contra-ordenação de exploração de uma máquina contendo uma modalidade afim de jogo de fortuna ou azar e, por isso, nos termos das disposições legais enunciadas, lhe aplica uma coima não se verificando assim, nulidade ou interpretação normativa inconstitucional, designadamente por desrespeito do disposto nos artigos 159.°, 160, 161, 162, e 163 do DL 422/89, dos artigos 283º, 374.°, n.° 2 do Código de Processo Penal ou do artigo 205.° da Constituição, improcedem as questões suscitadas pela Arguida.”