Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
193/22.6T8ELV-A.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
PRINCÍPIO DE PROVA
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. A omissão da informação, a falta de integração do devedor no PERSI pela instituição de crédito ou a ausência de comunicação da extinção do procedimento constituem violação de normas de carácter imperativo. Deste modo, sendo o seu cumprimento verdadeira condição de procedibilidade, o respectivo incumprimento configura excepção dilatória atípica ou inominada e insuprível.
II. A simples junção aos autos das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada, não fazendo prova do seu envio e recepção deve, todavia, ser considerada princípio de prova do envio, podendo ser corroborada por outros meios probatórios.
III. Em sede de apreciação liminar, a existência das aludidas cartas de integração no PERSI e subsequente extinção, acompanhadas da alegação do seu envio, não permitindo concluir que o mesmo não se concretizou, não tendo o executado tomado conhecimento do respectivo conteúdo, obsta ao indeferimento liminar do requerimento executivo.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 193/22.6T8ELV-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre
Juízo Local de Competência Cível de Elvas – J1

Relatório
Banco (…), SA instaurou contra (…) acção executiva visando a cobrança coerciva da quantia de € 7.333,98 (sete mil, trezentos e trinta e três euros e noventa e oito cêntimos) e juros vincendos, dando à execução letra de câmbio emitida em 12/06/2008 e vencida em 07/09/21, subscrita pelo executado para garantia do pagamento da quantia que pela exequente lhe foi mutuada no âmbito do contrato de concessão de crédito n.º (…) entre ambos celebrado.

Na consideração de que, embora o título executivo seja constituído por livrança, está em causa um contrato de concessão de crédito a consumidor, relação subjacente invocada pela exequente, foi esta convidada e juntar aos autos prova de integração do executado no PERSI e ainda da extinção do procedimento.
Na sequência de tal notificação a exequente juntou cópias impressas de duas missivas, delas constando como destinatário o executado e a morada constante do contrato celebrado, datadas respectivamente de 7 de Agosto de 2020 e 22 de Agosto de 2020, a primeira dando conhecimento da integração do devedor no PERSI e solicitando a remessa de diversos elementos necessários à análise da sua situação financeira, comunicando na última a extinção do procedimento por ausência de colaboração do notificado, que nada respondera.
Presentes os autos à Mm.ª juíza, foi de seguida proferida decisão que julgou verificada a excepção dilatória inominada e insuprível decorrente na alínea b) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10, com o consequente indeferimento liminar do requerimento executivo.
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Inconformada, interpôs a exequente o presente recurso, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões:
“1.ª Por douta Sentença, proferida a 11 de Abril de 2022, o Tribunal a quo pôs termos aos presentes autos (…).
2.ª Salvo melhor entendimento, a Mm.ª Juiz a quo não procedeu a uma apreciação e interpretação corretas da lei, em particular, da prova documental junta aos autos.
Senão vejamos,
3.ª O DL n.º 227/2012, de 25/10 instituiu o Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI).
4.ª Com interesse para a questão em apreço, prevê o artigo 14.º, n.º 4, do mencionado diploma legal que “... a instituição de crédito deve informar o cliente bancário da sua integração em PERSI, através de suporte duradouro”.
5.ª Por sua vez, o artigo 17.º do DL n.º 227/2012, de 25/10, consagra o regime aplicável aquando da extinção do PERSI.
6.ª Similarmente a outros atos no âmbito do PARI e do PERSI, a extinção do procedimento deve ser comunicada em suporte duradouro, com a descrição do fundamento legal e as razões pelas quais se considera inviável a manutenção deste procedimento (artigo 17.º, n.º 3, do DL n.º 227/2012, de 25/10).
7.ª O significado da expressão “suporte duradouro” está consagrada no artigo 3.º, alínea h), do citado diploma: “Qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.”
8.ª Por conseguinte, exigindo a lei, como forma de tal declaração uma “comunicação de suporte duradouro”, ou seja, a sua representação através de um instrumento que possibilitasse a sua reprodução integral e inalterada, é a mesma reconduzível à noção de documento constante do artigo 362.º do Código Civil.
9.ª Aqui se incluindo, por conseguinte, as cartas, ainda que remetidas por correio simples.
10.ª Não constando de tal norma qualquer indicação – expressa ou tácita – quanto à necessidade de tal comunicação ter que ser obrigatoriamente efetuada através de carta registada com A/R.
11.ª Igualmente não consta da Instrução do Banco de Portugal n.º 44/2012 (regulamente o DL n.º 227/2012, de 25/10) qualquer menção à observância do envio de correio registado/aviso de receção.
12.ª Por conseguinte, não prevendo o diploma que rege o PERSI e Instrução do Banco de Portugal que o regulamente tal observância, não poderá, salvo o devido respeito por opinião diversa, o julgador exigir tal formalidade.
13.ª Nestes termos, dúvidas não restam que as cartas enviadas sem A/R consubstanciam uma comunicação em suporte duradouro.
14.ª A este propósito escreveu-se no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11-02-2022, processo n.º 1983/20.0T8ENT.E.1, disponível em www.dgsi.pt:
“A exigência do registo do Procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento, em suporte duradouro, faz recair sobre a instituição de crédito que pretenda intentar ação executiva contra o seu cliente, para cobrança da atinente obrigação incumprida, a prova, por via da documentação registada no citado suporte duradouro, normalmente a documentação digitalizada arquivada em sistema informático, de que foi cumprido o procedimento, condição objectiva da admissibilidade da execução, em face do disposto na alínea b), do n.º 1, e do n.º 4 do artigo 18.º do Decreto-Lei n.º 227/2012.
Tal vínculo probatório, faz recair esse meio de prova na alçada do n.º 2 do art.º 364.º do Cód. Civil, ou seja, obriga a instituição de crédito a provar, por via desse meio probatório, qualquer facto respeitante ao procedimento PERSI, nomeadamente todas as interpelações do seu cliente no âmbito desse procedimento.
Sendo um meio de prova ad probationem, a instituição de crédito apenas pode provar o facto registável no aludido suporte duradouro por via da junção aos autos da totalidade ou de partes desse suporte, que apenas pode ser substituído por confissão expressa por parte do cliente da instituição, ou por documento de igual ou superior valor probatório.
No entanto, afigura-se que tal exigência probatória se reporta apenas à prova da existência da atinente documentação procedimental, em suporte duradouro, entre o qual estão as missivas dirigidas e recebidas do cliente, mas já não a prova da entrega das missivas ao cliente, que pode ser efectuada por qualquer meio probatório, inclusive por prova testemunhal.
Por outro lado, não exige a lei que as missivas dirigidas aos clientes pela instituição bancária tenham que obedecer a qualquer formalidade, por exemplo sejam enviadas por carta registada com aviso de recepção, bastando, a nosso ver, para o cumprimento da lei, o envio de tais missivas em conformidade com os estabelecido no contrato para a comunicação entre a instituição de crédito e o cliente, nomeadamente, se assim for o caso, por carta simples para a morada do cliente contratualmente convencionada ou por email, documentação essa que deve constar do referido suporte duradouro.
Sendo condição da instauração da acção executiva a extinção do procedimento PERSI mais de 15 dias, tem-se por cumprida tal condição com a junção aos autos desse procedimento em suporte duradouro, que documente a sua instauração e a sua extinção, com as atinentes missivas ao cliente, que demonstrem tal realidade, o que deve ser materializado por via da junção aos autos da reprodução da totalidade ou de partes desse suporte, devidamente atestada pela instituição bancária exequente.
Sendo certo que qualquer controvérsia sobre o cumprimento do PERSI, ou alguma irregularidade do mesmo, tem que ser invocada pelo demandado/interessado, nomeadamente por via da dedução de Oposição à Execução de Embargos” (destaque e sublinhado nosso).
15.ª Este entendimento foi acolhido pela nossa jurisprudência, citando-se a título exemplificativo os seguintes Acórdãos:
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05-11-2018, processo n.º 3413/14.7TBVFR-A.P1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
“I O artigo 14.º, n.º 4, do DL 227/2012, de 25 de Outubro, exige que a instituição de crédito informe o cliente bancário da sua integração em PERSI, através de comunicação em suporte duradouro.
II O artigo 3º, alínea h), do DL 227/2012, define o suporte duradouro como qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas.
III Ao Exigir.se como forma da declaração uma comunicação em suporte duradouro, uma carta pode ser entendida como tal, pois, possibilita reproduzir de modo integral e inalterado o seu conteúdo.
IV Se a intenção do legislador fosse a de sujeitar as partes do procedimento extrajudicial de regularização das situações de incumprimento a comunicar através de carta registada com aviso de receção, tê-la-ia consagrado expressamente(destaque e sublinhado nosso).
- Acórdão o Tribunal da Relação de Évora, de 21-05-2020, processo n.º 715/16.1T8ENT-B.E1, disponível em www.dgsi.pt, do qual se transcreve a seguinte passagem:
“As comunicações de integração e de extinção do PERSI têm de ser feitas num suporte duradouro (que inclui uma carta ou um e-mail), conforme ressalta da leitura dos artigos 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do DL 227/2012, de 25/10.
(...) se a intenção do legislador fosse a de sujeitar as partes do procedimento extrajudicial de regularização das situações de incumprimento a comunicar através de carta registada com aviso de recepção, tê-la-ia consagrado expressamente [...]. Não está assim obrigada a instituição bancária a utilizar correio registado com aviso de recepção para cumprir a obrigação legal sub judice (sublinhado nosso).
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10-09-2020, processo n.º 1834/17.2T8MMN-A.E1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
“A lei não exige que as comunicações da integração do cliente bancário no PERSI e da extinção deste sejam efectuadas através de carta registada com aviso de recepção. Não obstante, a instituição de crédito tem o ónus de prova de que efectuou tais comunicações em suporte duradouro, entendido este, nos termos do artigo 3.º, al. h), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25.10, como qualquer instrumento que permita armazenar informações durante um período de tempo adequado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução integral e inalterada das informações armazenadas” (sublinhado nosso).
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 05-01-2021, processo n.º 105874/18.0YIPRT.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se exarou:
“II A integração no PERSI e a sua extinção devem ser comunicadas pela instituição de crédito ao cliente “através de comunicação em suporte duradouro” (cfr. artigos 3.º, al. h), 14.º, n.º 4, e 17.º, 3, do DL 227/2012, de 25.10), o que inclui, designadamente, o papel (uma carta remetida por correio) ou um e-mail;
III Coisa distinta é a prova de envio dessas comunicações e da sua receção pelos destinatários, entendendo-se que estão em causa declarações receptícias, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 224.º do Código Civil;
IV Tendo o Tribunal convidado a A., instituição de crédito, para que documentasse a abertura, tramitação e encerramento do PERSI e a sua efetiva comunicação aos RR., devem as cópias das cartas, endereçadas a estes, que foram juntas pela A. em resposta, ser consideradas como princípio de prova desse envio e receção, podendo aquela fazer prova do facto-indiciário do respetivo envio por meio de testemunhas; provado, desse modo, o envio das cartas, é de presumir a sua receção pelos RR., sem prejuízo destes ilidirem tal presunção (sublinhado nosso).
16. Pelo exposto, resulta dos documentos juntos aos presentes autos que o ora Recorrente remeteu a 7 de Agosto de 2022 carta a dar conhecimento que se encontravam prestações em atraso e da integração do contrato em PERSI, solicitando o envio, no prazo de 10 dias, da documentação aí referida.
17. Carta remetida para a morada indicada pelo Executado aquando da celebração do contrato, sita na Rua Dr. (…), n.º 29, (…).
18. De igual modo, o Executado em momento algum se dignou a responder, apresentar os documentos que lhe foram sendo sucessivamente solicitados ou, mesmo, apresentar qualquer tipo de resposta.
19. Quando é certo que, dada a oportunidade, não pode a contraparte (devedor) demitir-se da necessária cooperação/colaboração com a entidade de crédito, devendo, ao invés, empenhar-se nos contactos e prestação de informações necessárias, sem o que o credor não poeria levar a bom termo o cumprimento dos deveres a seu cargo.
20.ª Sendo a falta dessa cooperação/colaboração causa de extinção do PERSI pela entidade de crédito (por iniciativa desta).
21.ª Assim, em face da falta de colaboração do Executado, veio o ora Recorrente dar conhecimento que o PERSI relativo ao contrato em apreço tinha sido extinto através de carta remetida a 22 de Agosto de 2020.
22.ª Carta de igual modo remetida para a morada indicada pelo Executado aquando da celebração do contrato, sita na Rua Dr. (…), n.º 29, (…).
23.ª Não tendo, mais uma vez, a mesma sido em momento algum devolvida, pelo que, forçoso é concluir, também aqui que o Executado terá recebido a cartas e tem perfeito conhecimento do seu teor.
24.ª Compreende-se, perfeitamente, os motivos pelos quais, o Legislador não determinou que as comunicações a efetuar pelas instituições de crédito aos seus clientes, no caso de mora ou incumprimento no pagamento das prestações dos mais variados empréstimos bancários fossemefetuadas através decartas registadas com aviso de receção.
25.ª A regra é a das comunicações entre as instituições bancárias e os seus clientes, é as comunicações serem efetuadas através de carta simples, sendo que, a tendência será para cada vez mais, as comunicações serem efetuadas através dos meios eletrónicos e só muito excecionalmente, através decarta registada, comoé ocaso, ainda, na resolução/denúncia dos contratos.
26.ª Se o Legislador tivesse expressamente previsto que as instituições de crédito, tinham, no prazo máximo de cinco dias, de informar, os seus clientes, através de carta registada com A/R, dos montantes em dívida, devido à mora, com vista a integrá-los no PERSI, atendendo às milhares de situações que ocorrem, nas épocas de crise, seria incomportável e inexequível em prazo tão curto, de cinco dias, proceder aos registodeinúmerascartascomavisodereceção, comosinerentescustosasuportar e, em última instância, pelos próprios clientes, e os recursos humanos que seriam necessários contrata para o efeito.
27.ª Assim, as cartas remetidas ao Executado, a comunicar a integração em PERSI e a posterior extinção do PERSI, são remetidas, para do domicílio convencionado das partes em automático, pelo sistema central do Banco, através de correio simples.
28.ª Termos em que, ao invés do entendimento do Tribunal a quo, o ora Recorrente deu total cumprimento ao disposto no DL n.º 227/2012, de 25/10.
29.ª Mais, a atuação da instituição bancária/Exequente foi muito mais longe do que preconiza o DL n.º 227/2012, de 25/10, ao manter o contrato em incumprimento durante mais de um ano, na tentativa de encontrar soluções para o problema.
30.ª Quando é certo que, tendo sido dada oportunidade ao devedor de proceder à regularização da situação de incumprimento, o mesmo não o fez. Não restando ao Exequente outra solução, senão o recurso à via judicial, de forma a obter a satisfação do seu crédito.
31.ª Por mera cautela de patrocínio, não pode o ora Recorrente deixar de invocar o mui douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14-10-2021, processo n.º 2915/18.0T8ENT.E1, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual:
Apresentando a instituição bancária cópia das cartas simples enviadas aos executados no âmbito do PERSI, estas constituem princípio de prova do envio da comunicação, pelo que o juiz não pode oficiosamente concluir pela não recepção de tais cartas.
Caberia aos executados, através dos meios processuais ao seu alcance, efetuar essa alegação, caso em que a exequente ofereceria a prova, inclusive testemunhal” (sublinhado nosso).
32.ª Não se verificando no caso em apreço a exceção dilatória decorrente do regime plasmado no artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do DL n.º 227/2012, de 25 de Outubro, devendo os presentes autos prosseguir com os seus termos ulteriores.
33.ª A consideração pelo supra exposto, implica necessariamente decisão diversa da proferida, o que se requer.
34.ª Nestes termos e atento a tudo o supra exposto, deverá ser concedido provimento ao presente Recurso, revogando-se a Sentença recorrida e substituindo-se por outra decisão que ordene o normal prosseguimento da presente demanda”.
Conclui pela procedência do recurso.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em determinar se, tal como foi entendido na decisão impugnada, a exequente não logrou fazer prova do cumprimento do regime imposto pelo DL 227/2012, de 25 de Outubro.
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I. Fundamentação
Da verificação da excepção dilatória da omissão de integração do mutuário executado no PERSI.
O DL 227/2012, de 25 de Outubro (diploma que estabeleceu o Plano de Ação para o risco de Incumprimento (PARI)), com as modificações introduzidas pelo DL 70-B/2021, de 6 de Agosto, veio impor às entidades concedentes de crédito determinados deveres porquanto, tal como se enfatizou no respectivo Preâmbulo, “A concessão responsável de crédito constitui um dos importantes princípios de conduta para a atuação das instituições de crédito. A crise económica e financeira que afeta a maioria dos países europeus veio reforçar a importância de uma atuação prudente, correta e transparente das referidas entidades em todas as fases das relações de crédito estabelecidas com os seus clientes enquanto consumidores na aceção dada pela Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril.”
Para tanto, foi instituído um “Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor”.
Pretendeu assim o legislador “obviar a que as instituições de crédito, confrontadas com situações de incumprimento desses contratos, possam desencadear, de imediato, os procedimentos judiciais com vista à satisfação dos seus créditos relativamente a devedores enquadráveis no conceito legal de “consumidor”, na aceção que lhe é dada pela Lei do Consumidor (Lei n.º 34/96, de 31.07, alterada pelo D/L n.º 67/2003, de 08.04), salvaguardando através dos mecanismos nele criados aposição dos contraentes mais fracos e menos protegidos, particularmente numa época de acentuada crise económica e financeira” (acórdão do STJ de 09.02.2017, proferido no processo 194/13.5TBCMN-A. G1. S1., acessível em www.dgsi.pt)
O objecto do PERSI encontra-se delimitado no artigo 1.º, nele se prevendo a “regularização extrajudicial das situações de incumprimento das obrigações de reembolso do capital ou de pagamento de juros remuneratórios por parte dos clientes bancários, respeitantes aos contratos de crédito referidos no n.º 1 do artigo seguinte”, a saber, e para o que aqui releva, “c) Contratos de crédito a consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de junho, com exceção dos contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autónomo”.
Expressa em conformidade o artigo 3.º que para efeitos do diploma em referência entende-se por “Cliente bancário o consumidor, na aceção dada pelo n.º 1 do artigo 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, alterada pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, que intervenha como mutuário em contrato de crédito” (vide a alínea a), justificando o regime, tal como destacado no preâmbulo, “as assimetrias de informação entre consumidores e instituições de crédito”.
Previa o artigo 13.º do mesmo diploma a obrigatoriedade por parte da Instituição Financeira de, no prazo de 15 (quinze) dias após o vencimento da obrigação em mora, informar o “cliente bancário” de tal atraso e dos respetivos montantes em dívida, procedendo mandatoriamente à sua integração no PERSI entre o 31.º dia e o 60.º dia subsequentes à data de vencimento da obrigação em causa (cfr. artigo 14.º, n.º 1).
Conforme se explanou no aresto deste mesmo Tribunal da Relação de 16/12/2021, proferido no âmbito do processo 340/21.5 TBELV-A.E1, em www.dgsi.pt, “O PERSI consiste num procedimento tipificado de composição extrajudicial, por mútuo acordo, de situações de mora e/ou incumprimento, que se desenrola em três fases: i. uma fase inicial – na qual as instituições de crédito mutuantes informam o cliente da ocorrência de uma situação de mora e dos montantes vencidos em dívida, procurando obter informações acerca das razões subjacentes ao incumprimento. Sendo que, caso esse incumprimento se mantenha, o cliente será obrigatoriamente integrado no PERSI entre o 31º dia e 60º dia posterior à entrada em mora; ii. uma fase de avaliação e proposta – na qual as instituições de crédito mutuantes procuram apurar se o incumprimento é pontual e temporário ou, ao invés, se denota uma incapacidade do cliente em cumprir de forma continuada com as suas obrigações contratuais, comunicando-lhe posteriormente o resultado dessa indagação, e apresentando ou não uma proposta de regularização adequada à sua situação financeira, objectivos e necessidades (consoante concluam que a renegociação das condições do contrato, ou a consolidação do crédito com outros, são soluções exequíveis); iii. e, finalmente, uma fase de negociação – no âmbito da qual o cliente poderá recusar ou propor alterações à proposta apresentada e, por sua vez, a instituição de crédito mutuante poderá rejeitar as alterações sugeridas ou, quando considere que não existem alternativas viáveis e adequadas ao cliente, abster-se de apresentar uma contraproposta ou uma nova proposta”.
A integração de cliente bancário no PERSI é obrigatória quando verificados os seus pressupostos e a acção judicial destinada a satisfazer o crédito só poderá ser intentada pela instituição de crédito contra o cliente bancário, devedor mutuário, após a extinção do PERSI, conforme decorre do disposto no artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do DL n.º 227/2012.
A omissão da informação, a falta de integração do devedor no PERSI pela instituição de crédito ou a ausência de comunicação da extinção do procedimento constituem violação de normas de carácter imperativo. Deste modo, sendo o seu cumprimento verdadeira condição de procedibilidade, o respectivo incumprimento configura excepção dilatória atípica ou inominada, insuprível, entendimento que a apelante, de resto, não discute.
A questão nuclear colocada nestes autos é, assim, outra, importando determinar se se encontra ou não demonstrado -e tendo presente que estamos perante um indeferimento liminar – o (in)cumprimento da obrigação de comunicação expressa no diploma legal em referência com observância da forma exigida, atento o que dispõem os artigos 14.º, n.º 4 e 17.º, n.º 3, do diploma a que nos vimos reportando.
A apelante fez juntar aos autos cópias impressas das missivas que alegadamente enviou ao executado, mostrando-se ambas endereçadas para a morada constante do contrato celebrado. Não obstante, considerou-se na decisão recorrida que “Do articulado que antecede apresentado pelo exequente resulta a elaboração de dois documentos tendo por destinatário o executado, comunicando a integração/extinção do PERSI – mas não o envio ou sequer a recepção de tais comunicações”. E na medida em que “A junção dos documentos apenas permite demonstrar a utilização de um processador de texto com vista a documentar uma mensagem”, não tendo a exequente juntado ou requerido “qualquer prova que permita demonstrar o seu envio”, foi meramente consequente a conclusão de que não se verificava a referida condição de procedibilidade.
Não secundamos tal entendimento, o que se antecipa.
Não se mostra controvertido, conforme se deixou já referido, que compete ao credor alegar e demonstrar que os devedores tiveram conhecimento da sua integração no PERSI, bem como da extinção desse procedimento. Com efeito, estando em causa declarações receptícias, constitui ónus do exequente demonstrar a sua existência, o seu envio e a respectiva recepção pelo executado. Todavia, e ao invés do que foi decidido, os elementos constantes dos autos não permitem concluir pela definitiva ausência de prova desses factos, pressuposto do indeferimento liminar decretado.
Antes de mais, e conforme se considerou no acima citado acórdão deste mesmo Tribunal, “(…) a lei não exige que as missivas dirigidas aos clientes pela instituição bancária tenham que obedecer a qualquer formalidade, por exemplo sejam enviadas por carta registada com aviso de recepção, bastando para o cumprimento da lei o envio de tal documentação em conformidade com o estabelecido no contrato para a comunicação entre a instituição de crédito e o cliente, nomeadamente, se assim for o caso, por carta simples para a morada do cliente contratualmente convencionada ou por email, documentação essa que deve constar do referido suporte duradouro”.
E acrescentou-se: “A lei faz recair sobre o declarante o ónus de efectuar uma comunicação eficiente (…) competindo-lhe fazer com que a declaração seja recepcionada pelo destinatário em circunstâncias tais que possa ter um efectivo acesso ao seu conteúdo.
Em sede de declarações recipiendas, de acordo com as regras gerais de distribuição do ónus da prova, incumbe ao Autor da declaração demonstrar que empregou um meio de transmissão que se revele idóneo a atingir a esfera do conhecimento do declaratário e que a declaração foi por ele efectivamente recebida, enquanto que compete a este último convencer que a declaração foi recebida em condições de, sem culpa sua, não poder ser conhecida.
A declaração recipienda, de acordo com o estatuído no artigo 224.º do Código Civil, torna-se apta a produzir os efeitos pretendidos pelo declarante logo que que é efectivamente conhecida pelo destinatário ou quando ao poder deste em condições de ser por ele conhecida ou a partir do momento em que, normalmente, teria sido recebida pelo destinatário, caso este não tivesse obstado, com culpa, à sua oportuna recepção.
A lei parte da situação regular e normal de que, com a chegada ao poder, o destinatário (o declaratário) está em condições de tomar conhecimento e que ele toma este conhecimento. O saber se a chegada ao poder conduz realmente a uma situação, suposta pela lei, que permite o conhecimento efectivo, determina-se em conformidade com as concepções reinantes no tráfico jurídico para os negócios em causa.
A simples junção aos autos das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada deve ser considerada como princípio de prova da remessa. Ou, por outras palavras, a exigência “ad probationem” apenas se reporta ao cumprimento da obrigação procedimental (o documento é exigido apenas para prova da declaração), mas a prova da entrega das missivas ao cliente pode ser concretizada por qualquer meio probatório, inclusive por prova testemunhal”.
Também o STJ, em acórdão datado de 13/04/2021, proferido no processo 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt, decidiu que a “I – A comunicação de integração no PERSI, bem como a de extinção do mesmo, constituem condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva), consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância (artigo 576.º, n.º 2, do CPC). II – Tais comunicações têm de lhe ser feitas em suporte duradouro, ou seja, a sua representação através de um instrumento que possibilite a sua reprodução integral e inalterada, e, portanto, reconduzível à noção de documento constante do artigo 362.º do CC. III – Tratam-se de declarações receptícias, constituindo ónus da exequente demonstrar a sua existência, o seu envio e a respectiva recepção pela executada. IV – A simples junção aos autos das cartas de comunicação e a alegação de que foram enviadas à executada, não constituem, por si só, prova do envio e recepção das mesmas pela executada. Todavia tal apresentação pode ser considerada como princípio de prova do envio a ser coadjuvada com recurso a outros meios de prova.”
Trata-se de entendimento igualmente perfilhado no acórdão de 14 de Outubro de 2021, no processo 2915/18.0T8ENT.E1, disponível em www.dgsi.pt, que a ora relatora subscreveu na qualidade de 2.ª adjunta e de que não se vê razão para divergir, tanto mais que estamos em sede de indeferimento liminar.
Por outro lado, e quanto ao argumento de que “pela exígua distância temporal entre as comunicações (07-08-2020 e 22-08-2020) é manifesto que, ainda que hipoteticamente enviadas, não permitiriam a recepção, apreciação e resposta em tempo razoável, pelo que não pretendem mais do que cumprir uma mera formalidade com vista a permitir ao exequente aceder à acção executiva”, também não o acolhemos.
Sendo incontornável que as exigências legais não se bastam com uma aparência de cumprimento dos deveres que o regime introduzido pelo diploma em referência faz recair sobre as entidades concedentes de crédito, não é menos certo que a sua aplicação não prescinde da efetiva colaboração do devedor, bem podendo suceder que a recusa em fornecer as informações e elementos solicitados comprometam a necessária apreciação da sua situação financeira e, consequentemente, a apresentação de propostas de regularização com um mínimo de consistência, inviabilizando todo o processo (vide acórdão deste TR de 26 de Maio de 2022, processo 8/22.2T8ENT.E1, também subscrito pela ora relatora na qualidade de 2.ª adjunta, ainda acessível em www.dgsi.pt).
No caso dos autos, na primeira missiva, datada de 8 de Agosto, foram solicitados pela ora apelante diversos documentos, identificados com precisão, cuja entrega deveria ocorrer no prazo de 10 dias, desde logo se advertindo o devedor que a ausência de resposta conduziria ao encerramento do processo, falta de resposta que na segunda carta vem mencionada como motivo para essa mesma extinção.
Não tendo o devedor satisfeito o solicitado, segundo alega a recorrente, nem tendo invocado dificuldade ou requerido prorrogação do prazo concedido, não se vê que a credora tivesse que aguardar pelo 91.º dia para declarar encerrado o processo, tanto mais que o prazo concedido, atenta a natureza dos elementos/documentos solicitados -recibos de vencimento ou prestação de serviços, certidão de liquidação do IRS e documentos comprovativos de encargos fixos e quaisquer outros necessários ao apuramento da situação económica- de ordinário na posse dos seus titulares, não pode, em nosso entender, considerar-se exíguo.
Por último, como também se referiu no acórdão de 22 de Maio de 20222 acima citado, “Ponderando, finalmente, que nos encontramos perante um despacho liminar de indeferimento, que deve ser reservado para situações de manifesta e indiscutível improcedência do pedido, mesmo que subsistam dúvidas sobre a ocorrência de uma excepção dilatória inominada, a execução deve prosseguir, tanto mais que o processo admite aos executados a oportunidade de deduzir a sua oposição, podendo invocar todos os fundamentos que possam ser invocados como defesa no processo de declaração – artigo 731.º do Código de Processo Civil”.
Deste modo, não se afigurando procedente aquele último fundamento invocado na decisão recorrida e porque os autos não permitiam, a nosso ver, concluir que o envio das cartas de comunicação de integração no PERSI e subsequente extinção não foi perfectibilizado, não tendo o destinatário aqui executado tomado conhecimento do respectivo conteúdo, não pode subsistir a decisão recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
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Sumário:
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Évora, 15 de Setembro de 2022
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Ana Margarida Pinheiro Leite