Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
554/12.9TBENT.E1
Relator: FRANCISCO XAVIER
Descritores: PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
SOCIEDADES COMERCIAIS
FIANÇA
Data do Acordão: 12/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
I. Com o novo Código de Processo Civil, atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório, uma vez que continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa.
II. Estando em causa a delimitação da capacidade de gozo de direitos por parte das sociedades comerciais, por conjugação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, e face ao preceituado nos artigos 280.º, n.º 1, e 294.º, do Código Civil, deve, em princípio, considerar-se contrária ao fim da sociedade – e, como tal, nula – a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades.
III. Porém, não se considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
IV. É à sociedade garante que invoca a nulidade da garantia por si prestada, com o objectivo de se valer de tal nulidade, para não ter de cumprir a obrigação garantida, que compete alegar e provar a inexistência de interesse próprio, ou seja, provar os requisitos da nulidade de que se pretende aproveitar.
V. O fiador é responsável, não só pela prestação devida, como pela pena convencional, ou pela reparação dos danos, havendo culpa do devedor, salvo se outra coisa se tiver convencionado, já que, como resulta do artigo 631º, n.º 1, do Código Civil, a fiança pode ser contraída em menos onerosas condições.
VI. Tendo o fiador declarado garantir, com renúncia ao benefício de excussão, o cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo locatário, responde solidariamente com este pela indemnização devida decorrente do não cumprimento pelo locatário da obrigação de entrega do locado findo o contrato.
Decisão Texto Integral:

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. BB veio propor acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra CC, DD, SA., e EE, SA., pedindo a sua condenação solidária no pagamento das seguintes quantias:
a) € 14.628,00, correspondente a rendas vencidas e não pagas, de Maio a Agosto de 2011;
b) € 7.314,00, respeitante a indemnização por mora no pagamento de rendas;
c) € 7.314,00, por mora na restituição do arrendado; e
d) € 348,00, referente ao valor de actualização de rendas.
Pede ainda a condenação em juros moratórios e compulsórios, estes nos termos do n.º 4 do artigo 829º-A do Código Civil.

2. Para tanto alegou, em síntese, que:
- Celebrou com os RR. CC e DD um contrato de arrendamento de duração limitada pelo período de 5 anos, com início em 1 de Maio de 2001 e termo em 30 de Abril de 2006, arrendamento esse destinado a habitação do 1º R.;
- A renda fixada foi de € 1.496,39, Esc. 300.000$00 na ocasião;
- Na mesma data, e em dependência do aludido arrendamento, foi celebrado um contrato de aluguer do recheio do apartamento em questão, fixando-se para o efeito uma renda mensal de € 748,20, Esc. 150.000$00 na ocasião;
- O R. CC deixou de proceder ao pagamento das rendas referentes a Março e Abril de 2011, não pagando qualquer outra renda;
- Por carta de 26 de Abril de 2011, recebida pela A. em 27 de Abril de 2011, o R. CC declarou à A. rescindir o contrato de arrendamento, com efeitos em 11 de Junho, não tendo respeitado o prazo de aviso prévio de 120 dias, o qual terminaria em 31 de Agosto de 2011;
- O R. DD comunicou, ainda, à A. que entregaria o arrendado em 8 de Agosto de 2011, tendo aquela constatado que o arrendado se encontrava em mau estado e faltavam alguns bens, pelo que o mesmo R. solicitou à A. nova data de entrega, ao que esta acedeu, fixando-se a mesma em 29 de Agosto;
- Na data fixada, a entrega do arrendado não se concretizou e nem a A. nem o R. assinaram qualquer declaração de entrega, tendo a chave do arrendado apenas sido entregue em 28 de Outubro.
Entende, por isso, a A., que lhe são devidas as rendas de Maio a Agosto de 2011, no valor de € 14.628,00, não pagas, acrescidas do valor de 50% de indemnização por mora no pagamento das rendas, na quantia de € 7.314,00. Entende, ainda, ser credora do valor das rendas até à entrega do locado, em Outubro de 2011, correspondente a € 7.314,00. Pretende, também, o valor correspondente à actualização das rendas efectuada em Fevereiro de 2011, no valor de € 348,00, pelas rendas de Março e Abril de 2011. A tudo deverão acrescer os devidos juros, inclusive os juros compulsórios previstos no artigo 829º-A, n.º 4, do Código Civil.
Diz ainda que dos montantes supra referidos deverá se descontada a quantia de € 2.250,00, valor correspondente às cauções prestadas nos contratos de arrendamento e aluguer de recheio, e que os RR. “EE” e “DD” respondem solidariamente pelo pagamento dos valores em dívida por via da fiança prestada.

3. Citados os RR., apresentaram contestação conjunta, conforme consta de fls. 115 e ss., invocando desde logo as excepções dilatórias de incompetência territorial do Tribunal do Entroncamento para o conhecimento da presente acção e a ilegitimidade da R. DD, S.A..
Invocaram ainda a invalidade do contrato de arrendamento, por ter sido celebrado por quem não detinha a qualidade de proprietário do arrendado, não se encontrando definidos no contrato os poderes da A. para arrendar e não constar do mesmo a licença de utilização, e a invalidade da cláusula de actualização de renda, por violação dos artigos 30º e 31º do RAU, impugnando também a versão dos factos dada pelo A.
Deduziram reconvenção, peticionando a condenação da A. no pagamento da quantia de € 2.245,00 ao 1º R., e respectivos juros de mora desde Setembro de 2011.
A A. respondeu na réplica.

4. Por despacho de fls. 198 e ss. foi rejeitada, por inadmissível a reconvenção, fixado o valor da acção e corrigida a forma de processo que passou a seguir os termos do processo ordinário.
Dispensou-se a realização da audiência prévia e proferiu-se despacho saneador, no âmbito do qual se indeferiu a excepção de incompetência territorial e de ilegitimidade passiva da 2ª R., invocadas na contestação.
Seleccionada a matéria de facto já assente e elaborada a base instrutória os autos prosseguiram para julgamento.

5. A fls. 316 e ss. veio a sociedade FF, Sociedade Unipessoal, Lda., arguir a sua falta de citação, alegando que a R. DD foi, no âmbito de uma operação de fusão, incorporada naquela, tendo-lhe sucedido em todos os direitos e deveres, sendo que à data da entrada em juízo da petição inicial, aquela R. já se encontrava extinta.
Por despacho de fls. 338 e 339 decidiu-se declarar a falta de citação da sociedade FF, Sociedade Unipessoal, Ld.ª, mas indeferiu-se o pedido de anulação do processado e a citação daquela com base no disposto no artigo 190º, al. b), do CPC.

6. Realizada a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal conforme resulta das respectivas actas, sendo que em sede de alegações, a 2ª e 3ª RR. vieram invocar a nulidade da fiança prestada por violar o disposto no artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais.
Após veio a ser proferida sentença, na qual, previamente se apreciou a intervenção da sociedade FF, Sociedade Unipessoal, Ld.ª, consignando-se o seguinte:
«A sociedade FF, Sociedade Unipessoal, Ld.ª interveio por sua iniciativa nos autos a fls. 316 e ss. constituiu mandatário a fls. 319 e interveio em todos os termos subsequentes dos autos, intervindo, inclusive, em sede de audiência de julgamento.
Ora, a situação dos autos configura, em bom rigor, a prevista no art. 269º, n.º 2, do CPC, e não a prevista no art. 190º, al. b), do CPC. Estamos perante uma sucessão da sociedade FF, Sociedade Unipessoal, Ld.ª, nos direitos e deveres da sociedade primitivamente demandada DD, S.A., sendo que, pese embora tal sucessão tenha ocorrido em momento anterior à interposição da acção, só no decurso desta veio a ser conhecida nos autos.
Considerando que aquela sociedade FF, Sociedade Unipessoal, Ld.ª, acabou por vir assumir nos autos a posição anteriormente assegurada pela R. DD, S.A., consideramos operada a substituição, nos termos do art. 269º, n.º 2, do CPC.»
E quanto ao mérito da causa decidiu-se julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Reconhecer o direito de crédito da A. sobre o 1º R. no valor de € 24.118,80 (vinte e quatro mil cento e dezoito euros e oitenta cêntimos);
b) Reconhecer o direito de crédito do 1º R. sobre a A. no valor de € 2.218,58 (dois mil duzentos e dezoito euros e cinquenta e oito cêntimos);
c) Declarar compensado o crédito da A. pelo valor do crédito do 1º R., condenando o 1º R. a pagar à A. o remanescente, no valor global de € 21.900,22 (vinte e um mil novecentos euros e vinte e dois cêntimos);
d) Condenar o 1º R. nos juros de mora à taxa legal sobre o valor referido em c), desde a data de vencimento da obrigação até efectivo e integral pagamento;
e) Condenar a 3ª R., EE, S.A., solidariamente com o 1º R., no pagamento à A. do valor de € 14.859,02 (catorze mil novecentos e cinquenta e nove euros e dois cêntimos), acrescido de juros legais;
f) Condenar a 2ª R. FF, solidariamente com o 1º R. no pagamento à A. do valor de € 7.041,20 (sete mil e quarenta e um euros e vinte cêntimos), acrescido de juros legais;
g) Absolver os RR. do demais peticionado.
h) Julgar improcedentes as excepções de nulidade e abuso de direito invocadas.

7. Inconformadas recorreram as RR. EE, SA., e FF, Sociedade Unipessoal, Lda., nos termos e com os fundamentos seguintes [segue transcrição das conclusões do recurso]:
A. DA MOTIVAÇÃO DA EE
1.ª O objecto do presente recurso é a totalidade da decisão que condenada a Recorrente EE, solidariamente com o 1.º Réu, no pagamento à Autora do valor de € 14.859,02 (catorze mil oitocentos e cinquenta e nove euros e dois cêntimos), acrescido de juros legais;
2.ª A Recorrente entende que a matéria de facto e de direito sujeita à apreciação do douto Tribunal merece uma decisão final diferente da proferida.
3.ª Concretamente, entende a Recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como facto provado que à fiança prestada não corresponde qualquer interesse justificado da EE.
4.ª Sendo que o depoimento de parte do 1.º Réu impõe diversa decisão da recorrida (depoimento gravado em CD, no dia 19 de Março de 2015, com início da gravação: 10:11:34; fim da gravação: 11:05:33), concretamente a seguinte passagem: 46m04s a 48m45s;
5.ª Tratando-se de matéria de incapacidade de gozo, por se tratar de matéria de conhecimento oficioso, pode ser apreciada pelo Tribunal a todo o tempo, ser suscitada por qualquer interessado e é insanável mediante confirmação.
6.ª Por força do citado artigo 6.º, n.º 3 do CSC, com referência ao artigo 294.° do Código Civil, são nulos os actos gratuitos das sociedades comerciais na medida em que se trata de actos sem qualquer contrapartida e, portanto, contrários ao fim lucrativo prosseguido pelas sociedades
7.ª Sendo a regra geral a de se considerar a sociedade incapaz de prestar garantias gratuitas (como foi no caso) em benefício de terceiros, a alegação e a demonstração de que a garantia fora dada no interesse da sociedade-garante competia ao beneficiário dessa garantia, que no caso dos autos são o 1.º Réu e a Autora.
8.ª Na verdade, a Recorrente é totalmente estranha à obrigação emergente à fiança, não tinha nenhum interesse próprio que a ligasse a tal obrigação.
9.ª Assim, o ato de constituição da fiança é nulo por contrário ao princípio da especialidade do fim que norteia a actividade das sociedades e também por contrário ao objecto das sociedades.
10.ª E nem se diga que os terceiros ficam, neste caso, desabrigados, uma vez que ninguém pode alegar o desconhecimento da lei, nomeadamente os limites impostos pela lei acerca da capacidade das sociedades comerciais.
11.ª Pelo que, quanto às garantias de dívidas prestadas por uma sociedade a favor de terceiros, não há qualquer expectativa por parte do beneficiário da garantia que mereça ser tutelada.
12.ª A douta sentença recorrida violou, assim, o disposto nos artigos 6.º, n.º 3 do CSC, 280.º e 294.º do Código Civil.
Subsidiariamente:
13.ª A verdade é que a fiança é um meio de garantia de satisfação do direito do credor, embora acessória da que recai sobre o devedor principal, por subordinada a esta.
14.ª Razão pela qual, a extinção do contrato de arrendamento – fonte geradora da obrigação principal – implica a extinção da fiança.
15.ª A condenação da Recorrente no pagamento de uma indemnização, calculada com base no dobro das rendas vencidas, não tem por fonte um eventual incumprimento do contrato de arrendamento, que já cessara, mas a ocupação indevida do imóvel sem qualquer título que para tal o legitime.
16.ª Analisada a fiança prestada pela Recorrente, vê-se que esta nunca assumiu qualquer responsabilidade por uma obrigação nascida após a cessação do contrato – no caso, ocupação ilícita do locado.
17.ª Tudo o que daí para a frente ocorrer já não responsabiliza os fiadores sob pena de se alargar injustificadamente a fiança para lá do seu próprio objecto contratualmente assumido, retirando-lhe o imprescindível carácter acessório e tornando-a indeterminada.
18.ª Por outro lado, no contexto do contrato de arrendamento dos autos, a declaração dos garantes, de assunção da responsabilidade por “todas as obrigações assumidas pelo locatário” emergentes do presente contrato, pressupõe que o arrendamento não está findo, não abrangendo, assim, a indemnização devida pelo atraso da locatária na restituição do locado (artigo 1045.º nº 1 e 2 do Código Civil).
19.ª Pelo que, improcedendo o explanado supra, a Recorrente EE apenas poderia ser condenada no pagamento da quantia de € 11.203,76 e não € 14.859,02.
20.ª Entende a Recorrente que foram violadas as normas constantes dos artigos 627.º, 651.º e 1045.º do Código Civil.
B. DA MOTIVAÇÃO DA FF
21.ª O objecto do presente recurso é a totalidade da decisão que condena a Recorrente FF, solidariamente com o 1.º Réu, no pagamento à Autora do valor de € 7.041,20 (sete mil e quarenta e um euros e vinte cêntimos).
22.ª Por despacho de 16 de Junho de 2014, o Tribunal a quo – apreciando a invocada falta de citação para a acção e a requerida anulação de todo o processado após a Petição Inicial, com a consequente ordenação de citação para ora Recorrente contestar – (i) deu o agendamento da audiência de discussão e julgamento sem efeito e (ii) declarou a falta de citação da FF.
23.ª Esta decisão que declara a falta de citação da FF transitou em julgado, uma vez que não foi interposto recurso desta decisão.
24.ª Perante a decisão que declara a falta de citação da FF, a Autora optou por não requerer a citação da aqui Recorrente e, tendo em conta que ainda não tinha sido designado dia para a audiência final (que havia sido dada sem efeito por despacho de 16 de Junho de 2014), poderia e deveria tê-lo feito.
25.ª Assim, não tendo este sido a ora Recorrente citada – uma vez que invocou a falta da sua citação e teve ganho de causa – e não tendo a sua citação sido requerida pela Autora, tal equivale a uma redução das partes litisconsorciadas e, por conseguinte, à desistência da instância em relação à aqui Recorrente.
26.ª Pelo que, não poderia ter sido a Recorrente FF condenada no pagamento de qualquer quantia.
27.ª Ao decidir como decidiu, violou a sentença recorrida o disposto nos artigos 190.º, al. b), 259.º e 3.º, n.º 1 do CPC
28.ª Sem prescindir nem conceder, a Recorrente FF dá por integralmente reproduzida a motivação da Recorrente EE alegada em B. supra, designadamente a alegada nulidade do ato de constituição da fiança e a não responsabilidade da Recorrente pela indemnização decorrente da falta da entrega do locado,
29.ª Pelo que, improcedendo o explanado supra, a Recorrente FF apenas poderia ser condenada no pagamento da quantia de € 5.601,04 e não € 7.041,20:
NESTES TERMOS, E NOS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, JULGANDO PROCEDENTE O PRESENTE RECURSO E CONSEQUENTEMENTE JULGANDO EM CONFORMIDADE COM AS PRESENTES ALEGAÇÕES, V. EXAS. FARÃO VERDADEIRA E SÃ JUSTIÇA!

8. A A. apresentou contra-alegações concluindo pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
(i) Da alteração da matéria de facto;
(ii) Da nulidade da fiança;
(iii) Da não responsabilidade dos fiadores pela mora na restituição do locado; e
(iv) Da condenação da R. Gestelec.
*
III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foi considerada a seguinte factualidade:
1. Factos provados
1.1. Em 15/04/2001, a A. e 1º e 2º RR. subscreveram um escrito intitulado “Contrato de Arrendamento para Habitação com Duração Limitada”, no qual aquela declarou ceder ao segundo, pelo período de 5 anos, com início em 01/05/2001 e termo em 30/04/2006, renovável, caso não fosse denunciado, pelo período de 1 ano, mediante a contraprestação mensal de Esc. 300.000$00/€ 1.496,39, o prédio urbano correspondente ao n.º 23 da Rua E… N…, freguesia de S. João de Brito, Lisboa, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …-A, o que o mesmo declarou aceitar – alínea A) da matéria assente.
1.2. A 2ª R. declarou garantir com renúncia ao benefício da excussão o cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo 1º R., em especial a renda e indemnização pelas eventuais rendas em atraso – alínea B) da matéria assente.
1.3. Em 15/04/2001, a A. e 1º e 2º RR., na qualidade de fiador e terceiro outorgante, subscreveram um escrito intitulado de “Contrato de Aluguer Anexo ao Contrato de Arrendamento para Habitação com Duração Limitada”, no qual aquela declarou ceder ao segundo, como dependência do contrato de arrendamento celebrado, mediante a contraprestação mensal de Esc. 150.000$00/€ 748,20, os aparelhos electrodomésticos e outros móveis discriminados em inventário, o que o mesmo declarou aceitar – alínea C) da matéria assente.
1.4. Em Junho de 2005, o 1º R. solicitou à A. a substituição do fiador no acordo de arrendamento, referido em 1.1., o que foi aceite por este – alínea D) da matéria assente.
1.5. Por escrito datado de 15/04/2001, intitulado de “Contrato de Arrendamento para Habitação com Duração Limitada”, a A. declarou ceder ao 1º R., pelo período de 5 anos, com início em 01/05/2001 e termo em 30/04/2006, mediante a contraprestação mensal de Esc. 300.000$00, o prédio urbano correspondente ao n.º 23 da Rua E… N…, freguesia de São João de Brito, Lisboa, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …-A, o que o mesmo declarou aceitar – alínea E) da matéria assente.
1.6. A 3ª R. declarou garantir com renúncia ao benefício de excussão o cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo 1º R., em especial a renda e indemnização pelas eventuais rendas em atraso, quanto ao acordo referido em 1.1. – alínea F) da matéria assente.
1.7. A contraprestação mensal devida pelo imóvel e pelo recheio sempre foram pagas conjuntamente, num único pagamento correspondente à respectiva soma, mediante depósito ou transferência bancária para a conta da A. … do Banco Bilbao Viscaya Argentaria – alínea G) da matéria assente.
1.8. Em 03/02/2010, a A. enviou ao 1º R. uma carta a comunicar que procedia à actualização das contraprestações pela aplicação da permilagem de 5% e que as mesmas passavam para o montante global de € 3.483,00 a partir de Março de 2011 – art. 5º da base instrutória.
1.9. Pelo menos dentro da semana seguinte o 1º R. recebeu a carta referida em 1.8. - art. 6º da base instrutória.
1.10. Em 16/02/2011, a A. enviou ao 1º R. uma carta a comunicar que procedia à actualização das contraprestações pela aplicação da permilagem de 5% e que as mesmas passavam para o montante global de € 3.657,00 a partir de Março de 2011 – artigo 1º da base instrutória.
1.11. Pelo menos dentro da semana seguinte o 1º R. recebeu a carta referida em 1.10. - artigo 2º da base instrutória.
1.12. Em 26/04/2011, o 1º R. enviou à A., que a recebeu em 27/04/2011, uma carta em que declarava que “venho por este meio, rescindir o Contrato de Arrendamento da moradia sita na Rua E… N… 23 – S. João de Brito – Lisboa, a partir do referido dia 11 de Abril de 2011, dando para o efeito o aviso prévio de 90 dias, de acordo com o estabelecido no respectivo contrato, prazo que terminará em 11 de Julho de 2010.”alínea H) da matéria assente.
1.13. Pelo menos até Março de 2011, o 1º R. pagou as contraprestações mensais pelo imóvel e pelo recheio – alínea I) da matéria assente.
1.14. No que toca às contraprestações de Março de 2011, o 1º R. pagou, pelo menos, a quantia de € 3.483,00 – alínea J) da matéria assente.
1.15. No que toca às contraprestações de Abril de 2011, o 1º R. pagou, pelo menos, a quantia de € 3.483,00 – alínea K) da matéria assente.
1.16. O 1º R. deixou de pagar contraprestações pelo menos a partir de Junho de 2011 – alínea L) da matéria assente.
1.17. Antes de Abril de 2011, a A. e o 1º R. não comunicaram entre si qualquer propósito de não renovação dos acordos acima referidos – alínea M) da matéria assente.
1.18. A A. e o 1º R. acordaram que as chaves do imóvel referido em 1.1. e o recheio seriam entregues em 08/08/2011 – alínea N) da matéria assente.
1.19. Em 08/08/2011, a A. recusou-se a receber as chaves do imóvel referido em 1.1. e o recheio, alegando que o locado não estava em condições, tendo a A. e 1º R. acordado o que consta do ponto 1.20. dos factos provados – art. 19º da base instrutória.
1.20. Em 08/08/2011, a A. e o 1º R. acordaram que as chaves do imóvel e o recheio seriam entregues em 29/08/2011 – alínea O) da matéria assente.
1.21. Em 29/08/2011 não se concretizou a entrega da casa – alínea P) da matéria assente.
1.22. Em 29/08/2011, a A. recusou-se a receber as chaves do imóvel referido em 1.1. e o recheio alegando que o locado ainda não se encontrava em condições – art. 20º da base instrutória.
1.23. A 29/08/2011, o 1º R. recusou-se a assinar o escrito intitulado de “Termo de Restituição Material de Bens Móveis e Imóvel” de fls. 71, que a A. lhe apresentou para a recepção das chaves do imóvel e recheio – art. 7º da base instrutória.
1.24. A 29/08/2011, a A. recusou-se a assinar o escrito intitulado de “Declaração de Entrega”, de fls. 74, que o 1º R. lhe apresentou para a recepção das chaves do imóvel e recheio – art. 8º da base instrutória.
1.25. Em 29/08/2011, o 1º R. declarou à A. que pagava a contraprestação referente ao mês de Agosto de 2011, mediante cheque que a A. teria que levantar no Entroncamento – art. 21º da base instrutória.
1.26. A A. recusou ter de levantar o cheque no Entroncamento – art. 22º da base instrutória.
1.27. Em 29/08/2011, o 1º R. enviou à A. uma carta na qual comunicava que as chaves se encontravam à sua disposição, conforme fls. 135 – art. 23º da base instrutória.
1.28. Em 23/09/2011, a A., através de advogada, solicitou ao 1º R., na pessoa de Dr. GG, a entrega das chaves – art. 9º da base instrutória.
1.29. Em 04/10/2011, a A., através de Advogada, solicitou ao 1º R., na pessoa de Dr. HH, a entrega das chaves – art. 10º da base instrutória.
1.30. Em 11/10/2011, a A., através de advogada, solicitou ao 1º R., na pessoa de Dr. HH, a entrega das chaves – art. 11º da base instrutória.
1.31. Em 18/10/2011, a A. recebeu comunicação do 1º R. a dar-lhe conhecimento que as chaves se encontravam à sua disposição no escritório do Dr. HH – alínea Q) da matéria assente.
1.32. A 28/10/2011, as chaves foram levantadas pela A., através de advogada – alínea R) da matéria assente.
1.33. A A. suportou o pagamento das despesas de telefone do imóvel referido em 1.1. relativo ao período de Abril de 2011 e Outubro de 2011 no montante global de € 26,01 – art. 12º da base instrutória.
1.34. As Sras. Ana C… e Ana P… subscreveram o escrito de fls. 173 – art. 13º da base instrutória.
1.35. Antes da data referida em 1.1., a A. avisou o 1º R. que tinha o imóvel em questão a título de empréstimo – art. 14º da base instrutória.
1.36. Os Srs. Dr. Maria A… e Dr. Pedro B… subscreveram o escrito de fls. 170 a 172 – art. 15º da base instrutória.
1.37. Antes de subscrever o escrito referido em 1.1., o 1º R. foi assessorado pelos advogados Srs. Dr. Maria A… e Dr. Pedro B… – art. 16º da base instrutória.
1.38. Na data referida em 1.1., a título de caução pelo cumprimento do aí estipulado, o 1º R. entregou à A. a quantia de Esc. 250.000$00/€ 1.246,99 – alínea S) da matéria assente.
1.39. Na data referida em 1.3., a título de caução pelo cumprimento do aí estipulado, o 1º R. entregou à A. a quantia de Esc. 200.000$00/€ 997,60 – alínea T) da matéria assente.
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2. Factos não provados
2.1. Em 11/04/2011, o 1º R. enviou à A., para a morada que consta dos escritos referidos em 1.1., uma carta a declarar que punha termo aos acordos – art. 17º da base instrutória.
2.2. A A. recebeu a carta referida em 2.1. - art. 18º da base instrutória.
2.3. O 1º R. pagou as contraprestações vencidas em Maio de 2011 – art. 3º da base instrutória.
2.4. O 1º R. pagou as contraprestações vencidas em Junho de 2011 – art. 4º da base instrutória.
2.5. A recusa referida em 1.24. ocorreu por falta de pagamento de uma contraprestação – art. 20º da base instrutória.
2.6. Na ocasião referida em 1.25. o 1º R. declarou que pagava a contraprestação referente ao mês de Agosto de 2011 descontada do valor da caução de € 2.245,00 – art.21º da base instrutória.
2.7. A A. recebeu a carta referida em 1.27. - art. 24º da base instrutória.
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B) – O Direito
1. Da alteração da matéria de facto
1.1. Invocam as recorrentes que o Tribunal deveria ter dado como provado que à fiança prestada não corresponde qualquer interesse justificado da R. EE, invocando, que o depoimento de parte do 1º R. “impõe decisão diversa da recorrida”.
Assim lidas as conclusões do recurso somos levados a concluir que o tribunal recorrido terá considerado como não provada tal matéria, entendendo agora a recorrente que a mesma deve ser dada como provada.
Mas, trata-se de pura ilusão.
Efectivamente, não resulta do elenco dos factos provados, nem dos não provados a alusão a tal interesse e a explicação é simples: tal matéria não foi alegada pelas partes.
E ainda que se entenda estar em causa questão susceptível de invalidar a fiança e poder ser conhecida a todo o tempo, como refere a recorrente, em face do disposto nos artigos 6º, n.º 3, do Código das Sociedades Comerciais, e 294º do Código Civil, não estava a parte interessada dispensada de alegar os factos essenciais a tal pretensão.
Como se sabe, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art.º 5º, do C. P. Civil, cabe às partes “alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”; e para além dos factos articulados pelas partes o juiz ainda se pode servir (i) dos “factos instrumentais que resultem da instrução da causa”, (ii) dos “factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”, (iii) dos “factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções”.
Ora, como se disse, entre outros no acórdão desta Relação de 25/01/2018 (proc. n.º
1180/11.5TBCTX-B.E1), disponível como os demais citados sem outra referência em www.dgsi.pt, que o aqui relator subscreveu como 2º adjunto: «… com o novo Código de Processo Civil, “atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório, uma vez que continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa”» [cfr. Ac. STJ de 10-09-2015, Revista n.º 819/11.7TBPRD.P1.S1 - 2.ª Secção].
Ora, no caso concreto, a A. alegou, como lhe competia, a prestação da fiança pela ora recorrente, e não vemos que esta tenha invocado a factualidade subjacente ao juízo conclusivo que agora pretende seja dado como provado, a qual era essencial à apreciação da questão jurídica que suscitou nas alegações orais proferidas em 1ª instância e agora em sede de recurso.
E a solução não seria diferente caso se entendesse que era à A. que competia alegar a factualidade demonstrativa do interesse da R. na prestação da fiança, porquanto, sendo tal factualidade então essencial ao pedido de condenação da R. fiadora, teria também que ser alegada.
Acresce que o “facto” que as recorrentes pretendem ver demonstrado em relação à R. EE não é um facto, mas um juízo conclusivo, o qual não tendo sido sequer invocado nem poderia levar o tribunal a formular o pertinente convite ao aperfeiçoamento, para que fossem alegados os factos em que tal juízo assentaria.
É pois manifesta a improcedência da invocada alteração da matéria de facto.

2. Da nulidade da fiança
Entendeu-se na sentença que a 2ª e 3ª RR., na qualidade de fiadoras [a R. EE veio a substituir a R. DD como fiadora no contrato descrito em 1.1., o que ocorreu por volta de 2005, mas tal substituição não operou quanto ao contrato descrito em 1.3., sendo que aí se manteve como fiadora a R. DD, ora substituída nos autos pela FF], em face do disposto nos artigos 627, n.º 1, 628º e 634º do Código Civil, eram solidariamente responsáveis pelo pagamento à A. das quantias de € 7.041,20 e 14.859,02, respectivamente, acrescidas de juros, como consta das alínea f) e e) do dispositivo.
A R. EE discorda deste entendimento, invocando, à semelhança do que antes fizeram ambas as RR. nas alegações orais, a nulidade da fiança prestada, alegando que, por força do artigo 6.º, n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais, com referência ao artigo 294.° do Código Civil, são nulos os actos gratuitos das sociedades comerciais na medida em que se trata de actos sem qualquer contrapartida e, portanto, contrários ao fim lucrativo prosseguido pelas sociedades.
Mais diz a recorrente que, sendo a regra geral a de se considerar a sociedade incapaz de prestar garantias gratuitas (como foi no caso) em benefício de terceiros, a alegação e a demonstração de que a garantia fora dada no interesse da sociedade-garante competia ao beneficiário dessa garantia, que no caso dos autos são o 1.º Réu e a Autora, e que a recorrente é totalmente estranha à obrigação emergente à fiança, não tendo nenhum interesse próprio que a ligasse a tal obrigação.
Na sentença recorrida entendeu-se que não era à A. que competia a prova da existência de justificado interesse próprio da sociedade garante, e afigura-se-nos que acertadamente.
Senão vejamos:
No artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais (sob a epígrafe “Capacidade”), prescreve-se que:
«1 - A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.
2 - As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.
3 - Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
(…)»
Sendo lucrativo o fim das sociedades comerciais, e mesmo que se considere que o lucro não tem de ser aferido acto a acto, mas sim no conjunto da actividade da pessoa colectiva, a verdade é que parece inquestionável que a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, em princípio, afastar-se-ia do intuito lucrativo. Mas, para que dúvidas não possam subsistir, o n.º 3 do artigo 6º determina expressamente que tal prestação é contrária ao fim da sociedade. Consagram-se, contudo, duas importantes ressalvas: salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou tratando-se de sociedades em relação de domínio ou de grupo.
Da matéria de facto apurada não é possível concluir pela ocorrência de qualquer das excepções previstas.
Na verdade, para apreciação da referida nulidade com fundamento na incapacidade das RR. para a prática do acto, apenas se dispõe do conhecimento de que as RR. são sociedades comerciais e que as RR. EE e a DD, ora substituída pela FF, prestaram as fianças acima indicadas nos autos. Não foram sequer alegados os correspondentes factos tendentes a demonstrar a (in)existência de falta de interesse da sociedade garante na prestação da fiança.
Importa, porém, saber a quem incumbe a prova dos factos.
O princípio geral é conhecido: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extensivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita (cf. artigo 342º nºs. 1 e 2 do Código Civil).
E, como igualmente se diz na sentença, sendo invocada pelas RR. a nulidade da fiança prestada, a estas incumbia alegar e demonstrar os seus pressupostos, enquanto factos impeditivos do direito da A., nos moldes consignados no artigo 342º, n.º 2, do Código de Processo Civil. A nulidade decorre de falta de capacidade para a prestação de garantias pessoais – por contrárias ao fim da sociedade –, sendo que esta falta de capacidade, por seu turno, pressupõe a inexistência de um justificado interesse próprio por parte da sociedade garante.
De facto, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/05/2003 (proc. n.º 03A318), disponível, como os demais citados sem outra referência, em www.dgsi.pt, relativamente à questão do ónus da prova nesta matéria: «Afigura-se-nos que não é correcto o entendimento de que o nº 3 do artigo 6º do CS Comerciais para efeitos do ónus da prova deve ser cindido em duas partes, considerando-se que “salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante” é facto a provar pela pessoa colectiva a quem foi prestada a garantia.
Aliás, a entender-se que é a sociedade garantida que tem que provar a existência de interesse próprio por parte da sociedade garante, estar-se-ia perante uma prova que na prática seria muito difícil ou impossível de fazer, salvo, obviamente, se existissem prévias cautelas à prestação da garantia.
Tirando casos limite, não se vê como é que uma sociedade pode provar que os actos praticados por outra foram no interesse próprio desta, tanto mais que por um lado a lei não diz o que entender por tal interesse e, por outro, este teria que ser avaliado com referência à globalidade da actividade social da sociedade e não apreciado o acto de forma isolada.»
Este foi também o entendimento seguido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/05/2013 (proc. n.º 300/04.0TVPRT-A.P1.S1), conde se concluiu: «II - Estando em causa a delimitação da capacidade de gozo de direitos por parte das sociedades comerciais, por conjugação dos n.ºs 1 e 3 do art. 6.º do CSC e por convocação do preceituado nos arts. 280.º, n.º 1, e 294.º, do CC, deve, em princípio, considerar-se contrária ao fim da sociedade – e, como tal, nula – a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades.
III - No entanto, não se considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo (art. 6.º, n.º 3, do CSC).
IV - Quanto à prova da existência de justificado interesse próprio da sociedade garante na prestação de qualquer das mencionadas garantias, não deve a entidade garantida ser penalizada com a nulidade do acto de prestação de garantia se não almejar provar a existência do mencionado e justificado interesse próprio da sociedade garante, devendo aquele acto subsistir incólume se a sociedade garante não lograr provar a inexistência, in casu, do mesmo interesse.»
Sabemos que esta posição não é pacífica, mas, como se dá conta neste último aresto, a posição que adoptámos corresponde à jurisprudência predominante no Supremo Tribunal de Justiça [cf., a título de exemplo, ainda, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 21/09/2000, in Col/STJ – 3º/36, , de 17/06/04, in Col/STJ – 2º/94, e de 07/10/10, Proc. 291/04.8TBPRD-E.P1.S1], e ao entendimento de parte significativa da doutrina [cf. Prof. Raul Ventura, no BMJ, Documentação e Direito Comparado, 1980, nº2, pags. 144 e Sociedades por Quotas, Vol. III, pags. 169, Pedro de Albuquerque, in ROA, Ano 57, pags. 134, Cardoso Guedes, na R. D. E. XIII, pags. 155, Prof. Vaz Serra, na RLJ, Ano 103º, pags. 169, nota 1 e pags. 271, e Soveral Martins, in Os Poderes de Representação dos Administradores das Sociedades Anónimas, pags. 317)].
Deste modo, e não tendo as recorrentes logrado provar a inexistência de justificado interesse próprio na prestação das garantias em causa, improcede a invocada nulidade, mantendo-se incólume a obrigação decorrente das fianças prestadas.

3. Da não responsabilidade dos fiadores pela mora na restituição dos bens locados (imóvel e recheio)
Entendeu-se na sentença recorrida que a responsabilidade do fiador abrange também as consequências do incumprimento contratual por parte do arrendatário, o que significa que sobre as RR., na qualidade de fiadoras, impedirá também a obrigação de indemnizar a A., quer quanto aos valores de renda em falta, quer quanto às indemnizações decorrentes do incumprimento contratual por parte do 1º R., pois esta obrigação não resulta excluída do contrato, pois está provado que que a R. EE declarou garantir com renúncia ao benefício de excussão prévia o cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo 1º R., em especial, a renda e indemnização pelas eventuais rendas em atraso, quanto ao acordo referido em 1.1. (cf. ponto 1.6. dos factos provados).
Não tendo o 1º R. procedido à entrega do locado no termo do arrendamento, por facto que lhe é imputável, concluiu-se que responde pelos danos causados e solidariamente o fiador, porque a sua responsabilidade decorrente do disposto no artigo 634º do Código Civil abrange as consequências do incumprimento contratual. Daí que se tenha condenado solidariamente cada uma das RR. no pagamento das quantias devidas pelo 1º R. pela mora na restituição dos bens locados, com referência aos contratos por cada uma das RR. afiançados.
As RR., ora recorrentes, discordam deste entendimento, porquanto entendem que não podem ser condenadas no pagamento da indemnização pelo retardamento na entrega do locado, porque a extinção do contrato de arrendamento – fonte geradora da obrigação principal – implica a extinção da fiança, e aquela indemnização não tem por fonte um eventual incumprimento do contrato de arrendamento, que já cessou, mas a ocupação indevida do imóvel sem qualquer título que a tal legitime.
Vejamos:
Como ensina Almeida Costa (Direito Das Obrigações, 12.ª Edição, pág. 888/889), a fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro assegura com o seu património o cumprimento de obrigação alheia, ficando pessoalmente responsável perante o respectivo credor – artigo 627º, n.º 1 do Código Civil.
A fiança, não podendo exceder a dívida principal, nem ser contraída em condições mais onerosas, por regra, mantém-se enquanto se mantiver a obrigação principal, e só a extinção desta determina a extinção daquela, podendo ser oferecida para garantia de obrigações futuras (cf. art. 628º, n.º 2, 631º, n.º 1 e 651º do Código Civil) – Almeida Costa, ob. cit. pág. 893; Menezes Leitão, Garantia das Obrigações, 4.ª Edição, pág. 97; e Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, pág. 644).
A responsabilidade do fiador coincide, em regra, com a do devedor principal, abrangendo tudo a que este se obrigou, incluindo a prestação, a reparação de incumprimento culposo e, até, se estabelecida, a cláusula penal (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/12/2006 (proc. n.º 06A4127); Pires de Lima e A. Varela, ob. cit. pág. 652).
Nos termos do disposto no artigo 634º do Código Civil, “[a] fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências da mora ou culpa do devedor”.
Como já salientavam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol I, pág. 651/652), em a notação ao referido preceito, «[o] fiador é responsável, portanto, não só pela prestação devida, como pela pena convencional (cfr. art. 810º), ou pela reparação dos danos, havendo culpa do devedor (cfr. artigo 798º), salvo se outra coisa se tiver convencionado, já que, como resulta do art. 631º, n.º 1, a fiança pode ser contraída em menos onerosas condições.»
E, acrescentavam estes autores: «Os termos claros em que se exprime o artigo 634º mostram que não é legítima a dúvida que já se levantou (vide Vaz Serra, Algumas questões em matéria de fiança, n.º 9; Bol., n.º 96), quanto à responsabilidade do fiador pelos lucros cessantes. De resto consagra-se a solução mais razoável já que, como diz aquele autor “a fiança se destina a garantir o credor de que obterá o resultado do cumprimento da obrigação principal e, portanto, o fiador, tenha ou não atentado devidamente na responsabilidade que contraiu, se obriga, se não estipulou coisa diferente, por aquilo a que o devedor está obrigado. Tal é a função da fiança que o fiador não deve desconhecer. O fiador não tem de admitir só que venha a ter de entregar ao credor o equivalente pecuniário da prestação devida pelo devedor principal, mas, como já se acentuou, também a indemnização dos danos causados pelo não cumprimento, pela mora ou pelo cumprimento imperfeito da obrigação” (loc. cit)»
Não se suscitam dúvidas nos autos quanto à responsabilidade solidária dos fiadores quanto ao pagamento das rendas em atraso nem quanto à indemnização prevista no artigo 1041º do Código Civil.
A questão que se coloca diz apenas respeito à indemnização devida pela não restituição da coisa locada findo o contrato, prevista no artigo 1045º do Código Civil.
No caso importa interpretar o contrato de arrendamento em apreço, mormente as declarações negociais nele insertas em relação à responsabilidade do fiador, na procura da impressão do real destinatário, com apoio nos termos da declaração e nas demais circunstâncias do negócio jurídico, bem como nos fins pelas partes visados (cf. artigo art. 236º, nº 1, do CC), sendo o sentido decisivo da declaração aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.
O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., p. 223, e Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, p. 309 e ss.)
Ora, no caso em apreço, está provado que “[a] 3ª R. declarou garantir com renúncia ao benefício de excussão o cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo 1º R., em especial a renda e indemnização pelas eventuais rendas em atraso, quanto ao acordo referido em 1.1.” (cf. ponto 1.6. dos factos provados)
Como resulta da interpretação que fazemos da dita cláusula contratual, para além do pagamento da renda e da responsabilização por eventuais atrasos, resulta para o fiador a responsabilidade pelo cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo 1º R. (destaque nosso), pelo que, sendo uma das obrigações do arrendatário (o 1º R.) a entrega da coisa findo o contrato, em bom estado de conservação, também o fiador responde solidariamente pelo incumprimento desta obrigação contratual.
É certo que o contrato de arrendamento cessou com a denúncia contratual, mas a obrigação de entrega do bem não deixa se ser uma obrigação decorrente do contrato, a que o devedor principal está adstrito e o fiador, nos termos da fiança prestada.
Nesta matéria sufragamos, por conseguinte o entendimento seguido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/08/2008 (proc. n.º 08B158), onde se concluiu que: «(…) 5. A fiança prestada no contrato de arrendamento “pelo exacto cumprimento de todas as obrigações” do locatário, abrange necessariamente a responsabilidade contratual da inquilina, mormente a da entrega ao senhorio, findo o contrato, do local arrendado em bom estado de conservação.»
Como se diz neste aresto: «…, sendo o arrendamento o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição – arts 1022º e 1023º e 1º do RAU – e sendo um contrato bilateral, nele se estabelecem obrigações diversas a cargo do senhorio e do inquilino – arts 1031º e 1038º.
Sendo elementos essenciais do contrato em apreço, a obrigação de proporcionar a outrem o gozo de uma coisa imóvel, a temporalidade do gozo e a onerosidade do mesmo e a retribuição.
Sendo o dever de manutenção e de restituição da coisa no estado em que o locatário a recebeu, entre outros, um elemento natural do mesmo contrato, ou seja, uma cláusula legal mas que constitui regra supletiva e não imperativa (só não valendo como regra obrigatória se as partes a derrogarem) – Januário Gomes, Arrendamento Urbano, p. 258 e seg.
Pelo que, sabendo-se que a fiança é estabelecida para a vigência do contrato e para garantia do cumprimento das obrigações que dele possam advir, de acordo com o conteúdo do mesmo, e sendo certo que a disposição legal inserida na secção de tal garantia e a ela expressamente atinente – art. 655º, nº 1 –, reportando-se às obrigações do locatário, tem sobretudo em mente a obrigação do pagamento da renda – cfr. o nº 2 do ora citado preceito e Januário Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, p. 310, nota 95 – pode questionar-se se, de facto, a garantia prestada pelo réu se limitará apenas às rendas que possam vir a ser devidas (cuja mora, derivará do incumprimento de uma obrigação essencial do locatário) ou se a mesma abrangerá também as demais obrigações do locatário previstas nas cláusulas contratuais (sendo que muitas delas e sobretudo as que ora importam resultam directamente da lei).
Responderemos que sim, que a garantia prestada abarcará também o cumprimento das obrigações pela locatária assumidas, mormente a da entrega ao senhorio, findo o contrato, do local arrendado em bom estado de conservação (elemento natural do contrato).
Pois, sabido é que a mesma, para além do dever de pagar a renda estipulada, deve, ainda, alem de outras obrigações que ao caso não importa, restituir a coisa locada findo o contrato e não fazer dela uma utilização imprudente – art. 1038º, als i) e d).
Devendo, na falta de convenção em contrário – que não se verifica, in casu – manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, salvo as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato. Presumindo-se até que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção – art. 1043º.
Devendo o contrato ser pontualmente cumprido, ou seja, ponto por ponto – art. 406º, nº 1.
Estando as sobreditas obrigações contratuais, além de directamente previstas na lei, expressamente ainda consignadas no contrato de arrendamento entre as partes celebrado, nas cláusulas 8ª, 9ª e 10ª, como atrás já se viu.
Às quais o fiador, como atrás visto, nos temos da referida cláusula 12ª, ficou garante do seu exacto cumprimento
Pelo que – e encontramo-nos agora no puro domínio da responsabilidade contratual, à qual as partes continuam adstritas mesmo após a cessação do contrato, com as vinculações que, desde logo, e consensualmente se impuseram - tendo a nave arrendada sido destruída pelo incêndio em questão, a nível da cobertura, tendo ficado com o pavimento estragado, com a instalação eléctrica e os portões destruídos, abandonando-a a ré nesse estado, é a mesma responsável, desde logo, pelo incumprimento das suas obrigações contratuais de, findo o contrato, entregar o locado em bom estado, tal como o havia recebido.
Garantindo a fiança pelo réu prestada a satisfação do correspondente direito de crédito do autor.»
Assim, entendendo-se que a fiança abrange as consequências do incumprimento contratual, designadamente a responsabilidade pela falta de restituição do locado no momento acordado, a responsabilidade das RR./fiadoras abrange as indemnizações devidas no caso em consequência da não de entrega do locado findo o contrato.
Improcede, por conseguinte, também esta pretensão das recorrentes.

4. Das consequências da falta de citação da R. FF.
Por fim, levanta a recorrente FF a questão da sua falta de citação para o processo, referindo que, por despacho de 16/06/2014 foi declarada a falta da sua citação e, não tendo a A. optado por pedir a citação em falta, não pode ser condenada no pedido.
Esqueceu-se, porém, a recorrente que, não obstante não ter sido citada, veio a entender-se na sentença recorrida que a R. FF assumiu nos autos a posição processual da primitiva R. DD, S.A., contra a qual foi inicialmente instaurada a acção, nos termos do n.º 2 do artigo 269º do Código Civil, na sequência da sucessão da sociedade FF, Sociedade Unipessoal, Lda., nos direitos e deveres da sociedade primitivamente demandada DD, S.A., a qual, embora tenha ocorrido em momento anterior à interposição da acção, só no decurso desta veio a ser conhecida nos autos, sendo que a sociedade FF, Sociedade Unipessoal, Lda., interveio por sua iniciativa nos autos a fls. 316 e ss., constituiu mandatário a fls. 319 e interveio em todos os termos subsequentes dos autos, inclusive, em sede de audiência de julgamento.
Assim, tendo a R. FF assumido a posição processual da primitiva R., podia e devia ter sido condenada no pedido.

5. Em face do exposto, improcede a apelação, confirmando-se a sentença recorrida
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C) – Sumário [artigo 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil]
I. Com o novo Código de Processo Civil, atribui-se ao juiz um poder mais interventor, sem que tal signifique, porém, o fim do princípio dispositivo e a sua substituição pelo princípio inquisitório, uma vez que continua a caber às partes a definição do objecto do litígio, através da dedução das suas pretensões e da alegação dos factos que integram a causa de pedir ou suportam a defesa.
II. Estando em causa a delimitação da capacidade de gozo de direitos por parte das sociedades comerciais, por conjugação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais, e face ao preceituado nos artigos 280.º, n.º 1, e 294.º, do Código Civil, deve, em princípio, considerar-se contrária ao fim da sociedade – e, como tal, nula – a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades.
III. Porém, não se considera contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
IV. É à sociedade garante que invoca a nulidade da garantia por si prestada, com o objectivo de se valer de tal nulidade, para não ter de cumprir a obrigação garantida, que compete alegar e provar a inexistência de interesse próprio, ou seja, provar os requisitos da nulidade de que se pretende aproveitar.
V. O fiador é responsável, não só pela prestação devida, como pela pena convencional, ou pela reparação dos danos, havendo culpa do devedor, salvo se outra coisa se tiver convencionado, já que, como resulta do artigo 631º, n.º 1, do Código Civil, a fiança pode ser contraída em menos onerosas condições.
VI. Tendo o fiador declarado garantir, com renúncia ao benefício de excussão, o cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo locatário, responde solidariamente com este pela indemnização devida decorrente do não cumprimento pelo locatário da obrigação de entrega do locado findo o contrato.
*
IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo das apelantes.
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Évora, 20 de Dezembro de 2018

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(Francisco Xavier)

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(Maria João Sousa e Faro)

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(Florbela Moreira Lança)